1 2 Meus 90 anos 01/05/2011 3 4 CARMEN SÁ SENS MEMÓRIAS DE MINHA VIDA Editora Nova Letra 2006 5 Fotografia da capa: Arthur Sens e Luisa Malzoni Revisão: João Francisco Vaz Sepetiba 6 Carmen Sá Sens – 01/05/1977 ( Foto de Lígia Maria Philippi) – Ituporanga - SC “Não sei… se a vida é curta ou longa demais para nós. Mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos no coração das pessoas” (Cora Coralina) 7 Agradeço primeiramente a Deus pela saúde, pelo ânimo para escrever estas memórias. Agradecimentos também a meus filhos, irmãos, netos, sobrinhos, cunhados, primos e amigos, todos com importância ímpar em minha vida e, assim, neste livro. Agradeço em especial ao meu neto Arthur pela arte da capa, e à minha filha Kéia e ao meu neto Eduardo, que tiraram minha vontade de escrever do campo dos sonhos, concretizando-a nestas páginas. 8 APRESENTAÇÃO Para os amigos, Carmen significa força; significa coragem. Características próprias daquela que soube superar dificuldades da infância para ter uma vida simples, mas repleta de alegrias e de amor. Carmen, para os filhos, é sinônimo de carinho, daquele afeto sensível, do sorriso fácil, dos conselhos sempre presentes, estes mesmos que hoje cada um repassa aos seus próprios filhos. Mas Carmen, para quem ler este livro, não passará de um grande poema. Assim como a origem do nome Carmen significa literalmente poema, “Memórias de Minha Vida”, este livro que se passa através dos tempos e que foi maturado no auge de uma vida-exemplo, transpira poesia, inspira a alegria, leva às lágrimas e serve de companhia. Não, não pela redação, que no máximo levará como mérito o fato de não ser mais que um espelho da vida desta mulher: simples e carinhosa, sensível e perseverante. Memórias de Minha Vida, assim como a Carmen que conhecemos, é um verdadeiro poema pelo conteúdo, uma obra-prima a quem Deus permitiu dar um pouco de si a cada filho, a cada neto e a quem quer que tenha gozado de sua companhia. Cada olhar afetuoso, cada brincadeira, cada gesto desta mulherpoema está presente nos que são seus, assim como os detalhes daqueles com quem conviveu igualmente se amoldaram à sua personalidade. Nisso reside a poesia de sua vida e aqui o livro, embora escrito em prosa, deve ser lido como verso: cânticos de uma bela vida – muito bem vivida – ficarão agora registrados para todo o sempre. Eduardo Sens dos Santos 9 AS FAMÍLIAS Antônio Emiliano Sá e Lucinda Neves (1º casamento) Dulce Aldo Carmen Doraci Lucinda Antônio Emiliano Sá e Clara Bunn (2º casamento) Alcione Zulma Amilton Dilma Acelon Jacob Mathias Sens e Cecília Clasen Levino Vitório Rogário (Roque) Isidório (Ize) Adelaide Wictalina (Metcha) Oswaldo (Dinho) Hildeberto (Detcha) Ubaldino Nilvo (Ite) Nelson (Nelo) Gemma Lieselote (Lote) Carmen Sá Sens e Vitório Sens Moacyr (Titi) Mauri Ezir (Maninha) Evanir Márcio (Piláh) Mário Eucléria (Kéia) Maurício (Nego) Elizabeth (Beth) Elizete (Zete) Eunice (Nice) Eliete 10 SUMÁRIO COMEÇANDO DO COMEÇO ............................................................................................... 12 A PRIMEIRA VIAGEM .......................................................................................................... 22 A CABRITA DO MAURÍCIO ................................................................................................. 26 O CHAPÉU .............................................................................................................................. 28 O ENCONTRO COM LUCINDA ........................................................................................... 30 MEUS VESTIDOS ................................................................................................................... 34 QUANDO QUASE ME AFOGUEI ......................................................................................... 35 PROCURA-SE UMA VELHA ................................................................................................ 38 RUBENS, O NAMORADO DE BOM RETIRO ..................................................................... 41 PROSA E VERSO NA FESTA DA CEBOLA ........................................................................ 45 PROJETO DO VOTO DA MULHER ..................................................................................... 46 O PILÁH ERA O MAIS MIJÃO ............................................................................................. 48 CINQÜENTA HINOS E DUAS CERVEJAS ......................................................................... 51 MÃE DO ANO ......................................................................................................................... 54 KÉIA ELETRIFICADA ........................................................................................................... 56 MAIO – MÊS DAS MÃES ...................................................................................................... 58 O TOMBO DA ZETE .............................................................................................................. 62 SEM QUERER QUERENDO .................................................................................................. 65 NUNCA MAIOR QUE EU ...................................................................................................... 66 OS PINTOS DA EVANIR ....................................................................................................... 68 GALINHA AO GRITO ............................................................................................................ 71 ZIGUEZAGUE NA ESTRADA .............................................................................................. 74 A CHAVE DA IGREJA ........................................................................................................... 76 AS MANIAS ............................................................................................................................ 78 NICE E SUA “HEROÍNA” ...................................................................................................... 80 IRMÃS CORAGEM ................................................................................................................ 