Análise de obras literárias VIVA O POVO BRASILEIRO joão ubaldo ribeiro Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br SumÁrio 1. Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7 2.ESTILO LITERÁRIO DA ÉPOCA............................................................ 9 AOL-11 3.O AUTOR.................................................................................................. 13 4. A OBRA..................................................................................................... 15 5. EXERCÍCIOS............................................................................................ 52 VIVA O POVO BRASILEIRO joão ubaldo ribeiro Viva o povo brasileiro AOL-11 1. Contexto social e HISTÓRICO O ano de 1945 marca o fim da Segunda Guerra Mundial e mostra o mundo que sobreviveu a Hitler e aos campos de concentração, à bomba atômica de Hiroshima e a todos os demais horrores da guerra. No Brasil, esse ano marca o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e o início de certa experiência democrática que terminará bruscamente em 1º de abril de 1964. Nesse meio tempo, entre 1945 e 1964, o Brasil terá a Constituição de 1946, o retorno de Getúlio Vargas entre 1950 e 1954, as eleições de 1955, a presidência de Juscelino Kubitschek de 1956 a 1960, a criação de Brasília e sua inauguração como capital do Brasil, em 21 de abril de 1960, além da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, que acabou por levar à presidência João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. De 1945 a 1964, o tema do desenvolvimento e subdesenvolvimento do país ocupa boa parte do trabalho dos intelectuais brasileiros. O Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, ocorrido em São Paulo, no ano de 1945, avaliou os aspectos positivos e negativos do movimento modernista. O próprio Mário de Andrade, uma semana antes de morrer, classificou o movimento como “verdadeira legitimação da dignidade pela inteligência brasileira”, lamentando, entretanto, que a poesia tivesse sido acolhida pelo grande público como algo embaraçoso e pedante. A partir daí, deixou de existir a divisão ideológica entre o artista popular e o hermético (aquele que faz um trabalho de difícil compreensão), porque entende-se agora que todos fazem uma crítica sobre o material que examinam, desmitificando tal material. Assim, tanto fazem um trabalho crítico os poetas concretistas como Augusto e Haroldo de Campos, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector e os compositores de canções populares. Pode-se dizer que, entre 1945 e 1964, o Brasil começa a ser percebido como componente de uma realidade global, não obstante seus problemas internos, como analfabetismo em massa e injustiças sociais. Procura-se pensar o país não como 7 João Ubaldo Ribeiro uma nação isolada, mas como parte de um processo geral, analisando-se as relações entre o local e o global, entre o atraso e o progresso, no intuito de se chegar a uma interpretação capaz de proporcionar solução realista para os nossos problemas. No Brasil, o golpe militar de 1964 representou, de imediato, uma ruptura nas ligações entre os intelectuais e o povo. Instituições que buscavam estreitar essas ligações, como a União Nacional dos Estudantes (UNE), foram fechadas e declaradas ilegais logo após o golpe. Contudo, a partir de 1968, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), o autoritarismo e a ditadura se consolidaram no país, e a ação governamental endureceu consideravelmente. O auge da repressão da ditadura militar brasileira se deu na década de 1970 (principalmente em sua primeira metade). A partir desse momento, algumas reações ao golpe passaram a se articular. No plano político-institucional, tivemos a união das forças de oposição em torno de um único partido, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Fora desse âmbito, agindo na clandestinidade, a guerrilha urbana e rural lutava contra a força superior do regime militar. Em 1984, com o fim do regime militar, tem início o processo de democratização do Brasil: Diretas já. 8 Viva o povo brasileiro AOL-11 2.ESTILO LITERÁRIO DA ÉPOCA 9 João Ubaldo Ribeiro O movimento modernista brasileiro tem como marco inicial a Semana de Arte Moderna de 1922. Em fevereiro desse ano, por sugestão do pintor Di Cavalcanti, um grupo paulista, formado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, e alguns escritores mais jovens do Rio de Janeiro, como Ronald de Carvalho, Renato de Almeida e outros mais, promoveram, no Teatro Municipal de São Paulo, a chamada Semana de Arte Moderna, com exposição de pinturas e esculturas, concertos, conferências e declamações. O Modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. Em janeiro de 1917, a pintora paulista Anita Malfatti realizou, em São Paulo, uma exposição de pintura, na qual, além de seus quadros, marcados pela influência do expressionismo alemão, apresentava também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros. A exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros. Monteiro Lobato escreveu um artigo cujo título era “Paranoia ou mistificação?”, em que negava valor artístico aos quadros. A exposição, entretanto, agradou a Mário de Andrade e a Oswald de Andrade. Em 1920, Oswald de Andrade conheceu o escultor Victor Brecheret, cuja arte refletia a influência dos movimentos da vanguarda europeia. Em novembro desse mesmo ano, Oswald publicou um artigo intitulado O meu poeta futurista, em que citava versos do livro Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, que só viria a ser publicado em 1922. Em geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heroica do movimento ou primeira fase modernista, entre 1922 e 1930, provocou a subversão dos gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou processos de elaboração da linguagem poética. Houve aproximação dos diversos ismos europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper com as normas acadêmicas, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o futurismo e o surrealismo. A poesia abandonou formas poéticas consagradas, como o verso metrificado e rimado, exageradamente praticado pelos poetas parnasianos, e aderiu à linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor e à ironia. Os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência do que é dito e na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais. Na fase mais combativa do Modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmentados, com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência do discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja unificação exige do leitor adequação aos novos processos construtivos, uma vez que dispensa a concatenação lógica. A aliteração (repetição dos sons das consoantes) e a criação de neologismos passam a integrar a linguagem da prosa. O melhor exemplo dessa técnica encontra-se em Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. 10 Viva o povo brasileiro AOL-11 De 1930, data da publicação de Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, a 1945, ano da morte de Mário de Andrade, temos o que se convencionou chamar de segunda fase do Modernismo. As grandes experiências técnicas com a linguagem cederam importância aos temas sociais. Surge uma literatura que procura denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na prosa. Aí se encontram os romances de Graciliano Ramos, como Vidas secas (1938) e S. Bernardo (1934), e de Jorge Amado, como Capitães da areia (1937) e Terras do sem-fim (1942), entre outros. De 1945 em diante, temos a chamada terceira fase modernista. Alguns estudiosos delimitam esta fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade, e 1964, ano do golpe militar. A linguagem é empregada como instrumento da busca do ser, sobretudo em João Guimarães Rosa, em seu livro de estreia, Sagarana (1946), e Clarice Lispector, com os romances Perto do coração selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964) e A hora da estrela (1977). A terceira fase do Modernismo A primeira impressão que temos da prosa de ficção da terceira fase modernista é a de que ela se afasta das preocupações extraliterárias da fase anterior, para investigar a linguagem como instrumento expressivo. De fato, enquanto a prosa de ficção da segunda fase modernista procurou empregar a literatura como instrumento de denúncia da realidade, a terceira fase preocupa-se, sobremaneira, em explorar as potencialidades da palavra como instrumento expressivo. Entretanto, o espírito de crítica da realidade não desaparece; ele assume outros aspectos. Agora, procura-se denunciar os próprios mecanismos que compõem o discurso literário e, a partir deles, revelar a realidade que se oculta por trás da superfície dos signos (palavras). A prosa de Guimarães Rosa é marcada por invenções linguísticas no plano lexical e sintático, fazendo uso de expressões regionalistas, de arcaísmos, latinismos e mesmo de termos tomados de outras línguas, dando novos significados às palavras e expressões, além da criação de neologismos (novas palavras). Todo esse processo resulta em um texto não raramente difícil para o leitor habituado à linguagem convencional, porque o obriga a deter-se na camada lexical para extrair dela significados novos. Por exemplo, dado o termo sonoite, um neologismo, o leitor poderia entendê-lo como só + sono + noite; ou, ainda, visli, que o leitor poderia equacionar como vi + vislumbrei + li. O leitor, principalmente o leitor brasileiro, pouco familiarizado com o texto escrito, encontra dificuldade para compreender um autor tão refinado como Guimarães Rosa. A prosa de ficção da terceira fase do Modernismo brasileiro, sobretudo a de Guimarães Rosa e a de Clarice Lispector, é o melhor exemplo do uso da linguagem como instrumento para captar o universo humano e sugerir a amplitude de sua dimensão, apresentando o corpo humano e a natureza como elementos em que se encontram, sob forte tensão, as forças contraditórias que regem a vida, como o caos e o cosmos, o amor (Eros) e o ódio (Tanatos), a história universal e a história pessoal, o bem e o mal, a cólera e a calma. 11 João Ubaldo Ribeiro O PÓS-MODERNISMO Na prosa de ficção brasileira das décadas de 1960 e 1970, não tivemos a mesma multiplicidade de correntes artísticas estabelecidas sistematicamente e difundidas em movimentos mais ou menos organizados (embora de curta existência) na poesia. Algumas linhas gerais, contudo, podem ser destacadas. Depois do golpe militar, acentuou-se a literatura de engajamento político, que passou a ser um instrumento de luta contra a ditadura, tentando vencer os obstáculos que eram colocados a toda atividade cultural: censura, mecanismos de restrição econômica etc. Mesmo assim, surgiram obras de valor, como Quarup, de Antônio Callado, e Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. A imprensa sofria o mesmo processo de perseguição e censura e, se alguns escritores encontraram na crônica jornalística um meio de sobrevivência, alguns repórteres viram na ficção uma forma de contar histórias que eram proibidas, se associadas a fatos reais. Surgiu, então, o chamado romance-reportagem, voltado principalmente para aspectos violentos das contradições sociais brasileiras, como, por exemplo, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, de José Louzeiro. Mais recentemente, verificou-se a tendência ao biografismo em nossas letras. Nesse terreno, o grande nome já era, há muito tempo, Pedro Nava, e sua obra foi revalorizada pelo sucesso de público das biografias. Talvez esse sucesso se possa justificar pelo desejo do leitor de conhecer histórias pessoais ligadas direta ou indiretamente ao universo da repressão, em que a verdade oficial demorava a aparecer. Nesse sentido, destacaram-se Fernando Gabeira, com O que é isso, companheiro?, e Marcelo Rubens Paiva, com Feliz ano velho. O conto conheceu um avanço editorial, parcialmente atribuído à facilidade de leitura de histórias curtas. De qualquer forma, o gênero atraiu talentos normalmente voltados para narrativas de maior fôlego, até conseguir criar seus primeiros autores especializados. A condensação exigida pela forma obriga os escritores a arrancar o máximo de significado de situações limitadas. A literatura brasileira produziu grandes contistas. No período, destacaram-se Rubem Fonseca (com O cobrador, por exemplo) e Dalton Trevisan (com O vampiro de Curitiba, entre muitos outros). Um gênero que cresceu também nesses anos de chumbo foi a crônica de jornal. A ela recorreram, como já dissemos, muitos escritores que encontravam dificuldade na produção ficcional regular, por causa da censura. Além disso, a crônica luta contra a imagem de “gênero menor”. Para tanto, contribui a capacidade do cronista de captar o lirismo do cotidiano dentro de uma visão pessoal que alcance o envolvimento do leitor. O nome de Rubem Braga é referência obrigatória quando se fala de crônica brasileira. Para tentar anular a efemeridade que é marca natural do gênero, o cronista reuniu parte de sua produção na obra Ai de ti, Copacabana. Os temas mais constantes na produção ficcional do período foram aqueles ligados à situação política brasileira. 12 Viva o povo brasileiro 3.O AUTOR Nascido em Itaparica, Bahia, no ano de 1941, formado em Direito, mestre em Ciências Políticas pela Universidade da Califórnia, exerceu a profissão de jornalista até 1983. Desde então, é escritor de corpo inteiro. Escritor do seu lugar, da sua gente: “O quadro de meu lugar e de minhas circunstâncias, meu passado e meu futuro, o desespero do nada e do tudo, o desespero de tê-los ao redor de mim pela vida e pela eternidade. “ “Hoje, como naquele tempo, eu sou um pedaço daquelas coisas e daquele lugar, daqueles homens e daquela cidade pequena. “ Dono de um estilo literário personalíssimo, em que consegue ser regionalista ao extremo e chegar sem atalhos à universalidade, João Ubaldo Ribeiro alcançou notoriedade nacional a partir de Sargento Getúlio, livro publicado em 1971, que mais tarde virou filme premiado na Suíça e no festival de Gramado. O cenário da maior parte dos seus romances é a ilha de Itaparica. João não se afasta da baianidade, da brasilidade. Em O sorriso do lagarto, o escritor mistura as histórias folclóricas do povo baiano com a erudição de quem mergulhou a fundo na literatura de William Shakespeare. Aí regionalismo e universalidade se misturam. Sua obra-prima é Viva o povo brasileiro, de 1984, um imenso painel histórico, desde as guerras da Independência até a tristeza efervescente dos anos 1970. Ele o dedica a seu amigo Glauber Rocha. AOL-11 Outras obras: Setembro não tem sentido Vila Real Pesquisa feita na revista “Domingo”, do Jornal do Brasil, de 28/7/91, e em A Tarde Cultural, de 4/5/91. 13 João Ubaldo Ribeiro Entrevista com João Ubaldo RIBEIRO M.B. — Os seus livros Viva o povo brasileiro e Feitiço da ilha do Pavão possuem um realismo histórico, ao mesmo tempo em que têm um realismo quase mágico. Como é que explica isso? J.U.R. — Não explico, saiu da forma que saiu. No Feitiço da ilha do Pavão, eu propositadamente inventei uma ilha que não existe, então tem algo de mágico, mas, em relação ao Viva o povo brasileiro, eu apenas incorporei os elementos que são comuns à cultura baiana, uma cultura que é mesclada com elementos africanos, e por aí fora. M.B. — Considera que Viva o povo brasileiro transformou o Brasil numa entidade mítica, mitológica e fascinante? J.U.R. — Não, eu acho que o Brasil é uma entidade mítica, mitológica e fascinante. Nem sempre no bom sentido. M.B. — O que quer dizer com isso? J.U.R. — Bom, os europeus, por vezes, têm uma ideia errada das mulheres brasileiras. Eu tenho uma amiga brasileira muito bonita que arranjou uns namorados portugueses. Então, ela me visitou e contou-me algumas histórias engraçadas. Eles pensam que as brasileiras são muito fáceis, quentíssimas, fogosas e vão para a cama com qualquer um. Então ela ia jantar fora e o companheiro, já todo apressadinho, dizia: “bom, pelo menos vamos acabar de jantar”. (risos) M.B. — O livro Viva o povo brasileiro é o mais importante da sua obra? J.U.R. — Pelo número de traduções não, mas posso considerar que é. M.B. — Pesquisou muito para escrever o livro? J.U.R. — Não, não fiz pesquisa nenhuma. A única pesquisa que eu fazia era uma eventual procura na enciclopédia. Lembro-me apenas de uma pesquisa exaustiva que fiz e me levou a manhã inteira porque eu sou maluco e obcecado por pormenores. Tem a ver com um personagem que riscava fósforos na sola da bota e eu queria saber se, na altura, existiam fósforos. Mas, de um modo geral, veio tudo do meu conhecimento acerca de história. Só procurava algumas datas. M.B. — Nesse livro, você foca um pouco a antropofagia. A seu ver, quais são o significado e a importância da antropofagia para a cultura brasileira? J.U.R. — (pausa para o cigarro) Mais uma vez teríamos que estar uma tarde inteira a falar sobre o tema. Foi um tema muito falado durante a Semana de Arte Moderna para metaforizar a canibalização da cultura estrangeira, a ingestão dessa cultura e a transformação dela em algo brasileiro. Eu nunca pretendi fazer esse tipo de relação. Apenas quis focar um pouco isso no livro. Na verdade, a antropofagia não era uma prática tão comum entre os índios, existe até quem a conteste. Foi para brincar um bocado com o que dizem no Brasil. E se tivéssemos sido colonizados por franceses, holandeses, ingleses? Será que tudo seria diferente? 