Mobilizando a igreja local para uma Missão Integral Transformadora1 César Marques Lopes Introdução Quando falamos em Missão Integral, uma gama de pensamentos e idéias nem sempre tão claras invadem a nossa mente ao lado de discussões e controvérsias que vêm desde 1974, em Lausanne. Estamos falando de ações sociais como mais importantes que o evangelismo? Os números não são importantes? Os pobres têm preferência sobre os ricos? Um dos conceitos que não estão muito claros, e que acaba se tornando um dos enganos mais perigosos para a Missão Integral, refere-se à idéia de que uma igreja local comum não é capaz de cumpri-la ou promovê-la. Afinal de contas, ela seria uma tarefa demasiadamente grande para apenas uma comunidade eclesial. Seria necessário que se pensasse na igreja como um todo para essa tarefa fundamental. É claro que esse pensamento tem um lado extremamente positivo: desafia, pelo menos a princípio, a uma comunhão maior com outras igrejas, à diluição das fronteiras denominacionais em prol da missão, a uma cooperação entre diferentes. Não pretendo, de forma nenhuma, negar a enorme importância dessa unidade cristã até como critério para o cumprimento da missão. O próprio Pacto de Lausanne se manifesta claramente quanto a isso; no Artigo 6º, afirma que: “A igreja ocupa o ponto central do propósito divino para com o mundo, e é o agente que ele promoveu para difundir o evangelho”. No entanto, o engano se materializa e se torna nocivo justamente porque é impossível que a Missão Integral seja realizada senão pela igreja local: A igreja é, de fato, uma família de igrejas locais em que cada uma deveria estar aberta para as necessidades das outras e disposta a compartilhar seus bens espirituais e materiais com elas. É através do ministério recíproco de missão que a igreja se torna real, em comunhão com a igreja universal e como concretização local da mesma (Bosch, 2002, 456). É na igreja local que a Missão Integral se concretiza, por meio das suas ações que promovem o crescimento nas dimensões numérica, orgânica, conceitual e diaconal (Costas, 1990, p. 113). A Igreja como um todo não existe onde a igreja local não esteja presente. A igreja universal não é atuante onde a local não esteja empreendendo essas ações. Chegamos então a um impasse: uma das críticas mais comuns que o movimento de Missão Integral latino-americano recebe é que ele não chegou a fazer parte do dia-a-dia das comunidades locais, dos cristãos, dos seus membros. A Missão Integral não chegou a se tornar, de fato, transformadora. Nem todos concordam totalmente com essa crítica: alguns são mais otimistas, afirmando que “a missão integral atingiu quase todos os segmentos da igreja” (de Souza, 2004, p. 118), e é possível questionar veementemente a extensão desse não-alcance – é evidente que muitos foram os impactos causados. No entanto, não há dúvidas de que, pelo menos em parte, a afirmação é verdadeira: o alcance missionário integral não conseguiu ser adotado como um estilo de vida por grande parte da membresia de igrejas que, a princípio, concordavam com tal visão. Buscaremos, nesta presente discussão, responder a basicamente duas perguntas a partir do contexto da igreja evangélica brasileira: em primeiro lugar, quais são as possíveis causas para que, de uma maneira generalizada, a igreja local não se envolva tão ativamente na Missão Integral? Em segundo lugar, que tipo de ações podem ser empreendidas por pastores e pastoras, missionários e missionárias, líderes da igreja em geral, para que uma comunidade local possa se engajar ativamente nessas ações? 1 Texto publicado originalmente no livro Missão Integral Transformadora (2006), pela Descoberta Editora. I. Algumas causas para o não-envolvimento da igreja local na Missão Integral Ao mencionar algumas das possíveis causas para esse problema, não pretendo oferecer uma resposta exaustiva, mas apresentar algumas dificuldades estruturais e teológicas que são recorrentes em nossas igrejas e acabam até fazendo parte de nossa própria identidade evangélica no Brasil. Em todos os momentos desta primeira parte, espero que você tenha em mente, como critério fundamental para avaliar a pertinência ou não dos argumentos apresentados, a formulação de alguns trechos fundamentais do Artigo 6º do Pacto de Lausanne (ênfases acrescentadas): Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim como o Pai o enviou (...) Na missão de serviço sacrificial da igreja a evangelização é primordial. A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo. A igreja (...) é o agente que ele promoveu para difundir o evangelho. Dos três pontos destacados acima surgirão os problemas apontados. O ideal preconizado pelo Pacto e afirmado pelas Escrituras é que o povo de Deus sinta-se enviado, que a igreja inteira vivencie a Missão Integral e que ela seja agente, ou seja, que tome uma posição ativa, e não passiva. 1. Pastoral versus missão: uma falsa dicotomia que engessa a igreja A igreja ocidental, ao longo desses milênios de desenvolvimento do cristianismo, adquiriu um hábito extremamente problemático: o de dividir o mundo, em praticamente todas as esferas do seu pensamento, dois extremos opostos entre si e mutuamente excludentes. Assim, temos como exemplo a dicotomia entre corpo e alma. Outra dicotomia clássica se dá entre o físico e o espiritual. Essas duas talvez sejam as mais cancerígenas da história da igreja, causando um desequilíbrio imenso na ação missionária do povo de Deus e se apresentando como um dos pontoschave abordados pela teologia da Missão Integral, que procura exterminar essa falsa divisão encarando o ser humano como um todo. Existe outra dicotomia igualmente perigosa: é a separação que se faz entre a ação pastoral do povo de Deus e a sua ação missionária. O senso comum do cotidiano eclesial encara a primeira esfera como a ação interna à igreja. A concepção de pastoral será mais intensamente discutida no próximo tópico, mas, por ora, basta entender que atividades como a liturgia, a edificação, a koinonia e outras são encaradas como pastorais, como sendo dedicadas exclusivamente (e sabemos que essa palavra não está mal colocada, aqui – pelo contrário, o caráter exclusivista está muito presente) aos que já são membros ou freqüentadores da igreja local. 2 Por outro lado, a esfera da ação missionária estaria voltada para fora do ambiente eclesial. Entende-se como missionárias, nessa perspectiva, aquelas ações voltadas para o alcance e a expansão da igreja, para fora dos muros da igreja local, em direção ao mundo. Essa separação, em si mesma, não é assim tão problemática. A princípio, não existe problema em planejar as ações da igreja na perspectiva de que existem, sim, ações mais tipicamente voltadas para fora ou para dentro dela. No entanto, essa separação progrediu em direção a uma oposição. Ou seja, na prática, o pastoral acabou se tornando um oposto do missionário. Não é nada incomum encontrarmos irmãos e irmãs, no começo de sua preparação ministerial num seminário, afirmando que “meu chamado é mais pastoral do que missionário” ou que “fui chamado(a) para cuidar da igreja, e não para ser missionário(a)”. Jorge Barro propõe uma solução profundamente coerente com a teologia da Missão Integral para esse impasse. Ele sugere que deixemos de ser simplesmente pastores de uma denominação ou igreja local para que nos tornemos pastores do Reino de Deus: 2 Estou consciente de que a utilização da expressão pastoral adquire significados diversos nos vários ramos do cristianismo. Emprego esse termo aqui como fazendo referência à ação dos pastores na igreja. Trago uma discussão um pouco mais densa sobre o tema logo abaixo, ao discutir a divisão entre clero e laicato. É possível ser pastor de uma denominação ou igreja local sem ser pastor do reino de Deus (...) Quem é pastor do reino de Deus, investe no reino de Deus. Investe os recursos da igreja no cumprimento da tarefa missionária, na transformação da sociedade, torna sua igreja uma agência de Deus para a redenção da sua cidade (Barro, 2003, p. 198-199). Quando percebemos a necessidade de ser pastores do reino de Deus, começamos a perceber que não existem ações eclesiais que sejam, utilizando a nomenclatura nessa perspectiva, exclusivamente pastorais. Não existem ações eclesiais cujo único objetivo seja atingir as pessoas que já estão dentro da