82 TEMPOS DE PRINCESA ........................................................................................................ 84 MINHA RELIGIOSIDADE ..................................................................................................... 99 ANEXO ÚNICO .................................................................................................................... 101 ERRO! NENHUMA ENTRADA DE ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES FOI ENCONTRADA. 11 COMEÇANDO DO COMEÇO Ninguém da família poderá ofender-se ao ler este livro, com as frases desagradáveis que talvez eu tenha formulado, com meu jeito (ou a falta dele) ao falar do passado e de meus queridos irmãos. Mas aqui eu relato a minha história, minha história verdadeira, sem subterfúgios, que tem apenas o objetivo de levar ao conhecimento dos meus filhos um passado que reputo muito bonito. Pois bem, comecemos do começo! Na localidade de Armazém, cidade de Tubarão, em Santa Catarina, Antônio Emiliano de Sá e Lucinda Neves de Sá viviam com seus quatro filhos: Dulce, Aldo, Carmen e Doracy, que faleceu com apenas seis meses de idade. Bastante debilitada e inconformada pela morte da filha, Lucinda engravidou novamente, dando à luz mais uma linda e saudável menina. Mas quis o destino que a mãe dessas crianças não sobrevivesse ao parto e falecesse, sem ter podido nem ao menos abraçar sua pequena Lucinda, cujo nome lhe deram em sua homenagem. Emiliano, desesperado pela dor da perda e confuso com a situação em que a morte da esposa o havia colocado, entregou Carmen para sua tia Cecília Neves, a recém-nascida para a irmã Joana Morega de Sá, ou tia Janoca, como era conhecida por todos, e o menino Aldo para o tio Aristides Neves. Dulce faleceria em 10 de fevereiro de 1930, em decorrência de tifo preto. Assim é que Antônio Emiliano de Sá, jovem, bem apessoado e professor municipal de Armazém, após a morte prematura da esposa, resolveu morar em Bom Retiro, onde iniciou na profissão de coletor municipal, que corresponde na atualidade ao fiscal de tributos. A profissão gerava bastante respeito da população, e assim a família foi se estabelecendo. Algum tempo depois, ainda insatisfeito com o rumo de sua vida, Antônio 12 Emiliano mudou-se para Salto Grande, atual Ituporanga, e encontrou vago o cargo de Escrivão e Tabelião. Salto Grande era um pequeno vilarejo doado pelo governo estadual em troca de serviços prestados aos empreiteiros da estrada. Foi-se formando às margens do rio Itajaí do Sul, colonizado principalmente por agricultores que, décadas depois, dominariam o cultivo da cebola, hoje principal produto da cidade. Desbravaram assim as densas florestas de araucárias e imbuias da Mata Atlântica e enfrentaram com grande coragem as tribos indígenas que reivindicavam seu espaço. Naturalmente, sem a presença dos atuais meios de comunicação, o comum era que o tabelião empreendesse inúmeras viagens à Capital e outras cidades maiores. Foi numa das suas viagens, precisamente em São José, que ele conheceu a jovem Clara Bunn, por quem se apaixonou e para quem logo demonstrou sua vontade de constituir nova família. Começaram então os namoros e a relação foi se estreitando até que, por fim, deu-se o casamento. Na verdade, Clara Bunn passou a simplesmente morar com meu pai, como se marido e mulher fossem. Não puderam se casar, porque ela já era casada com um médico, pelo qual fora enganada, pois ele já era casado. O sujeito certamente falsificou os documentos e se declarou solteiro quando casou com Clara no civil e no religioso. Só algum tempo depois é que foi-se descobrir que já tinha um casamento anterior, que segundo a lei da época não podia ser desfeito, porque não existia divórcio. A alternativa seria a anulação de casamento, mas exigia uma ação judicial praticamente desconhecida da família, o que inviabilizou totalmente a solução. Somente muitos anos depois o Sr. Antônio Pereira, velho amigo da família, leu no jornal a nota de falecimento do primeiro marido de Clara, o que permitiu o casamento com toda a formalidade exigida. Clara casou-se assim com meu pai, mas logo veio a morrer, quando finalmente recebeu a graça da comunhão. Clara era muito religiosa, freqüentava as missas, mas não podia 13 comungar, a religião católica não permitia. Após passarem a morar juntos, Emiliano procurou reunir os filhos que havia espalhado na casa dos seus tios e irmã, com exceção da Lucinda, que permaneceu com Tia Janoca, professora primária em Armazém. Com algum esforço, recompensado pela presença daqueles a quem mais amava, Emiliano enfim reencontrou suas crianças, de modo que a vida passou a correr tranqüila para aquele casal e seus quatro filhos e enteados. Mas como era natural Clara Bunn também desejava ter seus próprios filhos. Talvez se sentisse frustrada por não ter ainda uma descendência direta, algo que prezava sobremaneira. Ter filhos significava não só a seqüência de uma família, mas o respeito pelos vizinhos e a mostra de que era realmente uma mulher dedicada. Foi aí que a tranqüilidade e a paz dos enteados terminaram. É que, e digo isso com a maior tristeza no coração, com aquele sentimento de quem prefere esconder a verdade, mas se rende a ela para evitar que sufoque, foi neste preciso momento de minhas lembranças que começaram a maldade e as humilhações que minha madrasta nos impôs. Ainda com a intenção de não me sufocar, de trazer a verdade à tona, quero poder acreditar que ela ao casar-se com meu pai não tinha sequer a vaga idéia da responsabilidade que a esperava, ou seja, a educação de três filhos que biologicamente não eram seus. Mas também não posso crer que meu pai não a tivesse alertado da nossa existência e das conseqüências que a união traria. Tudo começou com o nascimento de seu primeiro filho, Alcione, quando Clara mudou completamente a maneira de nos tratar. Passou a adotar dois pesos e duas medidas em várias situações. O que era para os seus era diferente para nós. Desde um pedaço de cuca, que não era repartido entre todos, mas apenas para os “seus”, ao passo que nós ganhávamos polenta fria. Lembro-me bem que às vezes, com os vestidos surrados, sentadinhas no chão, comíamos um pedaço 14 de polenta fria que tinha sobrado. A cuca “da boa”, como costumávamos chamar aquela que vinha de Rio do Sul, levada pela padaria Brehsan, essa era guardada no guarda-roupa do casal, às sete chaves, para que não alcançássemos. A mesma coisa acontecia na hora da distribuição no lanche da tarde, quando Clara chamava seus filhos e os entregava pedaços da deliciosa cuca; nós nos contentávamos em arregalar os olhos e a salivar como pequenos bichinhos, porque não ganhávamos nem um pedaço. Acelon, um dos cinco filhos naturais de Clara, perguntava: e o Aldo, a Dulce e a Carmen? A resposta era sempre a mesma: “eles não precisam de cuca”! Em algumas ocasiões, e longe dos olhos da mãe, Acelon repartia o seu pedaço. Era um irmão de ouro e, como todos os outros, gostava de nós e nós dele. Disso jamais duvidei, por mais que ela tivesse tentado dividir nossos corações, impedir nossa amizade e nosso carinho de irmãos. Por isso e por tantas outras até hoje tenho o maior respeito e amizade por todos eles, e procuro trazer sempre na lembrança as melhores cenas dos melhores momentos de nossa triste infância. Tudo isso era tão mesquinho, e mais mesquinho ainda era o fato de essa atitude não ser justificada, visto que meu pai era um homem de posses, de modo que não seria preciso economizar. O que eu percebia, e quisera Deus fosse uma visão míope da situação, é que Clara deliberadamente nos rejeitava por não sermos seus filhos. Meu pai, é claro, não sabia o que acontecia. Assim, na base da discriminação, foi-se levando minha infância, até que completei idade escolar e passei a freqüentar a Escola Isolada de Salto Grande, cujo professor era o senhor Lindolfo Rodrigues. Era enfim a chance de aprender novidades, de fazer novas amizades e, mais importante do que tudo isso, de fugir dos serviços domésticos a que Clara me obrigava. Sim, porque além de nos tratar de forma totalmente díspar, Clara fazia de mim e de seus outros enteados praticamente seus serviçais. Limpávamos, 15 varríamos, lavávamos e até capinávamos a horta da casa sob as ameaças de violentas surras. E não era o serviço doméstico que se destinava comumente às crianças, até como forma de nelas inculcar os valores do trabalho e da organização; era um trabalho exigente demais para nossa condição física, que nos cansava além do que nossos pequenos corpos podiam suportar, e que ao invés de somar valores dividia nossas forças e subtraía as possibilidades de um crescimento sadio. Por isso é que para freqüentar as aulas eu tinha que sair às escondidas, como uma fugitiva, de seu próprio lar; do contrário os trabalhos me prenderiam à casa de meu pai e a escola acabaria em segundo plano. Minha estratégia tinha que mudar a cada manhã, mas a principal era atravessar a cerca de madeira que separava nossa casa e a do vizinho, e correr sorrateiramente, com o coração disparado com medo de ser apanhada em flagrante por um crime (crime?) que não era meu. Ao chegar na escola, o pior momento era aquele em que o professor pedia que lhe apresentássemos as tarefas do dia anterior. Todas as crianças orgulhosas mostravam suas lousas e o professor, com a postura sóbria que o marcava, examinava detidamente cada uma. Indicava um erro numa, elogiava outra, recomendava um ajuste aqui e acolá. À medida que ele se aproximava meu medo crescia: é claro, não havia cumprido a tarefa. E não por má vontade e preguiça, mas por pura falta de tempo e, vez por outra, pela expressa proibição imposta por Clara de dedicar-me pelo tempo que fosse a outra atividade que não os trabalhos domésticos. Sentiame tão humilhada e injustamente rebaixada com as punições do professor e com as chacotas dos meus colegas de classe, que simplesmente baixava a cabeça e colocava-me a chorar. Como dizer ao professor Lindolfo que minha própria madrasta não dava permissão para fazer as tarefas? Com que palavras enunciar tão grave acusação? 16 Em quem ele acreditaria, numa pirralha de sete anos ou nela, senhora distinta, esposa do escrivão municipal? Não vendo saída eu me calava e recebia os terríveis castigos daquela já distante época, castigos que também não eram meus. Porém, nem as palmatórias nem as orações forçadas da escola, nada se comparava ao que ainda estava por vir: ao chegar em casa novamente era castigada fisicamente (para dizer o mínimo) por tê-la desobedecido ao fugir para tentar, apesar de todas as humilhações, sair daquela vida pela estrada do estudo. Ainda assim levei meu período escolar até o terceiro ano, quando já sem forças para agüentar mais tive de finalmente abandonar os estudos na metade do ano para trabalhar mais do que já trabalhava em casa. Tornava-me, assim, uma faxineira da minha madrasta, com a “agravante” de ser submetida a surras quando algo parecia errado ao seu olhar e de não poder me demitir. Meu pai, homem que se dedicava demais ao trabalho, não conseguia acompanhar os dramas familiares e acabava não se inteirando das maldades a que suas filhas eram submetidas todos os dias. E como viajava muito para Florianópolis e Bom Retiro, em viagens que levavam semanas ou meses, Clara se aproveitava da situação e deixava seus instintos extravasarem. Recordo que numa dessas ausências Clara fez com que eu e Aldo pegássemos cada um numa das pernas de Dulce e a puxássemos para fora da casa, descendo os cinco degraus de escada que separavam a casa do terreno, de modo a levá-la para um macabro passeio pela terra, que incluía incursões por trechos pedregosos. Uma verdadeira sessão de tortura contra uma pessoa indefesa. Ela, como que apreciando aquela situação deplorável, permanecia sentada numa cadeira com um chicote ou uma varinha de marmelo na mão, assistindo e gritando: “mais, mais, muito mais…” 17 Hoje fico a me perguntar que mente doentia era aquela, que prazer poderia existir numa cena tão mórbida? Mas ao lembrar do brilho de seu olhar, do sorriso de triunfo que exalava, vejo que era tudo pura maldade, uma espécie de vingança por ter o encargo de criar como seus os filhos de outra mulher. Hoje penso que a gravidade da situação não era uma só, mas três. A maldade ao atingir não só Dulce, pela dor física, mas também a mim e ao Aldo pelo mal que sabíamos estar causando a nossa irmã, mesmo sendo obrigados a isso, porque, se não o