14 Viva o povo brasileiro AOL-11 4.A OBRA 15 João Ubaldo Ribeiro “O que existiu realmente existiu? Algo importa além do presente? Há realmente uma História, somos de fato herdeiros de alguma coisa ou somos eternos construtores daquilo que a memória finge preservar, mas apenas refaz, conforme suas variadas conveniências, a cada instante que vivemos?” João Ubaldo Ribeiro “O segredo da verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.” Viva o povo brasileiro Título extraído da própria obra Ao contrário da impressão que o título pode causar à primeira vista, Viva o povo brasileiro não é uma espécie de saga da nação brasileira, nem uma tentativa de construir uma “história secreta”, em contraposição à “história oficial”. Esse extraordinário romance, seguramente destinado a deixar sua marca em nossa literatura, é antes a história – exuberante, encantada, cheia de vida – de busca de identidade. A identidade que talvez até hoje ainda escape, em sua inteireza, à consciência do povo brasileiro, tão agredido em suas raízes culturais. É também, de certa forma, uma história do surgimento dessa consciência e de sua luta por afirmação. Para desfiar sua narrativa, que abrange mais de três séculos, o autor se valeu de um recurso ao mesmo tempo metafórico e explícito. Metafórico porque o povo do Recôncavo Baiano, principal personagem do romance, pode ser visto como uma metáfora do povo brasileiro em geral. Explícito porque, com isso, evidencia-se para o leitor um dos mais belos “motivos” desse romance: a visão do sentimento de identidade entre os brasileiros, mesmo entre os que só sabem da existência de seus irmãos distantes de maneira vaga e nebulosa, toldada pelo desconhecimento e pela ignorância. Transcendendo em muito o universo narrativo escolhido (que terminou por gerar um tratamento do tempo ficcional de grande originalidade, embora enganosamente simples), Viva o povo brasileiro, pelo seu brilho técnico, seu prodigioso cabedal de informação sobre a vida e a cultura do povo, seu apuro de linguagem, sua altíssima qualidade literária, enfim, credencia-se como um acontecimento de primeira linha no panorama da literatura brasileira contemporânea. Senhor da carpintaria literária como poucos, de rara competência na utilização de um acervo de recursos narrativos aparentemente inesgotável, dono de uma sensibilidade apaixonada e, ao mesmo tempo, satírica, João Ubaldo Ribeiro é hoje reconhecido como um dos escritores mais significativos da América Latina, com traduções em mais de dez idiomas, em todo o mundo. (Recentemente, a Canadian Broadcasting Corporation – Société Radio–Canada escolheu-o para participar de uma série de filmes de meia hora sobre escritores latino-americanos, numa lista de nomes que incluía Gabriel Garcia Márquez, Jorge Luís Borges, Octavio Paz e Mario Vargas Llosa.) Nesse romance inesquecível, ele proporciona ao leitor uma experiência enriquecedora, um mergulho num Brasil que é “o nosso”, o de todos, o Brasil do nosso inconsciente coletivo, 16 Viva o povo brasileiro mitológico, misterioso, vibrante, escondido – atraente porque distante e, ao mesmo tempo, fascinantemente próximo. ALGUMAS INFORMAÇÕES INICIAIS • A obra cria um painel da formação do povo brasileiro: estratificação sociocultural e diversificação étnica. • O pensamento aparece diversificado, de acordo com a época e com o grau de conscientização das personagens: Capiroba – incompreensão da teologia cristã Nego Leléu – oportunismo, esperteza Maria da Fé – discurso revolucionário • Durante a narrativa, há uma análise da formação do sentimento nacional, partindo do século XVII e alcançando o século XX (há uma referência maior ao século XIX – século de grandes transformações no país e do nascimento do conceito de nacionalidade). Mostra-se, ainda, a história do surgimento da consciência coletiva e de sua luta por afirmação. • Não há linearidade na narração dos fatos: ocorrem constantes avanços e recuos no espaço e no tempo. Não existe obediência à cronologia, de modo que são comuns as digressões e as interferências por parte do narrador. AOL-11 Aspectos Relevantes • Reação do nativo à colonização e à catequese (rejeitado socialmente): “O caboclo Capiroba então pegou um porrete (...) e achatou a cabeça do padre com precisão (...), cortando um pouco da carne (...) para churrasquear na brasa...” “No 1o ano, comeu o almoxarife (...) e seu ajudante...” • Apesar de ser narrada em prosa, observa-se profunda poesia com, inclusive, musicalidade em alguns trechos. • Igreja conivente com os atos violentos praticados pelos ricos donos de engenho. Os padres abençoavam as pessoas mortas após as crueldades. • Crítica à alforria dada pelos donos do poder aos negros que já não podiam trabalhar. • Holandeses = aptidão comercial (capitalismo) • Portugueses = exploradores / matam índios e estrangeiros / maltratam negros. Supõe-se, então, que seria melhor terem ficado os holandeses protestantes, pois buscavam a riqueza e o desenvolvimento da região. • Agravamento da seca, êxodo para as regiões Sul/Sudeste — sendo discriminados – considerados seres inferiores, devido à miscigenação e à questão socioeconômica. • Catolicismo = grande entrave para o crescimento da economia brasileira. 17 João Ubaldo Ribeiro • Análise profunda da seca nordestina através de Amleto (mestiço ambicioso). Ricos proprietários sufocam o pequeno proprietário. • Êxodo rural – formação de latifúndios (trazendo pobreza e miséria). • A obra pretende uma reflexão: o problema não é apenas econômico, mas principalmente cultural. “Somente através da penúria engendrada pelas estiagens é que o pequeno proprietário se rende (...), possibilitando que os grandes proprietários (...) possam comprar-lhes as terras...” • Negros – humilhados, surrados, violentados na honra e no físico – seres inferiores. • Referências às inúmeras guerras por que passou o segundo Reinado (Farroupilha, Canudos, Guerra do Paraguai). • Em alguns trechos, a obra parte para o fantástico, por não ter compromisso com o relato histórico real e objetivo (o autor se esforça para a elevação da alma, da espiritualidade). • Insinuações e prática sexual são comuns – intertextualidade com Jorge Amado. • Denúncia de corrupção, falta de ética, hipocrisia, covardia. • Misticismo e religiosidade constantes – reencarnação, crença dos negros africanos, macumba, deuses (orixás): “É por essa razão que chamo o meu irmão Xangô...” • Intensa crítica à formação dos heróis nacionais no Brasil. A temática é desenvolvida pela história do alferes Galvão, de Perilo Ambrósio e de Zé Popó. ESTUDO DIRECIONADO A mestre em literatura brasileira Eliane Maria de Oliveira Giacon constrói brilhantemente sua dissertação com o tema “O novo romance histórico brasileiro”, com enfoque na obra Viva o povo brasileiro. Alguns trechos de sua dissertação colaboraram muito para a compreensão da obra de João Ubaldo Ribeiro. No capítulo final, intitulado “Síntese”, como já antecipa o título, há um apanhado, construído de modo extremamente didático, sobre o livro. A transcrição do capítulo foi feita na íntegra, para não prejudicar o entendimento em seu âmbito geral. O povo brasileiro, quem é ele? Segundo Darcy Ribeiro, seria um povo formado a partir da miscigenação entre índios e brancos, formando o mameluco, que, por sua vez, misturou-se com os negros. O negro, segundo ele, tinha sido destituído de sua terra e jogado numa terra estranha, onde ele procuraria a identidade que perdera ao sair da África. Ele seria, destes elementos, o que mais incorporaria a procura de uma identidade nacional que o aproximasse desta nova terra. 18 Viva o povo brasileiro O brasileiro, étnica e culturalmente, é a mistura de três raças que, no século XIX, estava configurada. O branco europeu introduzido nos séculos XIX e XX funcionou não como fator de branqueamento da raça, mas como um elemento que assimilou e assimila as outras culturas, tanto dos outros brancos que para cá vieram como do brasileiro nato. Ser brasileiro não é apenas uma questão de etnia e sim uma questão cultural. Um indivíduo torna-se brasileiro pela assimilação cultural e não apenas por nascer de uma etnia brasileira. No romance Viva o povo brasileiro, a introdução de Patrício Macário ao povo brasileiro constitui um momento de revelação. No livro, o narrador usa este instante da vida do personagem para demonstrar que ser brasileiro é uma questão de sentir as coisas sem, contudo, vê-las. Dessa forma, a Irmandade do povo brasileiro é algo que intriga os personagens, pois eles fazem parte dela e ao mesmo tempo buscam respostas para a sua existência. A Irmandade do povo brasileiro é uma metáfora da identidade nacional criada pelo narrador para responder aos que se perguntam o que é a identidade nacional do brasileiro e como essa se diferencia da de outros povos. O narrador do romance, para responder quem é o brasileiro, cria uma personagem mítica: a alminha brasileira, que é a essência da brasilidade. Se esta essência é brasileira, logo o povo como um todo o é. Dessa forma podemos dizer que o romance responde à questão que intriga antropólogos e historiadores, quanto ao que é o povo brasileiro a partir de uma visão antropofágica da formação do povo brasileiro. AOL-11 O texto ficcional antropofagia os textos e as ideias destes estudiosos, bem como de outros, produzindo um texto capaz de identificar o povo brasileiro através da tese defendida por João Ubaldo nesta obra. Para tanto, o narrador divide esta tese em 18 capítulos, que demonstram o brasileiro sob o véu da mestiçagem. Ao final desta obra não há um único personagem que não seja mestiço. E por mais que alguns personagens, como Bonifácio Odulfo e Henriqueta, queiram se descolar desta teia mestiça, jamais eles conseguem, pois há sempre um índio ou um negro na árvore genealógica do brasileiro. O contingente humano de brasileiros no Brasil é formado por um grupo de elementos criolos, mazombos, mamelucos, cafuzos, enfim um aglomerado miscigenado que criou uma maneira de ser que é um pouco de Leléu, um pouco de Maria da Fé, um pouco de Bonifácio Odulfo e um pouco de Macário. Esses tipos brasileiros no romance se repetem reforçando a definição do povo brasileiro através deles. Assim Capiroba, Vu, Maria da Fé, Vevé, Satlin José são o Brasil revolucionário que sobrevive ao se identificar com o povo brasileiro. Este grupo está em oposição às elites formadas por personagens como Amleto, Bonifácio Odulfo e Eulálio Henrique. Estes dois tipos, embora antagônicos, completam-se na definição do brasileiro como uma etnia que vive numa luta entre as classes sociais, contudo têm em comum alguns traços quanto à maneira de ser do brasileiro. 19 João Ubaldo Ribeiro A obra definiu o povo brasileiro através da essência da brasilidade. Essa não depende da etnia e sim de aceitar ou não por parte do indivíduo as marcas que o aproximam da brasilidade. Quem quer se apossa dela e a utiliza com insígnia, quem não a quer a repele, contudo a essência do povo brasileiro o pega de alguma forma. Isto porque a brasilidade é cativante e atrativa mesmo para aqueles que a negam. Eliane Maria de Oliveira Giacon A ANTROPOFAGIA NA OBRA A obra apresenta vários tipos de antropofagia: étnica, cultural, linguística... Inicialmente, percebe-se Capiroba saboreando a carne de um português. Vale salientar que Capiroba é produto do cruzamento de um negro e uma índia. A partir de receitas ensinadas pelos padres, são preparadas iguarias com a carne dos “abatidos”. Posteriormente, haverá uma absorção bilateral: elementos absorvem e são absorvidos metaforicamente através da antropofagia e do “encontro”. Vu, filha de Capiroba, encontra-se com “Sinique”, holandês preso para ser abatido. Percebe-se, de imediato, a antropofagia através dos nomes – Zernique torna-se Sinique. Em outro momento da obra, o negro Budião, escravo de Perilo Ambrósio, luta no Sul, na Farroupilha, e retorna com alguns costumes assimilados. O próprio final é um processo antropofágico: a terra engole a canastra – caixa simbólica que contém a história do povo brasileiro. ESTRUTURA DA OBRA Espaço – Especialmente a Bahia (Salvador, Recôncavo e Itaparica); surgem esporadicamente outros espaços, como São Paulo e Rio de Janeiro. Linguagem – Mistura de vários tipos e níveis de linguagem, envolvendo desde a linguagem erudita e bem falada até a coloquial, com incorporação de termos regionais e palavras vulgares. OUTROS ASPECTOS • Uso do discurso indireto livre e do fluxo de consciência na apreensão dos pensamentos das personagens • Questionamento da história oficial • Nacionalismo crítico • Presença da cor local • Presença da ironia • Narrador de 3a pessoa, mas não imparcial 20 Viva o povo brasileiro ASPECTOS TEMÁTICOS • Modo de formação do povo brasileiro, fora da idealização romântica • Busca da identidade nacional • Povo x elite • O negro e sua inserção na sociedade • A desmitificação dos “heróis nacionais” SíNTESE DOS CAPíTULOS • A obra está dividida em 20 capítulos. Eles são datados, sendo que o ano mais distante é 1647 e o mais recente, 1977. Primeiro capítulo – 10 de junho de 1822 AOL-11 O mito criado pelo povo: a história do alferes José Francisco Brandão Galvão – morto pelos portugueses, sem nada fazer de heroico. Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável. É certamente com a imaginação vazia que aqui desfruta desta viração anterior à morte, pois não viveu o bastante para realmente imaginar, como até hoje fazem os muito idosos em sua terra, todos demasiado velhos para querer experimentar o que lá seja, e então deliram de cócoras com seus cachimbos de três palmos, rodeados pelo fascínio dos mais novos e mentindo estupendamente. E talvez falte apenas um minuto, talvez menos, para que os portugueses apareçam à frente deste sol forte de inverno na Baía de Todos os Santos e façam enxamear sobre ele aquelas esferazinhas de ferro e pedra que o matarão com grande dor, furando-lhe um olho, estilhaçando-lhe os ossos da cabeça e obrigando-o a curvar-se abraçado a si mesmo, sem nem poder pensar em sua morte. No quadro “O alferes Brandão Galvão Perora às gaivotas”, vê-se que é o 10 de junho de 1822, numa folhinha que singra os ares, portada de um lado pelo bico de uma gaivota e do outro pelo aguço de uma lança envolvida nas cores e insígnias da liberdade. Já mortalmente atingido, erguendo-se com um olho a escorrer pela barba abaixo, ele arengou às gaivotas que, antes distraídas, adejavam sobre os brigues e baleeiras do comandante português Trinta Diabos. Disse-lhes não uma, mas muitas frases célebres, na voz trêmula porém estentórea desde então sempre imitada nas salas de aula ou, faltando estas, nas visitas em que é necessário ouvir discursos. Pois, se depois da metralha portuguesa não havia ali mais que as aves marinhas, o oceano e a indiferença dos acontecimentos naturais, havia o suficiente para que se gravassem para todo o sempre na consciência dos homens 21 João Ubaldo Ribeiro as palavras que ele agora pronuncia, embora daqui não se ouçam, nem de mais perto, nem se vejam seus lábios movendo-se, nem se enxergue em seu rosto mais que a expressão perplexa de quem morre sem saber. Mas são palavras nobres contra a tirania e a opressão sopradas pela morte nos ouvidos do alferes, e são portanto verdadeiras. Viva o povo brasileiro, p. 15/16 O narrador ainda faz referência à encarnação e à reencarnação – as encarnações do alferes e suas reencarnações. 