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Meus 90 anos
01/05/2011
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CARMEN SÁ SENS
MEMÓRIAS DE MINHA VIDA
Editora Nova Letra
2006
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Fotografia da capa:
Arthur Sens e Luisa Malzoni
Revisão:
João Francisco Vaz Sepetiba
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Carmen Sá Sens – 01/05/1977 ( Foto de Lígia Maria Philippi) – Ituporanga - SC
“Não sei… se a vida é curta ou longa demais para nós.
Mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não
tocarmos no coração das pessoas” (Cora Coralina)
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Agradeço primeiramente a Deus pela saúde,
pelo ânimo para escrever estas memórias.
Agradecimentos também a meus filhos, irmãos,
netos, sobrinhos, cunhados, primos e
amigos, todos com importância ímpar em
minha vida e, assim, neste livro.
Agradeço em especial ao meu neto Arthur pela
arte da capa, e à minha filha Kéia e ao meu neto
Eduardo, que tiraram minha vontade de
escrever do campo dos sonhos,
concretizando-a nestas páginas.
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APRESENTAÇÃO
Para os amigos, Carmen significa força; significa coragem. Características
próprias daquela que soube superar dificuldades da infância para ter uma vida
simples, mas repleta de alegrias e de amor.
Carmen, para os filhos, é sinônimo de carinho, daquele afeto sensível, do
sorriso fácil, dos conselhos sempre presentes, estes mesmos que hoje cada um
repassa aos seus próprios filhos.
Mas Carmen, para quem ler este livro, não passará de um grande poema.
Assim como a origem do nome Carmen significa literalmente poema,
“Memórias de Minha Vida”, este livro que se passa através dos tempos e que foi
maturado no auge de uma vida-exemplo, transpira poesia, inspira a alegria, leva
às lágrimas e serve de companhia.
Não, não pela redação, que no máximo levará como mérito o fato de não
ser mais que um espelho da vida desta mulher: simples e carinhosa, sensível e
perseverante. Memórias de Minha Vida, assim como a Carmen que conhecemos,
é um verdadeiro poema pelo conteúdo, uma obra-prima a quem Deus permitiu
dar um pouco de si a cada filho, a cada neto e a quem quer que tenha gozado de
sua companhia. Cada olhar afetuoso, cada brincadeira, cada gesto desta mulherpoema está presente nos que são seus, assim como os detalhes daqueles com
quem conviveu igualmente se amoldaram à sua personalidade.
Nisso reside a poesia de sua vida e aqui o livro, embora escrito em prosa,
deve ser lido como verso: cânticos de uma bela vida – muito bem vivida –
ficarão agora registrados para todo o sempre.
Eduardo Sens dos Santos
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AS FAMÍLIAS
Antônio Emiliano Sá e Lucinda Neves (1º casamento)
Dulce
Aldo
Carmen
Doraci
Lucinda
Antônio Emiliano Sá e Clara Bunn (2º casamento)
Alcione
Zulma
Amilton
Dilma
Acelon
Jacob Mathias Sens e Cecília Clasen
Levino
Vitório
Rogário (Roque)
Isidório (Ize)
Adelaide
Wictalina (Metcha)
Oswaldo (Dinho)
Hildeberto (Detcha)
Ubaldino
Nilvo (Ite)
Nelson (Nelo)
Gemma
Lieselote (Lote)
Carmen Sá Sens e Vitório Sens
Moacyr (Titi)
Mauri
Ezir (Maninha)
Evanir
Márcio (Piláh)
Mário
Eucléria (Kéia)
Maurício (Nego)
Elizabeth (Beth)
Elizete (Zete)
Eunice (Nice)
Eliete
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SUMÁRIO
COMEÇANDO DO COMEÇO ............................................................................................... 12
A PRIMEIRA VIAGEM .......................................................................................................... 22
A CABRITA DO MAURÍCIO ................................................................................................. 26
O CHAPÉU .............................................................................................................................. 28
O ENCONTRO COM LUCINDA ........................................................................................... 30
MEUS VESTIDOS ................................................................................................................... 34
QUANDO QUASE ME AFOGUEI ......................................................................................... 35
PROCURA-SE UMA VELHA ................................................................................................ 38
RUBENS, O NAMORADO DE BOM RETIRO ..................................................................... 41
PROSA E VERSO NA FESTA DA CEBOLA ........................................................................ 45
PROJETO DO VOTO DA MULHER ..................................................................................... 46
O PILÁH ERA O MAIS MIJÃO ............................................................................................. 48
CINQÜENTA HINOS E DUAS CERVEJAS ......................................................................... 51
MÃE DO ANO ......................................................................................................................... 54
KÉIA ELETRIFICADA ........................................................................................................... 56
MAIO – MÊS DAS MÃES ...................................................................................................... 58
O TOMBO DA ZETE .............................................................................................................. 62
SEM QUERER QUERENDO .................................................................................................. 65
NUNCA MAIOR QUE EU ...................................................................................................... 66
OS PINTOS DA EVANIR ....................................................................................................... 68
GALINHA AO GRITO ............................................................................................................ 71
ZIGUEZAGUE NA ESTRADA .............................................................................................. 74
A CHAVE DA IGREJA ........................................................................................................... 76
AS MANIAS ............................................................................................................................ 78
NICE E SUA “HEROÍNA” ...................................................................................................... 80
IRMÃS CORAGEM ................................................................................................................ 82
TEMPOS DE PRINCESA ........................................................................................................ 84
MINHA RELIGIOSIDADE ..................................................................................................... 99
ANEXO ÚNICO .................................................................................................................... 101
ERRO! NENHUMA ENTRADA DE ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES FOI
ENCONTRADA.
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COMEÇANDO DO COMEÇO
Ninguém da família poderá ofender-se ao ler este livro, com as frases
desagradáveis que talvez eu tenha formulado, com meu jeito (ou a falta dele) ao
falar do passado e de meus queridos irmãos. Mas aqui eu relato a minha história,
minha história verdadeira, sem subterfúgios, que tem apenas o objetivo de levar
ao conhecimento dos meus filhos um passado que reputo muito bonito.
Pois bem, comecemos do começo!
Na localidade de Armazém, cidade de Tubarão, em Santa Catarina,
Antônio Emiliano de Sá e Lucinda Neves de Sá viviam com seus quatro filhos:
Dulce, Aldo, Carmen e Doracy, que faleceu com apenas seis meses de idade.
Bastante debilitada e inconformada pela morte da filha, Lucinda engravidou
novamente, dando à luz mais uma linda e saudável menina. Mas quis o destino
que a mãe dessas crianças não sobrevivesse ao parto e falecesse, sem ter podido
nem ao menos abraçar sua pequena Lucinda, cujo nome lhe deram em sua
homenagem.
Emiliano, desesperado pela dor da perda e confuso com a situação em que
a morte da esposa o havia colocado, entregou Carmen para sua tia Cecília
Neves, a recém-nascida para a irmã Joana Morega de Sá, ou tia Janoca, como
era conhecida por todos, e o menino Aldo para o tio Aristides Neves. Dulce
faleceria em 10 de fevereiro de 1930, em decorrência de tifo preto.
Assim é que Antônio Emiliano de Sá, jovem, bem apessoado e professor
municipal de Armazém, após a morte prematura da esposa, resolveu morar em
Bom Retiro, onde iniciou na profissão de coletor municipal, que corresponde na
atualidade ao fiscal de tributos. A profissão gerava bastante respeito da
população, e assim a família foi se estabelecendo.
Algum tempo depois, ainda insatisfeito com o rumo de sua vida, Antônio
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Emiliano mudou-se para Salto Grande, atual Ituporanga, e encontrou vago o
cargo de Escrivão e Tabelião. Salto Grande era um pequeno vilarejo doado pelo
governo estadual em troca de serviços prestados aos empreiteiros da estrada.
Foi-se formando às margens do rio Itajaí do Sul, colonizado principalmente por
agricultores que, décadas depois, dominariam o cultivo da cebola, hoje principal
produto da cidade. Desbravaram assim as densas florestas de araucárias e
imbuias da Mata Atlântica e enfrentaram com grande coragem as tribos
indígenas que reivindicavam seu espaço.
Naturalmente, sem a presença dos atuais meios de comunicação, o comum
era que o tabelião empreendesse inúmeras viagens à Capital e outras cidades
maiores. Foi numa das suas viagens, precisamente em São José, que ele
conheceu a jovem Clara Bunn, por quem se apaixonou e para quem logo
demonstrou sua vontade de constituir nova família. Começaram então os
namoros e a relação foi se estreitando até que, por fim, deu-se o casamento.
Na verdade, Clara Bunn passou a simplesmente morar com meu pai,
como se marido e mulher fossem. Não puderam se casar, porque ela já era
casada com um médico, pelo qual fora enganada, pois ele já era casado. O
sujeito certamente falsificou os documentos e se declarou solteiro quando casou
com Clara no civil e no religioso. Só algum tempo depois é que foi-se descobrir
que já tinha um casamento anterior, que segundo a lei da época não podia ser
desfeito, porque não existia divórcio. A alternativa seria a anulação de
casamento, mas exigia uma ação judicial praticamente desconhecida da família,
o que inviabilizou totalmente a solução.
Somente muitos anos depois o Sr. Antônio Pereira, velho amigo da
família, leu no jornal a nota de falecimento do primeiro marido de Clara, o que
permitiu o casamento com toda a formalidade exigida. Clara casou-se assim com
meu pai, mas logo veio a morrer, quando finalmente recebeu a graça da
comunhão. Clara era muito religiosa, freqüentava as missas, mas não podia
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comungar, a religião católica não permitia.
Após passarem a morar juntos, Emiliano procurou reunir os filhos que
havia espalhado na casa dos seus tios e irmã, com exceção da Lucinda, que
permaneceu com Tia Janoca, professora primária em Armazém. Com algum
esforço, recompensado pela presença daqueles a quem mais amava, Emiliano
enfim reencontrou suas crianças, de modo que a vida passou a correr tranqüila
para aquele casal e seus quatro filhos e enteados.
Mas como era natural Clara Bunn também desejava ter seus próprios
filhos. Talvez se sentisse frustrada por não ter ainda uma descendência direta,
algo que prezava sobremaneira. Ter filhos significava não só a seqüência de uma
família, mas o respeito pelos vizinhos e a mostra de que era realmente uma
mulher dedicada.
Foi aí que a tranqüilidade e a paz dos enteados terminaram. É que, e digo
isso com a maior tristeza no coração, com aquele sentimento de quem prefere
esconder a verdade, mas se rende a ela para evitar que sufoque, foi neste preciso
momento de minhas lembranças que começaram a maldade e as humilhações
que minha madrasta nos impôs.
Ainda com a intenção de não me sufocar, de trazer a verdade à tona, quero
poder acreditar que ela ao casar-se com meu pai não tinha sequer a vaga idéia da
responsabilidade que a esperava, ou seja, a educação de três filhos que
biologicamente não eram seus. Mas também não posso crer que meu pai não a
tivesse alertado da nossa existência e das conseqüências que a união traria.
Tudo começou com o nascimento de seu primeiro filho, Alcione, quando
Clara mudou completamente a maneira de nos tratar. Passou a adotar dois pesos
e duas medidas em várias situações. O que era para os seus era diferente para
nós. Desde um pedaço de cuca, que não era repartido entre todos, mas apenas
para os “seus”, ao passo que nós ganhávamos polenta fria. Lembro-me bem que
às vezes, com os vestidos surrados, sentadinhas no chão, comíamos um pedaço
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de polenta fria que tinha sobrado. A cuca “da boa”, como costumávamos chamar
aquela que vinha de Rio do Sul, levada pela padaria Brehsan, essa era guardada
no guarda-roupa do casal, às sete chaves, para que não alcançássemos.
A mesma coisa acontecia na hora da distribuição no lanche da tarde,
quando Clara chamava seus filhos e os entregava pedaços da deliciosa cuca; nós
nos contentávamos em arregalar os olhos e a salivar como pequenos bichinhos,
porque não ganhávamos nem um pedaço. Acelon, um dos cinco filhos naturais
de Clara, perguntava: e o Aldo, a Dulce e a Carmen? A resposta era sempre a
mesma: “eles não precisam de cuca”!
Em algumas ocasiões, e longe dos olhos da mãe, Acelon repartia o seu
pedaço. Era um irmão de ouro e, como todos os outros, gostava de nós e nós
dele. Disso jamais duvidei, por mais que ela tivesse tentado dividir nossos
corações, impedir nossa amizade e nosso carinho de irmãos. Por isso e por tantas
outras até hoje tenho o maior respeito e amizade por todos eles, e procuro trazer
sempre na lembrança as melhores cenas dos melhores momentos de nossa triste
infância.
Tudo isso era tão mesquinho, e mais mesquinho ainda era o fato de essa
atitude não ser justificada, visto que meu pai era um homem de posses, de modo
que não seria preciso economizar. O que eu percebia, e quisera Deus fosse uma
visão míope da situação, é que Clara deliberadamente nos rejeitava por não
sermos seus filhos. Meu pai, é claro, não sabia o que acontecia.
Assim, na base da discriminação, foi-se levando minha infância, até que
completei idade escolar e passei a freqüentar a Escola Isolada de Salto Grande,
cujo professor era o senhor Lindolfo Rodrigues. Era enfim a chance de aprender
novidades, de fazer novas amizades e, mais importante do que tudo isso, de fugir
dos serviços domésticos a que Clara me obrigava.
Sim, porque além de nos tratar de forma totalmente díspar, Clara fazia de
mim e de seus outros enteados praticamente seus serviçais. Limpávamos,
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varríamos, lavávamos e até capinávamos a horta da casa sob as ameaças de
violentas surras. E não era o serviço doméstico que se destinava comumente às
crianças, até como forma de nelas inculcar os valores do trabalho e da
organização; era um trabalho exigente demais para nossa condição física, que
nos cansava além do que nossos pequenos corpos podiam suportar, e que ao
invés de somar valores dividia nossas forças e subtraía as possibilidades de um
crescimento sadio.
Por isso é que para freqüentar as aulas eu tinha que sair às escondidas,
como uma fugitiva, de seu próprio lar; do contrário os trabalhos me prenderiam
à casa de meu pai e a escola acabaria em segundo plano. Minha estratégia tinha
que mudar a cada manhã, mas a principal era atravessar a cerca de madeira que
separava nossa casa e a do vizinho, e correr sorrateiramente, com o coração
disparado com medo de ser apanhada em flagrante por um crime (crime?) que
não era meu.
Ao chegar na escola, o pior momento era aquele em que o professor pedia
que lhe apresentássemos as tarefas do dia anterior. Todas as crianças orgulhosas
mostravam suas lousas e o professor, com a postura sóbria que o marcava,
examinava detidamente cada uma. Indicava um erro numa, elogiava outra,
recomendava um ajuste aqui e acolá.
À medida que ele se aproximava meu medo crescia: é claro, não havia
cumprido a tarefa. E não por má vontade e preguiça, mas por pura falta de
tempo e, vez por outra, pela expressa proibição imposta por Clara de dedicar-me
pelo tempo que fosse a outra atividade que não os trabalhos domésticos. Sentiame tão humilhada e injustamente rebaixada com as punições do professor e com
as chacotas dos meus colegas de classe, que simplesmente baixava a cabeça e
colocava-me a chorar.
Como dizer ao professor Lindolfo que minha própria madrasta não dava
permissão para fazer as tarefas? Com que palavras enunciar tão grave acusação?
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Em quem ele acreditaria, numa pirralha de sete anos ou nela, senhora distinta,
esposa do escrivão municipal?
Não vendo saída eu me calava e recebia os terríveis castigos daquela já
distante época, castigos que também não eram meus. Porém, nem as palmatórias
nem as orações forçadas da escola, nada se comparava ao que ainda estava por
vir: ao chegar em casa novamente era castigada fisicamente (para dizer o
mínimo) por tê-la desobedecido ao fugir para tentar, apesar de todas as
humilhações, sair daquela vida pela estrada do estudo.
Ainda assim levei meu período escolar até o terceiro ano, quando já sem
forças para agüentar mais tive de finalmente abandonar os estudos na metade do
ano para trabalhar mais do que já trabalhava em casa. Tornava-me, assim, uma
faxineira da minha madrasta, com a “agravante” de ser submetida a surras
quando algo parecia errado ao seu olhar e de não poder me demitir.
Meu pai, homem que se dedicava demais ao trabalho, não conseguia
acompanhar os dramas familiares e acabava não se inteirando das maldades a
que suas filhas eram submetidas todos os dias. E como viajava muito para
Florianópolis e Bom Retiro, em viagens que levavam semanas ou meses, Clara
se aproveitava da situação e deixava seus instintos extravasarem.
Recordo que numa dessas ausências Clara fez com que eu e Aldo
pegássemos cada um numa das pernas de Dulce e a puxássemos para fora da
casa, descendo os cinco degraus de escada que separavam a casa do terreno, de
modo a levá-la para um macabro passeio pela terra, que incluía incursões por
trechos pedregosos. Uma verdadeira sessão de tortura contra uma pessoa
indefesa.
Ela, como que apreciando aquela situação deplorável, permanecia sentada
numa cadeira com um chicote ou uma varinha de marmelo na mão, assistindo e
gritando: “mais, mais, muito mais…”
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Hoje fico a me perguntar que mente doentia era aquela, que prazer
poderia existir numa cena tão mórbida? Mas ao lembrar do brilho de seu olhar,
do sorriso de triunfo que exalava, vejo que era tudo pura maldade, uma espécie
de vingança por ter o encargo de criar como seus os filhos de outra mulher. Hoje
penso que a gravidade da situação não era uma só, mas três. A maldade ao
atingir não só Dulce, pela dor física, mas também a mim e ao Aldo pelo mal que
sabíamos estar causando a nossa irmã, mesmo sendo obrigados a isso, porque, se
não o fizéssemos, apanharíamos. Além disso, ela também nos proibia de contar
para o pai, sob ameaças de que as próximas sessões seriam piores ainda.
As lembranças são fortes demais e remexê-las freqüentemente me leva às
lágrimas. Colocá-las no papel, assim, é uma espécie de terapia, que me permite
encará-las de outro ângulo, tornando-as, quem sabe, mais distantes da realidade.
O papel para mim se torna um desafogo, porque tira de mim o peso que as
lembranças jogam em meus ombros e transfere para suas linhas aquilo que eu
tento esquecer. Mas, pouco adianta; como sabe qualquer um que tenha passado
por uma situação penosa como essa, a dor, a sensação de fragilidade e de
impotência cravam seus sentimentos no fundo do peito.
Mas meu coração não era de galinha. Nas minhas veias corre sangue
quente e forte. Apesar de ainda criança, um dia me aproximei de meu pai, baixei
os olhos, fitei meus chinelos, pensei mais uma vez nos prós e contras, e, quando
estava quase desistindo, busquei nas lembranças dos dias anteriores minhas
últimas forças e contei tudo a ele. Nesse dia lembro que o casal brigou feio, e
meu pai, que estava com um livro de tabelião nas mãos, atirou-o nela, atingindoa nas costas. O castigo foi insignificante diante de tudo que ela nos obrigava a
passar e a fazer contra nossas vontades, mas valeu para marcar na minha vida
esse ponto de coragem e firmeza após tanto sacrifício.