igreja. A perspectiva correta é exatamente o contrário. O pastoral existe, única e exclusivamente, com um objetivo missionário. E quem afirma isso é o apóstolo Paulo: E ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, com o fim de preparar os santos para a obra do ministério, para que o corpo de Cristo seja edificado, até que todos alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e cheguemos à maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo (Ef 4.11-13, ênfase acrescentada). Ou seja, o objetivo da dimensão pastoral da ação eclesial é “preparar os santos para a obra do ministério” (v. 12), uma preparação que leve à edificação do Corpo de Cristo, à maturidade, ao conhecimento do Filho de Deus, à plenitude de Cristo e daí, novamente, para a missão. A “edificação do Corpo de Cristo”, aqui, não deve ser concebida exclusivamente como a dimensão didática da ação pastoral, como o ensino dos que já são membros da igreja, mas deve ser compreendida como a construção do Corpo de Cristo, do Reino de Deus, fazendo-o se expandir para dentro do mundo, alcançando aqueles que carecem da glória de Deus. O Pacto de Lausanne também afirma a mesma coisa: Afirmamos a nossa crença no único Deus eterno, Criador e Senhor do Mundo, Pai, Filho e Espírito Santo, que governa todas as coisas segundo o propósito da sua vontade. Ele tem chamado do mundo um povo para si, enviando-o novamente ao mundo como seus servos e testemunhas, para estender o seu reino, edificar o corpo de Cristo, e também para a glória do seu nome (Pacto de Lausanne, Artigo 1º). Em resumo, lendo o texto de Efésios 4 na perspectiva do Pacto de Lausanne, o propósito de Deus para a ação pastoral é que ela prepare todas as pessoas da igreja para a ação missionária no mundo. Ou seja, o propósito é que, na linguagem do nosso critério fundamental citado acima, as pessoas sejam enviadas. Essa declaração é assustadoramente simples e libertadora! O objetivo da ação pastoral não é, portanto, tranqüilizar o ego dessas pessoas, trabalhar para que elas alcancem a assim chamada prosperidade, oferecer as mais eletrizantes novidades da espiritualidade, promover Shows da Fé; não é, enfim, nem mesmo realizar a obra do ministério por elas. É, pura e simplesmente, enviá-las para que elas mesmas possam realizar tal obra. Isso inverte totalmente a nossa perspectiva quanto ao sucesso do ministério. Esse sucesso deixa de ser medido pelo tamanho da igreja, pelo seu orçamento, pelo número de congregações, pelo tempo que alguém se mantém na mesma igreja. Nas palavras de Charles van Engen, “o sucesso ou o fracasso do trabalho e do ministério da pessoa ordenada serão julgados somente segundo o grau em que a Igreja se torna povo missionário” (1996, p. 201, ênfase acrescentada). Uma pastoral que alimente a Missão Integral também é, para René Padilla, o verdadeiro critério para se avaliar o sucesso de um ministério. É essa a idéia que ele defende ao afirmar que “a questão realmente importante com respeito ao crescimento da igreja não é a expansão numérica exitosa – um êxito segundo os critérios do mundo – mas a fidelidade ao evangelho, que certamente nos impulsionará a orar e trabalhar para que mais gente se converta a Cristo” (1992, p. 44). Orlando Costas é outro teólogo latino-americano que coloca a mobilização para a missão como tarefa primordial do ministério pastoral: “dentre todas as tarefas atribuídas ao ministério pastoral, nenhuma é tão abrangente e crucial quanto a mobilização dos fiéis para o testemunho” (1979, p. 26). Faço questão de mencionar todos esses autores porque a afirmação de que o caráter missionário do povo da Igreja seja o único critério para a avaliação do sucesso de um ministério pode parecer exagerada. No entanto, é exatamente essa a idéia que o texto bíblico de Efésios 4 transmite: não existe outro propósito, não existe outra necessidade de se ter pessoas exercendo essa função pastoral além do trabalho de converter membros de igreja em novos missionários de do Reino de Deus3. A separação e oposição entre o pastoral e o missionário traz algumas conseqüências graves para a Missão Integral. A primeira delas é também afirmada no primeiro artigo do Pacto de Lausanne: “Confessamos, envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa missão, em razão de nos termos conformado ao mundo ou nos termos isolado demasiadamente”. Ou seja, a Missão Integral não tem sido corretamente desempenhada também porque nos isolamos, como povo de Deus, em nossa concepção exclusivista de pastoral, buscando comunhão, adoração e edificação, todos esses aspectos importantes dessa missão, mas que não contemplam a integralidade da mesma. Valoriza-se, portanto, alguns dos aspectos da missão em detrimento de outros – o que faz com que a Missão Integral simplesmente não seja cumprida. Em segundo lugar, observando a prática em que o pastoral acaba se tornando um fim em si mesmo, temos um processo contínuo de crescente demanda por novas experiências que vão resultar, apenas e tão somente, numa passividade missionária cada vez maior. É o que Norberto Saracco chama de ativismo inconseqüente: O ativismo inconseqüente é uma das características da igreja latino-americana contemporânea. A procura por um sucesso que visa somente o próprio sucesso mergulhou as igrejas em uma corrida frenética atrás de experiências e atividades que sempre podem mantê-las entretidas. Nossa preocupação é que a resposta para o chamado missionário possa ter marcas de um grande processo que está em movimento perpétuo, sem chegar, de fato, a qualquer lugar (2001, p. 502). Em terceiro lugar, a falta de integração entre pastoral e Missão Integral gera um processo de divisão entre as igrejas. Se o fim principal da ação eclesial está voltado para dentro de si, fica evidente que a outra comunidade é uma concorrente, já que busca, igualmente, exercer uma atração de pessoas para que elas fiquem dentro de suas paredes. Quando o critério para a ação eclesial é a missão, esse problema acaba, já que as pessoas são igualmente impelidas de dentro de sua comunidade eclesiástica para fora, em direção ao mundo. Por fim, deixar o crescimento numérico e o grau de entretenimento, e não o de envolvimento, das pessoas na igreja como critério de avaliação do sucesso do ministério pode ter conseqüências ainda mais fatais: elas podem destruir a ação missionária integral e condenar uma comunidade eclesial ao mais absoluto fracasso. É o que afirma Jorge Barro, de maneira dura e realista: O marketing, a teatralização dos púlpitos, a concorrência entre igrejas, a manipulação das massas, o espetáculo e a espetaculosidade da fé tendem a minar o amor, a motivação e a ética cristã [ou, em outras palavras, a ação missionária integral]. Então, o motivo do sucesso dessas igrejas certamente se transformará na razão do seu fracasso no futuro, pois todas essas coisas um dia saem de moda, ficam obsoletas, cansam (2004, p. 22). 3 Essa é mais uma idéia defendida por van Engen: “poder-se-ia defender que a conversão plena, no sentido bíblico, é um processo tríplice que implica 1) a conversão a Deus em Jesus Cristo, 2) a conversão à Igreja, o corpo de Cristo, e 3) a conversão ao ministério no mundo pelo qual Cristo morreu” (1996, p. 195). A primeira grande dificuldade que se apresenta, portanto, para a mobilização da igreja local para a ação missionária integral é uma falsa divisão entre pastoral e missão, entre a ação dentro da igreja e fora dela, é a concepção de que existem pastores em oposição a missionários. Mas essa não é a única divisão equivocada de classes que acontece no dia-a-dia da igreja. Existe uma segunda e igualmente perigosa: a divisão entre clérigos e leigos. 