8 de novembro de 1822 Surge um outro mito: Perilo Ambrósio, covarde, finge ter lutado pela independência, mata o escravo Inocêncio e lambuza-se com seu sangue. Hipocritamente, passa-se por corajoso e, para que o escravo Feliciano não revele a verdade, corta-lhe a língua. Com um meneio de cabeça curto e enérgico, o tenente, que não parecia ter mais de vinte anos e ao falar via-se que fazia esforço para a voz soar mais grave do que de fato era, disse “pois muito bem” em tom marcial e, segurando o chapéu armado que balançava um pouco frouxo no cocuruto, galopou de volta a seu grupo. Fazendo apear um dos praças depois de levá-lo até Perilo Ambrósio, passou o cavalo e uma quartinha de água, acenou como quem esboça uma saudação. Com o negro Feliciano cabisbaixo, mas ligeiro à frente, Perilo Ambrósio oscilava devagar, montando o cavalo em marcha andadeira, já quase chegando aonde a estrada dobrava por trás dos matos e desaparecia em outra direção. Parou um momento, olhando de longe o tenente desmontar junto da árvore onde tinham estado, andar alguns passos, curvar-se brevemente, tirar e recolocar o chapéu e talvez benzer-se – a distância era grande demais para se ter certeza. O tenente montou outra vez e chouteou de volta a seu grupo emoldurado de poeira. Perilo Ambrósio ficou contente em verificar que tudo resultara muito bem até o último pormenor, embora já antes estivesse seguro de que o tenente encontraria Inocêncio morto. Afinal, quando o sangrara à faca para lambuzar-se de seu sangue e assim apresentar-se ao tenente, terminara por dar-lhe mais cuteladas do que planejara, já que os braços e as mãos lhe fugiram do controle e golpeou o negro como se estivesse tendo espasmos. Melhor que haja morrido logo e não se pode negar que de um modo ou de outro deu sangue ao Brasil, pensou Perilo Ambrósio, voltando as costas e cutucando mansamente as ilhargas do cavalo para tomar de vez a estrada. p. 33/34 5 de maio de 1826 Perilo Ambrósio tornou-se um herói nacional. Denunciara a família para D. Pedro e ele a deportara de volta para Portugal. Tornou-se, dessa forma, herdeiro de todo o patrimônio. 22 Viva o povo brasileiro Segundo Capítulo – 20 de dezembro de 1647/ 26 de dezembro de 1647 É contada a história de Capiroba que, enlouquecido pela doutrina dos padres, roubou duas mulheres e fugiu, fundando uma maloca. Depois da fuga, passou a alimentar-se da carne dos portugueses e holandeses. Preferiu a carne holandesa. Resolveu caçar holandeses e, assim, foram caçados Nikolas Eijkman e Heike Zernike – antropofagia cultural, linguística, étnica. Posteriormente, eles foram capturados pelos portugueses: Capiroba foi enforcado; Zernike (Sinique) foi fuzilado; Vu, grávida do holandês, foi acolhida como escrava, porém não aceitará esta condição. Até que, bastante tempo depois, as frutas do verão dando em pencas e caindo pelo chão, os insetos em grande atividade e as mantas de tainhas saracoteando irrequietas por toda a costa da ilha, saiu para tentar a sorte meio sem esperança e voltou arrastando um holandês louro, louro, já esquartejado e esfolado, para livrar o peso inútil na viagem até a maloca. O flamengo tinha o gosto um pouco brando, a carne um tico pálida e adocicada, mas tão tenra e suave, tão leve no estômago, tão estimada pelas crianças, prestando-se tão versatilmente a todo uso culinário, que cedo todos deram de preferi-lo a qualquer outro alimento, até mesmo o caboco Capiroba, cujo paladar, antes rude, se tornou de tal sorte afeito à carne flamenga que às vezes chegava mesmo a ter engulhos, só de pensar em certos portugueses e espanhóis que em outros tempos havia comido, principalmente padres e funcionários da Coroa, os quais lhe evocavam agora uma memória oleosa, quase sebenta, de grande morrinha e invencível graveolência. p. 50 Terceiro Capítulo – 9 de junho de 1827 AOL-11 Perilo, indo para a ilha, odeia a esposa Antônia Vitória, com quem se casou por interesse, com enteados desagradáveis e parentes abomináveis. Antônia Vitória, com sua capacidade infinita de falar a mesma coisa durante dias, semanas, meses ou anos, o forçaria a entocar-se em qualquer lugar onde a voz dela não o alcançasse, para não tresloucar de uma vez. E também faria queixas ao pai. Perilo Ambrósio lembrou amargamente que casara com aquela viúva branca como alvaiade, quase tão gorda quanto ele, de olhos muito diretos, nariz agressivo e voz metálica, orgulhosa dos dentes esculpidos em marfim que lhe recompunham de maneira ofensiva parte da arcada superior, porque assim entraria para o ramo comercial através do Empório e Trapiche Soares de Almeida, do português brasileiro Afonso Soares Matinho de Almeida, pai dela. Mas o sogro se mantinha distante e suspeitoso, o que de início mortificava Perilo Ambrósio e agora apenas o incomodava, porque o velho cada vez mais afundava na doença e na debilidade e, se Antônia Vitória tinha alguma boa qualidade, esta era ser filha única de pai viúvo velho. 23 João Ubaldo Ribeiro p. 64/65 Já aparecem opiniões preconceituosas a respeito do povo; Amleto aparece na narrativa como braço direito de Perilo, e o monsenhor que o acompanha desvaloriza Amleto por ser mestiço. — Mas, monsenhor, dizia eu... — Caluda! Já tive paciência demais contigo e agora não faço mais chistes como estive a fazer, falo sério. Mostro-te a verdade à maneira socrática. Sei que não entendes de filosofia e, se ouves falar em Sócrates, imaginas que falam de algum outro inglês que haja visitado a casa a tua mãe. Mas não tem importância, faço-te um par de perguntas e já te demonstro a falsidade de tuas razões pueris. Senhor guarda-livros... Como é mesmo o tal apelido anglicano? p. 73 — O elemento servil é indispensável para que se mantenha o país e a sociedade – comentou, cruzando as mãos às costas. – Nisto concordo, sem ele os custos tornarse-iam proibitivos e não se poderia aspirar a transformar esta nação no celeiro do mundo civilizado e no fornecedor de algumas das principais riquezas de que depende a civilização. Mas há limites para o que se pode suportar da convivência com essas criaturas simiescas e obtusas, que estão neste mundo para que louvemos a Deus pelo nosso destino de homens normais e para que ponhamos à prova nossa caridade. — Sim, a mim também me causam espécie os negros. Tenho-os em quantidade porque o serviço do engenho, das fazendas e da armação requer muitos braços. Mas são tantos os cuidados que me dão, tantas as despesas e desgostos, que às vezes perguntome se não estava melhor sem eles. — Não, não estava. Mas que lá é duro ter de aturá-los, lá isto sei que é, é o preço que pagamos sobre tudo mais o que suportamos neste vale de lágrimas, temos pois que tornar este fardo pesado tão ameno quanto possível. Dives placet ubique, pauper ubique jacet, já diziam os antigos, não? Eis que vêm de lá, finalmente. Mas que cortejo formidando, não há guarda para conter aquela malta que os cerca como sabujos às raposas? p. 68 10 de junho de 1827 Dadinha, neta de Vu, bisneta de Capiroba, no dia em que completa 100 anos, dia de sua morte, fala aos seus descendentes e conta a história dos ancestrais. Conta como Vu foi morta pelos padres por se negar à escravidão. Aparece a sabedoria popular, adquirida empiricamente, por meio da experiência cotidiana. Há a valorização da cultura popular e a crítica à alforria quando os escravos já estavam velhos e sem condições de trabalho. 24 Viva o povo brasileiro Furria só se for que nem a minha, que fui furriada de promessa e as pernas já andava mal, depois de criar no peito quase que toda a família, do bisavô no bisneto, na Armação e no Engenho. Boa furria essa, me deram quatro patacas e me botaram aqui debaixo da paia e inda quase que não fazem o favor de deixar os meninos vir aqui trabalhar no domingo para fazer as paredes. E, se eu não soubesse fazer minha renda de birro e não tivesse ajutório, que fome passasse, que eu não como só de domingo ni domingo, quando chega o povo aqui. p. 85 Mas as vésperas começaram a tocar nos sinos da capela e Dadinha se interrompeu como alguém cujo interesse é despertado por um assunto novo. Cruzou os braços muito composta, fechou os olhos e, com a expressão de quem vai assistir a alguma coisa fascinante, morreu exatamente como havia escolhido. p. 89 9 de junho de 1827 Antônia Vitória na ilha para a festa de Santo Antônio: muita devoção. Uma escrava derruba Santa Bona e São Lúcio. Mesmo sem que os santos tenham quebrado, Antônia Vitória acha que cairá sobre ela muitas desgraças. (...) Jesus, Nossa Senhora, grande Santa Rita dos Impossíveis, meu divino padrinho Santo Antônio, ai que desce sobre nós a mais minaz das desgraças! Ai meu santinho São Lúcio, minha Santa Bona, que me deram às bodas os meus pais, ai que fizeste, infeliz, aí estão meus santinhos em estilhas (...). Ai meu Deus, espero que não chovam desditas sobre esta casa e nossa fazenda.... p. 91 Perilo Ambrósio demonstra todo o seu poder e como se sente em relação a ele. Nesse momento, a masturbação que Perilo Ambrósio concretiza se relaciona com o que sente quando pensa no poder que possui. (...) masturbava-se por tudo aquilo que era infinitamente seu, os negros, as negras, as outras pessoas, o mundo, o navio a vapor, as árvores, a escuridão, os animais e o próprio chão da fazenda. Sim, podia sair por ali nu como estava, a glande com a cabeça de um aríete irresistível, e podia fazer com que todos a olhassem e a reverenciassem e ansiassem pela mercê de tocá-la e beijá-la. AOL-11 p. 98 Já aparecem indícios do desejo animal que o Barão possui pela negrinha Vevé. Procurara saber sobre ela através do feitor Almérico: era donzela e iria pedir permissão para casar com Custódio Arpoador. Imaginou-se suavemente prepotente, chamando ao colo e às virilhas as cabeças dos que o cercavam, com isso distribuindo bênçãos e felicidade. E finalmente pegando a negrinha Vevé e, sem dizer uma palavra, atirá-la à cama, abrir-lhe as pernas, deixar bem claro que não queria que se mexesse e, passando cuspe por aquela cabeça de carne 25 João Ubaldo Ribeiro inchada e embruteada, deflorá-la de um só golpe, aguardando uma estremeção de dor para impedir seus movimentos com um braço paralisante (...), empurrando-lhe os joelhos para cima, enfiar-lhe tudo com um golpe rude que quase a lançasse contra a cabecera, confirmando esse golpe, depois de penetrá-la até encostar os ossos dela em suas banhas, com mais estacadas curtas, como quem trespassa, como quem empala, como quem gostaria de que a mulher fosse inteiramente atravessada e morresse com as vísceras destroçadas, morresse bem no instante em que, quase sem precisar fazer mais um gesto sequer, gozasse dentro dela, senhor completo, senhor completo, levantando e limpando sangue e gosma na camisola da negrinha. p. 98 * Perceber a crueldade do pensamento do Barão e a satisfação da elite por poder manipular, como bem entender, os negros e as negras. ... Perilo Ambrósio mergulhava a cabeça na escuridão de fora e, sem nada que lhe ocupasse a mente, tinha no rosto tanta maldade indiferente, tanta crueza e tanta ausência de bom sentimento que sua baba, se caísse, poderia matar as plantas rasteiras e sua vontade era apenas a vontade de que tudo existisse para si, a vontade que não se pode bem distinguir da morte. p. 100 QUARTO CAPÍTULO – 26 de fevereiro de 1809 Nascimento de Vevé, filha de Roxinha e Turíbio Cafubá, filho de Dadinha. Ela nasceu com uma marca na testa, que, segundo Dadinha, vinha da cabocla Vu e era sinal de que em Vevé muitas coisas se acendiam quando ela lutava. Turíbio está muito feliz com o nascimento da filha e, desobedecendo o seu senhor, distribui os peixes sem autorização do senhor: vai ser chicoteado no tronco. Venância (Vevé) recebe de Dadinha o nome de Dae ou Naê (“rainhazinha de Arocá!”). Talvez sentisse uma pequena felicidade, porque o pai via na menina um futuro e ela [Dadinha] também via, embora diferentes e embora não pudesse haver dois futuros e portanto um deles estava errado. Olhou o filho, que parecia enfeitado de miçangas pelas gotas de suor, teve pena dele e teve orgulho, achou que era bonito em sua insensatez e seu delírio de línguas e santos misturados, conseguiu somente suspiros. p. 107 11 de junho de 1827 Amleto Ferreira pensa em decorar versos de Virgílio para impressionar os convidados do Barão. Ele encontra Venância e a deseja ardentemente. Aproxima-se dela, comenta sobre o pai dela – este morrera há dez anos – e pega-lhe nos seios; esfrega, ainda, a mão dela em sua braguilha. 26 Viva o povo brasileiro — Quero ver teus peitos. Ela não disse nada, continuou como estava. Com uma ansiedade insuportável, ele levantou a bata, viu trêmulo a barriga e o umbigo aparecerem primeiro, quase arrebenta quando, primeiro o esquerdo, depois o direito, os peitos bambalearam um pouco por causa da puxada para cima e se aprumaram em curvas delicadas, os bicos apontando com leveza para cima, o rego entre eles coberto (...). Amleto ofegou, quis gritar por tê-los tão perto, tão visíveis, tão tocáveis. p. 116 Perilo mostra ao cônego a forma de produzir óleo de baleia. Comenta-se sobre a necessidade de castigar os negros para que eles sejam leais. — Não – explicou o Barão. — Ouço dizer que, nas terras interiores da Província, onde a vida é mais rude e o trato enérgico é mais necessário, até mesmo em alguns engenhos da orla deste golfo, há senhores muito rigorosos com os pretos. Aqui não, aqui só temos a disciplina indispensável. p. 123 Aparece na fazenda o nego Leléu: agradava a uns e outros, arranjava mulheres para os doutores, sabia segredos, dava presentes. Negro alforriado e esperto: usa a esperteza como forma de se beneficiar. Une-se a quem pode oferecer algo; leva a vida no jeitinho. Mesmo que o nego Leléu não leve ninguém com ele, as amizades boas a pessoa precisa cultivar, é necessário aparecer de vez em quando, oferecer os préstimos, elogiar, admirar bastante, agradecer o feito e o não feito, o dado e o não dado – é tudo trabalho. E não foi trabalho decorar mais rezas, cantos e responsos do bom Santo Antônio para puxar nas trezenas e novenas e as orações... AOL-11 p. 140 Mas é trabalho! Tudo neste mundo se consegue com trabalho e quem é preto consegue menos com muito mais trabalho, então tem de trabalhar multiplicado e trabalhar em todos os trabalhos e trabalhar o tempo todo e trabalhar sem distrair e sempre acreditar que alguém quer tomar o resultado do trabalho. Se Nego Leléu trabalha? Mas como trabalha o Nego Leléu! Nego Leléu ficou forro por testamento de um português de Salinas da Margarida, não quiseram libertar, olhavam para o papel e liam mentiras que não estavam escritas nele. Nego Leléu estava aí nem ia chegando? Podem crer! Disse que não queria sair da fazenda, era amigo e servidor de laiá Iaiazinha por vocação de vida e, se o libertassem, ali mesmo ele ficava – ir para onde, meu Bom Jesus? Ganhou carta de alforria na festa de Natal, ganhou também uma leira, plantou muita verdura graúda estrumada bem estrumada, aquilo chegava a estufar e algumas rebrilhar, fez barraca no mercado, fez quitanda, vendeu e revendeu, entabolou muitíssimos negócios em todas aquelas partes, em Salinas, em Cachoeira, em Maragogipe, em Vera Cruz, na Ponta das Baleias, em Nazaré das Farinhas, com27 João Ubaldo Ribeiro prou jegue, comprou carroça, emprestou dinheiro a prêmio, enterrou uma caixa de patacões num lugar marcado que só ele sabia. Iaiazinha morreu, acharam que a leira era demais para ele, tomaram a terrinha de volta. Nego Leléu se abateu? Nunquita! Tinha juntado dinheiro, tinha arranjado mulher preta e mulata para muitos, tinha feito favores, sabia de segredos, dera presentes. E se formou oficial alfaiate, é o que estou