Aquele átimo de força teria ainda uma conseqüência. Quando já era
mocinha meu pai, munido da intenção de me tirar daquele ambiente, decidiu me
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matricular no quarto ano do colégio Sagrada Família, em Blumenau; já não
sabia ele o que fazer para livrar-me das perseguições de Clara, e um internato foi
mesmo a melhor solução.
Nas visitas que ela fazia ao Colégio, Clara aproveitava para recomendar
às freiras que me ensinassem apenas a cozinhar, lavar, passar, tricotar e costurar,
e que deixassem de lado as outras disciplinas, pois não me seriam úteis; segundo
sua equivocada visão de mundo, meu desenvolvimento intelectual não era
importante para o futuro.
Meu pai, no entanto, dava outras orientações: deveriam me tratar da
mesma forma que a todas as outras meninas do internato, ensinando tudo o que
fosse de meu interesse, mas sem qualquer distinção; deveriam, enfim, me formar
uma mulher cidadã.
Logo me interessei no aprendizado de tipografia e comecei a me sair
muito bem nos estudos. As notas variavam de muito bom a excelente, de modo
que me sentia cada vez mais estimulada a prosseguir. Noutras matérias não ia
tão bem. Um exemplo foi o corte e costura, que talvez por deficiência nos
estudos anteriores de matemática e artes, prejudicados pelos trabalhos
domésticos, passei a encontrar muita dificuldade. Apesar de tudo, aquele foi um
ano bom, em que aprendi muito no pouco tempo em que fiquei lá.
Enquanto isso a vida de meus irmãos continuava transcorrendo com seus
altos e baixos, na pequena Salto Grande.
Meu irmão Aldo, por quem meu pai nutria uma vaga esperança de
transformá-lo num grande homem, desejando e podendo dar condições de
estudo em bons colégios, não correspondia às expectativas. Aldo, naquela época
estudava no Colégio dos Padres, mas não se adaptava à disciplina rígida imposta
na instituição. Suplicava através de cartas que meu pai o retirasse de lá, dizendo
que não gostava das regras, das lições, dos colegas e do ambiente. O
comportamento, bastante incomum, magoava meu pai e o fazia chorar. Pedindo
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alento, se abraçava a mim como se eu, ainda uma criança, pudesse consolar
aquele homem que era admirado por todos na cidade.
Hoje penso que na verdade meu pai jamais se consolou com a falta de
ambição do único filho homem que teve com a primeira esposa, de quem,
desconfio eu, jamais se esqueceu e com quem considerava haver vivido anos de
muito amor, muito companheirismo e muita luta.
Aldo então foi para o Exército. Tinha ficado um belo rapagão, alto, forte,
cabelos pretos e sempre muito requisitado pelos amigos e admirado pelas
garotas. Mas continuava aprontando, desrespeitando as normas e as autoridades.
Não como um delinqüente, isso não, mas apenas com a intenção de se divertir.
O que ele buscava na verdade, sem medir as conseqüências, era a diversão, sem
se importar com mais nada. De tanto aprontar, certa vez mandou uma carta para
meu pai com um desenho de uma cadeia. Para susto dele, adivinhem quem
estava desenhado dentro da cadeia?
Outra que ele aprontou foi a do cacho de banana. Clara costumava
pendurar um cacho cheio de bananas verdes para amadurecer bem no alto do
forro, onde ninguém pudesse alcançar. Sempre querendo aprontar alguma
brincadeira, alguns dias depois Aldo foi espiar o estado do cacho e, vendo as
bananas já maduras, apanhou algumas para comer. E foi assim naquele e nos
dias seguintes, até que as bananas acabaram, ficando só a penca. Quando Clara
descobriu, Aldo não poderia negar, porque era o único que alcançaria lá. Não
negou e tampouco esperou a severa punição. Colocou numa valise algumas
mudas de roupa e foi pedir abrigo na casa de nosso tio Aristides Neves que
morava em Bom Retiro.
Quase esquecia! Nesse meio tempo, depois do ano de internato em
Blumenau, retornei a Salto grande, para minha vidinha de sempre. Fui então
readmitida ao cargo de “empregada doméstica” na casa de meu pai, pois era o
que me cabia na opinião de Clara. Voltei a lavar, passar, cozinhar e a fazer todo
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o serviço da casa para ela, que agora se desculpava alegando não ter tempo, já
que passara a trabalhar com meu pai no Cartório.
Não retornei mais aos estudos. O que sei, o pouco que sei, foram desses
quatro anos de escola e internato, quatro anos mal aproveitados. Mas a vida
ensina muito, e com ela aprendi o resto que me foi suficiente para sobreviver e
criar meus filhos. É por isso que sempre digo que ninguém cruza nosso caminho
por acaso, e nós não entramos na vida de alguém sem nenhuma razão; há muito
o que dar e o que receber; há muito o que aprender, com experiências boas ou
negativas. Tenho certeza de que, se mesmo a pior tempestade traz o viço às
plantas e devolve a vida à floresta, minhas dificuldades iniciais me fizeram
crescer forte para enfrentar todas as batalhas que a vida me traria. Foi isso o que
aconteceu comigo e é isso que eu quero contar agora.
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A PRIMEIRA VIAGEM
Minha primeira grande viagem aconteceu quando eu contava com apenas
dois anos e meio de idade. Logo após a morte de minha mãe, meu grande pai,
Emiliano Sá, pediu à cunhada Cecília que ficasse comigo por algum tempo,
enquanto reestruturava a família depois da perda.
Minhas memórias dessa época são poucas e se devem mais às conversas
com a família, no interesse de saber da minha própria infância, do que de
lembranças
pessoais.
Mas
vagamente
recordo
ter
ficado
durante
aproximadamente quatro anos morando com a tia Cecília. Nesse meio tempo,
meu pai casou novamente, retornando para me levar junto na nova família.
Chegou dizendo que por nada nesse mundo queria me deixar com a tia Cecília,
não por desgostar dela, mas por querer muito bem a mim. Eu, a essa altura, já
não queria ir com ele – coisa de criança! – mas acabei cedendo diante da
promessa de uma boneca.
Naquele tempo, era comum se falar em “dar” a criança para os parentes,
para que cuidassem melhor. E foi essa a palavra que a tia Cecília usou quando
meu pai voltou para me buscar:
– Emiliano, dá a Carminha para mim?
Eu gostaria muito de ter ficado com a tia Cecília; na verdade era tudo o
que eu queria na época, já que estava acostumada a ela e à família.
Mas meu pai disse um definitivo não, daqueles que continham por si só
imposição suficientemente forte, pois vinha do homem da família. A tia Cecília,
mesmo assim, argumentou dizendo que como ele já tinha dado minha irmã
Lucinda para a tia Janoca, poderia também me deixar sob seus cuidados.
– A Carmen eu quero – foram as palavras de meu pai, Emiliano.
A partir daí, para voltarmos à casa de meu pai, pegamos a estrada saindo
de Armazém, com destino a Bom Retiro, no alto da Serra.
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Na época, é possível imaginar a dificuldade da viagem. O que hoje leva
pouco mais de quatro horas num carro qualquer, levou mais de três dias no
lombo de cavalos e burros. Depois de longas horas de chão poeirento e às vezes
coberto de lama, de lentas paradas para alimentar os animais, finalmente
chegávamos nos hotéis na estrada, torcendo para conseguir alcançá-los antes de
a noite chegar.
Para nós, crianças, a viagem era penosa. Além das difíceis condições do
tempo, do pouco tempo para brincadeiras e da parca alimentação, eu e minha
irmã Dulce ficávamos no que se chamava cargueiro, uma espécie de alforje feito
de vime que cruzava as costas do animal de modo a equilibrar uma de cada lado.
Ao subir a serra a paisagem começava a mudar. Do calor de Armazém da manhã
no começo da viagem, já à tardezinha começávamos a sentir o frio que vinha
dos vales. O vai-e-vem dos animais, somado à consciência de meu pai sobre
nossa hidratação, favorecia o funcionamento de todas as funções do corpo. Em
especial, do aparelho urinário.
E foi o que aconteceu. Lembro bem que levei uma grande bronca de meu
pai, quando ele percebeu que a farinha que vinha dentro do cargueiro comigo já
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não poderia mais ser usada para alimentar o comboio. É que, apesar de as
paradas serem poucas, a água era bem servida, e eu, que já não estava
entendendo muito bem o porquê da viagem, também não sabia pedir para ir ao
banheiro, ou o que quer que o substituísse no meio da empoeirada estrada de
chão batido. O resultado foi um pirão um tanto diferente, com o meu xixi bem
misturado naquela farinha de mandioca. Mas criança é assim mesmo, faz onde
der vontade! Ainda bem que perceberam antes do jantar!
Para manter a ordem durante o percurso, meu pai ralhava o tempo todo
comigo e com minha irmã. Em certa parada, no meio de minhas brincadeiras,
quase caí num desses poços artesianos em que parávamos para abastecer os
animais e os alforjes. Acredito que, pela profundidade, se eu escorregasse na
beirada de limo talvez não sobrevivesse à queda. Mas como eu sempre digo,
meu destino já estava traçado para que eu tivesse os doze filhos que tive.
Aqui cabe um pequeno comentário sobre o meu pai, para alguns o Vô
Miliano, para outros tantos o bisavô que não chegaram a conhecer.
Homem de caráter irrepreensível, foi professor em Armazém, coletor –
uma espécie de cobrador de impostos – em Bom Retiro e tabelião em Salto
Grande, cidade que mais tarde receberia o nome de Ituporanga. Essa última
profissão rendeu-lhe alguma fama e uma vida digna, com frutos suficientes para
sustentar e educar a grande família que tinha.
Mas, voltemos à viagem. Do pouco tempo que ficamos em Bom Retiro
não tenho maiores lembranças, mesmo porque logo passamos a viver em Salto
Grande, onde eu criaria mais tarde meus filhos e passaria boa parte de minha
vida.
Nossa primeira casa lá foi a tal da Casa Velha. Feita de madeira, tinha
bom tamanho, onde se distribuíam três quartos, escritório e cozinha, mas o
pouco cuidado que recebia fazia meu pai se ver obrigado a aturar comentários
dos vizinhos contrapondo a sua nobre profissão de tabelião com a pobre casa em
que morava com a família. Para ele, que nunca foi de luxo, não havia qualquer
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problema, e deixar os outros falar pelas costas era mesmo a melhor solução.
Na Salto Grande desse tempo o comércio se restringia a alguns botecos e
galpões para estocagem da produção agrícola, com alguns moinhos – as
chamadas tafonas – lá levávamos a produção caseira de fubá, milho ou de
mandioca para transformar em farinha. No entanto, a maioria dos negócios era
fechada na localidade de Freguesia de Baixo, em que havia um permanente
mercado.
Pagava-se o dono das tafonas no regime da meia, ou seja, quem levava o
milho para moer deixava metade ou a terça parte do produto com o tafoneiro,
que sempre saía lucrando. Daí a brincadeira que sempre fazia a Adelaide Sens
quando dizia que a tal da meia não servia nem para os pés, porque o único que
ganhava bem, realmente, era o dono do moinho.
Aliás, usava-se a farinha de mandioca como alimento em muitas ocasiões,
e lembro-me bem que meus filhos mais velhos cansaram de comer o pirão que
com ela se fazia. Na verdade, o tal pirão fez crescer fortes e saudáveis todos os
meus filhos, que só não ficaram maiores porque a linhagem não permitia
mesmo.
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A CABRITA DO MAURÍCIO
A essa altura da minha vida muitas histórias vêm à mente. São detalhes
singelos do dia-a-dia, lembranças que engatam em outras lembranças e trazem
de reboque mais umas tantas; enfim, acho que ainda hoje ninguém descobriu
bem ao certo como nos chegam as lembranças, mas eu posso dizer que descobri
a felicidade de tê-las.
Uma dessas recordações é de um “acontecido” com meu filho mais novo,
o Maurício Luis Sens. Maurício, sempre muito benquisto por seus amigos,
resolveu convidá-los certa vez para passear de canoa pelo rio Itajaí do Sul, que
cruza Ituporanga, e, em Rio do Sul, se encontra com o Itajaí do Oeste para
formar o Itajaí-Açu. Dentre eles, pelo que lembro, estava também o Bira de Sá,
meu sobrinho, além de pelo menos outros cinco.
Desciam o rio naquele lindo dia de sol com as bagunças que sempre os
meninos inventam nessas horas, até que de repente a balbúrdia foi interrompida
por um grito estranho vindo da barranca: “mééééé”, ouviram todos eles sem
conseguir ao certo identificar que “ser” emitia aquele grunhido.
O grito parecia de algum animal de sítio, um bode, uma cabra, mas ainda
não tinham identificado ao certo. Procuraram por algum tempo o local de onde
partia o berro até que encontraram uma pobre cabritinha desesperada.
O coração de qualquer um amolece nesta hora: o pobre bichinho havia se
perdido e agora já estava no leito do rio sem saber como nem para onde voltar.
Como coração de menino amolece mais rápido ainda, logo trataram de colocá-la
para dentro da canoa e trazer para casa.
Já em Ituporanga, com a cabrita no colo, muito satisfeitos da boa ação que
haviam feito, chegou a hora da verdade: “Para onde vamos levá-la?” – alguém
perguntou ingenuamente, causando aquele típico olhar de perplexidade por
todos.
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A verdade é que não tinham a menor idéia do que fazer com o
animalzinho, até que um deles se deparou com a brilhante idéia: “Maurício,
deixa na tua mãe!” Outro, um pouco mais astuto, pensou alto: “E que tal vendêla?”.
Uniram uma idéia à outra e pronto: lá veio a cabritinha à minha casa, para
que eu a comprasse. Como se já não bastassem todas aquelas crianças e as
molecagens que sempre me aprontavam – molecagens que, claro, eu adorava –
traziam agora, assim como se fosse um presente, uma cabrita desgarrada para
me vender.
Tudo bem que lá em casa já criávamos porcos, galinhas e patos, como era
comum na região. Mas uma cabrita que não tinha dono e ainda por cima não
parava de berrar, essa era novidade!
No final das contas, depois de muito pedirem, comprei por uma quantia de
nada a tal cabritinha, e eles, agora já não sei se felizes pela nova boa ação ou
pelo alívio em se livrar do bicho, deram pulos de alegria.
A mais nova proprietária de uma cabrita em Ituporanga sacou logo de um
pedaço de corda e amarrou a pobrezinha num pé de árvore. Como já era de se
esperar, os meninos logo partiram para outra brincadeira; a cabrita, essa
continuava a berrar sem parar.
O tempo passou e os berros só cresciam. Meus ouvidos já não
agüentavam mais aquele martírio. Não lembro, mas devo até ter pensado em
preparar cabrito assado para o jantar.
Para minha sorte – e da cabrita! – minha vizinha Nazira, que sempre
passava lá em casa para buscar cebolinha, viu o animal gritando e disse: essa
cabrita é minha! Mal pude acreditar! Quem pulava agora não eram os meninos
nem a cabrita, era eu, de contente por livrar meus ouvidos daquele insistente
“méééééé”.
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O CHAPÉU
Como qualquer mocinha, eu também era vaidosa e gostava de me arrumar
para passear aos domingos, ir à missa, ou dar um simples passeio pelas poucas
ruas do vilarejo. Tinham uma beleza singela aquelas tardes de meia estação,
quando já podíamos vestir alguma coisa mais elaborada sem sufocar no calor do
verão. Gostava principalmente de abril, quando o friozinho da manhã nos
deixava um pouco encolhidos antes de começar as tarefas diárias, e de outubro,
que mostrava toda a força da natureza na barulheira dos pássaros e na vitalidade
das plantas.
Durante a semana preparava minha roupa domingueira, meu chapéu, que
precisava ser engomado para ficar bem armado e durinho. Havia tanto capricho
naqueles simples gestos de ajeitá-lo aqui e ali, de um lado e de outro, que quem
olhasse de fora julgaria que eu me detinha a conversar com ele e que éramos
amigos de longa data.
Não tinha um armário adequado para ele. Costumava pendurá-lo num
prego bem alto para que ninguém pudesse mexer. Novamente, no entanto, minha
madrasta encontrou a forma mais precisa para me atingir.
Era um daqueles dias de abril, um domingo bastante agradável e com o
céu azul que só se encontrava em Ituporanga. Os sinos da igreja chamavam a
todos para a missa e eu, já toda pronta para sair, com meu vestido passado e
repassado a ferro de brasa, fui em direção ao último adereço: caminhei ligeira na
ponta dos pés, quase como uma bailarina, até a parede em que estava meu
chapéu.
Quando o encontrei, meu coração não pôde se consolar com o que viu.
Como um menino que encontra um beija-flor morto, desabei em lágrimas
quando o encontrei no chão, atrás do velho baú de madeira, completamente
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amassado.
Sabia quem havia sido a autora de crime tão cruel, capaz deste ato
covarde, o que fez meu peito brotar tristeza. Clara, novamente, decidida a
castigar-me pelo que não fui e esquecer-se de suas frustrações, havia escolhido o
dia ideal para me magoar. E desta vez conseguiu mesmo, acertando um golpe
muito mais dolorido que as tradicionais surras de vara de marmelo.
Ao me encontrar chorando meu pai logo quis saber o motivo. Da mesma
forma que da primeira vez, titubeei, mas seu olhar compreensivo e a certeza de
que me confortaria se soubesse me fizeram colocá-lo a par de tudo. Ele, naquele
dia, isolou-se no quartinho escuro que havia nos fundos da casa, e chorou,
chorou como jamais vi homem algum chorar.
Naquele choro não havia só lágrimas de tristeza, eu sabia bem, mas apesar
de todo o carinho que nos dava, cada gota também mostrava seu sentimento de
culpa por, de certo modo, não nos proteger como gostaria e como pensava ser o
de direito.
Se não era sempre possível a meu pai me manter sob sua proteção, sei que
durante todo o tempo do dia seu pensamento e suas preces oravam pelos filhos.
Por acreditar nisso é que superei esta e muitas outras.
29
O ENCONTRO COM LUCINDA
Separadas desde pequenas, só em 1938 conhecemos finalmente nossa
irmã Lucinda, que ficara morando com a Tia Janoca em Armazém. Só a
tínhamos visto por fotos até então, mas pelos meus cálculos ela deveria contar
15 anos de idade na ocasião em que veio à nossa casa. E era tudo o que
sabíamos dela. Se estava alta, magra, feia, bonita, nada de concreto a seu
respeito conhecíamos; mas pelas fotos, deveria estar encantadora.
Por isso a aguardávamos com ansiedade naquele dia de verão em
Ituporanga. O sol desta vez castigava os campos, mas mesmo assim vestimos
nossas melhores roupas e arrumamos a casa da melhor forma possível.
Eu e o Aldo, que nos dirigíamos para comprar mantimentos para o almoço
que a receberia, caminhávamos conversando pelas calçadas e pelas ruas, fazendo
brincadeiras, contando uma e outra piada, apontando para os pássaros e
cumprimentando os vizinhos, quando de repente avistamos uma bela moça,
desconhecida na cidade.