2. Clericalismo: uma profunda divisão no meio do povo de Deus Charles Van Engen, o renomado missiólogo norte-americano, faz uma afirmação alarmante: “a igreja se compõe de 10% de pessoas ativas, imprescindíveis e dedicadas, e de 90% de inativas, periféricas, semi-interessadas. Embora variem as porcentagens, o padrão é o mesmo em muitas congregações” (1996, p. 192). Certamente, a prática ministerial dos pastores e pastoras no Brasil comprova a veracidade dessa afirmação. Inúmeras explicações podem ser dadas para este fenômeno. Creio que uma das mais relevantes e verdadeiras é aquela que se focaliza numa profunda divisão das fileiras cristãs, quase tão antiga quanto o próprio cristianismo, entre duas classes distintas: clero e laicato. A primeira dessas classes é composta pelas pessoas que verdadeiramente decidem os destinos e os caminhos das igrejas locais e das denominações. Normalmente, estão aqui os pastores e pastoras, além de pessoas cuja nomenclatura pode variar de acordo com a tradição denominacional: são presbíteros, anciãos, diáconos ou outros títulos que se referem àqueles que não são necessariamente ministros(as) de tempo integral, mas participam direta e ativamente na tomada das decisões. E acabam sendo os agentes ministeriais, pessoas especiais que, segundo a mentalidade que parece dominar nossas igrejas, têm acesso exclusivo aos dons e ministérios, monopolizando os carismas do Espírito Santo e o contato com Deus. A segunda classe é composta pelos membros em geral. São apenas uma platéia que assiste ao desempenho dos clérigos e que é abençoada pela sua intermediação. Em algumas igrejas, os leigos são regularmente convidados a participar mais ativamente da vida da comunidade, mas, na prática, não têm muitas possibilidades de fazê-lo – normalmente, não se mostram muito bem preparados (ou ungidos, mais uma vez de acordo com a tradição da denominação) quanto seus líderes. Na maioria das vezes, o laicato é considerado mesmo “como imaturo, menor de idade e inteiramente dependente do clero em questões religiosas” (Bosch, 2002, p. 559). Essa perspectiva distorcida foi realmente sendo construída ao longo dos dois mil anos de história da igreja cristã. Logo nos primeiros anos do cristianismo, os textos bíblicos nos oferecem uma perspectiva bem equilibrada de ministério, mas já se começa a evidenciar algumas tendências bem consistentes em direção à clericalização. Segundo Martin Volkmann: A análise do testemunho bíblico em relação ao ministério da Igreja nos leva a concluir o seguinte: - a partir do Batismo, toda pessoa é dotada de um carisma que a habilita para e a incumbe de se engajar na causa do evangelho; - nos primórdios da Igreja, não há uma limitação/delimitação de cargos; há, isto sim, uma diversidade de funções ministeriais; - à medida que a Igreja vai se estruturando, certos ministérios – bispos, presbíteros e diáconos – passam a receber maior destaque; mais ainda, eles passam a concentrar em suas mãos as funções ministeriais (1998, p. 86). A concepção bíblica mais antiga apontava, portanto, para o fato de que cada batizado é um missionário. Não estou afirmando aqui, e nem pretendo entrar nessa discussão, que o batismo em si é que concede o carisma a algum cristão ou cristã. Constata-se, apenas, que o batismo é a porta de entrada para a vida ministerial do povo de Deus. Mas, como pudemos perceber, os primeiros (e, podemos acrescentar, praticamente inevitáveis) passos em direção a uma sacralização do ministério são dados já no final dos tempos bíblicos. Uma hierarquização que originalmente se dava na esfera da funcionalidade, acabou levando a uma concentração de poder. Isso se intensifica nos séculos subseqüentes, quando a Igreja Católica Romana passa a conceber o ministério cristão de forma fundamentalmente clerical – a entrada na vida ministerial não se dá mais na forma do batismo, mas da ordenação. O ministério da Igreja, o conjunto de atividades que visa o cumprimento de sua missão passa a ser, literalmente, monopólio do clero. No século XVI, os reformadores apresentam um discurso que é radicalmente contrário a tal conceito. Estabelecem o que ficou conhecido como doutrina do sacerdócio de todos os crentes. Segundo a mesma, resgata-se a compreensão neotestamentária de que cada crente é depositário dos carismas do Espírito Santo, sendo, portanto, um(a) ministro(a) de Deus para o mundo. No entanto, apesar desta bela formulação teórica, a prática acabou sendo um pouco diferente. Nas igrejas protestantes daquela época ainda existia uma grande separação e destaque do clero. As formulações eclesiológicas de dois dos principais teólogos da Reforma, Martinho Lutero e João Calvino, se mostram altamente dependentes da estrutura clerical. A partir do século XIX, a distinção entre clero e laicato no exercício dos ministérios e cumprimento da missão passa a fazer parte do próprio currículo teológico. O processo se desenvolve com base na realidade de que nessa época a Teologia, ao lado de outras ciências, tentava se adaptar aos novos paradigmas iluministas. Tal adaptação acabou acentuando uma tendência que já se fazia sentir desde a época do início da sistematização da Teologia (a partir do século XIII, com São Tomás de Aquino): o distanciamento entre a academia e a comunidade da fé, a distância entre o que se ensinava nas universidades e o cotidiano eclesial. As escolas de teologia começam, então, a perceber a necessidade de uma aproximação entre o resultado da produção teológica acadêmica e o cotidiano eclesial, ou seja, a própria vivência da fé, surgindo assim uma nova área do saber teológico voltada para questões da prática ministerial. Essa nova área seria chamada de Teologia Prática, que em alguns seminários do Brasil é também conhecida como Teologia Pastoral. O problema é que essa nova área era constituída de uma série de técnicas a serem aplicadas dentro do ministério que se concebia como exclusivo do pastor: a ministração da Palavra, dos Sacramentos, a condução da Liturgia e a administração da disciplina eclesiástica. Com o tempo, portanto, essa Teologia Prática ou Pastoral acabou de fato se tornando uma espécie de Teologia do Pastor. Em outras palavras, ela rapidamente acabou se tornando uma teologia para o ministério na Igreja ao invés do que deveria ser: uma teologia do ministério da Igreja. Dessa forma, passou-se a conceber uma Teologia Pastoral como propriedade do clero, dos pastores, da própria hierarquia da eclesiástica. Esta concepção acabou se tornando freqüente no meio teológico, e o conceito solidificou-se desta forma. Ainda hoje, apesar de tentativas de se reformar o sentido do termo, é corrente a idéia de que a Teologia Pastoral se refere exclusivamente à prática eclesiológica daquele(a) que é ordenado(a) para o ministério pastoral. Quando pensamos na realidade das igrejas evangélicas brasileiras, essa perspectiva é ainda mais realçada pelo fato de o protestantismo aqui presente ter sofrido e sofrer influências diretas do protestantismo norte-americano, no qual encontramos esta mesma identificação entre o pastor e a teologia e prática pastoral. Portanto, de uma forma geral, o conceito de teologia pastoral vigente na teologia e na prática eclesiástica brasileira é o que se relaciona com a formação do profissional responsável pelo dia a dia da Igreja. No entanto, recentemente, as teologias de cunho mais político e popular se propuseram a repensar a divisão de papéis entre clero e laicato. Esta reviravolta se dá a partir de 1950, quando o conceito de Teologia Prática é revisto e, conseqüentemente, o de Teologia Pastoral e o da própria missão da Igreja. Esse processo ainda tem lugar em meio às discussões sobre o assunto. James Farris afirma que: “A Teologia Prática foi, e continua sendo, chamada Teologia Pastoral [no sentido de teologia do pastor]. Porém, a ação pastoral não só se refere ao trabalho do pastor. A ação pastoral é crescentemente compreendida como a ação da comunidade da Igreja, ou os atos dos crentes” (2001, p.90). Pastoral, desta forma, passa a ser concebida como a ação da Igreja, a ação do povo de Deus, e passa a se aproximar do conceito de que a missão e os ministérios são de responsabilidade coletiva. Neste sentido, é muito relevante a definição que Ronaldo Sathler Rosa faz deste termo: “Ao nos referirmos à expressão ‘pastoral’, indicamos a ação da Igreja, clérigos e laicos, com o objetivo de que o Evangelho se concretize na vida das pessoas, nos múltiplos relacionamentos e na organização social. Esta ação, seja teórica ou prática, pode assumir diversas formas em função das necessidades e da conjuntura de cada situação” (1996, p. 21). Devemos prestar atenção a pelo menos três aspectos desta definição oferecida por Rosa. O primeiro é que se afirma que a pastoral diz respeito à ação da Igreja, tanto do chamado clero quanto do laicato. Não se trata, então, de minimizar ou desprezar o papel do pastor nesta ação. Não se pode cair no erro de, num movimento do tipo pêndulo, sairmos de um pastorcentrismo