lhe dizendo! Oficial alfaiate, tesoura certeira, agulha mestra, alinhavo sem erro! E quantos libertos sem ter para onde ir, quantos e quantas sem eira nem beira, lixo mesmo, gente jogada fora, ele tinha recebido, dado abrigo e alimento, e agora trabalhavam para ele? Se não querem trabalhar, paciência, todo mundo trabalha, então voltem para onde estavam. p. 139 Quinto capítulo – 12 de junho de 1827 ... peixe baleia quando se enamora primeiro canta e assovia, subindo e descendo as ondas como se quisesse encapelar o mar sozinho. E também se lamenta no meio das canções, ouvindo-se cada hora seus gemidos de paixão; a música de toda noite nesta época do ano. Assim do alto e de longe, vê-se chispando pela flor d’água uma baleia, mas depois vê-se que são duas. E que vão tão juntas e harmonizadas que parecem um só bicho... E de repente cantam ele e ela juntos, cabriolam na espuma, (...) rolam, desaparecem (...) disparam rolando e se abraçando, afundam e, lá no fundo, já se querem tanto que não se contêm. ... Já tantas vezes Vevé tinha testemunhado com alegria e curiosidade e depois sonhado que Custódio e ela eram dois peixes gigantes, fazendo a corte no oceano. (p. 142 Perilo Ambrósio estupra violentamente Vevé, destruindo os sonhos que ela alimenta com Custódio. Ai, sim, pensou ela, o rosto em brasa e o meio das pernas não molhado, mas seco, ardido e estraçalhado, não razão de orgulho e contentamento, mas de vergonha, nojo e desespero – e nada, nada, nada, que havia no mundo senão nada, nada, nada, e os engulhos que lhe contraíam a barriga trazendo até a garganta o estômago envolto em cãibras e o ódio que lhe fazia crepitar a cabeça com uma dor cegante e a certeza de que nada, nada, nada jamais a limparia, nem água, nem sangue, nem uma lixa que esfregasse em todo o corpo, nada, nada, nada! Que era ela? Aquilo, somente aquilo, aquele fardo, aquela trouxa, aquele pano de chão, aquele monte de lixo e nada, pois não conseguia ao menos chorar, embora quisesse muito. E também não podia mexer-se nem fazer qualquer som, como se o pescoço que o Barão de Pirapuama havia apertado com uma só mão houvesse ficado para sempre hirto e congelado, mal deixando que passasse o ar, ela paralisada, muda, um peixe morto, endurecido. Que fazer agora? Levantar-se, consertar o corpo ainda retorcido na mesma posição em que tinha ficado quando ele a empurrara e se limpara nos trapos em que transformara sua bata 28 Viva o povo brasileiro branca, numa das muitas posições em que ele a tinha virado e revirado com brutalidade e a exposto como um frango sendo depenado. Passar a mão no rosto inchado por todas as bofetadas e sopapos que ele lhe dera, enxugar o sangue que lhe escorria das gengivas misturado com saliva, endireitar até mesmo a boca, que sabia flácida e pendida – nunca mais a mesma boca, nunca mais nada, nada, nada! –, fazer alguma coisa? Nada a fazer, nada a ser, e notou que nem mesmo conseguia ouvir som algum, nem folhas no vento, nem barulhos de bichos, nem vozes de gente, nada. p. 144 Na festa, d. Antônia Vitória alforriava um negro. Perilo convence a esposa a alforriar Vevé, alegando que ela estava doente. Pede que nego Leléu a leve da fazenda. Antônia Vitória começou sua lamentação – “sei que me dirão vir da fraqueza e da indecisão próprias das filhas de Eva, esta...” – mas ele levantou a mão, com tanta calma quanto podia reunir, para que ela se calasse e ouvisse o que ele tinha a dizerlhe. Sabia muito bem dos cuidados e preocupações que lhe dava a prática de tanta caridade, do sofrimento que lhe advinha por ter de escolher, entre negros tão pouco dignos de qualquer atenção, algum para agraciar com a liberdade, sem que disso viesse a ter mais embaraço do que contentamento pela boa ação. E, portanto, fizera por ela a escolha, ditada em parte, reconhecia, por imperativos práticos: não estavam boas as finanças de seus estabelecimentos, os tempos eram difíceis. Assim, não via mal, nem contradição com a promessa feita ao santo padrinho dela, em que se desse a tal alforria a uma negra moça porém fraca, já sofrendo de febres, vômitos e fraquezas, que poderia mesmo, nunca se sabia, passar sua enfermidade para os outros negros, causando prejuízo incalculável. Que se tranqüilizasse, que voltasse aos assuntos da casa, hoje tão azafamantes, que não mais chorasse nem se entristecesse, pois que já resolvera tudo para ela. Libertaria a negra Venância, o negro Leovigildo a levaria para conseguir-lhe ocupação e morada, isto mesmo acertaria com ele, dar-lhe-ia algum dinheiro para ajudar, estava tudo certo e providenciado, e esperava que hoje a malassada não viesse tão mal preparada quanto nos outros almoços. Antônia Vitória não respondeu, embora tivesse chegado a abrir a boca brevemente. p. 154 Capoeira do Tuntun, 14 de junho de 1827 AOL-11 Referência a manifestações culturais dos negros. Às escondidas, os escravos fazem suas pequenas reuniões e recebem suas entidades. O espírito de Sinique toma o corpo da negra Juácia para conversar com Leléu sobre Vevé. Adianta que Naê tem um filho do barão na barriga. 29 João Ubaldo Ribeiro Casa do sítio da armação de Bom Jesus, 14 de junho de 1827 Feliciano, o negro escravo que presenciou o barão matando Inocêncio, conta a Budião (único que o compreende, já que teve a língua cortada e, portanto, não fala) tudo o que aconteceu verdadeiramente em Pirajá. É possível que tanta teurgia assim lançada à atmosfera, tantos espectros fazendo ali frequência, tantos acontecimentos singulares – a noite bem carregada que Inácia pressentira – houvessem levado a que o sota-cocheiro da caleça grande, Nego Budião, fosse nessa noite aconselhar-se com os espíritos silvestres. Ele ia sempre à capoeira com os outros, mas nunca tivera participação a não ser para ajudar, principalmente a Feliciano, cuja linguagem de gestos entendia como se falada. Fora mesmo através dele que todos souberam em pormenores como morrera Inocêncio no campo de Pirajá, com o sangue roubado pelo barão para falsificar glória de guerra, e souberam como tinha sido cortada a língua de Feliciano, mesmo ele havendo chorado e jurado por todos os santos brancos que se o poupassem jamais diria uma palavra sobre o assunto. Mas não adiantou – contou Feliciano a Budião, os braços tremendo, os olhos cheios d’água –, pois eles apertaram minhas bochechas dos dois lados até que eu abrisse a boca, puxaram minha língua para fora com uma torquês, cortaram bem fundo com um cutilão de magarefe e depois queimaram o toco no ferro em brasa. Não é só falar – contou Feliciano dando uns roncos guturais – que a falta de língua impede, mas não se mastiga, não se engole o cuspe, não se sente o dente, não se sente o gosto, não se pode conter a baba e, de vez em quando, no meio da noite, é como se a língua tivesse voltado a seu lugar, coçando e querendo mexer-se, mas não se pode coçá-la nem movê-la, porque ela não está lá, é uma assombração. p. 168 Budião traz a erva que será usada para assassinar o barão. E pois não é por essas folhas e tudo mais que me ensinaram muito bem ensinado que o barão vai morrer de morte doída e presa, sem poder confessar os pecados? p. 170 Sexto capítulo O barão adoece gravemente e o ambicioso Amleto gerencia os negócios do barão. “Ninguém sabia o que causava o mal do barão, descrito pelo cirurgião Justino José como congestão visceral, agravada por uma remitente fraqueza nervosa”. Amleto começa a fazer negócios ilícitos com a ajuda do cunhado Emídio Reis. Rouba as mercadorias e as vende, com alto lucro. 30 Viva o povo brasileiro Armação do Bom Jesus, 24 de agosto de 1827 O barão volta a Armação, e os negros Budião e Feliciano estão na expectativa de que Merinha, escrava de Perilo, prima de Inocêncio, acompanhe o barão. É evidenciada a causa da doença do barão: Merinha, cúmplice de Budião e Feliciano, coloca a erva na comida do seu senhor. Aparece na narrativa Júlio Dandão – negro introspectivo, que depois se revelará pai de Inocêncio. Nazaré das farinhas, 29 de julho de 1827 Nego Leléu tenta não pagar as taxas, envolvendo pessoas como o tabelião Pedro Manoel Augusto Dantas. Vevé é oferecida, mas o tabelião a devolve e lhe cobra a metade da dívida. — Mas, Senhor Doutor, não se pode nem conseguir um abatimentozinho nessa dinheirada toda? — Bem, talvez. Digo-lhe o que fazes. Irás à repartição amanhã, ter comigo. Lá está anotado o valor de tudo o que deves. Farás o seguinte: pagar-me-ás a metade do que deves e esquecerei as multas e as outras coisas. Mas pagas-me em dinheiro, entendido, nada de notas e letras. — Mas ioiô, ioiozinho, metade? Tudo isso? Não pode ser um pouco menos? p. 206 Sétimo capítulo Armação do Bom Jesus, 7 de setembro de 1827 Budião entra no quarto de Perilo Ambrósio, já em fase terminal. Os negros se preocupam com isso, pois temem que o barão não morra. O barão morreu sem que nada fosse descoberto. AOL-11 Senzala grande da Armação do Bom Jesus, 9 de setembro de 1827 Todos os negros fingem tristeza pela morte do barão, mas interiormente comemoram. Reunidos, Júlio Dandão, Feliciano, Budião e Zé Pinto conversam. Júlio Dandão fala de um segredo e apresenta a canastra. Passou os olhos pelos três com o cachimbo na boca, as bochechas enconchadas pela força das chupadas até se tocarem por dentro e a fumaça, em chumaços cada vez mais volumosos, encobrindo-lhe a cabeça. — Muito bem — disse, o rosto retomando forma gradualmente em meio à fumaça. — Vamos ver esses segredos todos, todos que fiquem aí como estão. 31 João Ubaldo Ribeiro Estendeu o braço para trás, pegou um surrão de pano pardo que ninguém antes tinha visto ali no cantinho, puxou-o pela boca, afrouxou o cadarço, abriu-o, olhou para dentro um instante, arrancou com as duas mãos uma canastra de madeira e metal, prendeu o surrão com o pé para que ela pudesse sair desimpedida e levantou-a diante dos outros. Parecia ser pesada, pois mesmo seu braço, da grossura de um mamoeiro na primeira fruteação, tremia ao erguê-la. Depositou-a à frente, tirou o chapéu, tenteou com os dedos por dentro dele, sacou um pedaço de ferro de contorno ziguezagueado e passou a enfiá-lo, em movimentos nervosos, nas oito ranhuras laterais da canastra, até que, murmurando um canto abafado e uns sons como os de quem faz contas entre dentes, bateu três ou quatro vezes nas quinas e a tampa se levantou como a cabeça de um peixe vagaroso saindo fora d’água, o rangido leve das dobradiças soando muito alto naquele silêncio. Dandão olhou para dentro da canastra, pôs-lhe a mão na tampa, quase fechando-a de volta. — Estes segredos – disse sem tirar a mão da tampa – são parte de um grande conhecimento, conhecimento este que ainda não está completo, mesmo porque nenhum conhecimento fica completo nunca, faz parte dele que sempre se queira que ele fique completo. E faz parte dele também, por ser segredo e somente para certas pessoas, que cada um que saiba dele trabalhe para que ele fique completo. Se todos trabalharem, geração por geração, este é o conhecimento que vai vencer. p. 226 Surgem as primeiras referências à Irmandade do povo brasileiro e à resistência do povo. — A nossa saudação – gritou de repente levantando o punho fechado e esmurrando o ar à frente do rosto – é assim: viva nós! p. 224 Salvador da Bahia, 13 de setembro de 1827 O tabelião volta a cobrar a dívida do nego Leléu, querendo Vevé. Leléu arquiteta plano e deixa o tabelião ser flagrado pela esposa. OITAVO CAPÍTULO Salvador da Bahia, 17 de março de 1839 Amleto Ferreira é muito respeitado na sociedade; cria um grande patrimônio. Com a morte do barão, enriquecera de modo ilícito. Tomara posse dos bens da família do barão, sob a alegação de que era necessário vender os bens, pois, caso contrário, a falência seria irremediável. Não, não fora bem assim, precisava acabar com a mania de ser excessivamente severo consigo mesmo, chegava a parecer uma propensão ao martírio. E o tino comercial empregado a serviço do barão, as dificuldades sem fim, as soluções heroicas encontradas para problemas insuperáveis? E o sangue, isto mesmo, o sangue e o suor 32 Viva o povo brasileiro dados ao barão? E a situação tranquila da baronesa, hoje empobrecida, é verdade, mas vivendo com toda a dignidade, ainda na mesma casa do Bângala, assistida em todas as suas necessidades e as de seus filhos? Não tinha mais tantos negros, é também verdade, apenas três negras e dois negros, pois a dureza dos tempos atuais e os azares que por todos os lados perseguiram os negócios do barão aconselharam a que a escravatura fosse reduzida ao mínimo indispensável. Que queriam? A pesca da baleia piorava a cada ano, era cada vez mais coisa do passado que o progresso soterraria, e a venda da Armação do Bom Jesus fora um excelente negócio, do preço aparentemente baixo. Não contara à baronesa haver sido ele mesmo, oculto numa associação com dois comerciantes franceses, que comprara a Armação e agora efetivamente a venderia com bom lucro. p. 229/230 Alguns aspectos são apresentados a respeito de Amleto, sua origem e sua ideologia. Preconceituoso, não aceita a presença da mãe (negra Jesuína, professora), pois seria a confissão de que possui origem negra. Ao enriquecer, adota costumes europeus e revolta-se com a postura de alguns de seus filhos – como Carlota Borromeia – que não aceitam esta cultura. “Compra” um nome europeu e passa a se chamar Amleto Henrique Nobres Ferreira-Dulton. A ideologia elitista de Amleto fica bastante evidente. São feitos comentários sobre seus filhos. As secas, como se chamam essas estiagens, não são tão más assim. Antes, pode-se talvez ver nelas a garantia da ordem social e da economia estabelecida. Por exemplo, somente através da penúria engendrada pelas estiagens é que o pequeno proprietário se rende à evidência de que sua atividade será sempre de minguada e insignificante produção, assim possibilitando que os grandes proprietários (...) possam comprar-lhes as terras, e a preços convenientemente baixos, pois do contrário seria uma inversão de recursos desmensurada, quiçá insuportável. p. 259 Arraial do Baiacu, 28 de fevereiro de 1836 AOL-11 Narrado o nascimento de Maria da Fé: “a menina nasceu não só antes do dia como antes da hora, por assim dizer. (...)” Da Hora nem acreditou que era primeiro filho nem que era de oito meses e meio, uma menina tão forte, de choro tão estridente, um parto que mais parecia uma luta – ficou desconfiada. Vevé mata o “monstro” do mar que comia os peixes. Nego Leléu se encanta com Maria da Fé. 33 p. 271 João Ubaldo Ribeiro Mas, desde aquele dia parecia que não queria mais voltar para a Bahia, adiava o que podia, inventava desculpas para ficar com a menina, gostou do nome Maria da Fé, deu para passar um tempo desmesurado carregando-a para cima e para baixo, deu para ter ciúmes dela até com a mãe, deu para reclamar da falta de trato com ela, deu para procurar as comadres para se informar de mingauzinhos e papinhas, quase fica maluco quando achou que ela estava com defluxo e fez ninada duas noites sem dormir – virou outro, outro, outro, ninguém acreditava no que estava vendo. p. 278 — Não vou deixar a menina aqui, para se criar mal e se arriscar a qualquer coisa. (...) Se não sabes ser mãe, sei eu ser avô! p. 279 NONO CAPÍTULO São João do Manguinho, 29 de outubro de 1846 Budião e Júlio Dandão colaboram com a libertação de Bento Gonçalves. Merinha espera, há nove anos, pela volta de Budião. Recorda o dia da partida de Budião para o Rio Grande do Sul. Regresso de Budião: — Buenas – disse o vulto. — Estou chegando agora. Merinha ficou em pé sem saber como, apurou a vista, não enxergou nenhum dos traços do homem, cobertos pela sombra do chapéu. E aquela maneira de falar, palavras pronunciadas como se tivessem mais sons do que as que se usam aqui, ela nunca ouvira antes. Mas mesmo assim não se enganou, porque logo sentiu que aquele embuçado brotado da escuridão, ali portado como um tronco de árvore grande, era Budião, regressado da luta e vindo ter com ela. p. 300 Salvador da Bahia, 19 de dezembro de 1840 Maria da Fé estuda na escola de dona Jesuína. Fica horas em frente ao quadro do Alferes Galvão (o aluno deve lembrar-se de que Dafé é a reencarnação de Capiroba, assim como também é o alferes Brandão Galvão). Dafé