O Aldo, como sempre, quando via uma mulher bonita não resistia à
tentação. Logo começava com os cortejos e não desistia até tornar-se namorado
da jovem. E isso acontecia muito! Como a tal forasteira era por demais linda,
certamente os limites da prudência novamente não impediriam que Aldo partisse
adiante.
Mas como dessa vez estávamos mais ocupados que o normal, com todos à
nossa espera em casa para dar início ao almoço, o Aldo se limitou a um flerte e
voltamos para casa esperando encontrar nossa tão distante irmã Lucinda
devidamente acompanhada da tia Janoca.
Contudo não foi o que aconteceu. Meu pai nos disse com uma cara pouco
convincente que elas não haviam conseguido vir, explicando que os problemas
na estrada provavelmente impediram o trânsito, e que resolveram retornar e
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deixar a visita para outra ocasião.
Nossos rostos suados por ter trazido as compras se franziram para baixo e,
como todos na casa que ouviram a notícia, ficamos tristes. Nossa querida irmã
continuaria a nos sorrir apenas pela já surrada fotografia.
Mas não é que quando começamos a guardar as compras, Lucinda, linda,
formosa, encantadora – muito mais do que na foto – aparece nos dando o maior
susto. Aldo ficou branco. Então, aquela bela garota que havia paquerado na rua,
era sua irmã? “Que pena”, seu espírito conquistador pensou: estava fora de
cogitação ser sua namorada.
Abraços e beijos e logo a conversa pra lá de animada que sempre marcou
a família começou a fluir rapidamente. Mal a deixávamos completar um assunto
e já perguntávamos de outro. E a escola, e a cidade em que morava, e as
paqueras, e os planos para o futuro? Todos os assuntos foram e voltaram
inúmeras vezes. Aqueles dias para mim eram de pura felicidade.
Parece impressionante, mas
em
pouco
tempo
de
quase
desconhecidas nos tornamos irmãs e
em outro tanto de tempo, mais que
irmãs, nos tornamos grandes amigas.
Claro
que
meu
pai
fez
especial gosto pela nova amizade.
Notava-se pelo seu olhar satisfeito,
pelo sorriso fácil sempre no canto do
rosto, pelo incentivo para que nos
divertíssemos ao máximo durante
aquele tempo.
Um de seus prazeres era nos
ver passear nas bicicletas novas que
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nos havia comprado, e de fato seus olhos nos seguiam até desaparecermos na
esquina.
Num dos passeios tínhamos ido longe de casa, cada qual com a sua.
Atravessamos a ponte às brincadeiras e risadas, até que, do outro lado do rio,
encontramos um terreno montanhoso e irregular. Nada seria problema para nós.
Queríamos justamente explorar novos espaços, numa forma de apresentar a
cidade à minha irmã.
Com pouca prática e num terreno diferente, nossa habilidade como
ciclistas se mostrou bastante duvidosa. Assim mesmo subimos o tanto que
pudemos e lá paramos, ofegantes pelo empenho e pelo calor que aquele dia
ensolarado de verão fazia. A vista magnífica me fez, ainda recobrando o ar,
começar a apontar para Lucinda os locais conhecidos. Ali estava o mercado,
pouco mais adiante a igreja, um pouco além se via a escola e assim por diante.
Um rapaz muito bonito, apontei também, morava naquele outro lado.
Já recompostas, foi a vez de começar a descida. A duas “atletas”
controlavam pouco as bicicletas e eu, ao invés de começar devagar, logo fui
pedalando, mesmo consciente de que o caminho vinha morro abaixo.
32
Minha bicicleta, é claro, disparou. E disparou também minha garganta e a
da Lucinda. A gritaria foi uma só. Eu gritava porque não conseguia me segurar,
e a Lucinda para que eu freasse: eu dizia “Lucinda!!!”; ela gritava “Freia
Carmen!!!”. Quando consegui dominar o freio, já um pouco confiante, percebi
que o danado não funcionava e que meu destino estava certo: despenquei ladeira
abaixo. Como diz o provérbio. “Pra descer todo santo ajuda”. E como ajuda: caí
feito um saco velho!
33
MEUS VESTIDOS
Já falei das viagens que meu pai empreendia para a capital, para São José
e para Bom Retiro. Sem as facilidades da vida moderna, tratar de um simples
assunto em Florianópolis exigia semanas. Durante esse tempo, ficávamos
sempre à espera, aguardando o ansioso momento em que correríamos em sua
direção para ganhar seu abraço e, é claro, os presentes.
Certo dia, meu pai apareceu em casa com cinco cortes de tecido. Todos
tinham um só destino: “É para fazer vestidos para a Carmen”, disse à minha
madrasta. Ele havia reparado em minhas roupas maltrapilhas, comparando às
das outras irmãs, Zulma e Dilma, ambas sempre bem vestidas. Aquela atitude de
Clara o vexava perante a sociedade. Afinal de contas, ele era o “Senhor
Emiliano”, homem respeitado na comunidade e bem situado economicamente; a
língua alheia não o perdoaria se uma de suas filhas usasse trapos.
Assim é que de uma forma quase solene, na frente de todos, entregou os
tecidos a Clara e novamente recomendou que os vestidos deveriam ser feitos
para mim. Meu olhar curioso não se atrevia a esbarrar com o de Clara, mas o
gesto fez sentir-me novamente protegida e até mesmo mais forte.
Mas... os dias se passaram, e dessa vez especialmente lentos, e nada de as
roupas aparecerem. Meu pai, já zangado, perguntou por eles, ao que Clara
respondeu estarem na Dona Olívia, a costureira da cidade. Ríspido e firme,
rebateu meu pai quase antes de a frase terminar: “Pois então mande buscá-los!”.
Com as fazendas na mão, meu pai mesmo encontrou outra costureira e
mandou que ela os fizesse. Todos de uma só vez. E todos para a Carmen.
Por um bom tempo andei muito bem vestida e aquilo me deixou muito
feliz, pois me deu a certeza de que apesar das adversidades da vida, das
intempéries causadas pela madrasta, eu tinha o amor verdadeiro de meu pai e a
sua proteção.
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QUANDO QUASE ME AFOGUEI
O rio Itajaí do Sul é um rio caudaloso que nasce em Bom Retiro, passa
por Alfredo Wagner, e lentamente atravessa Ituporanga até que na cidade de Rio
do Sul se encontra com o rio Itajaí do Oeste para formar o Itajaí-Açu, o rio que
cruza uma das regiões mais ricas de Santa Catarina. Aliás, “Açu”, na língua dos
índios tupis que habitaram a região, significa vasto, grande, justamente uma das
características daquele imenso corpo d´água e do que hoje é a região.
Pois é este rio bonito que corta a cidade e faz descer sobre ela uma
neblina espessa, a mesma que esconde a aurora nos dias de inverno e
praticamente proíbe o Sol de aparecer antes das dez à população de Ituporanga.
Muitos momentos da minha vida se passaram nas proximidades do rio
Itajaí do Sul e boa parte das minhas lembranças o tem como pano de fundo.
Pudera, eu e Vitório construímos nossa casa às suas margens, bem ao estilo da
maioria das construções da época. E mesmo quando criança e adolescente, “o
Rio”, como simplesmente era chamado, foi a diversão de muitos de nós.
Nem é preciso dizer que a meninada adorava passar suas tardes banhandose nos pontos em que as águas transitavam devagar. Para os destemidos há duas
cascatas, onde os incautos corriam sérios riscos e os mais corajosos se exibiam.
E o perigo rondava constantemente, tanto que alguns pontos foram palco de
histórias tristes, como a que ocorreu em 1976, com Luciana Haveroth, amiga de
minha filha Elizete, que deixou sua juventude nas suas águas.
Nossos pais nos lembravam constantemente da proibição de freqüentar
esses lugares, mas era senso comum que o leito principal, nas proximidades das
casas da vizinhança, não oferecia maiores riscos. Isso para quem sabia nadar...
Domingo de verão, o Sol tinha despertado mais cedo que todos, a maioria
estava em férias e a temperatura implorava por um banho de rio. Meus irmãos e
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eu nos reunimos e decidimos nos divertir na casa de Dona Escolástica Sens, que,
como a maioria das casas, fora construída às suas margens.
Com o consentimento e as recomendações de Clara preparamos as roupas
e a mim, a mais velha, ela delegou a responsabilidade de cuidar dos menores.
Respondi que não haveria problemas, porque eu, a mais experiente, saberia
muito bem como cuidar de todos. Não havia com o que se preocupar.
No começo fiquei apenas olhando a criançada. Depois arrisquei um pé e
em seguida o outro e, em pouco tempo, estava com as canelas na água, toda
saliente. Talvez Clara não desconfiasse, mas eu não sabia nadar. Por isso, resolvi
que naquele dia, minha amiga Elvira Sens, filha da dona da casa, me ensinaria.
Hoje recordo ter passado o pensamento pela minha cabeça: “aprenderia a nadar,
nem que para isso tivesse de morrer”.
Foi assim que entrei nas águas do rio, disposta a enfrentá-las. Apoiada na
Elvira, segurando firme suas roupas, deslizei, deslizei, e quando vi, ao invés de
braçadas, só conseguia afundar. Afundei várias vezes, e a cada vez menos força
restava. O ar em meus pulmões já não garantiria mais um mergulho, a água
forçava pelas narinas e os pés sabiam que não havia apoio por perto.
Foram segundos eternos, até que meu irmão Alcione, que em meio às
brincadeiras acompanhava a movimentação, segurou-me pelos cabelos e pelos
braços, puxando com bastante força para cima. O meu peso fez com ele também
afundasse mais do que o normal e eu, no desespero, na luta pela sobrevivência, o
elegi como minha “tábua de salvação”: agarrei-o pelo pescoço de qualquer jeito,
sem perceber que o sufocava.
Ainda bem que ele era um rapagão forte e habilidoso. Conseguiu me levar
para o trapiche, tossindo bastante, e assim salvou a minha vida. Apesar de tudo,
saí da água alegre e cantando, nem havia percebido o estado no qual ficara
Alcione, que levou dias para se recuperar.
Cidade pequena que era, todos os cantos de Ituporanga em pouco tempo
comentavam sobre o causo. “Os filhos do Emiliano quase morreram afogados no
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rio”, era o verdadeiro boato. Só então percebi a gravidade da situação: numa
brincadeira inconseqüente desafiei a morte e, por pouco, quase acabei com
minha própria vida.
Hoje, motivado por políticas públicas irresponsáveis e pela ganância em
busca do lucro sempre maior, praticamente todo o Vale do Itajaí é vítima da
ocupação urbana irregular e das atividades agrícolas e pastagens. A maioria dos
agricultores fecha os olhos para a preservação ambiental, o que acaba
contaminando todos os rios com agrotóxicos. A vegetação é devastada na busca
por espaço, o que, aliado a esgotos industriais e a inúmeras outras formas de
contaminação, levou nosso local de recreio à prematura devastação.
Tomara que o local que me serviu com tamanha lição possa algum dia
voltar ao que era, trazendo à população a qualidade de vida que o campo
propiciava, mas sem os riscos à saúde vindos do veneno que muito contrariado o
Itajaí do Sul carrega consigo.
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PROCURA-SE UMA VELHA
“Mãe, estaremos com o guarda-sol vermelho, bem na frente do prédio,
esperando-a na praia”. A frase soaria normal não fossem os personagens e o
cenário: minha filha e netas com um guarda-sol igual a centenas de outros
guarda-sóis; eu, com quase 70 anos, num lugar pouco conhecido; a praia de
Balneário Camboriú, com quinhentos e tantos mil banhistas e centenas de
prédios parecidos!
Sempre acreditei no meu senso de localização e durante muito tempo dei
grandes mostras disso a meus filhos; mas desta vez a Kéia, de batismo Eucléria,
minha filha, me superestimou.
Ela e o marido Luiz me convidaram para passar alguns dias no verão de
Balneário Camboriú, que de uns tempos para cá sofria com um avanço de
turistas nunca visto antes em Santa Catarina e com o crescimento de arranhacéus à beira-mar. Depois que cheguei e consegui descansar um pouco da
viagem, combinamos de tomar sol na praia, aproveitando a natureza ainda
bonita do lugar.
Como é do meu gosto, falei para a Kéia que fossem à frente, porque eu
queria passar numa gruta que ficava logo ali e rezar à Nossa Senhora, minha
santa protetora. Devia uma promessa. Depois de alguns minutos de fé, os
alcançaria na orla atulhada de pessoas. Por isso a indicação da Kéia: guarda-sol
vermelho, bem na frente do prédio.
Saí do apartamento, desci pelo elegante elevador e, de canga e chapéu, me
dirigi até a gruta. No caminho, ao invés de rezar baixinho, ia recitando as
palavras da Kéia, quase como se já estivesse com o terço nas mãos: guarda-sol
vermelho, bem na frente do prédio; guarda-sol vermelho, na frente do prédio;
guarda-sol vermelho, frente do prédio...
Na gruta, lá estava a imagem de Nossa Senhora. Ajoelhei-me e, não sei
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por que motivo, mas ao acender as velas pedi para que tudo corresse bem
comigo, um pedido um tanto incomum, mas que realmente me ajudou depois.
Saí da gruta depois de agradecer novamente à Santa e me dirigi à praia. O
primeiro problema logo apareceu; ou melhor, desapareceu: qual era mesmo o
prédio da Kéia? Qual daqueles tantos prédios imensos era o da Kéia? A pintura é
igual em quase todos, ficam sempre à beira-mar, com vários carros estacionados
à frente. A praia na frente também é idêntica para todos. Começou aí a mais
longa busca por um guarda-sol de que eu tenho notícia.
Sem perder a calma, mas um tanto preocupada, já que tudo começava a
parecer agressivo, desde o barulho dos carros até a quantidade de pessoas nas
calçadas, continuei minha caminhada pela orla em busca do prédio, do guardasol vermelho e, mais importante, da minha filha e de minhas netas.
A primeira hora logo escoou e eu ainda à procura do dito guarda-sol
vermelho com todas elas debaixo; bem que podiam ter armado acampamento no
meio da rua, seria mais fácil encontrá-las, pensei alegre. A segunda hora
também foi num instante, mas eu continuava minha caminhada pela cidade,
mesmo com o sol ainda alto queimando os banhistas na areia. Quando dei por
mim percebi: eu, Carmen Sá Sens, em Balneário Camboriú, completamente
perdida!
Nesse meio tempo, Mário, o vizinho da Kéia, e suas duas filhas, que já
tinham saído em minha busca, decidiram anunciar o fato à rádio patrulha. A
versão deles, que me chegou depois, é a de que o anúncio havia sido o seguinte:
“procura-se uma velha de chapéu e canga”!
Apesar de completamente perdida, não tinha sede, não sentia calor,
cansaço, nem dor de cabeça. Foi mesmo um milagre quando a Lucinda, minha
irmã, me achou na rua e me guiou de volta para casa. Sentei-me, não tão cansada
quanto deveria estar, pelo esforço físico, e tomei um copo d´água. Só então
percebi o quão assustados estavam todos.
O vizinho Mário, sempre muito levado, para quebrar o gelo começou a me
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contar em detalhes da preocupação por que passaram. Narrou o susto da Kéia, o
desespero pelas buscas, mas, ao invés de dizer que haviam anunciado apenas
“Procura-se uma velha de chapéu e canga”, disse que o que foi transmitido a
todos os policiais foi: “Procura-se uma velha de chapéu e canga; quem achar,
favor ficar com a velha e devolver a canga”!
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RUBENS, O NAMORADO DE BOM RETIRO
Na época uma localidade de Tubarão, Armazém era gostosa de se passar
as poucas férias que eu tinha naquele tempo. Na linha conhecida como Várzea
das Canoas, o clima agradável e a companhia de minha querida tia Cecília
Neves faziam-me retomar as forças para o pesado serviço da casa de meu pai.
Numa dessas férias conheci um rapaz chamado Rubens. Sinto uma
pequena necessidade de omitir o nome, mas já se passaram tantos anos que não
há mais o porquê. Era jogador de futebol de um time da região e, apesar de
apelidado de Sapo, era alto, bonito, forte e encantador; parecia ter tudo para ser
o homem perfeito. Além disso, sempre conversava comigo com respeito e
hombridade.
Eu, por outro lado, podia ser descrita como uma daquelas menininhas do
interior e que não estava acostumada com as artimanhas dos homens mais
experientes da cidade grande. Não que o Rubens fosse da capital ou, então, de
alguma das outras grandes cidades da região, mas tinha vivido suficientemente
pelas rodas de conversas dos homens de negócios para saber o que queria da
vida.
E presumo que tenha sido numa dessas rodas que aquele que parecia ser
apenas um sujeito bem intencionado tomou conhecimento da profissão de meu
pai. Afinal de contas, um tabelião em Salto Grande provavelmente despertava a
curiosidade dos que voltavam seus olhos apenas para o dinheiro, fazendo com
que o interesse de Rubens por mim já não se resumisse ao afeto ou à amizade...
só que eu fui a última a perceber isso.
Apenas me dei conta quando, no meio de uma noite da calma Armazém,
escutei um barulho na janela do quarto em que eu dormia na casa da tia Cecília.
Alguém parecia me chamar lá fora. Conhecia a voz, mas não atinei
instantaneamente quem sussurrava o meu nome.
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Curiosa pela cena romântica que se iniciava, abri a janela e logo reconheci
o Rubens. Floreou um bocado elogiando a minha beleza, meu jeito de ser, meus
olhos, meu sorriso. Tudo isso antes de mostrar pelo que tinha vindo: propunhame fugir consigo para casarmos e vivermos em outro lugar. Na hora, não
conseguia raciocinar. Paralisou-me a idéia de deixar a casa em que morava, a
família, os amigos; enfim, tudo, para partir com um homem que conhecia há
pouco tempo, mas que por outro lado sempre se mostrara encantador e fiel.
Acredito que alguma luz divina tenha iluminado esse momento, fazendo
com que eu, depois de passado o susto, prontamente negasse o pedido e, com a
mesma educação que sempre me tratou, o mandasse embora.
Na manhã seguinte contei o ocorrido para a tia Cecília, que me alertou das
reais intenções do Rubens. Comunicou logo o fato ao seu marido e ao meu pai,
que tomou a situação como insulto e determinou que eu acabasse
definitivamente com as esperanças do rapaz. Na casa logo passei a dormir no
quarto das minhas primas, vigiada pelo sono leve de meu tio.
Como jogador de futebol e traste à toa, na linguagem da época, não
voltou tão cedo, mandando-me apenas cartas e bilhetes na intenção de verificar
se eu aceitava a proposta. Obviamente, depois de eu ter relatado aquilo para
minha tia, todas as correspondências chegavam às minhas mãos apenas depois
de devidamente examinadas por ela ou pelo marido. Especialmente as do
Rubens também chegavam ao conhecimento de meu pai, que estava em Salto
Grande.
Com o alerta da tia Cecília, tudo ficou mais claro e dei graças a Deus por
dispensar a mim um particular olhar naquele momento. Percebi que o traste à toa
queria me raptar para conseguir alguma coisa de meu pai, a quem ele atribuía,
enganado, ser um homem de grande fortuna.