radical para uma marginalização da figura do pastor ou para uma descaracterização de sua pessoa e função. Mais abaixo discutiremos qual deve ser o papel do pastor na mobilização da igreja local para a ação missionária integral, mas já podemos apontar para a afirmação de David Bosch: “o sacerdócio do ministério ordenado deve possibilitar, e não remover, o sacerdócio da igreja inteira” (2002, p. 566). Não se trata, portanto, de acabar com o papel do pastor, mas, na verdade, de revitalizar e promover o papel do cristão não-ordenado na ação eclesial. O segundo aspecto a ser destacado é o do campo da pastoral: ele não se restringe à vida eclesiástica das pessoas, mas abrange toda a vida delas, em seus relacionamentos e em suas organizações sociais, segundo as palavras do autor. Mais uma vez, não se trata de minimizar ou desprezar a realidade do ambiente eclesial em que a ação pastoral se desenvolve, mas de revitalizar e promover a ação, que também tem um caráter basicamente eclesial (já que é desenvolvida pelo agente chamado Igreja), mas que se dá fora deste ambiente. Por fim, merece destaque a idéia de que a ação pastoral é multiforme, ou seja, assume diversas formas e características. Essa multiformidade é tanto conseqüência como causa da necessidade da ação do povo de Deus como um todo. Conseqüência porque, a partir do momento em que temos pessoas diversas com carismas diversos exercendo funções ministeriais e missionárias, teremos também caminhos e estratégias diferenciados para tal exercício. É também causa porque, se é necessário que tenhamos uma ação multiforme, é necessário também que tenhamos agentes multiformes. Em outras palavras, Somente quando a igreja exercita o sacerdócio de todos os seus membros é que ela pode materializar a missão inegral para a qual está sendo desafiada. Para uma missão integral que inclui, entre outros ministérios, evangelização, batismo, ensino, conselho, libertação, restauração, misericórdia e ação social, não há outro caminho além da motivação da totalidade de seus membros (Roldán In Padilla y Yamamori: 2003, p. 125). O segundo grande problema, portanto, na mobilização da igreja local em direção ao cumprimento da Missão Integral é o fato, puro e simples, de que a maioria da pessoas que está sentada nos bancos das nossas igrejas simplesmente não têm a noção de que são agentes missionários de Deus. Não se lembram da declaração do Artigo 6º do Pacto de Lausanne que afirma que “a evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo”. Concebem-se, enfim, como objeto da pastoral, e não como sujeitos da missão. 3. Falta de iniciativa: a não-ação como característica básica do evangélico brasileiro Pense bem. Se alguém perguntasse para um membro de sua igreja quais são as características de um evangélico, qual seria a resposta? Muito provavelmente seria algo como é alguém que não bebe, não fuma, não joga, não rouba... Por muito tempo os evangélicos foram mesmo classificados como aqueles que não fazem uma série de coisas, que não tomam uma série de atitudes. Esse traço ainda persiste em um grande número de igrejas evangélicas. A não-ação é valorizada e apontada como um traço de santidade, como a característica mais importante de um cristão. É o contrário do que exige o Artigo 6º do Pacto de Lausanne: “A igreja (...) é o agente que ele promoveu para difundir o evangelho”. Essa não-ação pode ser observada em outros campos além da ética. Por exemplo, muitos de nós fomos treinados (e, às vezes, treinamos as pessoas que estão sob a nossa liderança) à não-ação teológica. E aqui, não faço referência à teologia produzida em faculdades ou seminários, mas estou falando pura e simplesmente na reflexão sobre a fé: os evangélicos são treinados a não refletir muito sobre a sua fé. Afinal, a fé escapa à razão humana, é loucura para as pessoas, não pode ser compreendida etc. Em princípio, isso pode ser mesmo considerado verdadeiro para as questões mais misteriosas de nossa fé. Quem é que vai ser capaz de, algum dia, explicar plenamente uma doutrina como a da Trindade? No entanto, mesmo não compreendendo plenamente essa doutrina, sei que ela tem implicações práticas para a comunidade local. Por exemplo, Reginaldo von Zuben afirma que a comunhão plena e íntima entre Deus Pai, Filho e Espírito Santo nos leva a um desafio pela comunhão do povo de Deus (2005, p. 71). Não consigo entender plenamente a doutrina da Trindade, mas consigo compreender essa implicação prática! O grande problema é que o convite à não-reflexão passa pelo cotidiano das nossas igrejas. Não é difícil ver pastores e pastoras impondo sua vontade sobre determinada comunidade e intimando as pessoas a não questionarem o que se fala no púlpito. Afinal, é Deus quem fala ali. Outro campo em que a não-ação é evidente é o político-social. Durante décadas, desenvolvemos a noção de que cristãos não deveriam se envolver, por exemplo, com a política. Nos últimos anos vemos uma mudança nesse pensamento, mas às vezes ela se deu para pior. Muitos parlamentares evangélicos foram eleitos e ocupam um lugar significativo no cenário político nacional, mas também são muitos os que estão preocupados apenas com interesses mais imediatistas: uma concessão de rádio, vetar uma lei que possa complicar a situação das igrejas evangélicas (exemplos recentes são a questão do Novo Código Civil e a da tributação da renda das igrejas). Há poucas ações intencionais que buscam melhorias estruturais na nação. E a ação missionária integral acaba sendo a maior prejudicada. Essa aversão ao político-social se dá porque lemos com bastante atenção as passagens bíblicas que falam da salvação celestial eterna prometida a nós; sabemos do fato de que não somos deste mundo, que o mundo jaz no maligno... mas nos esquecemos de ler João 17.15 e 18, em que Jesus afirma: “não rogo que os tire do mundo. Assim como me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo”. Ou seja, não somos convidados a fugir dessa realidade que nos cerca, mas a abrir os nossos olhos em um mundo para o qual Jesus nos enviou. Esses são apenas três exemplos que ilustram a idéia da marca profunda de uma ética da não-ação no meio da igreja evangélica brasileira. Isso traz um prejuízo terrível para o envolvimento da igreja local com a Missão Integral. Afinal, nossos irmãos e irmãs (e, quem sabe, nós mesmos) fomos treinados a não-se-envolver, não-refletir e não-agir. No entanto, sempre que falamos de Missão Integral, falamos de algo que temos que fazer. A ética da não-ação simplesmente não funciona quando pensamos nessa dimensão missionária integral! Não adianta apenas não roubar numa sociedade em que o roubo dos políticos e empresários traz conseqüências profundas para a população. Não adianta simplesmente não usar drogas em cidades e bairros em que crianças são envolvidas no tráfico de entorpecentes e morrem diariamente em conseqüência disso. Não adianta simplesmente não matar num mundo dominado por interesses gananciosos que falam mais alto do que a vida dos mais empobrecidos, ou não ser violento num mundo em que o preconceito racial e a intolerância religiosa estraçalham pessoas ao redor de todo o mundo. É necessário algo mais. É necessário um envolvimento missionário integral. O terceiro grande problema que a Missão Integral enfrenta, portanto, para que haja um maior envolvimento da igreja local é a ética da não-ação. E os três aspectos dessa ética listados aqui se mostram exatamente como três áreas fundamentais na mobilização da igreja local para a Missão Integral: é preciso envolvimento, reflexão e ação. Vamos refletir sobre eles na última parte desse artigo. II. Envolvendo a igreja local na Missão Integral Constatados os grandes problemas que complicam a mobilização da igreja local para a Missão Integral, fica a pergunta: como promover essa mobilização? Como fazer com que os membros da igreja local possam, de fato, tornar-se agentes missionários? Não há resposta fácil e pré-fabricada para tal pergunta. Não creio ser possível estabelecer sete passos ou dez etapas que solucionariam o problema. Esse pensamento matemático anglo-saxão nem sempre funciona por lá, quanto mais aqui! No entanto, creio que existem, sim, alguns princípios que podem ser observados e adaptados, de acordo com a realidade da sua igreja local. É o método que tem de se adaptar à realidade, e não a realidade