não se interessava pela história contada por d. Jesuína: mostrava-se rebelde. Aos 12 anos, aparece voltando para a casa do nego Leléu: “Estava feliz porque ia voltar para o Baiacu, para a companhia do avô Leovigildo...” Nego Leléu demonstra estar feliz por levar Dafé: “— Minha menina, eu hoje amanheci dando bom-dia ao sol!” 34 Viva o povo brasileiro Salvador da Bahia, 10 de março de 1853 Bonifácio Odulfo, filho de Amleto, aparece caracterizado como um boêmio: bebida e poesia. Chega a ser chamado de “nosso Lord Byron”, verdadeiro Chateaubriand. Não admite a possibilidade de suceder o pai: “... acostumou-se [o pai] à ideia de que sou como sou e de que jamais vou transformar-me num plutocrata como ele.” Odulfo faz uma análise da família (irmãos e cunhado) para justificar o sofrimento do pai, pois, segundo ele, Amleto “deve sofrer (...), imagina que, depois de morrer, a família se arruinará de pronto, no que, aliás, pode estar bem certo.” Ele comenta sobre os irmãos e sobre o cunhado: “Clemente André é praticamente monsenhor, vive em colégios, seminários e conventos, às vezes nem parece que compreende qualquer coisa que não seus contos gregorianos e confissões de suas beatas”. “A Carlota nem fala, quanto mais pensar e escolher. Gosta de livros, deve viver de fantasias tolas, está muito feliz com suas lições de música. “... não há de perceber coisa alguma o Vasco [marido de Carlota], como não percebe nada de nada, acho que tem um vocabulário de oitenta palavras, se muito.” “[Patrício Macário – o caçula] Por sinal, faz 14 anos hoje, mas parece um macaco de 18. Mal sabe as primeiras letras, vive a chafurdar-se nas negras da casa e das fazendas, não se duvide que eu já tenha uns dois sobrinhos aí pelas senzalas. (...) Meu pai o castiga, mas pouco adianta, mesmo porque a mãe tem nele sei ai-jesus(...), ela sempre acha que ele está sendo injustiçado ou mal compreendido.” DÉCIMO CAPÍTULO AOL-11 São João do Manguinho, 30 de outubro de 1846 Budião encontra com Almério (antigo feitor da fazenda de Perilo Ambrósio). Almério o ameaça, exigindo sua carta de alforria. Budião apresenta a carta conquistada por ter lutado na Farroupilha, mas Almério não a aceita. Budião agride o antigo feitor e vai ao encontro de Zé Pinto. Conversa com Zé Pinto e lhe diz que Júlio Dandão morreu 7 anos após a guerra ter começado. Pouco depois, é preso. Dandão morreu no sétimo ano da guerra, tão forte como sempre fora para despedir-se. Contudo, parecia que sabia que ia morrer, porque, antes de sair na patrulha de que não voltaria, lhe passara sua bolsa, com a canastra dos segredos. Ainda estava ali com ele, em sua mochila, e não podia dizer que conhecia bem esses segredos, eram visões que se revelavam melhor depois de vividas, não era um conhecimento simples, 35 João Ubaldo Ribeiro mas algo que sempre mudava conforme os atos e a experiência de quem o procurava. Existe a irmandade, quem é a irmandade? Seriam eles, sim, mas não só eles. Havia alguma coisa em certas pessoas, um jeito de falar, um tipo de voz. p. 331 Arraial do Baiacu, 12 de maio de 1841 A vida é trabalho, dissera Vô Leléu. A vida é trabalho, tribulação, trabalho, vigilância, olho vivo, trabalho e por aí vai. Então ela [Dafé] respondera que nesse caso queria trabalhar, que ele lhe desse o comando de pesca, como Mãe Vevé comandava a presepeira. Ele riu – ora, menina, mas ques ideias, s’assunte não, destá! Visse lá ela se ele lhe tinha dado esmera criação e a trazia na fartura para que ela fosse pescadora! Mas a mãe não era? Bem, dissera ele, tua mãe é maluca, não é a mesma coisa. p. 333/334 Dafé deseja trabalhar e “Vô Leléu, depois de bastante matutar, resolveu que ia botar para ela uma escola, uma escolinha bem pequena mas decente, ali mesmo no Baiacu, para que ela fosse a professora dessa escola, assim trabalhando enquanto não vinha o casamento – este garantido, pois quem não quer casar com uma professora bela?” Sonha em ir pescar um dia com a Mãe Vevé, e o Vô Leléu não permite. Quando ele se ausentou, certo dia, Vevé levou Dafé a uma pescaria. Retornou já tarde e, com medo de encontrar Leléu, Vevé resolveu mudar de caminho: encontra quatro brancos que querem estuprar Dafé. — Não, desta vez não! – gritou Vevé. Soltou o saco de mantimentos que vinha trazendo às costas, tirou de dentro a araçanga, arremeteu contra eles girando o grande porrete acima da cabeça. Soltaram Vevé, Leopoldo recuou alguns passos. — Negra ousada! Não te metas a besta, negrinha, que posso fazer de ti picadinho na hora que bem entenda! — Se afaste, se afaste. — Não quero nada contigo, negra imunda, quero a outra. — Se afaste. Dafé nunca conseguiu contar ou mesmo recordar direito o que aconteceu. Mas lembrava que, agarrada a Vevé caída e sangrando das mais de vinte punhaladas que recebera, o que se chamava Leopoldo ainda a puxou, mas o que se chamava Eugênio falou que deviam ir embora. (...) E, durante os 21 dias que se seguiram, mal se mexeu, não abriu a boca para dizer uma só palavra, permaneceu sentada de cabeça baixa, olhando as mãos abertas no colo. p. 339/340 36 Viva o povo brasileiro Salvador da Bahia, 12 de março de 1853 Amleto mostra-se revoltado porque o filho Patrício Macário não aceita a “cultura” que o pai deseja incutir-lhe. Além disso, odeia-o por ter traços negros e por revelar sua origem. — Eu te disse, te disse sempre: cuspe em jejum! Que é que eu te dizia, dia após dia? — Cuspe em jejum. — Repete. (...) Pois que o era, sim, mas não parecia, porque todos saíram com aparência de gente fina e de bem, só ele nascera com aquela nariganga escarrapachada e aqueles beiços que mais pareciam dois salsichões de tão carnudos – um negroide inegavelmente, um negroide! p. 341 Macário mostra-se rebelde e é ostensivamente criticado pela postura, conduzindo o pai ao ódio total: Eu mato, eu mato este aborto da natureza, eu mato – arquejou Amleto. — Antes que nos mate ele a todos, eu o mato, castigo pior não me podia dar Deus que ter esta alimária por filho. p. 342 Em seu escritório, Amleto recebeu a visita de dona Maria d’Alva Bonfim, viúva de um ex-funcionário de Amleto – sr. Horário Bonfim. Ela, que não sabia ler, levava consigo um caderno que lhe foi entregue pelo marido, alertando-a de que, se algo acontecesse, ela levasse o caderno a alguém de confiança: ela levou a Amleto. Nesse caderno, Horácio fazia todas as anotações que incriminavam Amleto. Ele disfarçou e tomou posse do caderno. Amleto tomou o caderno, montou as lunetas no nariz, abriu a primeira página. Como se fosse o frontispício de um livro cuidadosamente diagramado, estava lá escrito: Diário dos acontecimentos nos estabelecimentos do senhor barão de Pirapuama sob a administração do guarda-livros Amleto Ferreira – Relato de autoria de Horácio Bonfim, destinado ao esclarecimento do Senhor Barão e da Prosperidade. AOL-11 p. 350 Patrício Macário é mandado para o exército por imposição de Amleto, aos 14 anos de idade. — Mas, dizia eu que a decisão, inclusive depois de ouvir as sugestões dos presentes, que considero ajuizadas, construtivas, é definitivamente a farda. Sei das terríveis consequências disto, até mesmo para o bom nome da família. O exército não é uma ocupação honrosa, nem digna de um homem de bem, é coisa de rabotalho da Nação, como se nota, diante dos nossos olhos, a cada instante. (...) Mas há casos 37 João Ubaldo Ribeiro extremos e, para males extremos, remédios extremos. A única maneira de evitar um destino trágico para esse rapaz desmiolado é pô-lo na farda, pois que terá seus desmandos corrigidos à força da espada de prancha no lombo ou dos carrinhos de correntes atados aos pés, que é como no Exército tratam o seu vasto contingente de rufiões e baderneiros. p. 355/356 No final deste capítulo, há uma visão de Bonifácio Odulfo que será completamente modificada no futuro, com a morte do pai. A decisão estava tomada e ratificada, os pormenores continuaram a ser discutidos, agora tão lentamente quanto o fim de tarde chegando, Amleto recostado em sua cadeira com a expressão satisfeita (...), Bonifácio Odulfo silencioso, revoltado, humilhado, rancoroso – como odiava a maneira de viver de toda aquela gente, como tinha horror ao dinheiro do pai e tudo o que ele representava, como um dia todos se curvariam a seu gênio, com um dia aquela casa só existiria para o povo cultivar sua memória! p. 358 DÉCIMO PRIMEIRO CAPÍTULO FONTE DO PORRÃOZINHO, 23 de junho de 1842 Nego Leléu sofre com o sofrimento de Dafé depois da morte de Vevé. Usa-se o discurso indireto livre. Leléu se escondeu atrás dos dendezeiros para chorar e pensou que esta vida é doida, doida, doida. Como é possível a pessoa assistir a si mesma chorando? (...) Encostou a mão num dendezeiro, olhou para cima e perguntou a si mesmo que recurso havia. Que recurso haveria, mesmo para um homem que tinha visto na vida? Nenhum, era o que tudo indicava. Sua menininha, que, quando enrolava os bracinhos no pescoço dele para tapeá-lo, lhe trazia um calor ao coração que nunca tinha sentido e gratidão pela vida que nunca achara possível (...), sua menininha, que ele queria proteger de todo o mal do mundo e era o próprio rosto da alegria e da confiança, tinha sido roubada. (...) Mas Nego Leléu se entrega? Entrega não! Sabe como é a baleia que se apelida toadeira? É o mais valente ser vivo existente, que recebe pelo flanco as arpoadas, que se vê cercado dos inimigos (...) e então, levantando o dorso como um cavalo de nobreza, sacudindo a cabeça como um combatente que não se rende, não dá ousadia de bufar... p. 362 38 Viva o povo brasileiro Convence Dafé a participar da festa de São João. Na festa, Dafé reconhece os assassinos de Vevé e os aponta para Leléu. Leléu vinga a morte de Vevé, assassinando os culpados. O vento soprava fraquinho, Leléu manobrou o barco na direção do canal. A maré, ainda bem baixa, fazia com que passassem rente à praia a boreste e, a bombordo, junto à coroa quase toda descoberta, as marcas das ondas na areia meandrando até onde a vista alcançava à luz da lua. Olhou para os quatro, todos roncavam, dois à proa, um à meia-nau e o outro ali pertinho dele... (...) num só golpe para cada um, cortou-lhes os pescoços sem fazer barulho. Em seguida desceu ao fundo do barco e cavou um buraco na madeira de mais ou menos meio palmo de diâmetro, por onde a água começou a entrar. (...) Nadou a pequena distância até a praia, ficou olhando do barco, que cada vez mais depressa ia descendo para o fundo do canal, onde, tinha certeza, jamais o achariam.” p. 371/ 372 Ponta das Baleias, 3 de novembro de 1846 Budião é libertado da cadeia pelo grupo de Maria da Fé. Cego de dor e se maldizendo muito, Manoel Joaquim, para crença de alguns e descrença de outros, testemunhou que foram pelo menos cinco os que libertaram o preto. Entre eles havia uma mulher jovem, alta e fortíssima, a quem os outros chamavam de Maria da Fé. Esta é a primeira aparição do grupo, chefiado por Maria da Fé. p. 378 Salvador da Bahia, 5 de abril de 1863 Amleto aparece com a vida vazia por conta da morte de Teolina. Patrício Macário “encontrara, sem dúvida alguma, a sua vocação”. “A farda lhe caía bem, lhe disfarçava até a mulatice.” Sua reputação de guerreiro valente e soldado até a medula lhe acabara de valer a designação, por expresso pedido do capitão comandante, para servir como segundo oficial na companhia especial que seria destacada para liquidar a famosa bandida Maria da Fé, que continuava a semear o terror e a desordem em todo o Recôncavo e até mesmo no sertão. AOL-11 Carlota Borromeia comete o suicídio. 39 p. 384 João Ubaldo Ribeiro DÉCIMO SEGUNDO CAPÍTULO Arraial do Baiacu, 25 de maio de 1863 Morte do Nego Leléu e a expectativa paira sobre a possibilidade de Maria da Fé aparecer no enterro. “Maria da Fé enfrentará, com a prosápia que nunca abandonou tropas e armas das autoridades? Ou deixará desmentindo as lendas (...) de prestar homenagem a seu avô?” A narrativa faz uso do flashback e o leitor volta à festa de S. João (1842). Leléu revela à neta que matou os assassinos de sua mãe. Concentrada, Dafé não se mostra feliz. É iniciado o processo de incorporação de Dafé à Irmandade. Conhece Zé Pinto, Merinha e Feliciano. Descobre sobre os seus ancestrais. Dafé fica cada vez mais tempo longe de casa. Um dia sai e não retorna. — É, mas vai ter justiça. Quem é que trabalha, não é o povo? Não é o povo que sustenta? Então é o povo que vai mandar. p. 391 Em seguida saiu, ninguém sabe direito para onde, mas há de ter sido para algum lugar em que se juntava gente dos conspiradores da casa da farinha. Não nesse dia que ela partiu, mas foi nesse dia que começou a partir, e o menino Leléu já sabia que ela ia embora. p. 398 Cemitério dos Pretos de Vera Cruz de Itaparica, 26 de maio de 1863 Enterro do Nego Leléu. O grupo de Maria da Fé, disfarçado de soldados, participa da última homenagem a Vô Leléu. — Povo do Arraial de Baiacu e de toda terra de Vera Cruz! (...) Estamos aqui para prestar a última homenagem a um que haverá de servir de exemplo a todos os que não curvam a cabeça à tirania, todos os que sonham com a liberdade, todos os que aprendem, na luta de cada dia, a respeitar seu próprio valor, todos os que dizem: abaixo o senhor e viva o povo! Viva o povo e viva a liberdade! Deus do céu, quem era aquela estátua de glória, linda no porte e nas palavras, senão a guerreira Maria da Fé. p. 402 O tenente Patrício Macário, o capitão e alguns soldados não conseguem capturar Maria da Fé. Macário critica as condições do Exército. 40 Viva o povo brasileiro — Isto não é Exército – disse Patrício Macário a si mesmo, em tom talvez demasiado alto para quem não queria ser ouvido. — Que diabo é isto? p. 404 Acampamento do Matange, 28 de maio de 1863 Maria da Fé e Budião conversam sobre os prisioneiros: o tenente e o capitão. Maria da Fé conversa com Patrício Macário: há uma identificação silenciosa entre eles e uma discussão ideológica. — O que é a Pátria? — Não vou explicar um conceito sublime a uma mulher do povo, um poço de ignorância arrogante, uma bandida vulgar. A Pátria sou eu! — A Pátria é você – disse ela, rindo. — E o povo é você. — Não falava em povo, falava em Pátria! p. 422 Dafé os abandona em uma praia deserta. DÉCIMO TERCEIRO CAPÍTULO 7 de janeiro de 1865 A narrativa apresenta João Popó: patriota apaixonado, que lembra em todos os anos a vitória final dos itaparicanos sobre a malta opressora. Possui várias mulheres e muitos filhos: Com Iaiá Candinha, a legítima, teve 18 filhos (...). Com Iaiá Menina, irmã de Candinha, teve 11. (...) Com a negra Laurinha, da copa e da cozinha da casa de Menina, teve três (...) Com Maria Zezé, sobrinha de Candinha (...) teve quatro (...) Com Rufina do Alto, que o povo considera feiticeira, teve cinco, mesmo número que também fez numa rapariga (...) conhecida como Maria Pataca. p. 427 “Mas, de todos, os filhos de Rufina do Alto são os mais famosos. São Zé Popó, Dionísio Popó, Vavá Popó, Germiniano Popó e Rita Popó.” O Brasil está em guerra. Está ocorrendo a Guerra do Paraguai e João Popó deseja, profundamente, que seus filhos participem dela. AOL-11 Salvador da Bahia, 23 de maio de 1866 Morre Amleto e, para surpresa geral, Bonifácio Odulfo assume a fortuna do pai e todos os negócios da família. 