Terminei por carta tudo o que nem sequer havia ao menos começado. Pedi
que nunca mais me procurasse e que parasse de tentar se corresponder; que me
esquecesse de vez. A última notícia sua que tive nesse período foi de quando
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entrou para o exército, em Florianópolis...
Muitos anos depois, quando eu já era viúva e morava em Ituporanga com
meus filhos, recebi uma visita um tanto inesperada. Depois de passar pelo
consultório médico de meu filho Mário César, um educado senhor apareceu lá
em casa no início da tarde com uma pasta de trabalho. A Eucléria, minha
terceira filha, o atendeu à porta e, não lembro por que motivo, deixou-o
esperando no escritório enquanto eu terminava os serviços domésticos.
Percebi apenas, em algumas rápidas olhadas, que o tal homem trabalhava
com as mãos trêmulas na máquina de datilografia, manuseando com dificuldade
seus papéis. Não sei se pela falta de almoço ou pelo nervosismo do momento,
mas não aparentava mais qualquer tranqüilidade e, então, convidei-o para uma
xícara de café na cozinha, presumindo que o tremor não passasse de fome.
Quando começou a falar, o timbre grave e acentuado e o sotaque da região
logo me fizeram reconhecer a voz e a pessoa. Era o Rubens, aquele sujeito à toa
que conheci em Armazém e que tinha me proposto fugir da casa de meus pais
para viver em sua companhia, com a única intenção de adquirir um belo dote.
Estava evidentemente mais velho, mas ainda conservava os belos traços e a
mesma postura firme e forte que denunciava ter mesmo passado pelo exército.
Também, fitando-me insistentemente, mantinha a futilidade da época em que
jogava futebol e chamava-se Sapo.
O susto da situação novamente me deixou sem palavras. Apenas me
mantinha aparentemente serena e escutava suas novas propostas. Mesmo casado
e com filhos, propunha não mais fugirmos, mas que ele passasse a, quem sabe,
abandonar sua família para casar-se e viver comigo em Ituporanga. Como
argumentação durante a “oferta”, falava de sua vida, de suas conquistas e de
como seria mais feliz ao meu lado.
Tão logo me voltou a consciência, despistei-o com todas as evasivas que
encontrei, partindo, em seguida para um firme e irrespondível não. Rubens ainda
tentou contra-argumentar, mostrou seu belo sorriso e demonstrou seu grande
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interesse mais uma vez.
Eu, no entanto, com a velocidade que só o pensamento permite, ponderei
os muitos contras e os poucos prós da oferta e, totalmente decidida, acabei de
vez com suas expectativas: gentilmente o acompanhei até a saída, pedi que se
retirasse e, com um suspiro aliviado por detrás da porta espreitei com os ouvidos
até não mais ouvir o salto de seus sapatos na calçada. Graças a Deus, desde
então nunca mais o vi.
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PROSA E VERSO NA FESTA DA CEBOLA
Esta lembrança já é um pouco mais recente, mas não vejo problemas em
misturar o antigo com o atual. As mais belas recordações de ontem sempre me
vêm quando estou entre os meus amigos de hoje, de forma que a mescla de
histórias passadas e presentes é natural. Acho até que cria um certo ritmo à
narrativa. O leitor é que dirá se estou certa.
O Márcio sempre foi muito criativo e inteligente. Além de tudo, quando
metia uma idéia na cabeça não havia quem o demovesse. Interessado que
sempre foi pela história da família Sens, com o auxílio da internet e de listas
telefônicas de todo o país conseguiu cadastrar quase cinco mil parentes num
programa de árvore genealógica. Além de todo o aparato tecnológico, sempre
que pode o Márcio aproveita os encontros da família para fechar mais um elo
perdido, para encontrar mais algum Sens e, obviamente, para conhecer uma ou
outra história.
Foi assim que no dia 9 de março de 2005, em Ituporanga, estivemos
reunidos para resgatar um pouco do passado desta família que me orgulho de
pertencer. Aproveitamos a Festa da Cebola para convidar famílias de São Paulo
e do Rio Grande do Sul, além de parentes vindos de Florianópolis, Lages, Itajaí,
Blumenau, Jaraguá do Sul, Campos Novos, Itapema e, claro, Ituporanga. Foi
muito interessante conhecer pessoas cujo sobrenome é o mesmo que carrego e
que nem de longe podia imaginar que existissem.
A festa corria animada e eu aproveitava a alegria do momento para rever
bons e velhos amigos, como a companheira de vários episódios marcantes de
minhas vida, Elvira Sens Cunha. Elvira havia sido rainha de Ituporanga no ano
em que eu fui sua princesa; três anos depois, em 1941, eu fui a rainha e ela a
princesa.
Tivemos oportunidade de relembrar esses e outros dias tão maravilhosos
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dos nossos tempos de juventude e beleza. Sim, é bom que saibam que nem
sempre tive oitenta anos; já tive meus dias de beleza – e que beleza – tanto é que
fui princesa e depois consegui promoção para o cargo de rainha.
Nesse dia, em Ituporanga, entre uma confidência e outra, entre um gole de
água mineral e outro, Anita Sens Grah e Elvira Sens Cunha relembraram já
bastante animadas a canção que nós mulheres cantávamos quando tramitava
pelo Congresso Nacional o projeto de lei que conferia voto à mulher. Os versos
aos poucos surgiram e logo estávamos as três cantando em alto e bom tom o
hino de cidadania:
PROJETO DO VOTO DA MULHER
Sou a favor do projeto
Que dá o voto à mulher
Há de passar o decreto
Que muita gente não quer
Havendo algum candidato
Que o voto meu queira ter
Há um processo barato
A fim de o bem merecer
Pode votar no marido
Para o fazer senador
Sendo ele do seu partido
Ou de outro competidor
Ainda estaremos à frente
Para governar o país
Então é que finalmente
O Brasil vai ser feliz
É simples sua cabala
Olhar sorrindo pra mim
E agora aqui nesta sala
Batemos palmas assim.
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Emocionei-me a ponto de arrepiar o braço diante da lembrança, não só
pela relevância política do gesto, mas também pela alegria que via nos olhos das
amigas, pelas recordações de tempos tão amargos que aos poucos se
transformaram, ainda que derramando o sangue e levando a vida de muita gente.
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O PILÁH ERA O MAIS MIJÃO
O Piláh era o mais mijão. O que sempre lembro da infância do meu quinto
filho, o Márcio, é que foi o que mais tempo permaneceu fazendo xixi na cama.
Naquela época, os colchões da casa eram de palhas de milho, que nós mesmos
preparávamos, desfiando as palhas com garfos de cozinha, para ficar bem fofo.
Como ele quase que diariamente mijava na cama, até os sete anos, mesmo já
indo à escola e sendo coroinha da paróquia local, aqueles colchões tinham que
ser diariamente expostos ao sol, para secar.
Claro que eu procurava entendê-lo. No começo estranhei, mas depois
percebi que não adiantava demonstrar meu descontentamento. Ao vê-lo descer
as escadas do sótão, pela manhã, resignava-me a perguntar: “fez xixi na cama”?
E, antes de ele responder, eu já adivinhava: “não só, ensopou, não foi”? O
Márcio às vezes afirmava que sim e noutras vezes já dizia direto: “não fiz xixi,
só ensopei”.
Quando então o Piláh ia se deitar, eu e o Vitório tentávamos saber se já
havia urinado antes, para reduzir o volume que iria descer pelo colchão de palha;
a mijada, essa era certa.
Na véspera de seu aniversário de sete anos, num domingo em julho de
1958, férias escolares, o Vitório o levou à capital catarinense e, como de
costume, ficou hospedado na casa do tio Defendente Rampinelli, em São José. O
Márcio dormiu lá também, no sótão, também numa cama de palha de milho,
mais rala um pouco que os nossos colchões em casa.
Na manhã de sete de julho, segunda-feira, dia de seu aniversário, como
fiquei sabendo tempos depois, a tradicional mijada do Márcio ultrapassara o
colchão, o assoalho do sótão, o forro da casa, e pingara no rosto do tio, que
dormia num quarto embaixo. Como o Márcio conta até hoje, “não lembro se ele
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gostou ou não do sabor, mas estou certo de que era meio salgado”!
O Vitório no dia seguinte tinha assuntos a tratar na capital, relativos à
aposentadoria de meu pai Emiliano Sá. A caminho de Florianópolis, na Ponte
Hercílio Luz, segundo as palavras juradas de Vitório, já que ninguém acreditaria
naquilo, o Márcio avistou pela primeira vez o mar e soltou a inesquecível frase:
“pai, que arrozeira grande!”. Pacientemente o Vitório apresentou o mar ao
menino e de maneira impressionante conteve a gargalhada: sabia que o Piláh
estava acostumado a ver planos de água em nossas arrozeiras das Águas Negras,
de modo que a confusão estava justificada. Quando passei lá outra vez, acho que
por força da bondade do coração de mãe, aquilo me pareceu mesmo uma
arrozeira, das grandes, pois nas margens havia capins aflorando, como o arroz
que ele conhecia. Pelo menos é essa a versão que conto até hoje para o Márcio.
Como o costume na casa era apenas de banho geral aos sábados, o
segredo do Márcio de fazer xixi na cama não podia ser escondido dos colegas da
escola, tampouco da professora e nem dos padres, pois o cheiro certamente o
denunciaria.
O vigário da paróquia, percebendo a situação, receitou leite com casca de
ovo moída, triturada. Por outro lado, a freira da sacristia, que fazia as hóstias de
trigo, receitou ao menino comer crista de galo. Dessa forma, quando os galos
iam para a panela, lá em casa, a crista era reservada para o Piláh. Felizmente, a
partir dos oito anos o controle da urina foi possível, e até hoje não se sabe por
que motivo, mas o Márcio, brincalhão como sempre, jura que foi graças às
cascas de ovos e cristas de galo.
Daí, acabados os problemas com a bexiga, todos tinham que encontrar
outro motivo para brincar com a paciência do Márcio. Passou agora a ser
enxovalhado pelo potencial de seu estômago. O Vitório dizia que ele tinha os
olhos maiores que o estômago, pois não parava de comer fatias de pão. Certa
vez, na mesa, o Vitório o questionou: “Queres ainda mais pão? Quantas fatias já
comeste?”. Ele respondeu guloso: “Só sete”, e acabou ganhando a oitava.
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Diz o Márcio que é por essas e outras que até os dias de hoje não passa
dos cinqüenta quilos, mas um estudo genético da família pode comprovar que o
peso não é realmente um problema por aqui.
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CINQÜENTA HINOS E DUAS CERVEJAS
O Moacyr sempre foi muito divertido. Conta as histórias da própria
infância e da sua juventude fazendo piada dos infortúnios. Diz ele, por exemplo,
que a grande glória da sua infância foi ter recebido uma carona da professora do
primário. E lembro bem da situação.
Estávamos num daqueles dias abafados que anunciavam a vinda do verão,
lá por novembro, e o Moacyr, como sempre, foi para a escola a pé. Mas dessa
vez, ao sair de casa estava pulando em um pé só. A princípio achei que não
passasse de uma brincadeira sua, mas depois fui descobrir que não conseguia
caminhar porque tinha vários furúnculos nas solas dos pés, o popular “mijacão”.
Arrastava-se pela estrada com uma cara triste, uma cara de dificuldade
que devia dar dó. Foi então que a professora do primeiro ano passou de bicicleta
e, sensibilizada, ofereceu a tão sonhada carona. Posso até imaginar o modo
triunfal com que o Moacyr entrou no Grupo Escolar naquele dia, no bagageiro
da “tia”, para inveja de todos os coleguinhas.
Com treze anos decidimos mandá-lo estudar no Colégio Diocesano de
Lages. Ele ainda hoje acha que a disciplina era muito rigorosa, mas, do jeito que
era brincalhão, acho que as recomendações dos frades até que não passavam
muito dos limites.
Pelo que lembro ele passou cerca de quatro anos no internato, mas sempre
que voltava para casa relatava que qualquer deslize era punido com castigos
severos. Uma ou outra vez, me disse, chegava a apanhar, com o que eu não
concordava, mas também não me intrometia para não desautorizar os
professores.
Uma vez o Moacyr me contou que estavam todos os meninos se
preparando para o almoço, na tradicional fila organizada pelos padres. Não que
fosse um silêncio absoluto, mas a exigência era para que ficasse o mais próximo
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possível disso. Mas não é que ele, justamente na fila, foi fazer uma brincadeira
qualquer e acabou levando um sopapo do padre! Além disso, como era de
costume, teve de escrever cinqüenta vezes o Hino Nacional. E pelas lembranças
que eu tenho, essa não foi a única vez.
Noutra ocasião ele me confidenciou que haviam construído escondido um
rádio e que demoraram muito tempo para conseguir instalar uma antena boa,
porque o trabalho tinha que ser feito durante os jogos de futebol. Devagarzinho,
devagarzinho ele saía do campo, corria para o quarto e passava a mexer com
suas ferramentas.
Pobrezinho. Um dia o padre chegou perto e ouviu ele e o Mauri, que
estudavam juntos, conversando sobre o rádio. Desconfiado, levantou a cama
onde escondiam tudo e, de novo, mais um sopapo e cinqüenta cópias do Hino
Nacional.
Já sem agüentar mais escrever e reescrever o Hino, o Moacyr passou a
trocar a sobremesa do dia por dez cópias do “Ouviram do Ipiranga...”.
Depois foram mais cinqüenta por cantar no banheiro. Na verdade, como
ele mesmo me relatou, o castigo não foi só por cantar. É que lá estava ele dando
uma de tenor e alguém bateu na porta. O Moacyr pensou que era algum dos
colegas que estava na fila do banho e mandou tomar, mandou tomar... bem,
tomar banho é que não foi. Era o padre, e ele levou mais cinqüenta Hinos.
Com o tempo a família foi crescendo e o dinheiro se reduziu. Não dava
mais para manter o Mauri e o Moacyr no internato. Por sorte as relações de
amizade que tínhamos nos permitiram pedir a um casal de Lages o favor de
receber o Moacyr. O Mauri também foi para lá, com um tio.
Uma história que o Moacyr sempre conta é a das manias do português
com quem foi morar. Isso, o Moacyr passou a viver com um casal. Ele, o seu
Mário Mendonça, era português; ela, a dona Ruth, era alemã. Haviam morado
com meus sogros na época da Guerra e achavam que nos deviam esse favor.
O Moacyr de novo se foi, agora com o sentimento de ser um estorvo na
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casa deles, como se estivesse cobrando uma dívida que não era sua.
Compreendo bem o sentimento dele, porque também não gosto de passar muito
tempo na casa dos outros. Hoje, com oitenta e cinco anos ainda moro sozinha.
Uma das histórias interessantes desse período do Moacyr é que o seu
Mário, muito teimoso, tinha um carro velho que quebrava todos os dias. E
sempre era o mesmo defeito. Sempre na mesma roda.
Como era mesmo muito teimoso, não levava as peças de reserva para
consertar o carro quando quebrasse. Deixava todas com o Moacyr, que as
mantinha guardadas num saquinho amarrado à sua bicicleta. Era só o seu Mário
demorar para o almoço que lá ia o Moacyr levar uma peça. O seu Mário
arrumava o carro, devolvia o saquinho para o Moacyr e continuava o percurso.
Nunca ficava com as outras peças, porque tinha decidido que não e pronto. Era
mesmo muito teimoso e mais parecia gostar de ver o Moacyr correndo de
bicicleta para cima e para baixo.
E era assim com a outra mania do seu Mário, que o Moacyr relata sempre,
a de tomar cerveja. O problema não era a cerveja em si, mas que sempre quem
saía de bicicleta para comprar a cerveja, adivinhem quem era? Claro, o Moacyr.
O seu Mário tomava sempre duas cervejas por dia, mas aí também não estava o
problema. É que ele sempre mandava o Moacyr pegar uma cerveja de cada vez,
mesmo sabendo que tomaria duas. Quer dizer: todo dia o Moacyr tinha que
buscar duas vezes uma cerveja na venda para o seu Mário. Ô teimosia!
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MÃE DO ANO
Depois da morte de meu filho Mário, em junho de 1989, a solidão me
atingiu severamente em Ituporanga. Para todo lugar que olhasse, lembrava dele.
O consultório que ainda continuava lá, os amigos que vi crescer e agora não
tinham mais a sua companhia, as ruas por onde ele brincou, correu, namorou e
trabalhou; enfim, um pedaço de mim havia ido embora.
Seguindo os conselhos dos filhos, que já começavam a se concentrar em
Florianópolis, e ouvindo também os amigos e parentes, decidi me mudar para lá.
A proximidade com o mar, diziam uns, ajudaria a manter forte minha saúde; a
alegria dos filhos, era a minha certeza, aplacaria um pouco o sofrimento.
Tomei coragem, despedi-me dos parentes e, com o coração na mão, pela
última vez olhei a casa que foi palco de tantas recordações felizes e de tantos
acontecimentos marcantes. Ficaria alugada, com a preocupação de conseguirmos
alguém que a mantivesse conservada.
No início, já em Florianópolis, a saudade se inverteu. Passei a lembrar dos
meus parentes de lá, da tranqüilidade, da missa rezada do jeito que eu já
conhecia; até do soar dos sinos que badalavam ao meio-dia e às seis da tarde eu
sentia uma pontinha de saudades. Mas com o tempo me acostumei.
Quando completava um ano em Florianópolis, minha vizinha Coracy me
convidou para entrar na Acojar, a Associação Comunitária do Jardim Santa
Mônica, que fica muito perto da nossa casa. No começo me intimidei um pouco.
Uma cidade diferente da minha, e eu entrando logo assim numa associação?
Expliquei que não queria entrar, que me sentia envergonhada... A Coracy, com
seu jeito altivo, disse sem esperar eu completar o raciocínio: “Que timidez que
nada, vamos, vamos!”.
Assim é que eu “decidi” entrar na Acojar.
Tudo ali me foi muito bom. Fiz boas amigas, me mantive animada e, para
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completar, minhas caminhadas tinham uma motivação a mais: ir até a Acojar.
Organizamos um almoço beneficente, que com a venda de artesanato rendeu um
bom dinheiro. Em julho participei da Festa Julina, onde havia o tradicional
cachorro-quente, pinhão, pastel, além, é claro, da famosa pescaria. Até arrisquei
um quentão.
Certa vez, já em 1996, a Acojar participou do concurso de mãe do ano,
que elegia em cada bairro a mãe que tivesse mais filhos. Eu ganhei com dois a
mais que as outras mulheres e assim fui eleita a mãe do bairro Santa Mônica.
A vencedora foi revelada no salão do Albino, em Ingleses, tudo é claro
regado a muita cuca e doces caseiros. Já de posse da faixa, cuidadosamente
bordada com a inscrição “Mãe do Ano” pela minha cunhada Ludy, lembrei
nostalgicamente do tempo em que fui princesa e rainha de Salto Grande. Em
determinado momento, durante a festa, a banda começou a tocar e um cantor
interpretava as melhores músicas de nossa época, inclusive Saudade de Matão.
