conservação Homem e natureza unidos pela vida marcelo santana/mamirauá/divulgação texto | André Gustavo A maior unidade de conservação da várzea amazônica, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, prova que com leis, pesquisas e envolvimento da comunidade é possível viver dos recursos naturais sem agressões à biodiversidade e prejuízos ao meio ambiente Macaco-de-cheiro (Saimiri vanzolinii ) 28 Terra da Gente Terra da Gente 29 Uacari-branco (Cacajao calvus calvus) E FAUNA Os macacos-de-cheiro são monitorados constantemente em Mamirauá (págs. anteriores). Acima, a onça-pintada que vive em árvores na cheia e, na pág. seguinte, o uacari-branco 30 marcelo santana/mamirauá/divulgação brandi jo petronio/mamirauá/divulgação Onça-pintada (Panthera onca) Terra da Gente | c o n s e rvaç ão xistem limites para a vida selvagem? E para o ribeirinho? Quanto de seu sustento pode vir da mata e dos rios? O senso comum sinaliza que, por onde o homem passa, a natureza padece. No entanto, um lugar no coração da Amazônia prova o contrário e mostra que flora e fauna podem ser conservadas em meio a comunidades extrativistas que dependem dos recursos naturais para subsistir. Para conhecer este lugar é preciso ir a Tefé, no Amazonas. A cidade é a entrada para a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, maior unidade de conservação brasileira formada por florestas alagáveis, a chamada várzea amazônica. Mamirauá foi criada graças ao esforço do biólogo José Marcio Ayres que, na década de 1980, coordenou os estudos de uma espécie endêmica de macaco, o uacari-branco (Cacajao calvus calvus). Para que o animal fosse protegido, Ayres propôs algo inovador para a época: a preservação da floresta com a ajuda das comunidades que ali viviam. A criação da reserva não seria suficiente para colocar em prática o ideal de desenvolvimento sustentável. Era preciso levantar fundos, conhecer as necessidades dos moradores e as formas de atendê-las sem prejudicar o meio ambiente. Foi a partir desta proposta que o Instituto Mamirauá tomou forma. Com sede em Tefé, o Instituto conta com estrutura completa: salas, biblioteca e acervos de pesquisa, além de laboratórios e bases de campo flutuantes e em terra firme. Os trabalhos para viabilizar os estudos e o manejo de tudo o que é extraído na Reserva envolvem 250 pessoas contratadas. “Marcio Ayres tinha a preocupação de criar uma estrutura que permanecesse no longo prazo e que o trabalho não terminasse com a criação da unidade de conservação”, diz Isabel Sousa, uma das diretoras do Instituto. Durante uma semana acompanhamos as pesquisas realizadas na Reserva. Começamos pelos primatas, mais especificamente pelos macacos-decheiro. Navegamos o Solimões com biólogos e veterinários até alcançar um pequeno afluente, o Aiucá, e ancoramos às margens do povoado de mesmo nome, onde moradores, que são assistentes comunitários, vinham fazendo “ceva” para atrair os bichos. No dia da pesquisa, as bananas usadas como isca foram Laboratórios, bases de campo flutuantes, salas, bibliotecas e acervos de pesquisa são alguns equipamentos de Mamirauá colocadas em gaiolas, na copa das árvores. Em pouco tempo, vários macaquinhos caíram nas armadilhas e passaram por uma bateria de exames. “Sedamos os bichos para as análises, depois aferimos os batimentos cardíacos e respiratórios para ver se o animal respondeu bem à anestesia. Só então coletamos o sangue, fazemos a biometria e a chipagem para identificação”, explica Danuza Leão, veterinária da Universidade Federal do Pará. Um dos macacos capturados chamou a atenção dos pesquisadores pelas cores: cabeça preta e braços alaranjados. Trata-se de um macaco-de-cheiro (Saimiri vanzolinii) c o n s e r va ç ã o | Terra da Gente 31 marcelo santana/mamirauá/divulgação Cigana (Opisthocomus hoazin) 32 Terra da Gente | c o n s e rvaç ão moradores de 14 comunidades. Uma placa de energia solar flutuante aciona a bomba que manda a água do rio para as casas. Um sistema simples, que trouxe conforto e segurança para Roberto. Com 11 filhos, o morador de São Francisco do Aiucá conta que não se preocupa mais com os jacarés à beira do rio, onde a família ia diariamente lavar roupa e tomar banho. E pensar que há pouco tempo não era o Sol que gerava energia em Mamirauá e também em Tefé. As lamparinas públicas da cidade eram alimentadas com banha de peixe-boi, o que motivou o desaparecimento da espécie dos lagos e dos rios amazônicos. Mamirauá, em tupi, quer dizer “filhote de peixe-boi”. Em outras épocas, o animal foi abundante na região. Para reverter a situação, o Instituto criou o Centro de Reabilitação de Peixe-boi Amazônico, Jabuti-tinga (Chelonoidis denticulata) soninha vill/mamirauá/divulgação RENDA Os moradores das 14 comunidades da Reserva Mamirauá são estimulados a conservar espécies como o jabuti e a cigana (acima) e muitos recebem para atuar como assistentes comunitários endêmico da região, segundo Fernanda Paim, pesquisadora do Instituto Mamirauá. “Nossa intenção é descobrir se as três espécies que existem na Reserva estão se cruzando. Caso isto aconteça, elas correm o risco de se extinguir”, alerta. Depois dos exames, os animais voltam da anestesia e são soltos na mata, no mesmo lugar onde foram capturados. Os moradores assistentes de campo, que acompanham o trabalho, aprendem muito sobre os bichos. Elionaldo Moreira conta que, além de receber