41 João Ubaldo Ribeiro No escritório central, a disciplina se tornou rígida, a austeridade vigente no tempo de Amleto duplicou-se. Em casa, a par de rigoroso controle da economia doméstica e punições severas para os negros que quebrassem algum objeto ou causassem algum desperdício, instalou-se um clima cerimonioso, em que a intimidade ou a excessiva alacridade eram consideradas inaceitáveis. p. 437 Denodada Vila de Itaparica, 11 de março de 1866 Desgosto é assim, desgosto mata. O velho João Popó se acamou pela quarta vez desde mais ou menos novembro do ano passado e, desta vez, há quem garanta que ele não se safa. p. 443 João Popó adoece porque, pai de muitos filhos, não há um que queira lutar pela Pátria na Guerra do Paraguai. Zé Popó, filho discriminado de João Popó, participante do grupo de Dafé, resolve alistar-se e traz a felicidade a João Popó. — Vim para dizer ao senhor que vou embarcar para a campanha do Paraguai. p. 456 DÉCIMO QUARTO CAPÍTULO Acampamento de Tuiuti, 24 de março de 1866 Zé Popó é apresentado como filho de Oxóssi. Protegido pelo orixá, faz uma guerra memorável e ajuda a salvar o capitão Patrício Macário. Com uma beleza épica, esse capítulo faz referência à mitologia africana, citando os orixás e as características de cada um deles. Eles vão à guerra, convidados por Oxóssi, proteger os filhos mais valorosos. Oxalá, o que tudo vê, filho único de Olorum, mais alto entre todos, senhor da alvura, fonte de harmonia, o que é chamado por mais nomes, suspirou. Tinha observado que as entidades paraguaias, estranhos seres de aparência, estavam prestes a sair de águas, árvores e nuvens, para também socorrer seus filhos. Oxalá, pai dos homens, não conhece o medo nem a incerteza. Conhece porém a angústia e de novo lhe doeu o coração, ao pensar que aquela batalha estava ganha, mas haviam apenas começado os dias terríveis em que seus filhos mais valorosos pereceriam como moscas, como flores pisoteadas pelo cruel inimigo, como troncos apodrecidos pela ira de Omolu, senhor das moléstias, príncipe das pestes, dono das chagas e crecas, o que mata sem faca. p. 474 42 Viva o povo brasileiro Corrientes, Argentina, 30 de junho de 1866 Patrício Macário, reflexivo, depois de sair do hospital, pois foi ferido na Guerra, encontra o Capitão Vieira e este fala sobre a promoção dele a major falada por todos. Há uma ferrenha discussão entre eles, e o Capitão Vieira promete vingar-se de Macário. — Perseguir o inimigo, como, Vieira? Perseguir o inimigo com oficiais como você, que desapareceu na hora do combate, que ninguém vê enquanto dura fogo, que se limita a bazófias a respeito das lições de Fulanê e Beltranê e Sicranê, como se estivesse fazendo exercícios sobre Napoleão na Academia? Que é que você sabe de uma verdadeira batalha, de uma verdadeira operação militar, espada virgem, canalha, poltrão, mentiroso e descarado! — Meça suas palavras, Macário! Meça suas palavras antes que venha a arrepender-se! Posso fazer com que você engula suas palavras! p. 484 DÉCIMO QUINTO CAPÍTULO Lisboa, Portugal, 30 de novembro de 1869 Bonifácio Odulfo e sua esposa Henriqueta estão em Portugal. Há uma visão elitista determinista e preconceituosa do Brasil. O Brasil era atrasado, infinitamente atrasado e desconhecido, mas ele era importante e, pessoalmente, não tinha nada de que se envergonhar. Como, aliás, não teria vergonha nem faria vergonha, se fosse convidado do próprio Imperador da França ou da Rainha Vitória. Mas não seria, naturalmente, pois – pensou irritado – brasileiro só é importante para português. p. 494 Denodada Vila de Itaparica, 14 de maio de 1870 Zé Popó retorna como herói da Guerra do Paraguai e é motivo de orgulho para o pai. No discurso, porém, Zé Popó desmitifica a figura do herói e afirma ter sentido medo – sentimento comum numa guerra. Mas gostaria de dizer que não se podia esquecer que eram heróis todos os que suportaram o medo, a doença, a fome, o cansaço, a lama, os piolhos, as moscas, os percevejos, os carrapatos, as mutucas, o frio, a desesperança, a dor, a indiferença, a lama, a injustiça, a mutilação. Eram todos heróis e não nasceram heróis, eram gente do povo, gente como a gente da ilha e da Bahia... AOL-11 p. 504 43 João Ubaldo Ribeiro Capoeira do Tuntum, 13 de junho de 1871 Zé Popó visita a mãe Rufina, e Maria da Fé o acompanha. Rufina recebe entidades, junto a um grupo. Nele, estão Rita Popó e Zé Popó – além de Dafé. Em férias, Macário sai à noite e acaba percebendo o grupo ao longe. Curioso, aproxima-se, mas não fica visível. Rita Popó incorpora o espírito de Sinique e aproxima-se de Patrício Macário, abraçando-o. Este, assustado, não compreende, mas vem a revelação: Patrício Macário é a reencarnação de Vu e por isso é abraçado pelo espírito de Sinique; Maria da Fé – presente também ali – é a reencarnação de Capiroba. Dafé e Macário se encontram e há uma atração forte. Contou-lhe Rufina que ele tinha a mesma alma de Vu, filha de caboco Capiroba e, portanto, num certo sentido, ele era Vu. Essa Vu tinha sido mulher do caboco Sinique, e por isso Sinique, agora que a alma de Vu se encarnara num homem, baixara numa mulher para poder beijá-lo. (...) Mostrou-lhe então, narrando tudo em pormenores, como essa mulher, cuja identidade ela conhecia mas não podia revelar, era também descendente carnal do caboco Capiroba, pai de Vu, bisavô de Dadinha, trisavô de Turíbio Cafubá, tetravô de Daê, também chamado de Vevé, avô de quinto grau dessa dita mulher, a qual, portanto, considerando as almas, era ancestral de si mesma – e isso devia querer dizer alguma coisa, Rufina não sabia o quê. p. 520 E nem se admirou quando, levantando o rosto, deparou-se com a figura alta de Maria da Fé, de pé diante dele, tão bonita quanto a vira antes, os olhos verdes refletindo a luz das fogueiras, a cabeça emoldurada pelo capuz descido. (...) A lua terminou a travessia da abertura entre as copas das árvores por cima da encruzilhada, a noite ficou mais negra, Patrício Macário viu-se completamente encantado. p. 521 DÉCIMO SEXTO CAPÍTULO Salvador da Bahia, 7 de julho de 1871 Patrício Macário mora com Bonifácio Odulfo e é desejado por Henriqueta. O Tico conheceria a linguagem das flores? Henriqueta sentiu um calor pontiagudo subir-lhe pelo pescoço até as orelhas, enquanto arrumava um grande buquê de jasmins pequenos no vaso de Macau (...). O problema era ele não entender a mensagem, porque o Tico, apesar de muito requestado pelas mulheres, não se dava a galanterias. p. 523 44 Viva o povo brasileiro Ponta de Nossa Senhora, 30 de junho de 1871 Patrício Macário e Maria da Fé vivem um período de profundo amor e se identificam com aquele povo. Amam-se, mas não podem ficar juntos porque, segundo Dafé, um dos dois teria de deixar de ser o que é. — Uma escolha muitas vezes é uma coisa que tem que ser. E, depois, crês mesmo que essas coisas loucas são tão loucas assim? Não posso ser tua mulher. Mesmo que não houvesse dificuldades, por eu ser preta ou por ser mulata ou como lá dizem os que se preocupam com essas palavras, eu não poderia ser tua mulher. Não poderia servir-te, não poderia acompanhar-te, não poderia dar-te filhos, não poderia, enfim, ser tua mulher e eu só seria tua mulher se pudesse ser tua mulher. — Mas eu posso ser teu homem. E posso ficar a teu lado. (...) — Tu sabes (...), eu mesma às vezes penso que não existo, penso que sou uma lenda, como dizem que sou. E tu, no futuro, talvez venhas a pensar assim também (...). — Isto não faz sentido (...) estás aqui junto de mim, és minha mulher, és minha vida, és... — Não sou tua vida, sou teu amor. Vê bem que, para que pudéssemos viver juntos, um de nós teria de deixar de ser quem é. E não é certo nem que eu deixe de ser o que sou e fazer o que faço, nem que tu deixes de ser o que és e fazer o que fazes. p. 535 Ela o deixa e parte. “Acordou impregnado do cheiro dela e com uma carta na mão, que nunca mostrou a ninguém.” Arraial de Santo Inácio, 29 de fevereiro de 1896 A história do cego Faustino deixa evidente que a história não é somente a que está nos livros, até porque os que escrevem livros mentem e põem no papel o que lhes interessa. Lembra a história do Barão e de Vevé; a da Irmandade e de como Maria da Fé ministrava suas aulas, sempre iniciando por: “Agora eu vou ensinar vocês a ter orgulho.” O que para um é importante, para outro não existe. Por conseguinte, a maior parte da História se oculta na consciência dos homens e por isso a maior parte da História nunca ninguém vai saber... p. 538 AOL-11 Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1871 Henriqueta arruma-se para que um pintor famoso pinte seu retrato. De vestido 45 João Ubaldo Ribeiro decotado, aproxima-se de Macário que, diante da sedução, beija-a. Arrependido, pede-lhe desculpas e parte. Ela não aceita a atitude e não lhe perdoa. — Espera um instante, Henriqueta, um instante só. O que eu queria dizerte... O que eu queria dizer-te é muito difícil. Não quero que penses que fui leviano ao beijar-te. Quer dizer, fui, fui sim, afinal és a mulher de meu irmão e eu não tinha o direito de agir como agi. Mas o que quero dizer é que não foi uma coisa que eu faria com qualquer mulher, não é uma coisa de que tens de envergonhar-te, porque te tinha e continuo a ter na minha estima e respeito. (...) — Não podemos viver sob o mesmo teto. p. 554 Posteriormente, Henriqueta inverterá os fatos e dirá ao marido Bonifácio que Macário partiu porque a queria como amante e ela o rejeitou. DÉCIMO SÉTIMO CAPÍTULO Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1889 A abolição, como eu temia, revelou-se um grande mal. Não estavam, como não estão, os negros preparados para a liberdade. Obtusos, brancos, analfabetos, pouco asseados, viciados mesmo, agora exercem, livremente, sua influência deletéria e corruptora, sobre os costumes e a raça. (...) Vivemos uma crise de autoridade, uma crise de comando, uma crise de valores, uma crise mortal, da mais profunda gravidade e não nos damos conta dela, não fazemos nada, para debelá-la. p. 559 “A Inglaterra, exemplo de perfeição social, administrativa, cultural, moral, religiosa, era uma monarquia.” Há a crítica à abolição e à república. Bonifácio deseja reunir a família. Cocorobó, 1º de março de 1897 Há a referência ao modo como as armas chegavam a Canudos. Aprisionamento de alguns soldados pelo grupo de Dafé. Discussão ideológica. Aparece Lourenço na narrativa, filho de Dafé. — Protesto! – disse o oficial, tentando levantar-se sem conseguir. — Isto é um ato de banditismo contra as instituições republicanas, a integridade da 46 Viva o povo brasileiro Nação, o poder constituído. (...) — Cale a boca! Aqui não interessa o que o senhor pensa, porque tudo o que o senhor pensa, ou pensa que pensa, é o que lhe puseram na boca e na cabeça, e isso já conhecemos. Também não interessa a sua identidade, pois que sua identidade é uma coisa que só vale para o senhor, para nós o senhor não tem identidade, tem a mesma identidade que os outros que vieram em sua companhia. p. 585 DÉCIMO OITAVO CAPÍTULO Rio de janeiro, 24 de outubro de 1897 Neste capítulo destaca-se a solidão de Patrício Macário. Ele nunca mais amou uma mulher depois de Dafé. “... para ele as coisas tinham cada vez mais a forma enxergada e mostrada por Maria da Fé.” Ele é visitado pela sobrinha Isabel Regina, filha de Bonifácio. Haverá um almoço em família ao qual Patrício irá. No encontro, há discussões ideológicas. — Mas mandar pode querer dizer governar honestamente e não oprimir. — Que é que você chama de opressão? Que se pode fazer mais por esse povo? Dar-lhe banheiros? Continuarão fazendo suas necessidades nos matos! Dar-lhe dinheiro? Gastarão tudo com cachaça e farras! p. 607 Amoreiras, 23 de janeiro de 1898 O lendário e perigoso escaldado de baiacu. Patrício procura Rita Popó porque quer encontrar-se com suas respostas. “Havia coisas que não se explicavam com palavras, mesmo porque as palavras são tiranas e não se desgrudam da experiência de cada um, assim escravizando as mentes.” Conduzido por Rita Popó, Macário abandona o plano físico, mergulha no metafísico, conhece seu filho Lourenço e aprende mais sobre a Irmandade. — Meu filho... Lourenço... Tua mãe... oh, meu Deus, meu filho! Quantos anos tem? Ah, não interessa, para mim nasceste agora, meu filho, meu filho! Meu filho! Meu filho! Meu filho! p. 632 AOL-11 — Que faz você, meu filho? (...) — Faço revolução, meu pai (...). A chibata continua, a pobreza aumenta, nada 47 João Ubaldo Ribeiro mudou. A abolição não aboliu a escravidão, criou novos escravos. A República não aboliu a opressão, criou novos opressores... p. 634 Antes de voltar ao mundo físico, Macário recebe do filho um porrete de madeira rija marcado por muitas mossas, uma bainha de pano com um esporão de arraia dentro e um frasquinho azul com as lágrimas que Dafé chorou no dia da separação. Esses objetos serão encontrados na casa de Patrício quando retornar: há a fusão do físico com o metafísico. DÉCIMO NONO CAPÍTULO Estância Hidromineral de Itaparica, 7 de janeiro de 1977 Stálin José e o desejo de denunciar a corrupção das classes dominantes; o vampirismo das multinacionais, o imperialismo norte-americano e a violência da ditadura que atinge o povo brasileiro. Stálin José discursará? Cumprirá o que prometeu – subir no palanque, rasgar a camisa no peito (...), desafiar a que atirem no coração de um trabalhador compatriota e fazer um improviso denunciando a corrupção das classes dominantes (...)? Acusará de novo as autoridades presentes e representadas (...)? p. 639 “Que é que ele tem, num tempo como o de hoje, de ficar provocando? Aonde é que isso leva?” Ioiô Calvino, descendente da família Popó, dono de espírito cívico. Revolucionário da primeira hora de 1964. A morte de Stálin José. VIGÉSIMO CAPÍTULO São Paulo, 25 de maio de 1972 A ideologia da elite se mantém. O poder é importante; é preciso manter a riqueza. O neto de Isabel Maria, Eulálio Henrique Martins Braga Ferraz, discute o casamento de seu primo Luiz Phellippe Ferreira Dutton, depois de anos de viuvez. A preocupação maior é com o patrimônio. Discussão de medidas atreladas à corrupção para investimento. — Querido Tio Phellippe, o dinheiro existe, não precisa ser seu di48 Viva o povo brasileiro nheiro. O dinheiro existe, é só saber o caminho para pôr as mãos nele. p. 677 ESTÂNCIA HIDROMINERAL DE ITAPARICA, 10 de março de 1939 Macário faz 100 anos. Depois da missa, ele falece tranquilamente. Os ladrões Nono, Batata e Sororoca roubam várias casas e levam a canastra, com as memórias escritas de Macário. Ao abrirem a canastra, exatamente no mesmo lugar no qual, no passado, pela primeira vez, se falou nela (antiga casa de farinha, da fazenda do Barão), as paredes – já em ruínas – começam a ruir e sangram. Os ladrões fogem e a canastra fica enterrada. Mas Nonô não pôde continuar a olhar para dentro da canastra, porque um ronco surdo, como se um animal imenso estivesse soterrado ali e quisesse levantar o chão para sair, começou a agitar tudo em torno, um ronco de elefante, de baleia, de onça, um arfar penoso que de repente tomou conta do mundo, não era mais um bicho embaixo da terra, era a própria terra como se estivesse em dor de parir, como se fosse morder, como se fosse revirar-se sobre si mesma. AOL-11 — Está tudo vivo, minha Nossa Senhora, meu Jesus Cristo, tudo é vivo! — gritou Sororoca. — Ai, minha mãe! Os outros, mesmo que quisessem responder, não poderiam, porque, com um grito que jamais pensara poder dar, Batata puxou a mão da parede em que a encostara, ao sentir escorrer sobre ela um caldo espesso e quente, um caldo vermelho e ardente, um caldo semelhante a sangue, sangue porejando lentamente das paredes das ruínas da casa de farinha, derramando-se em borbotões vagarosos sobre os blocos de argamassa, saindo, de todos os pontos da parede, uma cachoeira viscosa e silenciosa, sangue brotando de cada rachadura, cada ponto escuro do cimento antigo, cada esconderijo de aranhas e lacraias, cada grão de areia ali juntado, cada pedrinha. A casa da farinha entrou em compasso com a terra por baixo dela, o sangue passou a jorrar como se bombeado por aqueles grandes suspiros, os jegues arrepanharam as cabeças e quebraram os cabrestos para fugir, os três ladrões, sem falar nada, desembestaram pelo meio das brenhas, procurando o mar pelo cheiro. No céu de Amoreiras nada se via, a não ser as constelações de janeiro em seu passeio inexorável. Mais acima desse céu de Amoreiras, onde tudo existe e nada é inacreditável, o Poleiro das Almas, vibrando de tantas asas agitadas e tantos sonhos brandidos ao vento indiferente do Universo, quase despenca da agitação que o avassalou, enquanto a terra latejava lá embaixo e as alminhas faziam força para descer, descer, descer, descer, descer, descer, porque queriam brigar. Por que queriam brigar? Não se sabe, nada se sabe, tudo se escolhe. Tudo se escolhe, como sabem as alminhas agora tiritando no frio infinito do cosmos, que as balança como 49 João Ubaldo Ribeiro as arraias empinadas pelos meninos de que têm saudades. Almas brasileirinhas, tão pequetitinhas que faziam pena, tão bobas que davam dó, mas decididas a voltar para lutar. Alminhas que tinham aprendido tão pouco e queriam aprender mais, como é da natureza das alminhas, e tremeram outra vez quando lá embaixo três ladrões correram da velha canastra, a qual foi soterrada pelo sangue, pelo sangue, pelo sangue, pela argamassa que é a mesma coisa, pelo suor que é a mesma coisa, pelas lágrimas que são a mesma coisa, pelo leite do peito que é a mesma coisa. Isso lá em cima, Deus sorrindo ou não, porque embaixo, muito embaixo sob os ares de Amoreiras, tudo acontecia ou estava sempre podendo acontecer. O sudeste bateu, juntou as nuvens, começou a chover em bagas grossas e ritmadas, todos os que ainda estavam acordados levantaram-se para fechar suas janelas e aparar a água que viria das calhas. Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio mas cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía. p.699/700 50 Viva o povo brasileiro Aspectos importantes • É necessário perceber como a miscigenação é uma forte marca na construção do povo. • Outra forte marca é a resistência. • O encontro do povo com a elite é marcado pela violência (estupro). AOL-11 Informações importantes • Patrício Macário passa por um processo de amadurecimento, que culmina na compreensão da luta do povo. • Bonifácio Odulfo mantém a visão elitista e preconceituosa em relação ao Brasil e ao povo brasileiro. • Clemente André torna-se monsenhor e mantém uma obra de caridade para rapazes. • Percebe-se que as novas gerações mantêm a visão de Amleto e de Bonifácio. 51 João Ubaldo Ribeiro EXERCÍCIOS Texto para as questões de 01 a 03. Levantou-se para dar vazão à impaciência, mas não podia andar dentro do espaço minúsculo dos fundos da barraca de verduras. Chutou um tamborete que caiu, apanhou-o em seguida, pondo05 -o de pé e fincando-o no chão. Muito bem, primeiro chega essa menina Vevé, com aquela cara de porreta, como se fosse muita coisa, como se fosse uma verdadeira marquesa – ora me deixe, uma desgraça duma filha de Cafubá, cativa de merda, mas é cada uma! –, chega essa menina Vevé e 10 diz que o Senhor Doutor e Escrivão da Provedoria mandou devolver. Mandou devolver como, tu não quis servir o homem? Ah, não sei, eu fiquei lá esses dois dias, aí depois ele apareceu e me mandou de volta, disse que mais tarde vem aqui falar. — E tu me conta isso com essa cara lavada? Tu não sabe o que quer dizer isso? tinha gritado Nego Leléu. — Quer dizer que ele te devolveu, assim sem 15 mais? E tu não é uma negrinha muito da descarada? O que é que tu fez, o que é que tu fez lá? E agora com que cara eu vou ficar, como é que vai ser? Ela não respondera, ficou calada o dia todo. E não adiantava mesmo que respondesse, até porque não sabia de nada. Nego Leléu, porém, sabia. Sabia que o Senhor Doutor Tabelião João Manoel Augusto Dantas estava esperando uma negra moça, de 20 carne redonda mas não gorda, para tomar conta da casa de aratuípe — regar a horta, criar as galinhas e receber o Senhor Doutor, sem mancebia certa mas com regularidade e pouca reclamação. Vida mansa como essa muitas por aí vivem pedindo a Deus e não acham. Então Leléu pensou: pego essa negrinha Vevé, levo para o Senhor Doutor, ele para de apoquentar, deixa de querer escarafunchar mi25 nhas contas, deixa de querer me botar na cadeia por emprestar dinheiro a prêmio, deixa essa perseguição toda. Pronto, tudo certo, tudo arranjadinho – e agora essa! Será que o homem não tinha gostado dela? Mas como que não tinha gostado, se ela era bem como ele pediu, até mais caprichada, tinha todos os dentes, que ele não exigiu, era asseada, que ele também não exigiu, tinha as pernas grossas e 30 a bunda bem feita, como ele pediu? Então não era essa a questão, a questão era com certeza, corto um braço se não for! – que, chegou lá, ela não deixou o homem encostar, isso é uma negrinha ordinária miserável, isso vale nada, não foi à toa que o barão resolveu dar de graça! — E, por conseguinte, se não acertei a negra nem posso mais aceitá-la, cai por 35 terra o nosso acordo, já não recebi nada em troca de ignorar as tuas transgressões e já não me vale nada correr esse risco. Leléu pôs as duas mãos na testa. — Mas o Senhor Doutor não diga uma coisa destas, quer dizer que eu vou certeiro para a rua da armagura? 40 — São as leis, não posso fazer nada – disse Pedro Augusto, em tom definitivo. Mas 52 Viva o povo brasileiro 45 50 55 60 65 70 não se levantou para sair, ficou como se a conversa tivesse acabado, Leléu compreendeu. — Mas ioiô, as multas todas, vou ter de pagar as multas todas, vou ter de pagar os alvarás novos, a contribuição ... — Que queres de mim? Nada posso fazer, são as leis, as portarias, as posturas, as ordenações... Mas não se levantou, não foi embora, não se mexeu, Leléu quase rezou para conseguir jogar certo. — Ioiô bem que podia ver se não dava um jeito, não podia não? A promessa foi só de não pecar, não foi de não ajudar o pequeno necessitado, que vai morrer de fome se tiver de fazer tanta despesa. — Ora, Leovigildo, isto não é bem verdade, só o que tens de dinheiro em prestado a prêmio por aí, só do que se sabe ... — Mas ioiô, ioiozinho, que bendito dinheiro é esse, umas pataquinhas, uns vintenzinhos, e tudo encalamoucado, esse povo não paga a ninguém, ah se o Senhor Doutor soubesse como eu sofro! — Está certo, mas de qualquer forma não posso fazer nada. Se queres comerciar, que comercies dentro da lei. Mas não saiu, não se levantou, continuou parado, Nego Leléu resolveu que estava na hora, não podia ser besta. — Mas, Senhor Doutor, não se pode nem conseguir um abatimentozinho nessa dinheirada toda? — Bem, talvez. Digo-lhe o que fazes. Irás à repartição amanhã, ter comigo. Lá está anotado valor de tudo o que deves. Farás o seguinte: pagar-me-ás a metade do que deves e esquecerei as multas e as outras coisas. Mas pagas-me em dinheiro, entendido, nada de notas e letras. — Mas ioiô, ioiozinho, metade? Tudo isso? Não pode ser um pouco menos? Pedro Augusto se irritou, fez uma expressão severa. — Negro Leovigildo, sou um homem sério, tenho responsabilidade, não estou para graças! Consigo cortar a tua dívida pela metade e ainda vens com esta conversa de ratazana! Se não te serve, muito bem, vai pechinchar com a Coletoria! — Não, Senhor Doutor, pelo amor de Deus, foi só por falar, beijo vossas mãos, caridade, Santa Marta há de estar vendo sua bondade! Amanhã mesmo, cedinho, eu levo o dinheiro lá, como sem falta, amanhã cedinho! AOL-11 RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p.186-8, 192-4. 01. UFBA Esse trecho se caracteriza por: 01.ser realista, narrando fatos de que o autor foi testemunha. 02.refletir, nas falas de cada personagem, sua classe social, dando assim maior verossimilhança à narrativa. 04.registrar fatos que evidenciam um profundo desrespeito à mulher. 08.denunciar a opressão de que o povo, principalmente os negros, era vítima. 16.retratar aspectos da vida dos brasileiros com malícia, ironia e ternura. 53 João Ubaldo Ribeiro 02. UFBA Há equivalência entre a expressão transcrita e a significação indicada em: 01.“Muito bem” (l. 05) – Satisfação consigo próprio 02.“ora me deixe” (l. 08) – Necessidade de ficar só 04.“cara lavada” (l. 13) – Sinal de cinismo 08.“pequeno necessitado” (l. 49) – Discreta referência a Vevé 16.“bendito dinheiro” (l. 53) – Dinheiro abençoado 03. UFBA A leitura do texto permite afirmar: 01.Expressões como “cara de porreta” (l. 6) ou “cativa de merda” (l. 9) são parte do vocabulário de Leléu em todas as situações. 02.“Nego Leléu, porém, sabia” (l. 18), isto é, o que ele acreditava saber não era do conhecimento de Vevé. 04.O cumprimento do “nosso acordo”(l. 35) obrigava Leléu a encontrar uma negra para, principalmente, tomar conta da horta do Senhor Doutor. 08.“Leléu compreendeu” (l. 41) que o Senhor Doutor permanecia sentado porque estava indeciso. 16.“— Negro Leovigildo, sou um homem sério, ...”(l. 68) é um reflexo das ações do personagem responsável por essa declaração. Textos para a questão 04 A. O tempo me tem mostrado que por me não conformar com o tempo e co lugar estou de todo arruinado: na política de estado nunca houve princípios certos, e posto que homens espertos alguns documentos deram, tudo o que nisto escreveram, são contingentes acertos. .................................................................... Muitos por vias erradas têm acertos mui perfeitos, muitos por meios direitos não dão sem erro as passadas: 54 Viva o povo brasileiro AOL-11 coisas tão disparatadas obra-as a sorte importuna, que de indignos é coluna. E se me há de ser preciso lograr fortuna sem siso, eu renuncio à fortuna. .................................................................... Eia, estamos na Bahia, onde agrada a adulação, onde a verdade é baldão, e a virtude hipocrisia: sigamos esta harmonia de tão fátua consonância, e inda que seja ignorância seguir erros conhecidos, sejam-me a mim permitidos, se em ser besta está a ganância. .................................................................... Dei por besta em mais valer, um me serve, outro me presta; não sou eu de todo besta, pois tratei de o parecer: assim vim a merecer favores e aplausos tantos pelos meus néscios encantos, que enfim, e por derradeiro, fui galo de seu poleiro, e lhes dava os dias santos. .................................................................... Seja pois a conclusão, que eu me pus aqui a escrever o que devia fazer, mas que tal faça, isso não: decrete a divina mão, influam malignos fados, seja eu entre os desgraçados exemplo de desventura: não culpem minha cordura, que eu sei que são meus pecados. MATOS, Gregório de. “Recusa-se a agir de conformidade com o tempo e o lugar”. In: MENDES, Celso Furtado. Senhora Dona Bahia: poesia satírica de Gregório de Matos. Salvador: EDUFBA, 1998, p. 98, 100-1. 55 João Ubaldo Ribeiro B. Vou beber um refresco, resolveu Perilo Ambrósio, mas, antes de poder chegar ao quiosque armado para a festa que nunca mais queria terminar, já o rodeavam em rapapés e já os moleques o admiravam a distância, desviando o olhar quando ele os encarava. Muitos bons dias, Senhor Barão, como passou o senhor Barão? Tinha chegado a uma conclusão sobre como portar-se diante do populacho e dos pequenos funcionários e comerciantes que o cercavam, pescoços espichados, faces solenes, para ouvir suas opiniões sobre o mundo e os acontecimentos. Sempre falara com desenvoltura, isto não era problema, mas calhava bem fazer algumas pausas, alguns gestos expressivos, mostrar a profundeza de espírito de onde retirava suas observações. Sacou o lenço da algibeira, cheirou-o com discrição. (...) (...) Tirou da algibeira uma sacola de camurça, deu moldes aos meninos, velhos e aleijados que o sitiaram. Uma velha recurvada e coberta por um xale preto lhe beijou a mão, disse-lhe que conheceu muito o senhor seu pai e a senhora sua mãezinha, antes que tivessem sido corridos para Portugal. Já a velha estava sendo empurrada pelo meirinho Desidério, envergonhado por haver ela mencionado assunto tão molestoso para o barão, quando Perilo Ambrósio o deteve e, com a naturalidade simples dos grandes homens e heróis, disse-lhe: deixe-a, Desidério, também, eu, ai de mim, sinto falta de meus pais e da família, fortuna muito maior do que a que hoje pesa nas minhas omoplatas. Congelou-se a paisagem, silenciaram todos. E Perilo Ambrósio, mordendo o lábio inferior, falou exatamente da maneira que havia planejado com tanta frequência: — Entre a Pátria e a família, minha boa mulher, Deus há sempre de me dar forças para escolher a primeira, eis que vale mais o destino de um povo que a sina de um só. (...) No céu de Cachoeira, misturada à luminosidade e à vibração quente do firmamento, a que se sucediam de roldão e com o lindo quadro em que já acreditava piamente, acompanhou os atos do barão lá de cima, estremecendo de admiração e reverência. RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 34-5. 04. Com base nos fragmentos e nas obras de onde foram extraídos, é correto afirmar: 01. Em A e B, por meio do sujeito poético e das personagens, respectivamente, são revelados aspectos da realidade política e sociocultural brasileira. 02. Em B, a cena apresentada evidencia onisciência do narrador e uma percepção aguçada da realidade. 04. Em ambos os textos, o homem é visto como incapaz de resistir ao apelo da ambição e do poder, corrompendo-se para realizar os seus objetivos. 08. No romance, os personagens Perilo Ambrósio e o alferes Brandão Galvão são contrastantes: aquele, um falsificador da realidade histórica; este, um jovem soldado idealista. 16. Tanto Perilo Ambrósio quanto o sujeito poético do poema gregoriano são exemplos de caracteres que se aproximam quanto à abdicação de proveitos próprios em face de compromissos com a pátria. 56 Viva o povo brasileiro 32. O personagem Perilo Ambrósio e o sujeito poético do poema agem de forma idêntica para experimentar o poder, abrindo mão de suas convicções políticas e éticas. 64. A hipocrisia e a bajulação estão presentes nos dois textos: no primeiro, como caminhos para estar bem com os poderosos; no segundo, exemplificadas pelo comportamento de Perilo Ambrósio. Texto para as questões 05 e 06 05 10 15 20 25 30 AOL-11 35 Budião estava achando tudo aquilo uma complicação desnecessária e o jeito de falar de Dandão, como se fosse um feitor dando ordens, deixava-o aborrecido. (...) E continuava pensando nisso, já meio disposto a da próxima vez protestar, quando chegou com Zé Pinto à casa da farinha. (...) Apertou os olhos, viu Feliciano postado feito um jaburu, a planta do pé direito colada à coxa esquerda, a mão segurando uma escora da prensa pequena. Defronte, acocorado junto ao engenho de moer, Júlio Dandão, a cara somente adivinhada entre o chapéu e a pele de carneiro que lhe subia pelo pescoço. Fez sinal para que se acomodassem, ia primeiro acender seu cachimbo e pitar alguns momentos (...) (...) Como um engenho a vapor, permaneceu solidamente imóvel, soltando fumaça em assopradelas alongadas, volta e meia cuspindo a distância sem mexer a cabeça. Seu rosto agora se descobria um pouco, viam-se os olhos injetados e semicerrados, o pensamento em outro lugar. Até que finalmente começou a falar, embora não abandonasse de todo o cachimbo, ao qual voltava de quando em vez, atiçando o brasido com chupadas curtas e enérgicas, até rodear-se novamente de nuvens azuis. Estava diferente do habitual e não só pela fumaça, mas pela expressão menos rude, a fala suavizada, o tom de camaradagem. Ainda assim não era um homem comum, igual aos outros, ainda assim continuava misterioso, mas era como se eles pudessem vir a partilhar do mistério, talvez não agora, talvez nunca, mas talvez sim. (...) ........................................................................................................................ — (...) Vou mostrar mais de um segredo, segredos que eu venho guardando sozinho, mas não devo mais guardar sozinho. Antes, todos os que sabiam desses segredos morreram ou desapareceram, só fiquei eu, com essa missão de guarda. Mas segredo de um só não serve para nada, só leva ao desvario do juízo e à perda completa da ideia. De maneira que chegou a hora de dividir esses segredos, que é o único jeito de manter esses segredos inteiros. Mas não é somente para mostrar, é também para fazer. (...) ........................................................................................................................ Dandão olhou para dentro da canastra, pôs-lhe a mão na tampa, quase fechando-a de volta. — Estes segredos – disse sem tirar a mão da tampa – são parte de um grande conhecimento, conhecimento este que ainda não está completo, mesmo porque nenhum conhecimento fica completo nunca, faz parte dele que sempre se queira que ele fique completo. E faz parte também, por ser segredo e somente para certas pessoas, que cada um que saiba dele trabalhe para que ele fique completo. Se todos trabalharem, geração por geração, este é o conhecimento que vai vencer. RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 206-11. 57 João Ubaldo Ribeiro 05. UFBA Considerando-se a leitura do romance e do fragmento, são verdadeiras as proposições: 01. A personagem Júlio Dandão simboliza um sujeito político, produto de uma mentalidade europeia. 