Todas fomos para a pista enquanto a rainha era coroada no palco. Dancei muito
com o meu neto Eduardo. Ah, que tarde maravilhosa aquela!
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KÉIA ELETRIFICADA
Que os meus filhos gostavam de brincar com eletricidade, com motores,
com ferramentas, isso eu já sabia; o que não podia imaginar era o gosto da Kéia
por fios e tomadas...
Final de tarde, hora que eu gostava de varrer o terreno do pomar, também
conhecido pelos membros da família, como “lado das galinhas”, já que naquele
espaço mantínhamos as criações de animais. Como sempre, assobiava uma
música qualquer, para passar o tempo e me ocupar. De repente, um grito
desesperado corta o silêncio.
Larguei a vassoura e sai correndo. Não sabia ao certo de onde vinha,
quem era e por que gritava daquele jeito, feito uma louca. Só uma coisa estava
em minha mente...era uma de minhas filhas e precisava de mim.
Corri, subi aos pulos os degraus da escada que levam até a casa e lá
encontro dependurada e aos berros minha filha Eucléria. Estava presa,
recebendo uma descarga elétrica. Presa a uma barra de ferro, que não sei porque
cargas d´água estava lá, e a “pamonha” da empregada sem coragem para fazer
qualquer coisa.
Sem pensar, arranco-a de lá. Fomos ambas parar no chão.
O perigo de eu ficar também grudada era grande, mas não medi as
conseqüências, nem parei para raciocinar no que poderia ocorrer... puxei a Kéia
logo e com toda a força que eu tinha.
Refeitas do susto, ainda ofegantes, olhamos o esboço de engenhoca na
tomada. A Kéia iniciava um choro e, para contê-la, logo falei em um tom
divertido: “A culpa só pode ser do Márcio, metido a engenheiro desde que saiu
dos cueiros. Deve ter deixado algum fio solto”!
Mas a Kéia sempre aprontava alguma e essa não foi nem a primeira nem a
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última.
Noutra ocasião, lembro que estávamos no mês de muitas enchentes,
março. O Rio Itajaí do Sul estava começando a transbordar e as correntezas
ficando cada vez mais fortes.
Mas mãe é sempre a última a saber... estava tranqüila, preparando o
jantar, quando ouço uns cochichos, umas vozes vindas de longe que num dia
qualquer não despertariam a menor atenção. Novamente era a Kéia aprontando
uma das suas.
Ela e a Maria Helena Isidoro, vizinha, justamente nessa época nada
propícia para “esportes” aquáticos estavam deslizando pela correnteza, indo
direto para a cachoeira, e ninguém podia fazer nada. Quem seria o louco para se
aventurar naquelas águas, e o que aquelas duas malucas estavam fazendo numa
canoa? Ah! Sim... salvando um gatinho. Mas por que não usavam o remo?
Haviam perdido, só podiam contar com as mãos. “Vão para a margem, segurem
na vegetação, nas árvores!” – gritavam as pessoas que assistiam ao desespero
das duas.
E graças a Deus elas conseguiram. Mas foi por muito pouco, porque
faltavam apenas alguns metros para chegar à conhecida cachoeira “Salto do Seu
Marcolino Miguel”, uma verdadeira fonte de rugas para as mães da região.
A Maria Helena não escapou de umas boas palmadas; quanto à Kéia,
achei melhor nem contar para o Vitório, para não aborrecê-lo.
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MAIO – MÊS DAS MÃES
O inverno começava a mostrar sua violência no Alto Vale do Itajaí.
Sempre fazia muito frio nessa época do ano e o trabalho de casa se tornava
difícil. Cuidar da roupa da filharada era uma tarefa por demais exaustiva para
quem não dispunha de máquina de lavar e muito menos de secar, sacrifício que
se estendia por todo o inverno, não somente por causa do frio em si, mas pela
neblina que se formava do rio e que cobria o sol tão esperado pelos moradores
de suas margens como era nossa família até os anos 80.
Maio deveria ser apenas mais um mês no calendário. Mas não. Era e
continua sendo diferente de todos, a partir do primeiro de seus dias – o dia de
meu aniversário, coincidentemente também o dia do trabalho. Não sei se
poderiam me chamar de trabalhadora, mas sinto que represento isto mesmo – o
trabalho.
Conheci o trabalho doméstico infantil de forma bastante triste, como já
mencionei. Apesar de me libertar do regime imposto durante minha infância,
quando passei à vida adulta e me casei não consegui vencer as tradições que
fariam de mim uma esposa obediente, dona de casa zelosa pela economia
doméstica e, por vezes, “patroa” mesmo. Não posso esconder, e todos que me
conhecem sabem disso, a “patroa” Carmen é daquelas que por jamais ter
aprendido a mandar acaba fazendo até hoje quase todo o serviço da casa. De
uma forma ou de outra, o certo é que nesse difícil trabalho sempre tive grandes
compensações, porque a dedicação à educação de meus filhos resultou em frutos
que hoje exibo com o maior orgulho.
Por isso, pela dedicação ao trabalho e pela coincidente data do meu
aniversário, sempre fui muito bem lembrada por todos. Além disso, em especial
no mês de maio, mês em que se homenageia Maria, mãe de Jesus e, por extensão
as mães cá da Terra, o primeiro dia e o segundo domingo são sempre de festa, de
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Carmen e Mauri
presentes, de mensagens e muito carinho para comigo.
Lembro o quanto as crianças se empenhavam para, no dia das mães,
quando ainda na escola, ensaiar cantos, recitar versos, compor textos, ilustrar
seus trabalhos com desenhos, fazer artes manuais e presentear-me com orgulho.
O Vitório quase sempre dava uma mãozinha. Ajudava a Ezir nas
tradicionais composições sobre o dia das mães, para que ela demonstrasse aos
professores que havia realizado a lição de casa com louvor, o que lhe garantia,
além da nota máxima, o direito de exibir o texto no dia da grande homenagem às
mães. Pai e filha entravam em sintonia e produziam lindos discursos. O mérito...
ah o mérito, esse pouco importava. O que valia mesmo era a mensagem, e
embutida nela, o esforço de todos para ensinar e aprender a valorizar a mulher
mais importante do mundo, como ouvi muitas vezes.
Era muito bom pressentir os murmúrios das crianças para manter em
segredos suas falas teatrais e esconder os presentes até o dia da festa. Enquanto
o Márcio torneava colheres de pau e confeccionava rabos-quentes, o Mário subia
as escadas do sótão e lá do alto ensaiava algumas frases em tom de discurso. Eu
pensava... esse vai ser padre. Gostava de se colocar no púlpito.
Emocionaram-me as cartas e cartões vindos de Lages pelo correio.
Continham belas mensagens escritas pelo Moacyr e Mauri, cada um mostrando
sua identidade, seu estilo. O Mauri fazia questão de provocar fortes emoções.
Dizia coisas lindas que me faziam chorar. O Moacyr era mais seco e direto, mas
igualmente carinhoso. Os dois faziam tudo o que podiam de longe, uma vez que
vir à festa das mães, numa época em que a estrada ainda não era completamente
asfaltada, era por demais dispendioso. Além disso, a viagem de Lages a
Ituporanga era muito demorada e não valia a pena vir apenas para um final de
semana. Eles faziam esse percurso somente nas férias escolares.
Chegado de fato o dia das mães a festa era mesmo na escola. Lembro que
no pátio interno do Grupo Escolar Mont´Alverne, os professores reuniam de um
lado as crianças e de outro as mães. Com as bandeiras do Brasil e de Santa
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Catarina hasteadas ao centro e um palco de madeira enfeitado com folhas de
palmeira e flores de palha de milho, montado provisoriamente para as
apresentações, a diretora da escola – Irmã Maria Serena Boeing – fazia a
abertura da solenidade e em seguida uma das professoras (geralmente a Dona
Bentinha) dava o tom inicial ao canto previamente ensaiado com o grupo inteiro:
Mãe é uma só que a gente tem no mundo
Mãe é o amor mais puro e mais profundo...
Na seqüência eram apresentados todos os outros números e eu, que várias
vezes participei dessa festa com um filho pequeno nos braços e outro na barriga,
ficava sempre cansada. Mas numa dessas ocasiões, lembro perfeitamente,
mesmo cansada entrei na brincadeira, quando uma mocinha, imitando Carmen
Miranda, cantou: “Mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar...”.
O Vitório sempre estava lá. Ele também gostava de ver as crianças se
apresentarem. Mas seu maior interesse era procurar no mural da escola, entre os
trabalhos exibidos, a redação de um dos nossos filhos. E encontrava
confirmando o que já sabia. A composição da Ezir estava lá, para satisfação do
pai coruja e para engrandecimento de seu ego.
Uma vez a Evanir ensaiou um verso muito bonito. Eu a escutei várias
vezes em casa. Ela havia decorado até de trás para frente. Mas, chegado o dia da
apresentação, ficou tão nervosa que sua voz não saiu e começou a chorar.
Apesar de tudo, todos bateram palmas. Acho que o que embargava sua voz
naquele momento, dentre tantos outros motivos, era a emoção de repetir frases
que ela, mesmo querendo do fundo do coração, não teria coragem de dizer pra
mim.
Esses eram os melhores presentes que alguém poderia ganhar no dia das
mães: os filhos dedicados a me encantar, a fazer brotar um suspiro, um sorriso,
uma emoção maior. Por falar em presentes, recordo dos do Vitório. Como,
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embora tivéssemos boas condições financeiras, não havia espaço para esbanjar,
o Vitório me presenteava com móveis, eletrodomésticos e outros utensílios para
a casa, para aproveitar a ocasião e melhorar um pouco o lar. Claro, também
esses seus presentes, que davam vida nova ao local que mais gostávamos de
passar o tempo, eram igualmente bem-vindos e me envaideciam com a
lembrança no dia das mães.
Daquele tempo para cá muito mudou. Com o crescimento da família, hoje
alguns dos meus aniversários são comemorados em grande estilo. Quando
completei oitenta anos todos os meus filhos vieram para Florianópolis,
organizaram um almoço maravilhoso no Clube 12 de Agosto, com direito a
missa rezada pelo capelão da Polícia Militar Valdemar Groh e tudo. Os netos
cantaram “Como é grande o meu amor por você”, do Roberto Carlos. Meu neto
Arthur preparou um vídeo maravilhoso que foi exibido no telão do clube. Eu,
vestida num tailleur verde com chapéu preto, estava tão bem comigo mesma que
jurava ter a companhia do Vitório naquele momento feliz.
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O TOMBO DA ZETE
Certa vez, lá nos idos da década de 60, resolvi tirar umas férias bem
merecidas. Depois de tanto tempo do duro trabalho do lar, um pouco de praia
não faria mal a ninguém, principalmente na casa da Zulma, onde todo dia era dia
de festa. Em Balneário Camboriú, ainda mais porque além de ter muitas amigas
gostava de receber e fazer almoços e jantares deliciosos.
Claro que para desfrutar plenamente daquelas férias precisava de um
descanso também da criançada. Sempre fui uma mãe atenciosa, mas – ninguém
é de ferro – uma folga dos onze (a Eliete ainda estava por vir) de vez em quando
faz qualquer um revigorar. Naquele ano já longínquo, então, resolvi deixar meus
filhos com o Vitório, que tomaria conta deles enquanto a praia e a Zulma me
acolheriam.
Minha cabeça ia longe em Balneário Camboriú, quando pressenti que algo
ocorria de errado em Ituporanga. Pensei que pudesse ser alguma outra coisa e
não dei muita importância na hora. Dias depois, já de volta, fui saber o que
afinal tinha ocorrido.
Enquanto eu gozava da hospitalidade de minha irmã, os acontecimentos e
as brincadeiras das crianças em Ituporanga corriam soltos. Naquela tarde
brincavam no terreno ao lado da casa, cujo piso fora todo forrado de pedras para
manter a limpeza. Algumas das pedras eram irregulares, outras muito lisas e
algumas chegavam a ser de fato pontudas, todas rejuntadas de cimento para
impedir o crescimento de ervas daninhas.
As crianças se divertiam jogando peteca e brincando com uns pedaços de
cana-de-açúcar que haviam colhido. Os mais gulosos chupavam a cana até não
poderem mais; os mais levados apostavam quem atirava mais alto um pedaço de
pouco mais de quarenta centímetros.
Pois não é que um desses pedaços de cana foi parar no segundo andar da
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casa, no telhado, mais precisamente bem dentro da calha instalada para evitar
que a chuva sujasse as paredes na queda.
As crianças, cheias de coragem e mais repletas ainda de inexperiência,
frustradas pelo iminente fim da brincadeira, não pensaram duas vezes. Notaram
que para se chegar à calha “bastava” pular a janela do quarto do piso superior e
andar por cima das telhas até encontrar o pedaço de cana.
Para essas aventuras geralmente ninguém se habilita, mas sempre tem
alguém muito rápido e esperto que sugere um nome para a tarefa. Maurício,
Beth, Evanir, Mauri, Márcio, não, nenhum deles. Mandaram a Zete, justamente
a menor de todos, a que dali alguns anos ganharia o concurso de boneca viva. A
justificativa era simples: por ser a menor não quebraria nenhuma telha do
Vitório.
Assim é que a
Zete,
com
então
pouco mais de quatro
anos, corajosamente
tomou
para
si
o
encargo, ajustou a
roupa,
arrumou
cabelo
e
foi
o
se
esticando, esticando,
esticando, até ficar
na pontinha dos pés,
tudo para alcançar a cana que estava trancada na calha, bem na beirada do
telhado, um pouco abaixo do nível da janela.
Alguns ajudavam ali mesmo; outros continuavam lá embaixo esperando o
resgate heróico da cana. Não sei se pressentiam o perigo, mas só de imaginar a
cena penso nos olhos esbugalhados das crianças roendo as unhas com o
malabarismo da pequena.
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A Zete não fazia por menos. Habilidosamente, com uma das mãos
segurava a cabeceira da cama, que ficava em frente à janela, e com a outra
tentava apanhar a tal cana. Quem visse de longe acharia que passavam fome,
tamanho o esforço.
Ainda sem conhecer bem seus limites de criança, como a prudência já
deveria ter indicado aos mais velhos, e cansada da força que fazia, para susto de
todos a Zete se soltou e rolou rapidamente pelo curto espaço de telhado,
despencando lá embaixo.
Caiu sobre as pedras, desviando como que por milagre das mais pontudas,
mas não emitiu um único som. Talvez o susto tenha sido tão grande que a fala
simplesmente não saiu, como concluímos algum tempo depois.
O pavor das outras crianças era imenso. Não sabiam o que fazer, não
tinham forças para socorrer, não vinham idéias melhores do que simplesmente
chorar. Foi aí que a Beth, sempre ágil, chamou logo o Moacyr, que dessa vez
passava as férias em casa e se encontrava na varanda do segundo piso.
Moacyr desceu as escadas de três em três degraus, pulou com a agilidade
de sempre a janela da cozinha, apanhou a pequena que se encontrava inerte feito
um saco caído no chão e parou o primeiro carro que passava em frente à casa,
levando-a para o Hospital Bom Jesus.
Imediatamente a Zete foi atendida pelo médico. Depois de uns rápidos
exames, de mexer nas articulações e de examiná-la de ponta a ponta, o
diagnóstico: sortuda, nada sofreu além de uns pequenos arranhões na testa.
Sorte, milagre? Não sei, mas na vida a gente vê coisas sem explicação.
Pois uma semana mais tarde outra criança caiu da mesma altura que a Elizete e
não teve a mesma sorte.
Minhas férias, é claro, foram interrompidas. O Vitório telefonou pedindo
que retornasse, porque a tarefa de cuidar das crianças era demais para ele.
64
SEM QUERER QUERENDO
Era comum ouvir gritos e choramingos das crianças, ora porque se
machucavam, ora porque brigavam. Estavam sempre disputando um brinquedo,
ou medindo suas forças. Mas ouvido de mãe logo se acostuma, e com doze
filhos então se acostuma muito mais rápido.
A Beth, pequena ainda, loiríssima, com parcos cabelos, magricela, tinha
na época apenas cinco anos, mas vivia provocando seus irmãos do jeito que
podia. Dessa vez provocava o Maurício (Nego), que então contava com sete
anos. Para se livrar da impertinente menina, empurrou-a contra umas roseiras,
no jardim de casa.
Ela que havia se arranhado com os espinhos das rosas, correu logo para o
meu colo, contando-me o sucedido.
– Mãe, o Nego me empurrou e me machuquei!
– Ah, minha filha, foi por querer ou sem querer?
– Sem querer…
A Beth conta que ela lembra dessa passagem e que eu ria sem parar, mas
ela não entendia o porquê. Com certeza hoje, após ter tido a Vanessa, ela deve
ter entendido.
Não era possível tomar partido de filho algum, pois os pequenos conflitos
faziam parte do dia-a-dia, e eles surgiam tão repentinamente como eram
solucionados. Aprendi com experiências próprias que jamais devemos dar
atenção maior do que eles merecem, pois corremos o risco de transformá-los em
problemas de fato.
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NUNCA MAIOR QUE EU
As diversões dos meus tempos de juventude eram bem diferentes dos
tempos atuais. As brincadeiras quase todas eram caseiras e simples. Do bilboquê
aos jogos de bola, das bicicletas às bonecas; os brinquedos, ao invés de terem
vida própria, como hoje, ganhavam vida com a nossa imaginação. E talvez isso é
que os tornasse tão divertidos a ponto de hoje me despertarem imensas saudades
as tardes tranqüilas em que buscávamos aventuras nos pastos da região.
Numa dessas tardes de domingo decidi que aprenderia a cavalgar. Achava
elegante a palavra, via os homens e as mulheres montados em seus belos
animais e pus na cabeça a idéia, certa de que ninguém me demoveria: queria
“ca-val-gar”, silabava para mim mesma. Eu jamais havia montado um cavalo,
mas Laura, minha amiga, garantiu-me que seria muito fácil. “É como andar de
bicicleta”, dizia ela.
Buscando a coragem extra que necessitava para a “arriscadíssima” tarefa,
subi numa pequena mula que Laura escolheu para mim, do tamanho exato de
minha coragem e bem menor que o Marujo, o puro sangue que viríamos a
comprar, eu e o Vitório, quando casados. No início tudo parecia complicado, até
mesmo se equilibrar no lombo do bicho. Mas em menos de cinco minutos já
tinha a convicção de haver dominado completamente os segredos da montaria.
Empolgada com as descobertas, expliquei para a Laura que a mula andava
muito devagar, perguntando o que fazer para apimentar a aventura. “Bata nela
como esta vara”, me disse a Laura alcançando o pedaço de galho. Não tive
dúvidas: pus toda a minha força no braço e passei o açoite no animal. Para o
meu desespero, a mula provou não ser tão mula assim: disparou pelo pasto e me
derrubou no chão. Para sorte minha o bicho era dócil e não me feriu.
Mas bastou. A partir daí não queria mais saber de animais que pesassem
ou medissem mais do que eu, como repito até hoje, o que não impediu de ter
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sido atacada por uma vaca numa outra vez.
Mas está já uma outra história para um outro livro.