fizéssemos, apanharíamos. Além disso, ela também nos proibia de contar para o pai, sob ameaças de que as próximas sessões seriam piores ainda. As lembranças são fortes demais e remexê-las freqüentemente me leva às lágrimas. Colocá-las no papel, assim, é uma espécie de terapia, que me permite encará-las de outro ângulo, tornando-as, quem sabe, mais distantes da realidade. O papel para mim se torna um desafogo, porque tira de mim o peso que as lembranças jogam em meus ombros e transfere para suas linhas aquilo que eu tento esquecer. Mas, pouco adianta; como sabe qualquer um que tenha passado por uma situação penosa como essa, a dor, a sensação de fragilidade e de impotência cravam seus sentimentos no fundo do peito. Mas meu coração não era de galinha. Nas minhas veias corre sangue quente e forte. Apesar de ainda criança, um dia me aproximei de meu pai, baixei os olhos, fitei meus chinelos, pensei mais uma vez nos prós e contras, e, quando estava quase desistindo, busquei nas lembranças dos dias anteriores minhas últimas forças e contei tudo a ele. Nesse dia lembro que o casal brigou feio, e meu pai, que estava com um livro de tabelião nas mãos, atirou-o nela, atingindoa nas costas. O castigo foi insignificante diante de tudo que ela nos obrigava a passar e a fazer contra nossas vontades, mas valeu para marcar na minha vida esse ponto de coragem e firmeza após tanto sacrifício. Aquele átimo de força teria ainda uma conseqüência. Quando já era mocinha meu pai, munido da intenção de me tirar daquele ambiente, decidiu me 18 matricular no quarto ano do colégio Sagrada Família, em Blumenau; já não sabia ele o que fazer para livrar-me das perseguições de Clara, e um internato foi mesmo a melhor solução. Nas visitas que ela fazia ao Colégio, Clara aproveitava para recomendar às freiras que me ensinassem apenas a cozinhar, lavar, passar, tricotar e costurar, e que deixassem de lado as outras disciplinas, pois não me seriam úteis; segundo sua equivocada visão de mundo, meu desenvolvimento intelectual não era importante para o futuro. Meu pai, no entanto, dava outras orientações: deveriam me tratar da mesma forma que a todas as outras meninas do internato, ensinando tudo o que fosse de meu interesse, mas sem qualquer distinção; deveriam, enfim, me formar uma mulher cidadã. Logo me interessei no aprendizado de tipografia e comecei a me sair muito bem nos estudos. As notas variavam de muito bom a excelente, de modo que me sentia cada vez mais estimulada a prosseguir. Noutras matérias não ia tão bem. Um exemplo foi o corte e costura, que talvez por deficiência nos estudos anteriores de matemática e artes, prejudicados pelos trabalhos domésticos, passei a encontrar muita dificuldade. Apesar de tudo, aquele foi um ano bom, em que aprendi muito no pouco tempo em que fiquei lá. Enquanto isso a vida de meus irmãos continuava transcorrendo com seus altos e baixos, na pequena Salto Grande. Meu irmão Aldo, por quem meu pai nutria uma vaga esperança de transformá-lo num grande homem, desejando e podendo dar condições de estudo em bons colégios, não correspondia às expectativas. Aldo, naquela época estudava no Colégio dos Padres, mas não se adaptava à disciplina rígida imposta na instituição. Suplicava através de cartas que meu pai o retirasse de lá, dizendo que não gostava das regras, das lições, dos colegas e do ambiente. O comportamento, bastante incomum, magoava meu pai e o fazia chorar. Pedindo 19 alento, se abraçava a mim como se eu, ainda uma criança, pudesse consolar aquele homem que era admirado por todos na cidade. Hoje penso que na verdade meu pai jamais se consolou com a falta de ambição do único filho homem que teve com a primeira esposa, de quem, desconfio eu, jamais se esqueceu e com quem considerava haver vivido anos de muito amor, muito companheirismo e muita luta. Aldo então foi para o Exército. Tinha ficado um belo rapagão, alto, forte, cabelos pretos e sempre muito requisitado pelos amigos e admirado pelas garotas. Mas continuava aprontando, desrespeitando as normas e as autoridades. Não como um delinqüente, isso não, mas apenas com a intenção de se divertir. O que ele buscava na verdade, sem medir as conseqüências, era a diversão, sem se importar com mais nada. De tanto aprontar, certa vez mandou uma carta para meu pai com um desenho de uma cadeia. Para susto dele, adivinhem quem estava desenhado dentro da cadeia? Outra que ele aprontou foi a do cacho de banana. Clara costumava pendurar um cacho cheio de bananas verdes para amadurecer bem no alto do forro, onde ninguém pudesse alcançar. Sempre querendo aprontar alguma brincadeira, alguns dias depois Aldo foi espiar o estado do cacho e, vendo as bananas já maduras, apanhou algumas para comer. E foi assim naquele e nos dias seguintes, até que as bananas acabaram, ficando só a penca. Quando Clara descobriu, Aldo não poderia negar, porque era o único que alcançaria lá. Não negou e tampouco esperou a severa punição. Colocou numa valise algumas mudas de roupa e foi pedir abrigo na casa de nosso tio Aristides Neves que morava em Bom Retiro. Quase esquecia! Nesse meio tempo, depois do ano de internato em Blumenau, retornei a Salto grande, para minha vidinha de sempre. Fui então readmitida ao cargo de “empregada doméstica” na casa de meu pai, pois era o que me cabia na opinião de Clara. Voltei a lavar, passar, cozinhar e a fazer todo 20 o serviço da casa para ela, que agora se desculpava alegando não ter tempo, já que passara a trabalhar com meu pai no Cartório. Não retornei mais aos estudos. O que sei, o pouco que sei, foram desses quatro anos de escola e internato, quatro anos mal aproveitados. Mas a vida ensina muito, e com ela aprendi o resto que me foi suficiente para sobreviver e criar meus filhos. É por isso que sempre digo que ninguém cruza nosso caminho por acaso, e nós não entramos na vida de alguém sem nenhuma razão; há muito o que dar e o que receber; há muito o que aprender, com experiências boas ou negativas. Tenho certeza de que, se mesmo a pior tempestade traz o viço às plantas e devolve a vida à floresta, minhas dificuldades iniciais me fizeram crescer forte para enfrentar todas as batalhas que a vida me traria. Foi isso o que aconteceu comigo e é isso que eu quero contar agora. 