ao método. Vamos seguir a idéia que afirmamos no final da seção anterior: a mobilização de uma igreja local para a Missão Integral requer envolvimento, reflexão e ação. 1. O envolvimento como ponto de partida para uma ação missionária integral “O que os olhos não vêem, o coração não sente.” Todos conhecemos essa frase. Particularmente, em alguns momentos chego até a duvidar que isso seja verdade. Afinal de contas, todos podemos ver a situação desesperadora em que a humanidade se encontra: é só ligar a TV em qualquer telejornal e essa miséria humana invadirá a sua sala. Mas, como se diz popularmente, parece que a ficha não caiu. Parece que perdemos a capacidade de nos comover, de ver crescer em nosso coração a compaixão, sentimento tão diferente do que chamamos de dó ou pena. Tanta violência, tanto sofrimento, acabou nos deixando insensíveis. Mas é possível recuperar a sensibilidade e despertar o envolvimento. Essa recuperação não mais parece possível a partir do púlpito ou dos bancos da igreja. Continua, é claro, sendo necessário que nossos púlpitos estejam cheios de mensagens sobre a necessidade de uma Missão Integral. Mas entendermos que esse é o ponto inicial pode nos deixar estacionados aqui. E também é um erro hermenêutico. Devemos nos lembrar de que a reflexão sobre os acontecimentos relacionados à fé é sempre um ato segundo. Em primeiro lugar, não em questão de importância, mas de cronologia, vem a prática, vem o acontecimento da fé. E entendo que o ponto de partida para se pensar numa ação missionária integral seja, portanto, a experiência com situações de necessidade integral. A Bíblia nos conta que Jesus, “ao ver as multidões, teve compaixão delas” (Mt 9.36). Em outras palavras, quando seus olhos viram as multidões que perambulavam pela Palestina do primeiro século, seu coração sentiu uma intensa compaixão por elas. A sua visão foi in loco, no local, com todos os seus sentidos – não foi uma visão distante mediada por algum instrumento como uma TV, um livro, ou alguém que fala sobre determinada situação. Preocupado com a possibildiade de que seus discípulos ouvissem constantemente as suas exposições, presenciassem a sua prática de milagres e, mesmo assim, não estivessem mobilizados para o cumprimento da missão que ele haveria de lhes deixar, ele proporcionou uma forma pela qual os discípulos estariam envolvidos com a realidade do seu povo: ele os enviou em duplas, por um pequeno período de tempo, para realizar algumas ações de curta duração (Lc 10.1ss). Os discípulos de Jesus nas igrejas locais do século XXI precisam de experiências desse tipo. Para que haja um envolvimento verdadeiro e efetivo é necessário haver compaixão, que só vai ser despertada quando pudermos experimentar o contato físico com pessoas que passam por uma situação de sofrimento. Uma coisa é saber que milhões de brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza. Outra, totalmente diferente, é vivenciar uma situação abaixo da linha de pobreza. É fundamental dizer que esse envolvimento e esse vivenciar de situações não pretende ser equivalente ao que se faz na televisão, hoje, em programas que expõem deformidades, problemas familiares, casos violentos como num circo de horrores. Também é diferente dos tours para estrangeiros pelas favelas do Rio de Janeiro. Estamos falando sobre vivência e comunhão, numa relação de fraternidade e compaixão (e nunca de pena e superioridade) com pessoas menos favorecidas. Qualquer pessoa, pastor(a) ou líder de algum ministério ou célula, que queira ver o seu grupo de liderados envolvido com a ação Missão Integral, precisa promover oportunidades de contato com a realidade de nossas cidades. Essa realidade pode ser encontrada em favelas e assentamentos: pode também ser encontrada em hospitais (públicos ou particulares) onde pessoas, ricas ou pobres, necessitam não só de uma palavra de esperança para a salvação de suas almas, mas também de um conforto para as suas emoções e de um resgate de sua auto-estima. Pode ser encontrada nas escolas de nível médio e fundamental (mais uma vez, públicas ou particulares); pode ser encontrada em inúmeros locais para os quais o Senhor da seara pode direcionar os seus trabalhadores. Basta que eles e elas se coloquem à sua disposição. Mesmo correndo o risco de me estender demasiadamente nesse ponto, quero ainda enfatizar que, para que haja um envolvimento real da igreja local na Missão Integral, é necessária uma mudança na concepção do que é pastorear e ser pastoreado. Essa idéia pode parecer estranha, afinal de contas, estamos falando sobre o fato de que o grande problema é que os membros da igreja local não se envolvem tão intimamente com a Missão Integral e a minha primeira sugestão é uma mudança em sua concepção de pastorado e liderança!? O fato é que nós, pastores, pastoras e líderes, somos os grandes responsáveis por boa parte desse não-envolvimento. Nós, nessa assim chamada pós-modernidade, deturpamos a concepção do que é pastorear. Ricardo Barbosa de Souza afirma que “muitos cristãos de hoje são mimados” (de Souza, 2004, p. 120). Acabamos confundindo esse maravilhoso desafio com a idéia de entreter. Entretemos nossas ovelhas ao invés de pastoreá-las, enviando-as para a Missão Integral: Os pastores se transformaram em um grupo de gerentes de lojas, sendo que os estabelecimentos comerciais que dirigem são as igrejas. As preocupações são as mesmas dos gerentes: como manter os clientes felizes, como atraí-los para que não vão às lojas concorrentes que ficam na mesma rua, como embalar os produtos de forma que os consumidores gastem mais dinheiro com eles (...) Esses empreendedores têm sua mente ocupada por estratégias semelhantes às de franquias de fast-food e, quando dormem, sonham com o sucesso que atrai a atenção da mídia (Peterson, 2000, p. 2). A nossa concepção de ministério pastoral precisa ser a de levar as pessoas à missão. Uma a uma, as nossas ovelhas necessitam ser convidadas a participar da missão de Deus. Lembrese do que já falamos acima: o sucesso de nosso ministério será medido, diante de Deus, não pelo tamanho de nossas igrejas, mas pela forma que a envolvemos ou não numa missão integral transformadora. Precisamos mudar a nossa concepção de ministério pastoral e de liderança! Não teremos o fôlego suficiente para acompanhar todas as mudanças de moda, de embalagem de produtos se continuarmos no ritmo da igreja pós-moderna que apenas oferece bens espirituais para o consumo. Precisamos, de uma vez por todas, parar de pensar nos membros de nossas igrejas como consumidores. Seja num ministério tradicional, imaginando que as pessoas querem consumir sermões bem montados, bem pregados, bem colocados no meio de uma liturgia formal, seja num ministério de unção e poder, imaginando que as pessoas querem consumir sinais e maravilhas, o fato é que muitos de nós têm essa mentalidade. Os únicos resultados certos dessa estratégia são o não-envolvimento da comunidade e o adoecimento: do pastor, por não conseguir suprir os bens necessários com a renovação que o mercado exige; das pessoas em nossa igreja local, porque elas nunca vão deixar de estar doentes, para nunca perderem a oportunidade de levantar a mão numa oração; e, por fim, de todo o Corpo de Cristo, que engorda, mas não consegue se desenvolver plenamente por causa da imaturidade espiritual que nós mesmos infligimos a ele. Pastorear e liderar, portanto, não se trata de criar situações de prazer ou de bem-estar como fim em si mesmas. Significa colocar as pessoas pastoreadas e lideradas em situações missionárias, em condições de trabalhar pela implantação do Reino de Deus. Os membros das nossas igrejas também precisam re-aprender o que significa ser pastoreado. Esse é o outro lado da moeda. As pessoas não buscam o crescimento espiritual e o desenvolvimento do discernimento para cumprir a missão. Parece que não são capazes de tomar suas próprias decisões, de sair da esfera de segurança dos muros da igreja em direção ao mundo hostil em que vivemos. Elas estão sempre em busca da pastora mais ungida, do profeta mais abençoado, sempre em busca de alguém com mais poder para abençoar a sua vida – e se esquecem de que, elas mesmas, são chamadas a abençoar a vida de outros. Fico impressionado ao ver que, semana após semana, as mesmas pessoas atendem aos mesmos apelos, estando sempre enfermas, necessitadas, enfraquecidas. Ao contrário de todas as pessoas curadas por Jesus, os nossos enfermos de hoje nunca estão prontos para “seguir a Jesus glorificando a Deus” (Lc 18.43), mas sempre se colocam numa posição de vítimas indefesas de Satanás ou das dificuldades da vida, deixando de dar um passo à frente em direção ao cumprimento da missão. Ser pastoreado ou liderado, enfim, não significa ser servido, mas estar sendo supervisionado enquanto se coloca a serviço do Reino de Deus. O envolvimento como um ponto de partida para a mobilização da igreja local para a Missão Integral certamente não será uma atividade com resultados garantidos e com um sucesso absoluto. Mas, como já discutimos, o verdadeiro critério para a avaliação de um ministério de pastoreio ou liderança é o grau com que as pessoas pastoreadas ou lideradas são colocadas na missão. 