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OS PINTOS DA EVANIR
A Evanir ainda era muito criança quando, pela primeira vez que me
lembro, teve mais sorte que juízo. Era um dia de verão, mas muito feio –
daqueles em que o céu escurece e as nuvens carregadas se preparam para
bombardear a terra com a chuva forte. Ventava muito e a energia faltou, como
acontecia em Ituporanga sempre que os primeiros pingos molhavam os fios da
corrente elétrica. Diante da ameaça, chamei a filharada, alertei-os sobre os
perigos e distribui tarefas para evitar estragos na casa com a tempestade.
A primeira ordem foi para a Evanir e a Ezir. Ficaram incumbidas de
recolher uma ninhada de pintinhos que certamente não sobreviveria ao temporal.
Enquanto isso passei a distribuir as funções entre os outros.
Ligeiro as duas começaram a correr e a apanhar um por um. Colocavam
no colo e os envolviam com o vestido arregaçado. Tudo corria muito bem, não
fosse uma pilha de madeira – esconderijo perfeito que parte da pintaiada
escolheu para se abrigar. As duas alcançaram os outros pintos e então se
dirigiram aos que faltavam. Nesse meio tempo o temporal se aproximava
rapidamente.
Como já estava escuro, a noite entrando, não conseguiam localizar
aqueles últimos. Os outros, que já tinham terminado cada um a sua tarefa a essa
altura, gritavam “vá por ali... vem por aqui..., lá tem outro”. Não adiantava, eram
muitos e as pequenas já não enxergavam mais nada. Além disso, o medo da
trovoada, eu sabia disso, passava a tomar conta delas.
Não sei de qual das duas partiu a brilhante idéia, mas decidiram pegar
uma vela, para, segundo elas, facilitar a busca. Mas, pelo contrário, o vento
soprava e a vela apagava com freqüência, coisa que qualquer um podia
imaginar, menos as duas, talvez pelo pavor da confusão.
Contaram-me depois que a caixa de fósforos que traziam já estava no fim,
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e que por isso a Evanir pegou um papel que estava pelo quintal e aumentou a
chama, garantindo luz por mais tempo. Foi aí que, vitoriosa, localizou o último
dos desgarrados.
“Agora te pego, miserável”, ela deve ter pensado, porque logo em
seguida, com toda a rapidez que o momento exigia, se debruçou sobre os paus
de andaime empilhados e, apoiando os cotovelos sobre a madeira, deixava as
mãos livres, uma para segurar a saia do vestido que envolvia os pintos e a outra
para capturar a presa. Localizou enfim uma brecha e agarrou o danadinho. Nesse
momento a galinha, com seu instinto protetor, bicou a bunda de uma delas.
A vitória teria um sabor amargo. Ou melhor, um cheiro ruim. Antes de se
pôr de pé, e com o incentivo da bicada, a Evanir sentiu um calor intenso e um
cheiro de queimado bem perto, muito próximo mesmo, como ela contou depois
a todos.
“Ai, ai, o que é isso!?”, saltava e gritava ela. Olhou rapidamente ao redor
e viu que o pedaço de papel já não tinha mais fogo; aliás, a vela mesmo ela não
sabia mais nem onde estava.
Instintivamente sacudiu o corpo, bateu as mãos e gritou desesperada
quando percebeu que um barulhinho típico devorava seus cabelos a começar
pela franja. O fogo havia alcançado seus lindos cabelos e ameaçava queimá-los
por completo.
Por sorte, no mesmo segundo a Evanir conseguiu deter o estrago, evitando
ficar depilada como uma galinha escaldada pronta para ir para a panela. Afinal,
brinca ela até hoje, “este não era o meu destino, mas o destino dos pintos quando
virassem frango”.
No dia seguinte, trovoada passada, encontrei os pintos secos, amarelinhos,
belos e formosos, sobre as asas da sábia progenitora que no dia anterior não se
estressou com a trovoada, mas sim com a caçada das tolas meninas a ponto de
bicá-las na bunda para defender a prole.
Mais tarde, já mocinha e bem assanhada, a Evanir dizia ter entendido o
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recado: “Nunca levante a saia para prender mais que um pinto de uma só vez,
você pode se queimar”.
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GALINHA AO GRITO
Os domingos eram o dia de honra de toda a família. A mesa era mais bem
posta, os filhos estavam mais arrumados, até porque tinham vindo da missa, e o
almoço era caprichado, geralmente com galinha. Galinha com polenta, galinha
com macarrão, galinha ao molho pardo… Enfim, o prato principal era sempre a
bendita galinha, certamente porque era mais barato e porque tínhamos sempre
algumas dezenas pelo quintal.
Naquele sábado, a véspera do dia mais esperado da semana, não seria
diferente. Depois do longo almoço que marcava uma verdadeira reunião
familiar, com conversas longas à mesa em que se discutiam com igual
preocupação tanto a política nacional quanto as notas das crianças, o Vitório,
como sempre, determinou a cada filho as funções para depois do almoço. Ao
Mauri incumbiu matar a galinha para o dia seguinte.
Mal sabia o Vitório o que ocorreria daí pra diante.
Para matar as galinhas que tínhamos em casa, o método que se utilizava, o
tradicional na região e em todos os lugares que eu conheço, consistia em torcer o
pescoço da dita. Não saía sangue, era rápido, e o natural sentimento de
compaixão fazia pensarmos que também fosse indolor. Para a galinha, é claro!
Já pensando no suculento almoço, o Mauri foi até o quintal e pegou a
melhor das galinhas, acalmou-a nos braços e pegou com firmeza em seu
pescoço. A coitada, que já pressentia seu destino, arregalou os olhos e começou
a espernear.
Mas a Ezir, que até então espiava quieta, ainda com preguiça para
começar a lavar a louça e matutando alguma coisa que eu nem podia imaginar,
se antecipou: “Por que tu não cortas o pescoço com uma faca, ao invés de
torcer? Ela morre mais rápido e não sofre tanto”, disse ela, triunfante com a
sábia conclusão.
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O Mauri olhou para a Ezir que olhou de volta para o Mauri e, ali naqueles
olhares, concordaram que realmente o meio de execução do bicho mais rápido,
indolor e eficaz seria na base da degola.
Foram então à procura de uma faca que tivesse bom corte, peça que, se
tivéssemos, seria rara naquela casa. Como é claro que não encontraram faca boa,
pegaram apenas a melhor que acharam, já sem muito fio.
O Mauri deu o primeiro golpe e nada; deu o segundo e nada. No terceiro
golpe decepou o pescoço da galinha, que saiu ziguezagueando por todos os
lados, espalhando sangue no chão e nas paredes.
A Ezir, é claro, entrou em desespero… começou a berrar alto, a todo
pulmão. Ou melhor, quase não tinha tempo para respirar. Gritava feito uma
maluca, como se tivesse perdido a própria mão.
O Vitório, que descansava após o almoço, ouviu os gritos e, já apavorado,
saiu voando para o quintal. Os gritos vinham da oficina! – pensou ele, entrando
em desespero com a previsão do pior – onde tínhamos, na parte dos fundos do
terreno, ferramentas que todos usavam para fazer os seus brinquedos. O próprio
Vitório brincava de marceneiro, utilizando o torno para suas mais malucas
invenções e também para a mobília da casa.
Ele logo imaginou que os gritos eram provocados porque alguém tinha se
ferido na serra-circular, coisa que só de imaginar lhe causava o maior pavor e
que por tantas e tantas vezes havíamos demonstrado receio. Pensou certamente
que alguém havia perdido a mão na maldita máquina, porque aqueles só
poderiam ser gritos de alguém que estivesse sofrendo muito. De tão apavorado,
suas pernas quase não respondiam ao comando.
Correu e a primeira coisa com que se deparou foi um rastro de sangue,
bem vermelho, no chão. Ficou branco feito cera e não teve dúvidas, a Ezir tinha
se machucado, e feio.
Nesse meio tempo, enquanto o Vitório ainda pensava no que fazer, a
galinha sem cabeça apareceu, pulando mesmo degolada. Deu mais algumas
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rodopiadas e enfim, espirrando o resto de sangue que ainda tinha, caiu morta aos
seus pés.
O olhar fulminante do Vitório acabou com qualquer esperança de vida da
galinha e, quando se virou para a Ezir, demonstrou como havia se irritado com
aquela situação patética. A Ezir não teve outra reação; simplesmente emudeceu.
Muito brabo pelo susto que tomou, pela única vez na vida bateu na sua filha
mais velha. “O que será que deu na Ezir para provocar tamanho alvoroço por
causa de uma galinha teimosa, que mesmo sem cabeça não queria ir para a
panela naquele domingo?”, deve ter pensado ele. E berrava, e berrava muito.
Ainda possuído pela raiva, o Vitório apanhou a galinha sem pescoço que
eu já colocara na gamela e a jogou, com gamela e tudo, direto no rio que passa
atrás de casa. Lá se ia nosso almoço.
Com a paciência de sempre, eu, que presenciava tudo, ao ver o prato
principal de domingo indo rio abaixo, corri para o Moacyr que acabava de
chegar e ordenei-lhe que pegasse a canoa e fosse atrás da galinha. E nosso herói
salvou a bendita.
Finalmente o domingo, todos à mesa, sentados, servi o arroz, a polenta, as
saladas… e mais nada. O Vitório logo protestou: “Não temos carne hoje?”.
Respondi, segurando o riso: “Claro que não, tu jogaste a galinha fora”!
Segurei a respiração alguns segundos, pisquei para as crianças e caímos
todos na risada. A galinha, recuperada, ainda estava na panela, e todos menos o
Vitório sabiam disso. Também, imaginem só, depois de todo aquele carnaval de
sangue, suor e gritos, eu ainda ia perder o almoço? Nem pensar!
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ZIGUEZAGUE NA ESTRADA
Aos sessenta e quatro anos de idade me vi sozinha em minha casa de
Ituporanga com minha filha caçula Eliete, a “mais nova”, como sempre a
chamavam os parentes que se esqueciam do seu nome. Também, pudera, só da
nossa parte são doze filhos!
Por ser a mais nova talvez tenha sido a mais mimada. Dormia na minha
cama e recebeu café com leite numa mamadeira até os dez anos de idade...
Nunca se cansava de deitar no meu colo e relatar os acontecimentos do dia. E
adorava narrar todos os detalhes enquanto eu fazia cafuné e mexia em seu
cabelo.
Nosso apego realmente era grande. A única boneca que a Eliete teve, por
exemplo, foi batizada como “Carminha”, porque tinha os cabelos pretos, grossos
e levantados para cima, parecidos com o meu penteado naquele tempo.
Certa vez, falando das bagunças que fazia, a Eliete me fez lembrar de
algumas vezes em que escutava som alto na sala, justamente no meu horário de
sono, e mesmo assim eu não reclamava. Dizia, agora já adulta, que de toda a
família eu era a que ela achava mais coerente e calma, que nunca tinha
entendido de onde vinha tanta paciência. Os olhos da minha caçula ficaram
então marejados e, quando me olhou novamente, respirou fundo e disse: “Não, a
palavra certa não é paciência... é amor”.
Pois bem, nesta época, com apenas a Eliete em casa e alguns filhos já
casados e outros terminando seus estudos, a casa, apesar de grande, já não
precisava de tanto esforço para se manter organizada. Era hora, decidi, de
aproveitar o tempo e pôr em prática alguns sonhos antigos.
A Eliete estava com 18 anos de idade e já sabia dirigir, então pensei:
“Puxa, sempre quis aprender a dirigir, talvez ela possa me ajudar”. Já havia
pedido à Eucléria e a meu filho Maurício, mas eles alegavam que eu já não tinha
74
idade para isso e não me dariam a carteira de motorista. Não estavam errados,
mas mesmo assim insisti que a Eliete me ensinasse.
Lembro que fomos para a Vila Nova, um pequeno vilarejo a poucos
minutos de Ituporanga. A estrada era de barro e não havia muito tráfego, o que
facilitava o aprendizado.
Postei-me nervosa diante da direção, mas com um sorriso largo no rosto.
A possibilidade de desafiar os limites, de dominar aquele veículo quando
pouquíssimas pessoas da minha idade dirigiam, pelo menos lá em Ituporanga,
me fazia alegre. E nem precisaria dirigir mesmo. A situação em si já contentava.
Mas, é claro, eu queria aprender para valer.
A Eliete dizia: “Acelere devagar! Tire o pé do acelerador! Cuide do freio!
Mantenha a direção reta e na estrada!”. Eu me perdia com tantas informações e
tentava, tentava, mas acelerava muito e tirava o pé da embreagem depressa
demais. Resultado: o carro morria o tempo todo. Ziguezague também era
comigo, pois não enxergava a estrada por conta da forte poeira que os outros
carros que passavam faziam.
Depois de várias tentativas, depois de quase atropelar uma galinha e subir
em um barranco, a Eliete desistiu de me ensinar. Ela ficava nervosa e eu só ria,
provavelmente de nervoso.
Desde então ando a pé. Mas, cá entre nós, para quem não sabe da história
toda digo sempre que prefiro assim “porque adoro fazer exercício”!
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A CHAVE DA IGREJA
Em 1º de maio de 1954, dia do meu aniversário de trinta e três anos, o frei
Artur, vigário da paróquia, leiloou uma chave comemorativa pela inauguração
da Igreja Matriz de Ituporanga. Inúmeros interessados apareceram, todos com a
generosa intenção de contribuir para a solidez da obra que batizaria e casaria
tantos fiéis ao longo dos anos. Com o bom coração que tinha, o Vitório
arrematou-a num dos primeiros lances e me presenteou com a cobiçada chave do
portão principal, permitindo assim que eu abrisse caminho para a população que
participaria da missa. Foi uma honra inédita, algo que jamais eu poderia
imaginar: pegar uma chave que pesava quase meio quilo e, no meio da multidão
em expectativa, abrir justamente o portão principal, com mais de três metros de
altura por seis metros de largura.
Para quem vivia na década de 50, as festas maiores sempre se davam em
torno do clero e a Igreja era o monumento maior, o símbolo mais grandioso e
nobre. Os encontros sempre ocorriam após a saída da missa. Aí os casais de
namorados tinham oportunidade para passear juntos, os casados aproveitavam o
descanso do trabalho no campo e os solteiros flertavam. Todos, é claro, muito
bem vestidos e bastante alegres depois da última bênção, “Vão em paz e que o
Senhor esteja convosco”.
Em Ituporanga predominava a doutrina Católica. O povo, com fé
inabalável, era encaminhado e dirigido na religião com maestria por padres
franciscanos. Todos os domingos, assim, eram motivos de festa. As missas
ocorriam às 7h, às 8h30 e às 10h. Os fiéis eram tantos que lotavam a Igreja
Matriz, que tem praticamente o dobro do tamanho da Catedral de Florianópolis.
Os confessionários, nesse dia da entrega da chave, tinham filas imensas,
mesmo havendo quatro disponíveis. O Mauri, que lembra bem dessa história, diz
que os padres saíam dali com os ouvidos ardendo, não sei se de tantos pecados
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ou do tempo que passavam ouvindo a gente que acorria.
A missa mais pomposa era a das 10h: era vibrante, com um coro enorme
postado atrás dos fiéis, em cima, num mezanino. Em respeito a Deus ou à
doutrina nós não deveríamos olhar para trás, mas confesso que era quase
impossível, porque o coro de quatro vozes e o órgão tocado por Dona Bentinha
eram bonitos demais e faziam vibrar aquela igreja de entusiasmo.
Imaginem então a minha emoção ao abrir, pela primeira vez, as portas de
uma igreja de tamanho esplendor e grandeza! Era a maior concentração de fiéis
já vista na época, que além de tudo contava com o barulho dos foguetes que
faziam disparar os cavalos menos avisados.
Levou quatro anos para que a Igreja fosse concluída, mas considerando o
tamanho da obra considero tempo recorde. Iniciada no mesmo ano em que foi
inaugurado a ponte pênsil Vitório Sens, em 1950, engajaram-se nela os melhores
construtores e uma comunidade coesa e unida nesse objetivo.
Por falar na ponte, lembro que ela foi feita para dar passagem aos fiéis até
a gruta Adão Sens. Meu marido Vitório foi o mestre de obras. Fez o desenho da
ponte em nanquim, em papel vegetal e, de caprichoso que era, inspirou-se na
ponte Hercílio Luz, de Florianópolis.
Outra lembrança dessa época é o ano de 1955, quando o Vitório foi ao 36º
Congresso Eucarístico Internacional, no Rio de Janeiro, e no seu retorno trouxe
alguns presentes para cada filho e para mim. Lembro-me muito bem como fiquei
feliz e radiante ao ganhar uma saia toda plissada, com faixas verticais em preto e
branco. Os meus olhos deviam brilhar de alegria, porque, ao vesti-la, serviu
como uma luva; parecia feita sob medida. Muitas missas me viram com a
mesma roupa.
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AS MANIAS
Meu pai Emiliano, vendo que a cada ano eu e Vitório aumentávamos a
prole, me deu de presente uma máquina de costura Singer. Finalmente
conseguiria remendar a contento as calças curtas da filharada, que sempre
rasgavam na bunda, nos joelhos e nos cotovelos. Mas o Mauri tinha uma mania
que contribuía para aumentar meu trabalho como costureira: mordia o
balangandã no punho da manga para segurar o próprio braço com os dentes,
puindo toda a roupa. Haja conserto!
Não me lembro das manias do Titi (Moacyr), mas confesso que tinha
muita dó quando o via chorar de dor de dente. Aos doze anos já tinha uma
restauração de ouro no central superior. Também pudera, era o primeiro a achar
os bolos e doces que eu escondia para serem devorados só na hora certa!
O Mário César chupava tanto o dedo a ponto de deixá-lo fino e até cair a
unha. Mais tarde, quando largou o vício, adquiriu a mania de mexer no cabelo,
enrolando-o com os dedos, atrás da orelha direita.
A Kéia tinha uma boneca de pano e não largava por nada desse mundo.
Muitos choros começavam por causa da tal boneca, e às vezes era tanto o
berreiro que pensávamos que havia se machucado.
A Beth antes de dormir usava um paninho e fazia caretas com os lábios,
como se estivesse mamando. Mesmo já grandinha parecia sempre meu pequeno
bebezinho.
A Nice, meiga como sempre, certa vez estava chorando no quarto. O
Mauri me chamou, fui até lá e a encontrei em frente ao espelho. Quis saber a
razão e cheguei falando baixinho, devagar, para me aproximar aos poucos:
– Ô mãe, olha como sou feia, mãe!
– Filha, tu não és feia! Por que tu achas que és feia?
– Mãe, veja meu nariz, todo arrebitado, mãe!
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– Ele não é arrebitado! Só é pequeno, isto é normal, tu também és
pequena, quando cresceres ele também vai crescer e ficará maior.
– É, mas vai demorar muito, e eu queria ser bonita agora.
– O teu nariz é igual ao meu. Tu me achas feia?
– Não, a senhora é bonita.
– Então, Nice! Tu achas que vou fazer filho feio? Os meus filhos são os
mais bonitos do mundo e tu pára de chorar porque tudo em ti é bonito.
– A senhora acha?
– É claro, olhe só os teus olhos, que lindos.
– Mas eles não são muito grandes?