21 A PRIMEIRA VIAGEM Minha primeira grande viagem aconteceu quando eu contava com apenas dois anos e meio de idade. Logo após a morte de minha mãe, meu grande pai, Emiliano Sá, pediu à cunhada Cecília que ficasse comigo por algum tempo, enquanto reestruturava a família depois da perda. Minhas memórias dessa época são poucas e se devem mais às conversas com a família, no interesse de saber da minha própria infância, do que de lembranças pessoais. Mas vagamente recordo ter ficado durante aproximadamente quatro anos morando com a tia Cecília. Nesse meio tempo, meu pai casou novamente, retornando para me levar junto na nova família. Chegou dizendo que por nada nesse mundo queria me deixar com a tia Cecília, não por desgostar dela, mas por querer muito bem a mim. Eu, a essa altura, já não queria ir com ele – coisa de criança! – mas acabei cedendo diante da promessa de uma boneca. Naquele tempo, era comum se falar em “dar” a criança para os parentes, para que cuidassem melhor. E foi essa a palavra que a tia Cecília usou quando meu pai voltou para me buscar: – Emiliano, dá a Carminha para mim? Eu gostaria muito de ter ficado com a tia Cecília; na verdade era tudo o que eu queria na época, já que estava acostumada a ela e à família. Mas meu pai disse um definitivo não, daqueles que continham por si só imposição suficientemente forte, pois vinha do homem da família. A tia Cecília, mesmo assim, argumentou dizendo que como ele já tinha dado minha irmã Lucinda para a tia Janoca, poderia também me deixar sob seus cuidados. – A Carmen eu quero – foram as palavras de meu pai, Emiliano. A partir daí, para voltarmos à casa de meu pai, pegamos a estrada saindo de Armazém, com destino a Bom Retiro, no alto da Serra. 22 Na época, é possível imaginar a dificuldade da viagem. O que hoje leva pouco mais de quatro horas num carro qualquer, levou mais de três dias no lombo de cavalos e burros. Depois de longas horas de chão poeirento e às vezes coberto de lama, de lentas paradas para alimentar os animais, finalmente chegávamos nos hotéis na estrada, torcendo para conseguir alcançá-los antes de a noite chegar. Para nós, crianças, a viagem era penosa. Além das difíceis condições do tempo, do pouco tempo para brincadeiras e da parca alimentação, eu e minha irmã Dulce ficávamos no que se chamava cargueiro, uma espécie de alforje feito de vime que cruzava as costas do animal de modo a equilibrar uma de cada lado. Ao subir a serra a paisagem começava a mudar. Do calor de Armazém da manhã no começo da viagem, já à tardezinha começávamos a sentir o frio que vinha dos vales. O vai-e-vem dos animais, somado à consciência de meu pai sobre nossa hidratação, favorecia o funcionamento de todas as funções do corpo. Em especial, do aparelho urinário. E foi o que aconteceu. Lembro bem que levei uma grande bronca de meu pai, quando ele percebeu que a farinha que vinha dentro do cargueiro comigo já 23 não poderia mais ser usada para alimentar o comboio. É que, apesar de as paradas serem poucas, a água era bem servida, e eu, que já não estava entendendo muito bem o porquê da viagem, também não sabia pedir para ir ao banheiro, ou o que quer que o substituísse no meio da empoeirada estrada de chão batido. O resultado foi um pirão um tanto diferente, com o meu xixi bem misturado naquela farinha de mandioca. Mas criança é assim mesmo, faz onde der vontade! Ainda bem que perceberam antes do jantar! Para manter a ordem durante o percurso, meu pai ralhava o tempo todo comigo e com minha irmã. Em certa parada, no meio de minhas brincadeiras, quase caí num desses poços artesianos em que parávamos para abastecer os animais e os alforjes. Acredito que, pela profundidade, se eu escorregasse na beirada de limo talvez não sobrevivesse à queda. Mas como eu sempre digo, meu destino já estava traçado para que eu tivesse os doze filhos que tive. Aqui cabe um pequeno comentário sobre o meu pai, para alguns o Vô Miliano, para outros tantos o bisavô que não chegaram a conhecer. Homem de caráter irrepreensível, foi professor em Armazém, coletor – uma espécie de cobrador de impostos – em Bom Retiro e tabelião em Salto Grande, cidade que mais tarde receberia o nome de Ituporanga. Essa última profissão rendeu-lhe alguma fama e uma vida digna, com frutos suficientes para sustentar e educar a grande família que tinha. Mas, voltemos à viagem. Do pouco tempo que ficamos em Bom Retiro não tenho maiores lembranças, mesmo porque logo passamos a viver em Salto Grande, onde eu criaria mais tarde meus filhos e passaria boa parte de minha vida. Nossa primeira casa lá foi a tal da Casa Velha. Feita de madeira, tinha bom tamanho, onde se distribuíam três quartos, escritório e cozinha, mas o pouco cuidado que recebia fazia meu pai se ver obrigado a aturar comentários dos vizinhos contrapondo a sua nobre profissão de tabelião com a pobre casa em que morava com a família. Para ele, que nunca foi de luxo, não havia qualquer 24 problema, e deixar os outros falar pelas costas era mesmo a melhor solução. Na Salto Grande desse tempo o comércio se restringia a alguns botecos e galpões para estocagem da produção agrícola, com alguns moinhos – as chamadas tafonas – lá levávamos a produção caseira de fubá, milho ou de mandioca para transformar em farinha. No entanto, a maioria dos negócios era fechada na localidade de Freguesia de Baixo, em que havia um permanente mercado. Pagava-se o dono das tafonas no regime da meia, ou seja, quem levava o milho para moer deixava metade ou a terça parte do produto com o tafoneiro, que sempre saía lucrando. Daí a brincadeira que sempre fazia a Adelaide Sens quando dizia que a tal da meia não servia nem para os pés, porque o único que ganhava bem, realmente, era o dono do moinho. Aliás, usava-se a farinha de mandioca como alimento em muitas ocasiões, e lembro-me bem que meus filhos mais velhos cansaram de comer o pirão que com ela se fazia. Na verdade, o tal pirão fez crescer fortes e saudáveis todos os meus filhos, que só não ficaram maiores porque a linhagem não permitia mesmo. 