2. A reflexão como fundamento da ação missionária integral Como já dissemos acima, a reflexão é o ato segundo que decorre das experiências. Na verdade, a expressão mais correta, ao invés de simplesmente falarmos de reflexão, talvez seja fazer teologia. Fazer teologia é um fundamento básico da ação missionária integral. Digo isso com todo o cuidado, porque sei que a maioria das pessoas em nossas igrejas não vê a Teologia com bons olhos. É interessante observar que existe uma relação extremamente tensa entre igreja e seminário4. O fato é que, por mais que haja boas razões no passado para essa desconfiança eclesial 5, já não é possível sustentar mais essa dicotomia. Pelo contrário, a comunidade eclecial necessita da Teologia enquanto reflexão sobre a fé, e a Teologia só encontra sua razão de ser quando está preocupada com as questões do nosso contexto, inclusive do contexto eclesial6. Segundo Jürgen Moltmann, nem é possível afirmar uma separação entre Teologia e comunidade eclesial e vai além – para ele, não existe fé sem Teologia e todo cristão é um teólogo: A teologia é uma tarefa conjunta de todo o povo de Deus, não só das faculdades teológicas e não só dos seminários eclesiais. A fé de toda cristandade na Terra busca por conhecimento e compreensão, senão não é fé cristã. Por isso, o fundamento de toda especialização teológica é o ministério teológico geral de todos os crentes, como correspondente à tese reformatória de “sacerdócio geral de todos os crentes”. Todos os cristãos, quer jovens ou velhos, quer mulheres ou homens, que crêem e fazem alguma reflexão sobre isso, são teólogos (Moltmann, 2004, p. 23). A reflexão sobre o envolvimento numa situação de necessidade integral não é apenas um item a mais, que talvez seja importante. O fato é que a ação missionária integral, como resposta às necessidades, só vai acontecer a partir do momento em que ela fizer sentido para os membros da igreja local. Enquanto ela for um programa do pastor, da denominação, do conselho missionário, ela 4 5 6 Wander de Lara Proença trata desse assunto em Barro e Kohl, 2004, pp. 26ss. Já apontamos brevemente algumas dessas circunstâncias por ocasião da discussão sobre pastoral versus missão. Não estou negando a importância de se conceber a Teologia com uma dimensão pública, mas reafirmando a sua relação com a realidade. vai conseguir a adesão apenas formal de um grupo de pessoas que, certamente, não estarão comprometidas com o projeto mais amplo. É preciso, portanto, que cada membro de nossas igrejas teologize a Missão Integral, relacionando-a com seu contexto, sendo capaz de perceber quais são os desafios que a cercam em sua própria realidade e articulando propostas de como respondê-la. E os membros da igreja só teologizarão quando houver uma descentralização do púlpito. Creio que não existe um símbolo do poder exercido pelo clero sobre os leigos mais claro que o púlpito7. Nas igrejas do protestantismo histórico ele é a fonte do saber que é despejado pelo pastor sobre os membros da sua igreja: “Nos templos destas Igrejas, o altar ganhou sintomaticamente o nome de “púlpito”. A pregação conquista assim o lugar mais privilegiado da celebração, o que faz com que freqüentemente o atendimento ao serviço religioso seja determinado pela eloqüência do pregador, por sua ortodoxia doutrinária, ou por ambas” (Velásquez Filho, 1990, p. 156). Mas essa centralidade não é exclusividade das igrejas mais tradicionais; nas igrejas de linha pentecostal, o púlpito é o caminho percorrido pelo poder do Espírito Santo, que enche a vida dos crentes, e é a base a partir da qual acontecem as curas e exorcismos. Em todos os casos, ocupa um lugar central na dinâmica da vida eclesial e é um lugar reservado para poucos. Uma participação dos leigos só é possível em raras ocasiõs e, na maioria das vezes em que alguém dá um testemunho, um aviso, ou faz uma leitura, isso acontece ao lado do púlpito (o pastor continua ali em pé, garantindo o seu lugar enquanto a pessoa segura o microfone ao seu lado) ou então num degrau mais baixo do palco. Pode parecer contraditório: queremos promover a reflexão do povo de Deus e falamos contra a centralidade do púlpito? O fato é que, mesmo nas igrejas mais tradicionais, marcadas por pregações mais expositivas e doutrinárias, o púlpito acaba colaborando muito pouco para a formação de uma consciência crítica da realidade. É por isso que, para se viabilizar a participação ativa da membresia da igreja em geral na elaboração de uma teologia que satisfaça o contexto em que a mesma está inserida, entendo que é preciso que o púlpito seja descentralizado. Explico melhor essa idéia que tem dois sentidos. Em primeiro lugar, afirmamos que o acesso ao púlpito deve ser descentralizado: ele precisa estar aberto a todos. Isso não significa, por um lado, banalizar a pregação ou a própria liturgia, abrindo a palavra indiscriminadamente a qualquer pessoa que se manifeste; por outro lado, também não significa criar uma ilusão de participação deixando com que algumas pessoas leiam um texto bíblico ou dêem um testemunho daquele lugar físico. O que quero dizer é que, para que o acesso ao púlpito possa ser aberto a todos é necessário que se varie a língua oficial falada no mesmo. É preciso que o púlpito deixe de ser apenas o local de exposição de verdades doutrinárias que pouco ou nada têm a ver com a realidade cotidiana das pessoas que estão ouvindo. Antonio Gouvêa de Mendonça, respeitado pesquisador deste setor do campo religioso do protestantismo tradicional, afirma que: Todo texto bíblico era lido nos parâmetros da conversão e a mensagem8 deveria conduzir as pessoas à conversão. Qualquer texto era usado e orientado para a conversão das pessoas, fosse qual fosse a sua situação pessoal ou existencial (2002, p.22 – ênfase acrescentada). O problema não é que a leitura dos textos esteja voltada para a conversão das 7 8 A questão do púlpito como símbolo é interessantíssima e mereceria um estudo mais amplo. Na pós-modernidade, ele tem adquirido novos formatos que continuam procurando simbolizar a própria essência da comunidade local: desde os púlpitos de vidro das igrejas televisivas até o púlpito em forma de prancha de surf da Igreja Bola de Neve (que foi tema de uma reportagem da Edição 271 da Revista Época), mas todos eles continuam sendo monopolizados pela figura central da igreja. É importante fazer uma referência ao que o próprio autor entende como mensagem: “quando aqui falo em mensagem, não me refiro ao sermão. Não uso a palavra mensagem no lugar de sermão. É a expressão da religião, seja de que forma for. A mensagem é aqui a prática da religião na vida, na ética cotidiana. Portanto, de um lado há o texto bíblico, e de outro sua resultante, a mensagem” (p. 17). pessoas. O problema é que o púlpito ignora a situação vivencial de cada pessoa. “Fosse qual fosse a situação pessoal”, a mensagem era a mesma. Assim, uma das características fundamentais da leitura bíblica com esse tipo de pregação é a falta de reflexão sobre as relações que o processo de interpretação do texto pode vir a ter com o mundo do leitor, tanto na qualidade de ponto de partida, ou seja, de situação a partir da qual o leitor vai empreender o processo, quanto na de ponto de chegada, ou seja, de uma nova situação que o leitor poderia trabalhar para construir. O resultado é que o púlpito não tem nada a ver com a realidade das pessoas. É preciso, também, que ele deixe de ser o local a partir do qual os princípios