– E desde quando olhos grandes são feios? Nariz muito grande é que é
feio. Olhos muito pequenos também são feios. Não vê os japoneses, têm olhos
pequenos e cara larga: eu acho feio.
– É mesmo, mãe! Japoneses são feios, coitados...
– Me dá um abraço, e vamos para a cozinha.
Saímos nós duas juntas, rindo dos japoneses. Ah, cada mania que tinham!
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NICE E SUA “HEROÍNA”
Muitas situações marcaram a infância das crianças de um modo especial.
Hoje, relatando-me algumas passagens antigas, percebo como meus filhos
compreendiam, ainda que muito jovens, meu amor incondicional por eles.
Exemplo disso é a história que a Eunice – a Nice – sempre conta, uma história
que, segundo ela, é guardada “no coração com um carinho especial”.
No verão de 1977, a Nice tinha apenas treze anos. Ela e a Eliete
brincavam no jardim, próximo ao local que chamávamos de “lado das galinhas”,
enquanto um jardineiro cortava a grama. A Nice, como era de seu costume, não
perdia essas ocasiões para brincar com a grama recém-cortada. Encantava-se a
pequena com o cheiro e com a sensação de renovação que trazia.
Solícita, propôs-se a ajudar o jardineiro que, mesmo com a máquina
elétrica, penava para terminar o trabalho e, já se antevia, não recolheria
totalmente a grama do chão. E lá ia ela então com um balaio recolhendo a grama
do chão.
Como uma verdadeira jardineira a Nice carregava o balaio, rastelando a
grama com as mãos até formar pequenos montes para depois pegar tudo de uma
vez e ajudar com maior presteza.
Mas não é que enquanto aproveitava o momento para apreciar o cheiro da
grama e concluir a tarefa passa pela rua a mãe do Zé da Tute, que gritou sem
mais nem menos, sem nem bem ter certeza de que havia alguém a ouvir:
“Economia, a base da porcaria!”.
A Nice se desconcentrou por apenas um instante, mas foi o suficiente para
que um sorrateiro fio desencapado da máquina se escondesse debaixo de um
daqueles montes de grama. A pobrezinha ignorou o grito revolucionário e voltou
as mãos à tarefa, levando um tremendo choque. Pelo que contam as meninas, ela
deu um único e enorme grito e saiu voando até a cerca, a aproximadamente um
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metro e meio de altura do chão. Acometeu-a, segundo as palavras que a Nice
costuma usar, “uma paz eterna, como que me despedindo do mundo”.
Eu acredito. Quem já sofreu um choque pode ter a dimensão do que foi
aquele. Quando foi socorrida, dizia não sentir mais o corpo ou qualquer
extremidade. “Uma experiência inexplicável”. Lembra a Nice que não sentiu
medo ou dor, somente muita paz. Uma paz, no entanto, a 220 volts.
Com o grito, a Elizete sai correndo do chuveiro ainda toda ensaboada para
ver o que estava acontecendo. A Kéia também acudiu correndo, e já pensava ser
uma cobra.
Eu, mãe já a essa altura calejada, estava do outro lado da casa, no quintal,
mas saí em disparada, atravessei o pátio, desci as escadas e fui direto à tomada
que estava ao lado da churrasqueira, sem nem mesmo raciocinar direito sobre
meus atos. Graças a Deus, meu instinto materno não falhou. Puxei o fio e enfim
desliguei a máquina.
A Nice na mesma hora caiu no chão como uma gelatina, com um buracão
no meio de seu dedo indicador. Mais alguns segundos e certamente não teria
sobrevivido. Naquela noite fomos todos à Novena, agradecer a Deus por salvar a
sua vida. A Nice conta hoje que entre suas preces agradeceu especialmente por
ter uma mãe corajosa e com instinto protetor, “uma verdadeira heroína!”, como
fala sempre que me encontra.
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IRMÃS CORAGEM
Era primavera do ano de 1978, só restavam em casa eu e minhas filhas
Nice e Eliete. Eu contava já com 61 anos. A Nice já se achava “grandinha” com
seus 14 anos e a Eliete ainda tinha 11. Os outros filhos todos já tinham saído
para a universidade em Florianópolis.
O dia estava lindo. Aproveitei para deixar as janelas todas abertas para o
fresco ar de Ituporanga e passei para outro cômodo da casa na seqüência da
arrumação diária. Deus ajuda quem cedo madruga, falei para mim mesma,
depois de olhar o relógio na parede dando sete horas.
De repente começa uma barulheira na cozinha. Ouço a Eliete correr e
fechar todas as janelas. A Nice ia junto, tentando de todo modo ajudar, mas as
duas começam um verdadeiro alvoroço.
Escutando aquilo, fui rapidamente à cozinha dar conta do que ocorria;
deparei-me com as duas ofegantes a me explicar que caçavam um passarinho. O
pobre tinha entrado na cozinha e não conseguia mais sair. Queriam apenas
colocá-lo a salvo na rua, devolver-lhe a liberdade.
Rapidamente busquei com os olhos e de pronto percebi pelo vôo: que
nada de passarinho! Era mesmo um morcego, e dos grandes! Um tanto assustada
com a presença, gritei “Meninas, o que estão fazendo! Isto é um morcego”.
Nesse exato momento toda a bondade do coração ainda infantil se
evaporou e deu lugar a uma quase fobia. Gritavam e gritavam, até que correram
para debaixo da mesa, ainda gritando, e me deixaram sozinha com a vassoura
lutando contra o bicho.
Na primeira oportunidade, num instante de coragem, correram para o
quarto e lá ficaram quietinhas, observando minha ação pela brecha da porta: em
cima da mesa, cabeça da vassoura para cima, tentava a todo custo convencer o
morcego de que a cozinha não era o melhor lugar para ele.
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Enfim o animal fugiu pelas janelas já abertas e as duas correram para me
abraçar. Nesse instante a Nice me confidenciou: havia ficado com remorso por
ter me deixado sozinha com o morcego, mas, “Mãe”, disse ela, “eu sei que sou
grandinha, mas coragem para matar um morcego eu não tinha”.
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TEMPOS DE PRINCESA
Quando meu pai Emiliano de Sá e minha madrasta Clara Bunn se
estabeleceram em Salto Grande, a atual Ituporanga, já havia um grande salão de
bailes chamado Salão 7 de Setembro, de propriedade de Jacob Mathias Sens,
aquele que viria a ser meu sogro.
Não se pode dizer que era um luxo, mas para os padrões da época não
deixava nada a desejar se comparado com os das cidades maiores. Todo em
madeiras nobres, com cadeiras confortáveis revestidas dos melhores tecidos, o
Salão 7 de Setembro era o ponto de encontro dos casais de Salto Grande. Ali se
realizavam as festas dos casamentos mais ricos, as domingueiras e, é claro, o
famoso baile anual para eleição da rainha de Salto Grande, que animava a cidade
nas semanas que o antecediam e trazia gente de tudo quanto é lugar, inclusive de
Rio do Sul.
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JACOB MATHIAS SENS, CECÍLIA CLASEN E FILHOS
A rádio começava a dar as primeiras notícias praticamente um mês antes.
“Senhoras e senhores, em setembro vindouro realizar-se-á, no Salão 7 de
Setembro, de Jacob Mathias Sens, o grandioso baile anual, que elegerá a rainha
de Salto Grande”, anunciava o locutor com a voz empostada empolgando a
todos.
E logo o burburinho tomava conta da cidade. Todas as moças, não só as
candidatas, tinham os mesmos pensamentos; em todas as rodas de amigas se
ouvia o mesmo assunto: quem seriam as princesas, quem seria a rainha, que
valsa escolher em caso de ser eleita; os detalhes eram pensados com
antecedência de modo que dia após dia a ansiedade crescia progressivamente.
Até 1938 eu só assistia a tudo isso de fora, mas com os olhos e ouvidos
atentos a cada detalhe do que se passava; e sempre acompanhada de perto por
meu pai, mesmo naqueles poucos bailes de que havia participado sem qualquer
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pretensão maior. Mas nesse ano foi diferente. Meu pai chegou certa vez do
serviço e, do jeito que sempre fazia, tirou as botas, olhou firme dentro dos meus
olhos e perguntou: “Carmen, tu gostarias de participar da eleição de rainha de
Salto Grande”?
Eu sabia que eram requisitos para a eleição simpatia, beleza e um belo
vestido. Aquela proposta, vinda de meu pai, era não só um presente como um
grande elogio, porque pressupunha que eu exibia (ou poderia exibir) todos
aqueles atributos. De início, muito encabulada e completamente atônita com a
proposta – para mim até então algo inimaginável – não soube o que falar.
Segundos depois, quando passaram como um filme todas as lembranças dos
bailes anteriores pela minha mente – as recordações dos lindos vestidos das
rainhas, das românticas valsas dançadas pelas eleitas com seus pares e da alegria
das eleitas –, respondi rapidamente que sim, que aceitava participar do concurso,
e lhe dei um beijo na testa.
Lembro ainda hoje do sorriso de canto de boca de meu pai depois do meu
“sim”: puxando rapidamente um lado dos lábios, sorriu introspectivo,
praticamente só com os olhos. Parecia prever algo ou estar entabulando alguma
surpresa para mim. Certamente, como bom pai que era, estava alegre de ter uma
filha que pudesse participar de evento tão importante na sociedade em que ele e
Clara Bunn procuravam aos poucos se inserir.
A proposta, o sim, o beijo e o sorriso. Como fogo em pólvora, no instante
seguinte iniciaram-se os preparativos, não sem antes espalhar entusiasmada para
as amigas fiéis que participaria do concurso. A primeira preocupação era o
vestido. A candidata deveria chegar ao baile muito bem pronta, quesito
fundamental a ser avaliado pelos eleitores. Por isso tinha que pensar na
possibilidade de frio e de calor, na fazenda que seria utilizada, no sapato, numa
pulseira adequada, no colar e na flor que arremataria todo o conjunto.
É claro, também precisei treinar a valsa, pensar de antemão qual seria a
música escolhida, imaginar algumas palavras para falar na hora se fosse
86
solicitada a tanto. Tudo isso só aumentava a ansiedade, mas o principal e
também o mais divertido de tudo, por conta dos cochichos na cidade, era
escolher em sigilo quem seria o par da primeira valsa da rainha.
Não que eu esperasse e estivesse confiante para ser eleita, mas tudo
deveria ser previsto nos mínimos detalhes para não se correr o risco de, em
sendo a escolhida, fazer fiasqueira diante de toda a sociedade.
Meu pai se encarregou de comprar a melhor fazenda disponível na região
para o vestido. Depois, me autorizou a levá-la à costureira Marta Ludwig, que,
como se eu já fosse a rainha, colocou-me num pedestal, em frente a seu espelho,
e tomou minhas medidas. O modelo do vestido fui eu quem escolheu.
Nas semanas seguintes, principalmente no domingo após a missa,
conversava com minhas amigas sobre as expectativas, sobre os candidatos a
dançarem a valsa e sobre a música que escolheria. Claro que apenas para as mais
íntimas eu revelava os detalhes, porque um toque de surpresa seria essencial no
momento da eleição. Isso se realmente eu fosse eleita, porque ainda para mim
tudo não passava de um sonho distante.
A eleição nesse ano confirmou o nome de Elvira Sens como rainha, como
todos prevíamos, o que não tirou o brilho de sua vitória. Mas inesperadamente,
depois da Elvira, meu coração deu um salto e corei quando ouvi a voz do senhor
Braulino chamar pelo meu nome: “Carmen Neves de Sá”, ecoou pelo Salão 7 de
Setembro, “primeira princesa de Salto Grande”. Lembro bem que, ainda sem
acreditar que pudesse realmente ter sido eleita, tomei assento como primeira
princesa, como a segunda moça mais bem votada no baile. A alegria logo tomou
conta mas, como registra a fotografia tirada à época, ainda estava um tanto
quanto incrédula de que aquilo realmente estivesse acontecendo.
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CARMEN NEVES DE SÁ ELEITA PRIMEIRA PRINCESA DE SALTO GRANDE EM
1938
88
O baile prosseguiu como todos os anos, com muita dança e muita alegria.
Não pude ficar até muito tarde – os bailes começavam às nove horas – porque o
trabalho de meu pai no dia seguinte já o chamava; precisávamos voltar. Nesse
dia, lembro bem, dormi ao som das harpas dos anjos, com a sensação de haver
realizado um sonho que até pouco tempo parecia inalcançável para uma pessoa
que sofrera tanto na infância.
Já empossada princesa de Salto Grande, tornei-me um pouco mais
conhecida na cidade e certamente isso chamou a atenção do Vitório Sens, filho
do dono do Salão 7 de Setembro, o homem que viria a ser meu marido. Uma vez
ou outra, em largos espaços de tempo, acontecia de nos encontrarmos no
caminho do armazém ou na missa. Trocávamos cumprimentos simpáticos, ele
sempre um verdadeiro cavalheiro, acenando para mim com reverência. Diria
mais tarde, quando enfim entendi por que meu pai havia dado aquele sorriso
enigmático quando confirmei que participaria da eleição, que me tratava assim
porque “uma princesa merece respeito e admiração”.
Foram-se os últimos meses de 1938, passaram-se 1939 e 1940 sem que
houvesse bailes, por conta de uma reforma promovida pelo Jacob Mathias Sens
e pelos problemas decorrentes da Segunda Guerra Mundial, até que em 1941
novamente se ouvia a voz do locutor da rádio local conclamando todos a
participar do “grandioso baile do Salão 7 de Setembro”, em que seria escolhida a
rainha de Salto Grande, com suas duas princesas.
As lembranças do baile anterior continuavam firmes na memória, assim
como a vontade de participar mais uma vez. Mas eu, embora já com vinte anos,
ainda não poderia decidir nada sem o aval de meu pai, nem mesmo se me
candidataria ou não nesse ano. É claro que minha vontade era participar, não por
interesse no título ou por intenção de competir, mas porque gostava muito de
dançar, de ouvir uma boa música e de me divertir ao lado das pessoas que gosto.
Certo dia, quase tomando a iniciativa para pedir autorização a meu pai,
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chega ele em casa, tira as botas, senta-se à mesa para o jantar e diz logo de
saída: “Carmen, tu já estás sabendo do baile deste ano?”. Eu, antevendo a
próxima pergunta, disse ainda meio encabulada: “Sim, pai, deu na rádio durante
a semana, estão comentando...”. Meu pai Emiliano então indagou, inicialmente
circunspecto, mas abrindo um sorriso ao final: “E tu queres participar, não
queres”?
“Claro que sim”, respondi, e lhe dei um abraço, agradecendo novamente
pelo bom coração que tinha. Instantes depois minha mente já não trabalhava
noutra coisa: os deliciosos preparativos!
Dessa vez – decidi depois que meu pai comprou a fazenda – o vestido
seria mais longo, mais elegante, de gala. Cobriria o colo e teria cintura um
pouco alta, franzida, para alongar o corpo. Haveria babados duplos nos braços,
mas com a manga curta, e eu ostentaria um adereço especial no alto do peito, no
lado esquerdo. Usaria braceletes e um colar que reservava apenas para ocasiões
especiais. Os sapatos seriam também muito bonitos, mas o principal quesito
neles seria o conforto: da outra vez, fosse o baile até um pouco mais tarde,
voltaria para casa com enormes bolhas nos pés.
Novamente passaram-se as semanas com toda apreensão e expectativa. Às
minhas amigas mais íntimas havia confessado, sob as juras de segredo absoluto,
quem escolheria para a valsa.
Vitório Sens era o filho de Jacob Mathias Sens, o dono do Salão 7 de
Setembro, um rapaz bastante trabalhador e íntegro, que há algum tempo, desde
que fui eleita como princesa, demonstrava interesse por mim. Segundo havia
chegado aos meus ouvidos, vinha se aproximando de meu pai no seu cartório, o
que vinha ficando cada vez mais claro, já que todas as vezes em que precisava
de seus serviços de tabelião para a emissão da licença para os bailes o Vitório
puxava conversa especialmente com meu pai. Aliás, meu pai e o pai do Vitório
costumavam tomar juntos alguns tragos no bar que meu futuro sogro tinha, além
de jogarem bocha juntos, o que aproximava os laços entre as famílias.
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E foi então que no dia 1º de setembro de 1941 meu pai me conduziu pelas
escadarias do Salão 7 de Setembro e ganhei olhares curiosos de alguns, assim
como, não posso mentir, olhares de admiração de outros tantos. “Então a filha
do Emiliano concorreria novamente neste ano”?, podia-se entrever a pergunta
nos olhos de muitos.
Depois das formalidades iniciais, comandadas pelo senhor Braulino
Guimarães, o juiz de paz de Salto Grande, iniciou-se a apuração de votos.
Colhiam-se um a um da urna, depois eram lidos em alto e bom som e por fim
depositados noutra urna para conferência em caso de impugnação. Toda a
excitação do momento, a ansiedade das semanas anteriores, a expectativa, tudo
convergia para o grande momento, em que o senhor Braulino declarava
encerrada a votação e passava à apuração, somando os dados anotados em seu
caderno com o semblante sério, quase carrancudo, que o caracterizava. Aí então
levantava-se, olhava para todos, cumprimentava mais uma vez os presentes e
enfim anunciava o resultado.
Dessa vez começou de trás para frente, para tornar ainda mais tenso o
resultado às participantes. “Com 161 votos, Elvira Sens é eleita a segunda
princesa”, anunciou o senhor Braulino, concitando os presentes às palmas.
“Com 183 votos”, fazia uma longa pausa, “Wictalina Sens é a primeira
princesa”.
Nesse momento já não esperava mais o resultado, embora ainda uma
pontinha de esperança me fizesse grudar os olhos no juiz de paz. Enfim, depois
de uma longa salva de palmas às princesas, o senhor Braulino, pedindo meio
desajeitado o silêncio necessário para a leitura, deu o último resultado: “Com
271 votos... Carmen Neves de Sá é a rainha de Salto Grande”!
Levei as mãos à boca, procurando conter o grito de exclamação. Inspirei
firme para evitar que a emoção se tornasse por demais aparente e, em seguida,
ao comando do juiz, subi ao palco do Salão 7 de Setembro para receber o maior
dos três buquês de flores. Na foto consegui conter um pouco a alegria, até para
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não desagradar as princesas, mas fiz a pose com naturalidade.
CARMEN NEVES DE SÁ ELEITA RAINHA DE SALTO GRANDE COM 271
VOTOS, EM 1º DE SETEMBRO DE 1941
Um fato interessante que recordo bem é que Elvira, talvez um pouco
magoada com a perda do posto, não quis posar para as tradicionais fotos, em que
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a rainha ficava ao centro e cada uma das princesas ao seu lado. E, como não
havia quem a convencesse a posar, o fotógrafo preferiu bater a foto comigo
sozinha, sem nenhuma princesa. É por isso que na foto que tenho em casa estou
eu no centro, com a placa indicando o número de votos abaixo, e os outros dois
lugares vagos, mas igualmente com as placas das duas princesas.
Após apurar os votos e declarar o resultado, o juiz Braulino Guimarães
disse de forma solene: “A rainha tem o direito de escolher a primeira valsa”.