25 A CABRITA DO MAURÍCIO A essa altura da minha vida muitas histórias vêm à mente. São detalhes singelos do dia-a-dia, lembranças que engatam em outras lembranças e trazem de reboque mais umas tantas; enfim, acho que ainda hoje ninguém descobriu bem ao certo como nos chegam as lembranças, mas eu posso dizer que descobri a felicidade de tê-las. Uma dessas recordações é de um “acontecido” com meu filho mais novo, o Maurício Luis Sens. Maurício, sempre muito benquisto por seus amigos, resolveu convidá-los certa vez para passear de canoa pelo rio Itajaí do Sul, que cruza Ituporanga, e, em Rio do Sul, se encontra com o Itajaí do Oeste para formar o Itajaí-Açu. Dentre eles, pelo que lembro, estava também o Bira de Sá, meu sobrinho, além de pelo menos outros cinco. Desciam o rio naquele lindo dia de sol com as bagunças que sempre os meninos inventam nessas horas, até que de repente a balbúrdia foi interrompida por um grito estranho vindo da barranca: “mééééé”, ouviram todos eles sem conseguir ao certo identificar que “ser” emitia aquele grunhido. O grito parecia de algum animal de sítio, um bode, uma cabra, mas ainda não tinham identificado ao certo. Procuraram por algum tempo o local de onde partia o berro até que encontraram uma pobre cabritinha desesperada. O coração de qualquer um amolece nesta hora: o pobre bichinho havia se perdido e agora já estava no leito do rio sem saber como nem para onde voltar. Como coração de menino amolece mais rápido ainda, logo trataram de colocá-la para dentro da canoa e trazer para casa. Já em Ituporanga, com a cabrita no colo, muito satisfeitos da boa ação que haviam feito, chegou a hora da verdade: “Para onde vamos levá-la?” – alguém perguntou ingenuamente, causando aquele típico olhar de perplexidade por todos. 26 A verdade é que não tinham a menor idéia do que fazer com o animalzinho, até que um deles se deparou com a brilhante idéia: “Maurício, deixa na tua mãe!” Outro, um pouco mais astuto, pensou alto: “E que tal vendêla?”. Uniram uma idéia à outra e pronto: lá veio a cabritinha à minha casa, para que eu a comprasse. Como se já não bastassem todas aquelas crianças e as molecagens que sempre me aprontavam – molecagens que, claro, eu adorava – traziam agora, assim como se fosse um presente, uma cabrita desgarrada para me vender. Tudo bem que lá em casa já criávamos porcos, galinhas e patos, como era comum na região. Mas uma cabrita que não tinha dono e ainda por cima não parava de berrar, essa era novidade! No final das contas, depois de muito pedirem, comprei por uma quantia de nada a tal cabritinha, e eles, agora já não sei se felizes pela nova boa ação ou pelo alívio em se livrar do bicho, deram pulos de alegria. A mais nova proprietária de uma cabrita em Ituporanga sacou logo de um pedaço de corda e amarrou a pobrezinha num pé de árvore. Como já era de se esperar, os meninos logo partiram para outra brincadeira; a cabrita, essa continuava a berrar sem parar. O tempo passou e os berros só cresciam. Meus ouvidos já não agüentavam mais aquele martírio. Não lembro, mas devo até ter pensado em preparar cabrito assado para o jantar. Para minha sorte – e da cabrita! – minha vizinha Nazira, que sempre passava lá em casa para buscar cebolinha, viu o animal gritando e disse: essa cabrita é minha! Mal pude acreditar! Quem pulava agora não eram os meninos nem a cabrita, era eu, de contente por livrar meus ouvidos daquele insistente “méééééé”. 27 O CHAPÉU Como qualquer mocinha, eu também era vaidosa e gostava de me arrumar para passear aos domingos, ir à missa, ou dar um simples passeio pelas poucas ruas do vilarejo. Tinham uma beleza singela aquelas tardes de meia estação, quando já podíamos vestir alguma coisa mais elaborada sem sufocar no calor do verão. Gostava principalmente de abril, quando o friozinho da manhã nos deixava um pouco encolhidos antes de começar as tarefas diárias, e de outubro, que mostrava toda a força da natureza na barulheira dos pássaros e na vitalidade das plantas. Durante a semana preparava minha roupa domingueira, meu chapéu, que precisava ser engomado para ficar bem armado e durinho. Havia tanto capricho naqueles simples gestos de ajeitá-lo aqui e ali, de um lado e de outro, que quem olhasse de fora julgaria que eu me detinha a conversar com ele e que éramos amigos de longa data. Não tinha um armário adequado para ele. Costumava pendurá-lo num prego bem alto para que ninguém pudesse mexer. Novamente, no entanto, minha madrasta encontrou a forma mais precisa para me atingir. Era um daqueles dias de abril, um domingo bastante agradável e com o céu azul que só se encontrava em Ituporanga. Os sinos da igreja chamavam a todos para a missa e eu, já toda pronta para sair, com meu vestido passado e repassado a ferro de brasa, fui em direção ao último adereço: caminhei ligeira na ponta dos pés, quase como uma bailarina, até a parede em que estava meu chapéu. Quando o encontrei, meu coração não pôde se consolar com o que viu. Como um menino que encontra um beija-flor morto, desabei em lágrimas quando o encontrei no chão, atrás do velho baú de madeira, completamente 28 amassado. Sabia quem havia sido a autora de crime tão cruel, capaz deste ato covarde, o que fez meu peito brotar tristeza. Clara, novamente, decidida a castigar-me pelo que não fui e esquecer-se de suas frustrações, havia escolhido o dia ideal para me magoar. E desta vez conseguiu mesmo, acertando um golpe muito mais dolorido que as tradicionais surras de vara de marmelo. Ao me encontrar chorando meu pai logo quis saber o motivo. Da mesma forma que da primeira vez, titubeei, mas seu olhar compreensivo e a certeza de que me confortaria se soubesse me fizeram colocá-lo a par de tudo. Ele, naquele dia, isolou-se no quartinho escuro que havia nos fundos da casa, e chorou, chorou como jamais vi homem algum chorar. Naquele choro não havia só lágrimas de tristeza, eu sabia bem, mas apesar de todo o carinho que nos dava, cada gota também mostrava seu sentimento de culpa por, de certo modo, não nos proteger como gostaria e como pensava ser o de direito. Se não era sempre possível a meu pai me manter sob sua proteção, sei que durante todo o tempo do dia seu pensamento e suas preces oravam pelos filhos. Por acreditar nisso é que superei esta e muitas outras. 