dinheiro ajudando os pesquisadores, acalenta o sonho de se tornar biólogo. As pesquisas na Reserva oferecem ainda outras melhorarias na qualidade de vida das famílias que vivem em Mamirauá. Uma cena ainda comum no Norte do Brasil, lavar a roupa no rio, já não faz parte da rotina de c o n s e r va ç ã o | Terra da Gente 33 ONDE FICA Mamirauá COLÔMBIA RR Mamirauá AMAZONAS MT AC PERU RO A Reserva de Desenvolvimento Sustentável fica em Tefé, a 500 km de Manaus, com acesso só por barco ou avião. A área, de 1.124.000 hectares, está entre os rios Solimões, Japurá e Auati-paraná. Fabiano maZZotti/mamirauá divulgação marcelo santana/mamirauá/divulgação HospedaGem e eCoturismo Pousada Uacari, www.pousadauacari.com.br, tel. (97) 3343-4160 peiXe e onÇa A pesca sustentável do pirarucu garante preservação da espécie e renda maior para as comunidades. Na pág. seguinte, pesquisador monitora os trajetos da onça-pintada pela floresta 34 Terra da Gente | c o n s e rvaç ão onde animais doentes ou órfãos são tratados até serem devolvidos à natureza. O veterinário Guilherme Guerra, que coordena o trabalho, acrescenta que, durante anos, a carne do animal foi a principal fonte de proteína de comunidades inteiras, quando a pesca de outros peixes escasseava. “A prática está arraigada à cultura do ribeirinho e, mesmo ameaçado de extinção e com a caça proibida desde 1960, a captura ainda persiste de forma escondida”, diz Guerra. O peixe-boi está a salvo em Mamirauá, onde as comunidades colaboram com os pesquisadores. Os bebês, órfãos, recebem mamadeiras de leite enriquecido com óleo de canola várias vezes ao dia. Quando desmamam, passam a comer apenas plantas aquáticas e capim. Todos são pesados e medidos semanalmente e, depois de dois anos de reabilitação, são soltos na natureza e acompanhados. “Em sete anos, tivemos 15 indivíduos. Apenas 3 morreram e os outros foram soltos e monitorados”, diz Guerra. Atualmente, 5 fêmeas e 2 machos estão sob os cuidados dos veterinários. A expectativa é que sejam soltos no primeiro trimestre de 2014. O Centro de Reabilitação fica no lago Amanã, fora dos limites da Mamirauá. O modelo de conservação vitorioso foi copiado por este vizinho, que também virou Reserva de Desenvolvimento Sustentável. Na Amanã fica a Casa do Baré, uma das bases terrestres do Instituto Mamirauá. A integração com a natureza é total. Vimos bandos de macacos-de- cheiro, pregos, zogue-zogue passeando pela mata. Araçaris pousavam aos bandos na palmeira pupunha que enfeitava a vista da janela. Pipiras-de-máscara e picapaus coloriam a castanheira ao lado dos laboratórios. Também acompanhamos o trabalho dos pesquisadores de serpentes, lagartos, pacas e jabutis, todos com resultados promissores. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã desenvolve ainda o projeto de manejo do pirarucu. Com até 3 metros de comprimento e mais de 200 quilos, o peixe desapareceu de lagos da Amazônia por causa da pesca predatória. Em Anamã não foi diferente, mas os poucos que sobraram foram deixados em paz por um período, para que a população se renovasse. A pesca voltou a ser feita, mas este ano, foram pescados 539 peixes na reserva amanã; todos os pirarucus recebem lacre de origem legalizada agora sob rígidas normas, que permitem a conservação do estoque natural da espécie. Em 12 anos, o número de indivíduos nas áreas onde o trabalho é realizado é quase cinco vezes maior do que antes, quando não havia controle. A pesca sustentável do pirarucu é feita uma vez por ano, quando o nível das águas baixa. O coordenador da pesca na Reserva, Raimundo Queiroz, explica que o tamanho adequado para a captura é acima de um metro e meio. “Mas a gente tenta pescar só os maiores. Porque temos um limite para capturar. Se ficamos só com os peixes maiores, maior será o lucro.” c o n s e r va ç ã o | Terra da Gente 35 soninha vill/mamirauá/divulgação Peixe-boi-da-amazônia (Trichechus inunguis) marcelo santana/mamirauá/divulgação Em 2013 o limite foi de 539 peixes, pescados em 30 dias. Os pirarucus recebem um lacre de origem legalizada. O pescador Ivo dos Santos, que cuida da limpeza e da contagem dos animais, é defensor da pesca sustentável. “Hoje estamos protegendo não só o pirarucu, mas o meio ambiente. Temos que cuidar dessa floresta, desses peixes que mais tarde podem entrar em extinção.” Deixamos os peixes gigantes e fomos investigar o maior felino das Américas. Enquanto os livros de biologia ensinam que a onça-pintada é uma espécie terrestre, em Mamirauá ela vive longe do chão – pelo menos durante três meses por ano, quando a reserva é inundada pela cheia dos rios Solimões e Japurá. Um grupo de pesquisadores vem 36 Terra da Gente | c o n s e rvaç ão Filhotes órfãos de peixe-boi são tratados em um centro de reabilitação até serem soltos novamente na natureza monitorando os felinos desde 2010 e constatou que, durante a cheia, os animais vivem na copa das árvores e nadam entre elas. O acompanhamento é feito por coleiras com chips rastreadores instaladas nos animais capturados durante a pesquisa. “Acompanhamos cinco animais e todos têm ficado na várzea durante a inundação”, conta o biólogo Emiliano Ramalho. “É impressionante para um felino desse tamanho, que tem que se alimentar em cima das árvores e nadar de uma árvore a outra, porque não tem chão.” Nas árvores, o animal caça preguiças e macacos. c o n s e r va ç ã o | Terra da Gente 37