normativos, restritivos, as leis, enfim, sejam promulgadas. Os mesmos comentários acima valem para esse tipo de uso do púlpito. As leis promulgadas também não levam em conta a realidade vivida pelas pessoas. Por fim, é preciso que ele deixe de ser o palco a partir do qual verdadeiras atrações gospel são encenadas. Nenhuma dessas três línguas é capaz de promover a edificação verdadeira do povo de Deus ou de estimular esse povo a elaborar o pensamento sobre sua própria fé, relacionando-as com a vida. A língua oficial do púlpito deve ser a da vivência da fé. Deve ser a linguagem realista que olha para o mundo e vê os seus problemas, e não aquela triunfalista, que nos convida a deixar de lado o que nos traz sofrimento para adorarmos a Deus. Deve ser abandonada a linguagem do convencimento, da coação, partindo-se para a linguagem do entendimento, da participação. Deve ser abandonada a linguagem que tem como pressuposto que os membros da comunidade são responsáveis apenas por ouvir e aprender a respeito de verdades pré-fixadas, de saberes prédeterminados, ou quais são as coisas que não devem fazer, mas que se busque uma prática que tenha como objetivo desafiadar essas pessoas a interpretar a sua realidade, e que elas possam propor novos caminhos para a ação pastoral, a fim de que a igreja deixe de ser objeto da teologia, da reflexão sobre a sua fé e ação, e passe a ser sujeito da mesma. Em resumo, o púlpito não deveria ser um local onde se apresentam exclusivamente as respostas, mas que provoque a reflexão do povo de Deus suscitando perguntas. O segundo sentido para a idéia da descentralização do púlpito é que ele deve deixar de ser o centro da vivência e da reflexão cristã no nível da igreja local, ou seja, que longe do púlpito haja vida cristã e reflexão sobre a fé cristã. O fato é que, como já afirmamos acima, o púlpito continua sendo o centro da celebração comunitária evangélica. Seja pela pregação, seja pela oração poderosa, ele continua sendo o eixo a partir do qual a vida cristã de muitas pessoas existe – e fora desse eixo, sobra pouco espaço para ela. Para que ocorra uma descentralização do púlpito nesse sentido é necessário haver uma multiplicação dos espaços, das situações de leitura das Escrituras. Não é preciso que o sermão, na forma como ele acontece em grande parte de nossas igrejas, seja abolido para que isso aconteça. Pelo contrário, entendemos que o espaço pode ser mantido. É tarefa do pastor propiciar momentos em que a comunidade possa se encontrar e realizar o exercício de interpretação comunitária, plural, com uma conexão íntima com a realidade da vida, momentos em que as pessoas possam se dedicar livremente à leitura bíblica. O pastor seria, antes de mais nada, responsável pela criação de um ambiente em que haja uma “ausência de coação interna e externa e uma simetria de posições entre proponentes e oponentes”9. Ou seja, é sua função criar uma situação na qual todas as pessoas tenham igual acesso à fala, sem hierarquias, sem que haja coações, sem que haja constrangimento para a expressão de opiniões e dúvidas. Uma outra forma de se falar sobre o papel do pastor na descentralização do púlpito é dizer que ele deve se plebelizar. A expressão, usada por Carlos Queiroz na abertura do Segundo Congresso Brasileiro de Evangelização10, diz respeito a uma proposta de inversão da doutrina do 9 10 O conceito de uma “situação ideal de fala”, nos termos acima, é defendido pelo filósofo almeão quando se preocupa em propor o que ele chama de Teoria da Ação Comunicativa. Outros pressupostos desse tipo de ação se encontram embutidos em várias das idéias enunciadas nessa seção. O CBE2 foi realizado entre 27 de outubro de 01 de novembro de 2003 em Belo Horizonte. sacerdócio universal de todos os crentes: Com o intuito de quebrar a dominação dos sacerdotes e sua instituição em relação ao povo, os reformadores criaram o lema do “sacerdócio universal de todos os santos” (...) Presumo que, em nosso contexto, precisamos propor uma “desclericalização” – uma espécie de plebelização universal de todos os sacerdotes. É mais bíblica e fácil a inclusão dos sacerdotes entre e plebe do que a inclusão dos plebeus entre os sacerdotes. Jesus Cristo foi mais identificado como plebeu de Nazaré do que como Sumo Sacerdote (Queiroz, 2004, p. 31). A proposta de Queiroz é inverter a tendência contemporânea de que o pastor ou líder se isole de sua comunidade. Pelo contrário, ele ou ela deve se inserir no contexto dos membros de sua igreja, deve se plebelizar para que, dessa maneira, as preocupações dos leigos sejam as suas preocupações, os desejos das pessoas sejam os seus desejos, os projetos da plebe sejam os seus projetos – só assim a Missão Integral pode encontrar seu caminho e sua realização no meio das comunidades locais. A idéia, portanto, é que não adianta apenas colocar alguns dos leigos púlpito e pretender que, com isso, haja uma maior descentralização e igualdade entre o povo de Deus. Essa é a idéia dos pequenos grupos ou células que, a princípio, pretendiam possibilitar o sacerdócio universal, mas correm o risco semelhante ao já mencionado acima, podendo apenas dilatar o clero: cada líder de célula se transformaria num pequeno sacerdote daquele grupo. Antonio Carlos Barro manifesta a mesma opinião falando aos presbíteros11: “os presbíteros não devem votar segundo a sua própria opinião, mas devem estar no meio do povo, sondar as pessoas para ver qual é a opinião da igreja sobre determinado assunto e manifestar assim o seu voto. Não devem se esquecer que são representantes dos membros da igreja” (Barro, 2004). Ou seja, ao invés de se tornar um novo clero, que verticalmente impõe decisões sobre os leigos, os presbíteros, ou seja, os líderes leigos de uma comunidade local, devem continuar leigos, devem permanecer como membros da igreja, verbalizando as opiniões dos mesmos. A conseqüência disso é um novo redimensionamento do papel pastoral e dos líderes. Ele deixará de ser a imposição de planos de ação ou o convencimento da comunidade de que o caminho a ser seguido pela igreja local é aquele imposto pela liderança. Ao se inserir no meio da sua comunidade, o líder pode servir de catalizador para as idéias do povo, pode expressar a voz dos seus leigos, pode fazer com que as idéias que surgem no seio da comunidade possam subam até as diretrizes gerais da igreja, definindo rumos e estabelecendo planos. Atualmente, existe uma tentativa, por parte de muitas igrejas, de criar espaços assim. Isso se dá através das chamadas células, que por definição são grupos menores reunidos em uma situação em que existe liberdade para que cada um expresse as suas dúvidas e anseios, os seus questionamentos, as suas sensações. Este modelo, aliás, foi celebrado como sendo finalmente uma possibilidade de se viabilizar o sacerdócio universal dos crentes, já que descentralizava as reuniões, talvez esvaziando um pouco o papel do pastor. No entanto, alguns dos modelos de células apontam muito mais para a simples reprodução do que é feito em escala maior nos cultos. Muitas igrejas, inclusive, normatizam a discussão de textos bíblicos nas células como uma revisão do sermão do último domingo. Este não é, certamente, o modelo que estamos buscando. Mas há que se valorizar esta tentativa e se verificar a possibilidade de utilizar uma estrutura parecida. Para que a reflexão do povo de Deus possa ser um fundamento sólido para a ação missionária integral, é preciso que ela aconteça em outros espaços e seja promovida por outras pessoas além de apenas o pastor. Acontencendo em outros espaços, ela automaticamente estará se fazendo a partir de outros contextos, de outras perguntas, de outras situações diferentes da situação litúrgica. Sendo promovida por outras pessoas, ela carregará consigo outras perspectivas, outros 11 Essa nomenclatura é típica da Igreja Presbiteriana do Brasil: os presbíteros são representantes eleitos pela comunidade local para compor o que é chamado de Conselho, do qual o pastor da igreja é o presidente. Na IPB, o conselho é responsável pelo “governo e a administração de uma igreja local”. desafios. Ficando restrita à promoção pelo pastor, essa reflexão terá as preocupações dele: cuidar da sua igreja. Sendo aberta para os membros da igreja, ela terá as suas preocupações: viver a vida, com as suas dificuldades, desafios e carências. 