29 O ENCONTRO COM LUCINDA Separadas desde pequenas, só em 1938 conhecemos finalmente nossa irmã Lucinda, que ficara morando com a Tia Janoca em Armazém. Só a tínhamos visto por fotos até então, mas pelos meus cálculos ela deveria contar 15 anos de idade na ocasião em que veio à nossa casa. E era tudo o que sabíamos dela. Se estava alta, magra, feia, bonita, nada de concreto a seu respeito conhecíamos; mas pelas fotos, deveria estar encantadora. Por isso a aguardávamos com ansiedade naquele dia de verão em Ituporanga. O sol desta vez castigava os campos, mas mesmo assim vestimos nossas melhores roupas e arrumamos a casa da melhor forma possível. Eu e o Aldo, que nos dirigíamos para comprar mantimentos para o almoço que a receberia, caminhávamos conversando pelas calçadas e pelas ruas, fazendo brincadeiras, contando uma e outra piada, apontando para os pássaros e cumprimentando os vizinhos, quando de repente avistamos uma bela moça, desconhecida na cidade. O Aldo, como sempre, quando via uma mulher bonita não resistia à tentação. Logo começava com os cortejos e não desistia até tornar-se namorado da jovem. E isso acontecia muito! Como a tal forasteira era por demais linda, certamente os limites da prudência novamente não impediriam que Aldo partisse adiante. Mas como dessa vez estávamos mais ocupados que o normal, com todos à nossa espera em casa para dar início ao almoço, o Aldo se limitou a um flerte e voltamos para casa esperando encontrar nossa tão distante irmã Lucinda devidamente acompanhada da tia Janoca. Contudo não foi o que aconteceu. Meu pai nos disse com uma cara pouco convincente que elas não haviam conseguido vir, explicando que os problemas na estrada provavelmente impediram o trânsito, e que resolveram retornar e 30 deixar a visita para outra ocasião. Nossos rostos suados por ter trazido as compras se franziram para baixo e, como todos na casa que ouviram a notícia, ficamos tristes. Nossa querida irmã continuaria a nos sorrir apenas pela já surrada fotografia. Mas não é que quando começamos a guardar as compras, Lucinda, linda, formosa, encantadora – muito mais do que na foto – aparece nos dando o maior susto. Aldo ficou branco. Então, aquela bela garota que havia paquerado na rua, era sua irmã? “Que pena”, seu espírito conquistador pensou: estava fora de cogitação ser sua namorada. Abraços e beijos e logo a conversa pra lá de animada que sempre marcou a família começou a fluir rapidamente. Mal a deixávamos completar um assunto e já perguntávamos de outro. E a escola, e a cidade em que morava, e as paqueras, e os planos para o futuro? Todos os assuntos foram e voltaram inúmeras vezes. Aqueles dias para mim eram de pura felicidade. Parece impressionante, mas em pouco tempo de quase desconhecidas nos tornamos irmãs e em outro tanto de tempo, mais que irmãs, nos tornamos grandes amigas. Claro que meu pai fez especial gosto pela nova amizade. Notava-se pelo seu olhar satisfeito, pelo sorriso fácil sempre no canto do rosto, pelo incentivo para que nos divertíssemos ao máximo durante aquele tempo. Um de seus prazeres era nos ver passear nas bicicletas novas que 31 nos havia comprado, e de fato seus olhos nos seguiam até desaparecermos na esquina. Num dos passeios tínhamos ido longe de casa, cada qual com a sua. Atravessamos a ponte às brincadeiras e risadas, até que, do outro lado do rio, encontramos um terreno montanhoso e irregular. Nada seria problema para nós. Queríamos justamente explorar novos espaços, numa forma de apresentar a cidade à minha irmã. Com pouca prática e num terreno diferente, nossa habilidade como ciclistas se mostrou bastante duvidosa. Assim mesmo subimos o tanto que pudemos e lá paramos, ofegantes pelo empenho e pelo calor que aquele dia ensolarado de verão fazia. A vista magnífica me fez, ainda recobrando o ar, começar a apontar para Lucinda os locais conhecidos. Ali estava o mercado, pouco mais adiante a igreja, um pouco além se via a escola e assim por diante. Um rapaz muito bonito, apontei também, morava naquele outro lado. Já recompostas, foi a vez de começar a descida. A duas “atletas” controlavam pouco as bicicletas e eu, ao invés de começar devagar, logo fui pedalando, mesmo consciente de que o caminho vinha morro abaixo. 32 Minha bicicleta, é claro, disparou. E disparou também minha garganta e a da Lucinda. A gritaria foi uma só. Eu gritava porque não conseguia me segurar, e a Lucinda para que eu freasse: eu dizia “Lucinda!!!”; ela gritava “Freia Carmen!!!”. Quando consegui dominar o freio, já um pouco confiante, percebi que o danado não funcionava e que meu destino estava certo: despenquei ladeira abaixo. Como diz o provérbio. “Pra descer todo santo ajuda”. E como ajuda: caí feito um saco velho! 33 MEUS VESTIDOS Já falei das viagens que meu pai empreendia para a capital, para São José e para Bom Retiro. Sem as facilidades da vida moderna, tratar de um simples assunto em Florianópolis exigia semanas. Durante esse tempo, ficávamos sempre à espera, aguardando o ansioso momento em que correríamos em sua direção para ganhar seu abraço e, é claro, os presentes. Certo dia, meu pai apareceu em casa com cinco cortes de tecido. Todos tinham um só destino: “É para fazer vestidos para a Carmen”, disse à minha madrasta. Ele havia reparado em minhas roupas maltrapilhas, comparando às das outras irmãs, Zulma e Dilma, ambas sempre bem vestidas. Aquela atitude de Clara o vexava perante a sociedade. Afinal de contas, ele era o “Senhor Emiliano”, homem respeitado na comunidade e bem situado economicamente; a língua alheia não o perdoaria se uma de suas filhas usasse trapos. Assim é que de uma forma quase solene, na frente de todos, entregou os tecidos a Clara e novamente recomendou que os vestidos deveriam ser feitos para mim. Meu olhar curioso não se atrevia a esbarrar com o de Clara, mas o gesto fez sentir-me novamente protegida e até mesmo mais forte. Mas... os dias se passaram, e dessa vez especialmente lentos, e nada de as roupas aparecerem. Meu pai, já zangado, perguntou por eles, ao que Clara respondeu estarem na Dona Olívia, a costureira da cidade. Ríspido e firme, rebateu meu pai quase antes de a frase terminar: “Pois então mande buscá-los!”