Como eu já havia decidido previamente, disse elegante que minha preferida era
Saudade de Matão, uma valsa que apesar da letra triste – fala de um amor
impossível – tem melodia linda e fez muito sucesso à época. A letra era a
seguinte:
Neste mundo eu choro a dor
Para uma paixão sem fim
Ninguém conhece a razão
Porque eu choro no mundo assim
Quando lá no céu surgir
Uma peregrina flor
Pois todos devem saber
Que a sorte que me tirou
Foi uma grande dor
Lá no céu
Junto a Deus
Em silêncio minha alma descansa
E na terra
Todos cantam
Eu lamento a minha
Desventura desta pobre dor
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Ninguém me diz que sofrer
Tanto assim
Esta dor que me consome
Não posso viver
Eu só quero morrer
Vou partir para bem longe daqui
Já que a sorte não quis
Me fazer feliz
A orquestra afinou os instrumentos, começou os primeiros compassos e
em seguida, mantendo a perfeita organização em tudo, o senhor Braulino
anunciou que a rainha poderia escolher seu par.
É claro que já havia decidido que o Vitório seria o escolhido, embora
houvesse, não posso esconder, alguns outros pretendentes no baile. Comecei a
descer do palco em direção ao salão e percebi no rosto do Vitório que, das duas
uma, ou minhas amigas haviam quebrado o juramento ou o Vitório já havia
percebido minhas intenções, porque parecia estar confiante demais.
Como havia outros pretendentes e ele sabia disso, resolvi caminhar
lentamente em direção ao Vitório, mas sem fitá-lo, mirando meus olhos em um
outro rapaz, que estava às suas costas, levemente à esquerda. Seguia com passos
calmos mas firmes, com a banda ainda na introdução à música e, quando me
aproximei do Vitório, resolvi seguir o passo como se fosse para aquele outro
pretendente.
Senti de longe a respiração do meu futuro marido parar e vi seu rosto
branco, sem saber como agir. Percebendo que faria uma grande bobeira, um
verdadeiro fiasco, rapidamente dei meia volta, postei-me à sua frente e o
cumprimentei, esticando o braço para dar minha mão direita a ele. Nesse exato
momento da execução da música, o cantor introduziu a letra e como que um
94
ns
suspiro coletivo pôde ser sentido pelos que conheciam nossa história e torciam
por nós. “A Carmen escolheu o certo”, devem ter pensado. Escolhi bem mesmo!
Logo que começamos os primeiros passos percebi o quão nervoso o
Vitório havia ficado. Dançava duro, rodava muito forte pelo salão, e aí percebi
que ele estava mais interessado em mim do que eu podia imaginar – e, confesso,
até mais do que eu por ele. Algum tempo depois, numa das cartas românticas
que recebi, Vitório escreveu que havia realmente ficado com um pouco de
ciúmes. Entendi plenamente. Foi um momento de bobeira.
O baile seguiu maravilhoso. Como era de costume, depois da primeira
valsa com o escolhido, a rainha dançaria com todos os que a tirassem, até que o
baile acabasse. E assim mesmo foi. Exausta, despedi-me de todos lá pela uma
hora da madrugada e voltei para casa com meu pai. O Vitório, embora moço
respeitável e correto, ficou até o final do baile, porque tinha que auxiliar seu pai
até o final.
Dessa vez, depois do baile, o Vitório tomou coragem e passou a me visitar
em casa mais freqüentemente. Chegava à tarde, nos finais de semana, como
quem não quer nada, como quem estivesse passando por ali ao acaso, via-me
através da janela cuidando de algum dos afazeres domésticos e puxava a prosa.
Noutras vezes nos encontrávamos na Tarde Dançante, a domingueira de Salto
Grande.
No começo conversávamos um pouco no portão, mas como não pegava
bem para moças direitas, meu pai sempre pedia que entrássemos e nos deixava
conversando na cozinha. Os assuntos eram os mais variados, mas o Vitório
sempre falava mais – muito mais – porque tinha bastante assunto, já que lidava
com o comércio e com muitas pessoas. Eu, que ainda não tinha a liberdade
necessária para extrapolar os limites do centro da cidade, mais ouvia que falava.
Os assuntos foram se mostrando cada vez mais interessantes, até porque o
Vitório sabia bem como contar uma história, e então praticamente em todos os
sábados conversávamos das seis da tarde até perto das nove horas.
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Nessa hora, lembro bem, meu pai Emiliano, que como todos na época
tinha o costume de dormir muito cedo por conta do trabalho, mandava o Vitório
andar, dizendo meio ríspido da sala onde lia algum livro: “Carmen, tá na hora”.
Era o sinal. Eu me levantava, agradecia ao Vitório pela conversa, abria a porta
da casa e me despedia.
A Zulma, brincalhona que só ela, sempre aprontava uma para o casal de
namorados. A sua brincadeira preferida era nos espionar. Na cozinha havia uma
janela que dava para o “quarto escuro”, o lugar onde ficavam algumas
tranqueiras da casa. Enquanto conversávamos, a Zulma espiava pela janela, e
como o Vitório sentava de costas para o quarto, só eu a via, o que às vezes me
fazia perder a atenção na história. Não sei se o Vitório percebia meus olhares
por cima de seu ombro, mas eu quase não conseguia conter o riso,
principalmente porque a Zulma surgia com a cabeça na janela e fazia caretas.
Puxava as duas orelhas, ficava vesga e mostrava a língua. Depois de se
familiarizar com o Vitório, a Zulma passou a brincar também com ele, fazendo
“uh, uh”, quase como se fosse bicho do mato. Aí não havia como conter a
risada. Tanto eu quanto o Vitório gostávamos muito das suas brincadeiras, mas
depois, quando queríamos fazer alguma confidência, quando os olhares ficavam
mais românticos, quando o assunto era nosso futuro, aí a mandávamos para a
cama.
E justamente nesses momentos é que o Vitório começou a falar em
casamento. Primeiro comentava de uma ou outra festa bonita que tinha ocorrido
no Salão 7 de Setembro. Depois aos poucos começou a falar dos filhos que
queria ter, da casa que queria construir, da felicidade que seria ter uma grande
família.
Eu não podia negar. Aquele homem elegante, trabalhador, que me tratava
com o maior respeito e tinha bom papo certamente seria um bom marido, como
de fato foi. O amor surgiu aos poucos, mas ainda hoje, apesar de sua morte há
quase quarenta anos, é intenso o que sinto por ele, não só pelo que construímos
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juntos, mas pelo companheiro fiel de tantas ocasiões que foi.
Por livre e espontânea vontade assenti quando me perguntou se podia
pedir minha mão em casamento ao meu pai. Lembro bem do dia em que fez o
pedido: o Vitório, apesar de já conhecer meu pai há algum tempo, estava
nervoso e empalideceu quando abriu a boca para falar: “Seu Emiliano, peço sua
bênção para me casar com sua filha Carmen”.
Meu pai, que, é claro, a essa altura já sabia das intenções do Vitório e
concordava – porque caso contrário o teria mandado embora de nossa casa há
tempo –, aceitou prontamente. Apertou a mão do Vitório, desejou-nos
felicidade. Para minha surpresa, o Vitório já havia se antecipado: tirou do bolso
as alianças e colocou a minha, na frente de meu pai, em meu dedo anular direito.
Ali também me deu um beijo no rosto, bastante educado; na boca, só depois de
casados.
Naquele instante percebi que ao dizer que aceitava, meu pai deu aquele
mesmo sorriso de canto de boca, sorrindo com os olhos, com que havia me
perguntado anos atrás se gostaria de participar do baile. Só ali entendi o que já
era óbvio: meu pai e o Vitório há tempos vinham conversando sobre nosso
casamento. Para mim não importava; aliás, achei é muito bom que a família
inteira já estivesse de acordo com nossa união. Talvez por isso tenha sido
abençoada por Deus.
Quatro meses depois casaríamos, o que significou um grande apuro para
fazer o enxoval. A maioria das roupas de cama, de mesa e de banho era
comprada, mas alguma coisa sempre tinha de ser feita à mão. Comprava-se o
tecido em metro e costuravam-se os detalhes, como bainhas, babados e nomes.
A dona Marta Ludwig costurou boa parte do enxoval, ajudando em muito a
família.
Como data da cerimônia o Vitório propositalmente escolheu o dia 30 de
maio de 1942. Nesse dia haveria em Ituporanga a tradicional Coroação de Nossa
Senhora, festa em que a Igreja era muito bem aprestada pelos religiosos. Quando
97
eu soube da coincidência tive mais uma vez a certeza de quão inteligente seria o
meu marido. Escolheu o dia justamente para aproveitar a decoração da Igreja e
gastar um pouco menos!
Hoje minhas amigas sempre dizem que família boa assim nunca viram na
vida, o que me deixa muito orgulhosa. Sei que no fundo a união entre os irmãos
e o respeito que têm por mim e pelo Vitório são fruto dessas sementes bem
plantadas que foram nossos primeiros passos juntos. Depois, é claro, a educação
durante os anos, o carinho e a felicidade que sempre procuramos manter entre
todos, tudo foi igualmente fundamental para manter forte a família.
E que todos assim continuem e perpetuem esse espírito em suas famílias,
com a mesma coragem e determinação que tivemos, com o mesmo
companheirismo que fez parte de nossa família desde o começo. Esse é meu
maior desejo.
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MINHA RELIGIOSIDADE
Ao concluir este livro, ao lê-lo e relê-lo, percebo uma verdade: ao longo
de minha vida sempre nutri a fé, o amor e a esperança.
A fé em Deus, porque sei que sem Sua mão protetora o fardo teria sido
pesado demais, pois foi Ele quem me guiou, me fez vencer as intempéries da
vida e suas adversidades.
Busquei sempre na religião o conforto espiritual para minhas dores. Foi na
fé em Deus que obtive respostas para as perdas tão prematuras de meu amado
esposo Vitório e de meu querido filho Mário César. Só na religião consegui
forças para vencer a solidão e levar adiante minha missão de mãe. Na religião
encontrei também o conforto nas situações difíceis de minha infância.
É muito comum nos sentirmos desencorajados e desesperados quando as
coisas não vão bem, mas Deus age em nosso benefício, mesmo nos momentos
de dor e sofrimento. Sei disso e sempre agradeço a Ele.
No amor também consegui guiar minha vida, porque sem esse sentimento
nada se constrói. Ele é a base de tudo; sem o amor não teria conseguido manter
unida a família, nem educado meus filhos com tanto zelo e dedicação.
E na esperança percebi que sempre há motivos mais do que suficientes
para recomeçarmos a cada manhã. Por isso sempre digo e repito, “nunca deixe
de acreditar, porque parte de nós é o que esperamos da vida”. Com paciência
alcançaremos sempre nossos sonhos. É só confiando em Deus, experimentando
Sua presença e amor que nos sentiremos encorajados e esperançosos para
continuar o caminho.
Muito do que vivi e do como vivi é fruto desse apego a Deus. E é por isso
que hoje, com meus oitenta e cinco anos, tenho forças para reunir meus filhos e
com a ajuda de todos eles concluir uma obra como esta, que vinha desde há
muito tempo gestando para só agora dá-la à luz.
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Espero que o resultado tenha agradado ao leitor que até aqui chegou e, se
possível, possa nele inspirar o respeito e admiração pelo passado, mas sempre
com o ânimo de perseguir o futuro com tenacidade.
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ANEXO ÚNICO
FELIZ NATAL
Discurso proferido no Natal de 2005
– E de onde vem o fio?
– Como é que gira o pinheiro e as luzes não apagam, meu Deus do céu?
– Tem motor?
É... como dava orgulho ver toda aquela gente acudir lá em casa para ver o
presépio montado pelo vô Vitório! Nós ainda éramos muito pequenos, não
tínhamos a menor idéia do que estava acontecendo, mas os olhos ficavam
esbugalhados ao ver os olhos mais esbugalhados ainda da vizinhança que
admirava a engenhoca construída pelo meu pai, um sujeito que mal tinha
completado os estudos formais.
Devia ter gente que achava que ele era mágico! Sempre perguntavam as
mesmas coisas, e, com o tempo, já sabíamos até explicar.
– E de onde vem o fio? – perguntava o vizinho da frente.
– E gira!!! – dizia assustada a vizinha.
– Como funciona? – perguntava um forasteiro de passagem pela cidade.
Mas preferíamos ficar quietinhos, esperando para ver se adivinhavam o
segredo: o motor ficava embaixo do assoalho e um intrincado sistema de
roldanas criava sete rotações diferentes. Numa tocava o disco com trinta e três
rotações, noutra o pinheiro girava, noutra o presépio se movia. E ainda sobrava
para a iluminação do pinheiro e para uma roda d'água, que imitava a presença de
vaga-lumes.
101
Que orgulho dava ser daquela família! Que orgulho dava o Natal em
Ituporanga.
E hoje estamos aqui novamente! Depois de um tempo desativada voltou
com tudo o que para mim era a fábrica dos sonhos de Natal. E que orgulho dá
lembrar de tudo o que vivemos nesta casa e tentar repetir um pouco das façanhas
de tanto tempo atrás!
Hoje todos vêm com seus carros. Tem gente que vem até dos “States” de
avião. Mas na época, um dos melhores presentes que ganhamos foi um carrinho
de correr morro, todo construído pelo nosso pai Vitório. Naquele tempo
Schumacher para nós era só o sobrenome de alguns primos, mas já nos
considerávamos hexacampeões no “grande prêmio” do “Morro do Hospital”.
O carrinho que o vô Vitório construiu era quase um caminhão: tinha
cabine para umas duas crianças – se fossem só da família, de tão magros, devia
caber uns dez! –, rolamento, roda torneada que imitava pneu de verdade, direção
de madeira, capô de lata, freio de pé, central e até cinco parafusos nas rodas.
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Era pra se sentir rico mesmo! Morando numa casa que tinha mata-junta,
essa proteção entre a junta de uma tábua e outra da casa, e tendo a piazada da
cidade a nos empurrar morro acima para poder descer uma vez no caminhão dos
filhos do Vitório, na minha cabeça de criança vivíamos mesmo como pequenos
príncipes. Era como o Titi dizia mesmo: “quando criança, parecia que éramos
ricos”. E o bom é que toda a nossa riqueza vinha da simplicidade, da alegria, da
dedicação e da grande amizade que sempre uniu nossa família.
Ninguém era rico de dinheiro. Em casa todo mundo ajudava para que
ninguém passasse dificuldades, mas a impressão que eu sempre tive é de ter tido
a melhor infância do mundo. Uma família unida, irmãos sempre juntos e aquele
Natal maravilhoso que se repete ainda hoje, mesmo depois de quase quarenta
anos da morte do pai Vitório.
Na verdade, com o passar dos tempos passei a achar que tinha aí um toque
de Deus. E na minha imaginação de criança, só poderia ser um agradecimento
divino àquela família que fazia os mais bonitos altares de Corpus Christi da
cidade. Como eu costumo dizer: “era um feito de encher os olhos”. Isso tudo
com a ajuda da tia Metcha e da tia Lotte.
103
Ah, que bons tempos aqueles! E ainda bem que hoje conseguimos repetir
um pouco das façanhas da época. Lembro ainda que a Kéia ganhou um prêmio
de melhor bandeira numa procissão, o Márcio fez inovações elétricas numa roda
d´água, cada vez o Moacyr inventava um peão mais diferente que o outro,
biblioquês e carrinhos. O Nego fez um jogo de xadrez todo no torno, e nosso pai
Vitório, apesar de asmático, sempre achava tempo e disposição para nos ajudar.
Hoje somos mais de cinqüenta filhos e netos da Carmen e do Vitório.
Muitos nem conheciam a casa de Ituporanga. Os netos mais velhos, que
cansaram de esfolar os joelhos correndo com os brinquedos trazidos pelo Papai
Noel na entrada da fábrica de balas devem estar espantados com o que vêem
hoje. Aquela casa – gigantesca para os pequenos que mal conseguiam subir
pelas escadas – hoje está novamente linda, como sempre foi.
Talvez alguns dos primos ainda hoje olhem para o morro e pensem que o
Papai Noel mora lá, numa gruta do lado da cruz, como dizíamos a eles. Mal
sabem que é no Pólo Norte! E quantos ainda hoje tentam descobrir qual dos tios
era o Papai Noel, que vinha de Saveiro e fazia mágicas e brincadeiras? O olhar
radiante dos pequenos quando viam o bom velhinho sorridente chegar também
ficou e ainda hoje fica marcado na memória de todos. Tenho a certeza que,
como eu, cada um dos irmãos ainda se emociona quando lembra do rosto de
seus pequenos quando viram pela primeira vez o tão esperado Papai Noel.
E de lembrar do rosto de cada um imagino como era para as crianças: uma
viagem interminável de todos os cantos de Santa Catarina e até do Rio de
Janeiro para uma casa cheia de mistérios, onde sempre os tios contavam
histórias mirabolantes. Tinha aquela do café camargo que muitos ainda pedem
para contar ainda hoje....
E o sótão cheio de quinquilharias que intrigava a todas as crianças?
Primeiro porque já era difícil e arriscado chegar lá: alto, escuro, quente. Depois,
porque todos diziam que os bichos, cobras, gambás e outros monstros
104
assustadores pegavam as crianças que não se comportavam.
E o porão? As capas dos discos velhos do vô Vitório davam medo. As
revistas antigas também apavoravam. As crianças apostavam para ver quem era
o mais corajoso a entrar primeiro. Passava-se por uma portinha estreita para
entrar no porão “mal assombrado”, como as crianças gostavam de chamá-lo,
onde iam “fazer aventuras”. A poeira era tanta que volta e meia um saía
espirrando e assim ficava o dia inteiro. Isso quando não levava um tombo e
incomodava o resto do Natal!
Mas, na verdade, para as crianças toda a casa era o grande palco das
brincadeiras com os presentes que na noite anterior tinha sido trazidos pelo
Papai Noel: era a pista de corrida das bicicletas ultravelozes; o campo de batalha
dos soldadinhos; a cozinha das bonecas das meninas; o campo de futebol e a
quadra de vôlei dos que tinham ganhado uma bola; enfim, a casa do vô Vitório
era a casa dos sonhos de Natal.
Para os adultos, mais uma oportunidade de se reencontrarem, colocarem
na balança a correria do ano inteiro, trocarem idéias mirabolantes sobre
inventos, experiências e novas idéias que surgiam. Para nós adultos não
adiantava. Apesar de não ter mais torno, tínhamos que dar um jeito de inventar e
reinventar as coisas, de construir e reconstruir a vida e os laços de fraternidade
que sempre nos uniam.
No fundo no fundo, acredito que a vida da vó Carmen e do vô Vitório
sintetiza a grande mensagem de Natal que gostaria de passar neste ano: sejamos
sinceros, sejamos irmãos, sejamos amigos, sejamos honestos e trabalhadores;
como o torno que esculpia a madeira na casa de Ituporanga, preparem o coração
para celebrar o nascimento daquele que é símbolo de bondade, respeito, amor e
compreensão e lapidar nossas vidas de acordo com os ensinamentos Dele.
Feliz Natal a todos!
105
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“Não sei … se a vida é curta ou longa demais para