O uso da voz passiva pelos usuários ativos da língua Quando usamos a língua para nos comunicarmos, mesmo que não tenhamos consciência, deixamos marcas de nossa subjetividade, de nossa visão de mundo no enunciado que construímos. Esse enunciado nem precisa ser explicitamente opinativo para a nossa identidade estar presente nele. Os estudiosos da linguagem, na atualidade, falam muito de sociointeracionismo discursivo, isto é, das marcas sociais que norteiam a construção dos discursos durante as situações de interação. Para essa corrente de pensamento, um discurso é sempre reflexo da identidade do sujeito que enuncia; identidade esta construída ao longo das interações sociais desse sujeito, de acordo com o meio cultural, econômico, regional em que ele vive. Por isso, as identidades são tão variadas quanto mais sujeitos e contextos sociais existirem. Assim, as classes sociais, as crenças culturais são de extrema importância para a construção dos sujeitos, os quais transparecem suas opiniões, suas visões de mundo por meio dos textos que produzem. Abaixo, podemos analisar algumas frases que podem nos ajudar a compreender melhor essa tese. Vejamos três trechos, com o mesmo conteúdo temático, escritos de quatro maneiras diferentes: a) O governo de Minas puniu os professores da rede estadual pelos 90 dias de greve, deixando-os sem receber salário. b) Os professores da rede estadual foram punidos pelo governo de Minas pelos 90 dias de greve que fizeram e, por isso, não receberam seus salários. c) Os professores da rede estadual foram punidos pelos 90 dias de greve que fizeram e, por isso, não receberam seus salários. d) Puniu-se os professores da rede estadual de Minas pelos 90 dias de greve, deixando-os sem salário. Nos exemplos acima, podemos perceber as marcas da identidade dos sujeitos que os enunciam. Vamos pensar nas seguintes questões para podermos alcançar algumas conclusões mais claras: 1) Pela análise das sentenças acima, quais delas teriam sido formuladas por alguém que fosse partidário do Governo de Minas? 2) Quais seriam de um simpatizante da causa dos professores? Para responder a essas questões, a forma de elaboração do enunciado nos ajuda muito. Releia o enunciado “a”. Relendo-o, podemos perceber que há claramente um sujeito para o verbo “punir” e também um objeto direto explicitado, quais sejam, respectivamente, governo de Minas e professores da rede estadual. Vejamos, então, que o verbo “punir” na terceira pessoa do singular demonstra que alguém se liga diretamente a esse verbo, sendo responsável pela ação evidenciada por ele. Esse “alguém”, na verdade, é uma instituição pública, o governo de Minas, que tem o poder de punir e que não deixou de exercê-lo como forma de retaliação à greve e aos professores da rede. Enfatizando esse poder de punição do governo, ele acaba vindo em primeiro plano na sentença, acompanhado pelo verbo. Pensemos, agora, sobre o enunciado “c”. Nele, o verbo “punir” tomou outra forma, juntando-se ao o verbo “ir”, formando a locução verbal “foram punidos”. Veja que, após essa locução verbal, não foi posto o responsável pela punição, que seria o governo de Minas. Entretanto, no início do enunciado foi posto quem foi punido, os professores, enfatizando-os como alvo da ação do governo. No enunciado “b”, acontece um processo parecido com o do enunciado “c”. No entanto, naquele, não há a omissão do governo de Minas como neste. O que nos ajuda a concluir que quem fala no enunciado “c” preferiu não expor o governo de Minas, omitindo-o como responsável pela ação punitiva. Na sentença de letra “d”, a omissão é mais nítida ainda, já que o verbo punir vem acompanhado da partícula “se”. Isso ajuda, com mais força ainda, a “esconder” o responsável pela ação, que fica indeterminado pelo uso da partícula. Além disso, o fato de o verbo estar em primeiro plano reforça o poder da ação, evidenciando-a com um verbo tão expressivo como o “punir”. As mudanças que ocorreram nos enunciados foram feitas utilizando-se das vozes verbais ativa e passiva, que provocam a troca das posições do sujeito e do objeto em uma oração. Veja que, em todas as frases analisadas, quem realiza a ação evidenciada pelo verbo “punir” é sempre o governo de Minas. No entanto, ora ele está explícito, ora ele está implícito, ora ele está na posição sintática de sujeito do verbo, ora está na posição de agente da passiva. O mesmo acontece com os professores, que ora são objeto direto do verbo “punir”, ora são sujeito paciente. Essa organização da frase, então, pode denunciar a identidade de quem enuncia, pois se a pessoa decide “esconder” o governo de Minas é porque ela parece ser partidária do mesmo. Assim como quando o evidencia parece ser simpatizante da causa dos professores. Podemos concluir, portanto, que toda essa organização, por meio das vozes verbais, é capaz de demonstrar as marcas da subjetividade daquele que fala. A posição de sujeito e de objeto, de agente e paciente é determinada pela voz verbal que se escolhe e isso facilita muito percebermos o ponto de vista do autor do texto, que evidencia um ou outro envolvido na questão.