3. A ação como conseqüência do envolvimento e reflexão Um primeiro envolvimento faz com que os membros da igreja local sejam despertadas para lutar contra as desigualdades e as opressões sofridas pelas pessoas na sociedade mais ampla. A reflexão faz com que esse despertamento se solidifique e que as realidades de injustiça à volta dos membros (e não só aquela que pode ser identificada num local distante) sejam abordadas e soluções para os problemas sejam planejadas. Chega então o momento de agir. Quero propor alguns princípios para a ação missionária integral fazendo a conjunção entre o pensamento de dois autores: Jürgen Moltmann (2002, p. 26-32) e Tetsunao Yamamori (2000, p. 12-15). O primeiro fala da missão do Espírito Santo na (re)construção da vida como um todo – em outras palavras, a sua Missão Integral; o segundo fala do ministério integral e a igreja local . Ambos são complementares quando pensamos que: O Espírito Santo é um Espírito missionário, de maneira que a evangelização deve surgir espontaneamente numa igreja cheia do Espírito. A igreja que não é missionária contradiz a si mesma e debela o Espírito (...) Portanto, instamos com todos os cristãos para que orem pedindo pela visita do soberano Espírito de Deus, a fim de que o seu fruto todo apareça em todo o seu povo, e que todos os seus dons enriqueçam o corpo de Cristo (Pacto de Lausanne, Artigo 14). O primeiro princípio nos diz que uma igreja local envolvida em ações missionárias integrais promove o crescimento contínuo dos seus líderes e membros através da comunhão e da edificação. A primeira área em que a renovação e a missão do Espírito Santo atua é mesmo a renovação do próprio povo de Deus. É importante pontuar esse princípio porque todos os nossos argumentos em prol de uma pastoral do reino de Deus, da missão como critério de avaliação para o ministério pastoral etc, podem nos induzir a pensar que a dimensão interna está sendo negligenciada. Isso não é verdade. Orlando Costas enfatiza a necessidade de um crescimento orgânico da igreja local (1990, 113) e da importância da comunhão do povo de Deus para a evangelização (1974, p. 31). O próprio Pacto de Lausanne também o faz na forma de uma confissão: “Confessamos que às vezes temos nos empenhado em conseguir o crescimento numérico da igreja em detrimento do espiritual, divorciando a evangelização da edificação dos crentes” (Artigo 11). No entanto, mais uma vez é importante enfatizar: esse crescimento interno não é um fim em si mesmo, mas é um meio para a missão. O segundo princípio é que a igreja local deve procurar, consciente e sistematicamente, meios de se aproximar, envolver e trabalhar com pessoas em necessidade. Quando digo que a igreja local deve fazer isso, é preciso que fique claro que tal iniciativa se dá a partir dos membros e não a partir da liderança que define quais serão as ações promovidas. Existe uma importância dupla dessa afirmação. A primeira é que ela propõe a concretização das ações missionárias integrais em torno de projetos objetivos: tais ações não se dão mais em princípios, pensamentos, propostas, ou num desejo de fazer algo, fruto de um primeiro envolvimento, mas se dão de maneira concreta. É bom que se diga que esse processo deve ser gradual. Yamamori afirma que “a igreja local deve atuar começando pequenos projetos, conhecendo o terreno, antes de se envolver com projetos maiores” (2000, p. 14). A segunda face da importância desse princípio é que tais projetos se tornam os meios a partir dos quais novos membros podem ser envolvidos, recomeçando todo o processo de mobilização. Esse princípio esconde, dentro de si, alguns passos importantíssimos: é preciso planejar, fazer um cronograma, executar e avaliar os resultados de tais ações. Os limites desse artigo não nos permitem entrar nessas questões agora. O terceiro princípio é que a igreja local não deve tratar as pessoas alcançadas pelas ações como alvos, mas sim como parceiras. Se entendemos que a ação missionária integral é, como afirma o Pacto de Lausanne, conseqüência da ação do Espírito Santo sobre a vida da igreja local, então não podemos pensar que somos os proprietários desses projetos: muito pelo contrário, somos tão alcançados pelo Espírito quanto aqueles que não são membros da nossa igreja e se beneficiam com as suas ações. Entendo que esse princípio é absolutamente fundamental. As ações missionárias em geral, desde aquelas que foram empreendidas das nações norte-atlânticas em direção à África, Ásia e América Latina, até as que são promovidas de uma igreja no centro para uma da periferia, são geralmente realizadas na perspectiva da superioridade. Um grupo de pessoas mais ricas, mais poderosas, mais santas, mais de acordo com a preferência de Deus, vão sacrificialmente em busca de pessoas mais pobres e menos santificadas. Esse paradigma não pode mais ter lugar no meio da igreja. Os evangelhos nos falam de um Jesus que, “embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens” (Fp 2.6,7). O fundamento é que nos tornemos semelhantes. A Missão Integral não é possível verticalmente, de cima para baixo, mas apenas horizontalmente. Esse princípio teológico tem uma implicação prática importantíssima. A sua violação causa nas pessoas alcançadas uma sensação de impotência e dependência, de forma que as ações empreendidas acabam se tornando apenas assistencialistas. Essa é a maior e mais correta crítica que a sociedade civil faz à ação diaconal das igrejas evangélicas: na maioria das vezes, apenas assistimos as pessoas em sua situação, não oferecendo a elas a possibilidade de ser agentes de sua própria transformação. No entanto, quando observamos esse princípio, estamos sendo usados pelo Espírito para fazer dessas pessoas agentes de sua própria transformação. Elas deixam de ser objetos de nossa ação e passam a ser as responsáveis pela promoção da vida plena encontrada no Reino de Deus. O quarto princípio nos diz que a ação missionária da igreja local não é a expansão de uma denominação, mas do reino de Deus. Faço questão de citar Moltmann textualmente aqui: “Quando a paixão pelo futuro [ou reino] de Deus tomar o lugar da expansão da Igreja, então não exportaremos mais os feios cismas eclesiásticos europeus, nem expandiremos o denominacionalismo religioso em vez da esperança pelo reino de Deus” (2002, p. 29). Não podemos mais pensar na Missão Integral em termos de expansionismo eclesiástico. Quando queremos apenas ver as nossas denominações crescerem, aparecem algumas das crises mais fúteis que são comuns nesses casos: Se uma família deixa de ir aos cultos, ela pode continuar recebendo cestas básicas? Se uma pessoa não se arrepende e não abandona todas as práticas que a minha igreja condena, ele deve continuar recebendo atenção? Se uma pessoa atendida pelo nosso projeto começa a freqüentar outra igreja, devo continuar em contato com ela? Todas essas perguntas podem sugerir uma ação muito bem intencionada, louvável, importante, mas que tem um pressuposto equivocado na idéia de expansão denominacional. A ação missionária integral, enfim, é um esforço que parte dos membros missionários e edificados da igreja local, passa por propostas concretas de projetos possíveis, envolve a ação das pessoas da comunidade em questão e tem como fim ou critério o reino de Deus. Conclusão A mobilização da igreja local para a Missão Integral não é um esforço pontual e realizado num espaço limitado de tempo. Pelo contrário, é uma dimensão permanente da ação missionária e pastoral do povo de Deus. Uma igreja local nunca estará plenamente envolvida nesse empreendimento, já que sempre haverá novos convertidos, sempre haverá pessoas que não estão envolvidas, refletindo sobre formas através das quais podem estar em ação. Além disso, como pastores e líderes, devemos ter a tranqüilidade de perceber que nunca haverá uma participação total em projetos como esses. Resta-nos a oração que já foi mencionada aqui: “Instamos com todos os cristãos para que orem pedindo pela visita do soberano Espírito de Deus, a fim de que o seu fruto todo apareça em todo o seu povo” (Pacto de Lausanne, Artigo 14). Bibliografia BARRO, Antonio Carlos e KOHL, Manfred. Liderança para um novo século. Londrina: Descoberta, 2003. BARRO, Antonio Carlos. A igreja do século XXI. 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