Homilia
D. Carlos Azevedo
Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social
1. “Ao ver isto”, o fariseu da narração evangélica fica impressionado. O que vê? O
pecado social da mulher que ousa lavar os pés a Jesus com lágrimas, servir-se dos
cabelos como toalha e ungi-los com perfume. O fariseu vê isto e pensa consigo,
melhor: pensa a contar só consigo, fica no simplista debate interno, centrado no seu
preconceito, metido na sua mentalidade de exclusão. E Jesus apanha-o exactamente
no olhar e pergunta: “Vês esta mulher?”. É que o fariseu está a ver-se a si, nas suas
ideias, nos seus clichés e não vê livremente a realidade. Era preciso olhar de novo e
então dar-se conta de toda a verdade, reconhecer o contraste entre os gestos de
ternura da mulher e a falta de hospitalidade manifestada por ele, reveladora de certo
desprezo para com Jesus, apesar de o ter convidado para sua casa, talvez mais por si
do que pelo profeta de Nazaré.
“Ao ver isto”, a interrogação faz-se geral: “Quem é este?”. Donde vem a raiz de um
perdão provocante. Dar-se até perdoar inquieta e suscita questões. Quem é que se
deixa amar assim, porque portador de um amor infinito? É este o estilo de Jesus,
revelador do amor de Deus. Supera os males do mundo, perdoa os pecados, entregase verdadeiramente, permitindo as ousadias da mulher pecadora, capaz de lavar os
pés ao pobre Jesus, mal recebido pelo importante fariseu.
Superar o pecado, seja dos drogados ou dos banqueiros, só acontece por um encontro
que aproxime do dom, chegue à delicadeza do perdão, converta o interior e transforme
a posse em dádiva. A profunda mudança de estilo de vida implicará compromisso
comunitário e revolução na mentalidade dos gestores e dos agentes políticos.
Como afirma o texto paulino de hoje, não abraçamos a fé em vão (1 Cor 15) e todo o
processo da vivência da caridade cristã decorre do mistério pascal de Jesus. Requer
morrer para si, desapego de visões limitadas para abrir-se à novidade do renascer, de
ressuscitar na inovação das atitudes.
É por graça de Deus que somos discípulos na lógica da gratuidade e trabalhamos, por
graça de Deus, neste campo, pertencendo a comunidades cristãs, sob inspiração de
diversos carismas, integrados em instituições com orientações específicas. Por graça de
Deus, somos chamados a viver, a seguir o estilo profético de Jesus, exigente nas
atitudes, pautadas pelo puro dom, pela beleza da entrega.
2. Ao longo destes três dias vimos isto, olhamos para a condição pecadora da
sociedade. “Ao ver isto” sentimo-nos todos responsáveis. O pecado é inicialmente de
pessoas concretas, mas plasma-se em relações, situações e organizações negadoras da
pessoa e contrárias ao plano de Deus. Somos solidários no mal moral ou no pecado.
Pode parecer estranha a expressão “solidariedade no mal”, mas é poderosamente
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verdadeira. Os meus pecados são de todos e prejudicam a todos. Os dos outros são
meus e prejudicam-me. O pecado do mundo é uma grande ferida do corpo total que
sangra em todos. Todo o corpo social é afectado pelo assédio da maldade, sem
respeito pelo bem comum, insensível aos pobres. A grande contaminação do
individualismo e do domínio sobre os outros atinge-nos. Este pecado social fere
sobretudo os pobres e excluídos, chegando a destrui-los como pessoas. Aliás, a
gravidade do pecado pessoal pode medir-se pela intensidade dos seus vínculos com o
pecado social. Romper, por isso, com o “pecado do mundo” (Jo 1,29; 15,18), lutar
contra o mal é caminho de conversão. Fomos educados no pecado de não “ver isto”.
Taparam os pobres com as vitórias dos ricos. A sede de triunfo particular envenenou o
ambiente, debilitou em muitos corações o serviço humilde dos outros.
A humanidade aspira ansiosamente por libertar-se desta lógica escravizadora, também
presente no mercado: “quem nos liberta desta força que leva à morte?” (Rom 7), deste
modelo de desenvolvimento que nos sequestra o futuro? Seria trágico, se Jesus não
tivesse transformado a solidariedade na desgraça em solidariedade universal na graça.
Aceitemos o convite para sair do círculo da solidariedade do pecado, para entrar na
solidariedade da salvação de Jesus. A causa de Jesus, a salvação da humanidade e do
universo, passa por enfrentarmos a injustiça e a pobreza.
O perdão misericordioso com que Jesus enfrenta o pecado das pessoas, não nos fecha
os olhos para ver o domínio de perspectivas negativas, para sentir e vibrar com os
desastres que essas visões provocam. A lógica do amor impele-nos a actuar. A força do
Espírito, presente na Palavra escutada, faz-nos fermento de um futuro novo. Não
podemos continuar a juntar-nos à lógica farisaica. Não podemos inibir-nos. Resta opornos, com energia sempre refeita, ao pecado do mundo, na sociedade portuguesa e em
cada um de nós, para construir a solidariedade da graça, o dar-se de verdade.
Desejamos multiplicar gestos de amor porque somos muito amados, muito perdoados.
É maravilhoso ver como lágrimas de conversão podem ser refrescantes para os pés de
construtores de uma sociedade segundo o coração de Deus. Teremos de apressar os
passos para socorrer tantos aflitos. Teremos de inovar caminhos pastorais para, muito
coesos, ir ao encontro de soluções justas e dignas. O amor recriador de Deus acendenos a esperança.
Fátima, 16 de Setembro de 2010
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