02. A cena descrita no fragmento configura o nascimento de um estado de consciência coletiva, em sua primeira ação, que vai gerar o gradual conhecimento pretendido para a população negra. 04. A fala de Júlio Dandão tem como diretriz pregar a miscigenação racial no Brasil, objetivando acelerar o processo de branqueamento nacional, bem como a elevação social dos afrodescendentes. 08. Júlio Dandão é uma personagem com aspirações políticas de governar o povo brasileiro, contudo o seu radicalismo ufanista leva-o à morte prematura. 16. As quatro personagens enfocadas no fragmento, símbolos da resistência para preservação da integridade do povo negro, são vítimas de injustiças, praticadas contra os despossuídos. 32. A “canastra” (l. 28), no contexto da narrativa, representa, simbolicamente, o depósito de um patrimônio cultural, não legitimado pelas elites brasileiras, que, se partilhado, pode reverter o processo histórico oficial, no sentido de resgatar a real identidade do povo brasileiro. 64. Os “segredos” de Júlio Dandão são a metáfora não oficial do povo brasileiro que passa, via Dafé, para o General Patrício Macário, este responsável pela desmontagem dos ideais dos negros de integração à sociedade brasileira como cidadãos. 06. UFBA Considerando-se a leitura integral do romance, é correto afirmar que correspondem ao fragmento transcrito as informações destacadas em: 01. Avaliação subjetiva e reflexo de experiências anteriormente vividas – “... e o jeito de falar de Dandão, como se fosse um feitor dando ordens, deixava-o aborrecido.” (l. 1-2) 02. Percepção aguçada da realidade contrastando com a alienação dos outros personagens focados – “Apertou os olhos, viu Feliciano postado feito um jaburu, a planta do pé direito colada à coxa esquerda, a mão segurando uma escora da prensa pequena. Defronte, acocorado junto ao engenho de moer, Júlio Dandão, a cara somente adivinhada entre o chapéu e a pele de carneiro que lhe subia pelo pescoço.”... (l. 4-8) 04. Personagem em estado de evasão provocado pelo temor do enfrentamento com a realidade – “Seu rosto agora se descobria um pouco, viam-se os olhos injetados e semicerrados, o pensamento em outro lugar.” (l. 12-13) 58 Viva o povo brasileiro 08. Personagem revelando-se um ser paradoxal em face do desvendamento dos segredos – “Estava diferente do habitual e não só pela fumaça, mas pela expressão menos rude, a fala suavizada, o tom de camaradagem.” (l. 16-18) 16. Clima de expectativa diante da possibilidade de se alcançar um conhecimento até então inatingível – “Ainda assim não era um homem comum, igual ao outros, ainda assim continuava misterioso, mas era como se eles pudessem vir a partilhar do mistério, talvez não agora, talvez nunca, mas talvez sim.” (l. 18-21) 32. Personagem passando de uma atitude de isolamento para uma ação de resultados na coletividade – “De maneira que chegou a hora de dividir esses segredos, que é o único jeito de manter esses segredos inteiros. Mas não é somente para mostrar, é também para fazer.” (l. 26-28) 64. Valorização do saber comprometido com uma visão bilateral da realidade – “...conhecimento este que ainda não está completo, mesmo porque nenhum conhecimento fica completo nunca, faz parte dele que sempre se queira que ele fique completo.” (l. 32-34). AOL-11 Textos para as questões 07 e 08 Texto I Por que identidade hoje? Um dos motivos principais pelos quais a temática das identidades é tão frequentemente focalizada tanto na mídia como na universidade são as mudanças culturais, sociais, econômicas, políticas e tecnológicas que estão atravessando o mundo e que são experienciadas, em maior ou menor escala, em comunidades locais específicas. Como indica Fridman (2000, p.11), “se a modernidade alterou a face do mundo com suas conquistas materiais, tecnológicas, científicas e culturais, algo de abrangência semelhante ocorreu nas últimas décadas, fazendo surgir novos estilos, costumes de vida e formas de organização social”. Há, nas práticas cotidianas que vivemos, um questionamento constante de modos de viver a vida social que têm afetado a compreensão da classe social, do gênero, da sexualidade, da idade, da raça, da nacionalidade etc., em resumo, de quem somos na vida social contemporânea. É inegável que a possibilidade de vermos a multiplicidade da vida humana em um mundo globalizado, que as telas do computador e de outros meios de comunicação possibilitam, tem colaborado com tal questionamento, ao vermos de perto como vivemos em um mundo multicultural, e que essa multiculturalidade, para a qual muitas vezes torcíamos/torcemos os narizes, está em nossa própria vida local, atravessando os limites nacionais: os grupos gays, feministas, de rastafáris, de hip-hop, de trabalhadores rurais sem terra etc. Dentre as mudanças que vivenciamos, é notável o novo papel das mulheres na sociedade contemporânea, que afetou profundamente não só a organização da família como também o espaço reservado aos homens na vida pública e privada, com profundos reflexos em sua própria construção identitária. Os homens, que reinavam sozinhos até recentemente no mundo do trabalho, por exemplo, veem suas oportunidades, nesse campo, disputadas com mulheres em um mundo em que o direito ao emprego escasseia cada vez 59 João Ubaldo Ribeiro mais, por motivos derivados da nova ordem político-econômica neoliberal (Forrester, 1997) ou do que alguns chamam de novo capitalismo (Gee, 2001). Por outro lado, temas tabus relativos à sexualidade ou frequentemente apagados na mídia (como raça) são incessantemente tematizados. É inegável a força da mídia na construção desse novo mundo no qual vivemos. Práticas sexuais até recentemente entendidas como aberrações (práticas homoeróticas, sadomasoquistas etc.) são discutidas às cinco horas da tarde, em meio a programas televisivos de receitas de bolo ou de psicanálise eletrônica na TV brasileira, ao mesmo tempo em que a vida miserável que a maioria dos negros brasileiros vive é focalizada, cada vez mais pela mesma mídia e pelos movimentos de organização política do tipo de hip-hop, de conscientização dos negros etc. (...) Texto II 05 10 15 20 — Que faz você, meu filho? – perguntou Patrício Macário, encantado em ver no moço seu porte e seus traços quando jovem, condensados pela luz e pelo fervor da mãe, que se atiravam para fora a cada gesto. — Faço revolução, meu pai – respondeu Lourenço — Desde minha mãe, desde antes de minha mãe até, que buscamos uma consciência do que somos. Antes, não sabíamos nem que estávamos buscando alguma coisa, apenas nos revoltávamos. Mas à medida que o tempo passou, acumulamos sabedoria pela prática e pelo pensamento e hoje sabemos que buscamos essa consciência e estamos encontrando essa consciência. Não temos armas que vençam a opressão e jamais teremos, embora devamos lutar sempre que a nossa sobrevivência e a nossa honra tenha de ser defendida. Mas a nossa arma há de ser a cabeça, a cabeça de cada um e de todos, que não pode ser dominada e tem de afirmar-se. Nosso objetivo não é bem a igualdade, é mais a justiça, a liberdade, o orgulho, a dignidade, a boa convivência. Isto é uma luta que trespassará os séculos, porque os inimigos são muito fortes. A chibata continua, a pobreza aumenta, nada mudou. A abolição não aboliu a escravidão, criou novos escravos. A República não aboliu a opressão, criou novos opressores. O povo não sabe de si, não tem consciência e tudo o que faz não é visto e somente lhe ensinam desprezo por si mesmo, por sua fala, por sua aparência, pelo que come, pelo que veste, pelo que é. Mas nós estamos fazendo essa revolução de pequenas e grandes batalhas, umas sangrentas, outras surdas; outras secretas, e é isto que eu faço, meu pai. RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 607-8 07. UFBA Com base na análise do texto II e na leitura do romance, pode-se afirmar: 01. A personagem, ao dizer “Nosso objetivo não é bem a igualdade, é mais a justiça, a liberdade, o orgulho, a dignidade, a boa convivência.”(l. 12-13), reconhece que diferenças sempre hão de existir, mas reivindica o direito e o respeito à maneira de ser de cada um. 02. Lourenço, ao afirmar “A chibata continua, a pobreza aumenta, nada mudou.” (l. 14-15), sublinha a impossibilidade de mudanças no quadro da opressão. 60 Viva o povo brasileiro 04. Lourenço, ao declarar “A abolição não aboliu a escravidão, criou novos escravos. A República não aboliu a opressão, criou novos opressores.” (l. 15-16), denuncia o poder dominante que, embora mudando de forma, permanece imutável. 08. A passagem do eu ao nós demonstra que o fazer da personagem Lourenço ultrapassa os limites da ação individual. 16. A luta de Lourenço começa com a revolta dos oprimidos contra as formas de exploração vigentes na sociedade contemporânea. 32. O povo, segundo Lourenço, possui uma imagem deformada de si mesmo, inculcada pelos poderes estabelecidos. 64. A conscientização das camadas populares e a justiça social são bandeiras defendidas por diferentes grupos sociais presentes na narrativa. 08. UFBA O confronto entre os textos I e II permite afirmar: 01. Os dois textos discutem a questão da identidade no mundo atual, a partir de uma mesma forma de abordagem. 02. Os textos I e II sublinham a quebra de fronteiras num mundo globalizado. 04. O texto I focaliza as relações entre o global e o local, enquanto o texto II insere o tema da opressão na dimensão do tempo e da memória. 08. O texto I destaca a necessidade de o homem atual questionar a sua própria identidade na vida social, ao passo que o texto II materializa tal necessidade ao defender a consciência de uma nova identidade para o povo brasileiro. 16. Os textos I e II aproximam-se, quando tratam das dificuldades que atingem principalmente a maioria dos negros brasileiros. 32. Ambos os textos apontam para a reação dos segmentos conservadores contra mudanças na vida social. 64. Esses textos, ao tomarem o tema da identidade como objeto, contradizem-se, pois o primeiro adota uma postura analítica, enquanto o segundo ficcionaliza a realidade. AOL-11 Texto III Não que ele acreditasse nessas coisas, mas a verdade era que todos os que falavam pela deusa Ifá, a que tudo sabe, sempre disseram a Zé Popó que ele era de Oxóssi. Um belo Oxóssi tinha ele, um belíssimo, simpático e valente Oxóssi, orixá caçador da madrugada, comedor de galo, perito no arco e flecha. Zé Popó não dizia 05 nada, mas todos os babados, todos os babalorixás e ialorixás jogadores de búzios e contas; sem conhecer uns aos outros e sem nunca tê-lo visto antes, diziam sempre que Oxóssi estava perto. Acostumou-se então com o orixá, aprendeu a preferir sua cor azul-clara e descobriu, com grande surpresa, que já de nascença não gostava do que ele não gostava: não gostava de formiga, não gostava de quiabos, não gostava de mel 10 de abelha. Tudo quizila de Oxóssi, mas ele não sabia, só foi saber depois de grande. 61 João Ubaldo Ribeiro Enfim, são coisas que podem ser ou não podem ser, só que Zé Popó, primeiro destacado para a faxina da cozinha, mas, logo depois do toque da parada, requisitado para servir como um dos ordenanças do oficial de estado de seu batalhão, passando a primeira parte da manhã sem ter muito o que fazer, percebeu um bulício 15 esquivo nos matos, qualquer coisa viva se agitando – e, não soube por que, achou que era coisa de Oxóssi, achou até que havia um presságio nas nuvens, que o santo queria avisá-lo de alguma coisa. Ainda mais sendo o dia da semana consagrado a ele, o dia em que Zé Popó também era obrigado a reconhecer – lhe acontecia a maior parte dos momentos decisivos. Mas estaria aqui mesmo, esse orixá? Que 20 vinha fazer tão longe de seus terreiros e de seu povo, aqui onde não orixás, mas outras entidades, monstros de cabeça de boi e corpo de serpente com rabo de navalha, segundo contam os homens destas paragens, bem como os argentinos e os orientais? Bem verdade que, diziam os negros vindos mais recentemente da África, Oxóssi era um orixá muito brasileiro, bem mais brasileiro do que africano, pois 25 lá na África se perdia no meio de mais de trezentos outros e muita gente nem se lembrava dele. Assim, não era improvável que tivesse acompanhado seus filhos brasileiros até aqui, para lutar ao lado deles e protegê-los. RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 437-438. 09. O fragmento transcrito e a leitura da obra respaldam as seguintes proposições: 01. As dúvidas de Zé Popó revelam seu preconceito em relação às tradições religiosas afro-brasileiras. 02. A expressão “nessas coisas” (l. 1) diz respeito a algo referido no capítulo anterior. 04. “mas” (l. 1) introduz uma oposição que atenua a declaração negativa “Não que ele acreditasse nessas coisas” (l. 1). 04. Ao referir-se a “Ifá” (l. 2) e a “Oxóssi” (l. 3) e ao usar o termo “quizila” (l. 10) – elementos característicos da cultura iorubá – o narrador valoriza a religiosidade afro-brasileira. 16. Analisando-se o processo narrativo, percebe-se que a voz do narrador se superpõe à da personagem. 32. As ações de Oxóssi, como as de outros orixás também evocados na obra, demonstram que as divindades do candomblé, embora pertencentes a uma realidade superior, interagem com seus filhos na Terra, protegendo-os em suas vidas cotidianas. 64. As indagações de Zé Popó ilustram sua progressiva descrença nos valores de seus antepassados. 62 Viva o povo brasileiro Textos para a questão 10 I. [...] Se não tivesse o nariz um pouco esparramado, seria de fato um homem muito belo. Não, não, mesmo com aquele nariz, era bonito; talvez com outro, melhor proporcionado, ficasse bonito demais. Sim, era bonito, era um belo homem – e Maria da Fé teve um arrepio e vontade de vê-lo novamente. Mas sem demora se aborreceu pelo sentimento. Como podia permitir que isso acontecesse, mesmo que só em pensamento? Não, não podia ser. Desde o começo que aprendera que, para ser considerada de valor igual ao dos homens, tinha de ser melhor, ainda mais precisando comandá-los. Não, nada de fraqueza, nada de sentimentos tão perturbadores que podiam levá-la a devanear ou a escorregar, nada disso. Se fosse homem, podia ter até várias mulheres, mas, sendo mulher, não podia ter homem nenhum, exceto um que não quisesse mandar nela ou achar que a tinha subjugado só porque a levara para a cama. Isso, porém, não existia, era inútil ficar pensando bobagens. II. Maria da Fé respondeu-lhe que não concordava. Ele mesmo acreditava na liberdade, tanto assim que preferia morrer a viver sem ela. E não acreditava também na justiça? Ela acreditava na justiça, acreditava que um dia se faria justiça, que havia um povo e não um bando de gente sem alma, gente rebotalho, acreditava que o povo devia também acreditar nisso e que eles deviam fazer alguma coisa para que isso acontecesse. Mas saber o sentido de cada ação, não sabia. Saber muito mais do que isto, não sabia. E os segredos da canastra, ele lembrasse, eram mais segredos do como que segredos do porquê, aliás o como de se achar o porquê, já que o porquê – estava nos segredos – é descoberto com a prática de cada um, e eles estavam praticando. AOL-11 RIBEIRO, João UbaIdo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 395-396 e 399. 10. Os dois fragmentos transcritos e a leitura do romance Viva o povo brasileiro permitem afirmar que Maria da Fé: 01. apresenta inquietações que resultam de uma concepção segundo a qual, para afirmar-se como ser humano, a mulher precisa neutralizar sua feminilidade. (Fragmento I) 02. tenta resgatar valores de justiça que justificam a luta de seu povo. (Fragmento II) 04. é caracterizada, nos dois fragmentos, como alguém que aceita agir de acordo com normas preestabelecidas. 08. demonstra consciência de que o futuro começa a ser construído hoje, coletivamente. 16. apresenta-se como personagem plana e transparente, de atitudes previsíveis. 32. tematiza a ambivalência de atitudes femininas marcadas pela androginia comportamental e fisiológica. 63 João Ubaldo Ribeiro Gabaritos 01. F–V–V–V–V 02. F–F–V–F–F 03. F–V–F–F–F 04. V–V–F–F–F–F–V 05. F–V–F–F–V–V–F 06. V–F–F–F–V–V–F 07. V–F–V–V–F–V–F 08. F–F–V–V–V–V–F 09. F–F–V–V–V–V–F 10. V–V–F–V–F–F 64