. Com as fazendas na mão, meu pai mesmo encontrou outra costureira e mandou que ela os fizesse. Todos de uma só vez. E todos para a Carmen. Por um bom tempo andei muito bem vestida e aquilo me deixou muito feliz, pois me deu a certeza de que apesar das adversidades da vida, das intempéries causadas pela madrasta, eu tinha o amor verdadeiro de meu pai e a sua proteção. 34 QUANDO QUASE ME AFOGUEI O rio Itajaí do Sul é um rio caudaloso que nasce em Bom Retiro, passa por Alfredo Wagner, e lentamente atravessa Ituporanga até que na cidade de Rio do Sul se encontra com o rio Itajaí do Oeste para formar o Itajaí-Açu, o rio que cruza uma das regiões mais ricas de Santa Catarina. Aliás, “Açu”, na língua dos índios tupis que habitaram a região, significa vasto, grande, justamente uma das características daquele imenso corpo d´água e do que hoje é a região. Pois é este rio bonito que corta a cidade e faz descer sobre ela uma neblina espessa, a mesma que esconde a aurora nos dias de inverno e praticamente proíbe o Sol de aparecer antes das dez à população de Ituporanga. Muitos momentos da minha vida se passaram nas proximidades do rio Itajaí do Sul e boa parte das minhas lembranças o tem como pano de fundo. Pudera, eu e Vitório construímos nossa casa às suas margens, bem ao estilo da maioria das construções da época. E mesmo quando criança e adolescente, “o Rio”, como simplesmente era chamado, foi a diversão de muitos de nós. Nem é preciso dizer que a meninada adorava passar suas tardes banhandose nos pontos em que as águas transitavam devagar. Para os destemidos há duas cascatas, onde os incautos corriam sérios riscos e os mais corajosos se exibiam. E o perigo rondava constantemente, tanto que alguns pontos foram palco de histórias tristes, como a que ocorreu em 1976, com Luciana Haveroth, amiga de minha filha Elizete, que deixou sua juventude nas suas águas. Nossos pais nos lembravam constantemente da proibição de freqüentar esses lugares, mas era senso comum que o leito principal, nas proximidades das casas da vizinhança, não oferecia maiores riscos. Isso para quem sabia nadar... Domingo de verão, o Sol tinha despertado mais cedo que todos, a maioria estava em férias e a temperatura implorava por um banho de rio. Meus irmãos e 35 eu nos reunimos e decidimos nos divertir na casa de Dona Escolástica Sens, que, como a maioria das casas, fora construída às suas margens. Com o consentimento e as recomendações de Clara preparamos as roupas e a mim, a mais velha, ela delegou a responsabilidade de cuidar dos menores. Respondi que não haveria problemas, porque eu, a mais experiente, saberia muito bem como cuidar de todos. Não havia com o que se preocupar. No começo fiquei apenas olhando a criançada. Depois arrisquei um pé e em seguida o outro e, em pouco tempo, estava com as canelas na água, toda saliente. Talvez Clara não desconfiasse, mas eu não sabia nadar. Por isso, resolvi que naquele dia, minha amiga Elvira Sens, filha da dona da casa, me ensinaria. Hoje recordo ter passado o pensamento pela minha cabeça: “aprenderia a nadar, nem que para isso tivesse de morrer”. Foi assim que entrei nas águas do rio, disposta a enfrentá-las. Apoiada na Elvira, segurando firme suas roupas, deslizei, deslizei, e quando vi, ao invés de braçadas, só conseguia afundar. Afundei várias vezes, e a cada vez menos força restava. O ar em meus pulmões já não garantiria mais um mergulho, a água forçava pelas narinas e os pés sabiam que não havia apoio por perto. Foram segundos eternos, até que meu irmão Alcione, que em meio às brincadeiras acompanhava a movimentação, segurou-me pelos cabelos e pelos braços, puxando com bastante força para cima. O meu peso fez com ele também afundasse mais do que o normal e eu, no desespero, na luta pela sobrevivência, o elegi como minha “tábua de salvação”: agarrei-o pelo pescoço de qualquer jeito, sem perceber que o sufocava. Ainda bem que ele era um rapagão forte e habilidoso. Conseguiu me levar para o trapiche, tossindo bastante, e assim salvou a minha vida. Apesar de tudo, saí da água alegre e cantando, nem havia percebido o estado no qual ficara Alcione, que levou dias para se recuperar. Cidade pequena que era, todos os cantos de Ituporanga em pouco tempo comentavam sobre o causo. “Os filhos do Emiliano quase morreram afogados no 36 rio”, era o verdadeiro boato. Só então percebi a gravidade da situação: numa brincadeira inconseqüente desafiei a morte e, por pouco, quase acabei com minha própria vida. Hoje, motivado por políticas públicas irresponsáveis e pela ganância em busca do lucro sempre maior, praticamente todo o Vale do Itajaí é vítima da ocupação urbana irregular e das atividades agrícolas e pastagens. A maioria dos agricultores fecha os olhos para a preservação ambiental, o que acaba contaminando todos os rios com agrotóxicos. A vegetação é devastada na busca por espaço, o que, aliado a esgotos industriais e a inúmeras outras formas de contaminação, levou nosso local de recreio à prematura devastação. Tomara que o local que me serviu com tamanha lição possa algum dia voltar ao que era, trazendo à população a qualidade de vida que o campo propiciava, mas sem os riscos à saúde vindos do veneno que muito contrariado o Itajaí do Sul carrega consigo. 37 PROCURA-SE UMA VELHA “Mãe, estaremos com o guarda-sol vermelho, bem na frente do prédio, esperando-a na praia”. A frase soaria normal não fossem os personagens e o cenário: minha filha e netas com um guarda-sol igual a centenas de outros guarda-sóis; eu, com quase 70 anos, num lugar pouco conhecido; a praia de Balneário Camboriú, com quinhentos e tantos mil banhistas e centenas de prédios parecidos! Sempre acreditei no meu senso de localização e durante muito tempo dei grandes mostras disso a meus filhos; mas desta vez a Kéia, de batismo Eucléria, minha filha, me superestimou. Ela e o marido Luiz me convidaram para passar alguns dias no verão de Balneário Camboriú, que de uns tempos para cá sofria com um avanço de turistas nunca visto antes em Santa Catarina e com o crescimento de arranhacéus à beira-mar. Depois que cheguei e consegui descansar um pouco da viagem, combinamos de tomar sol na praia, aproveitando a natureza ainda bonita do lugar. Como é do meu gosto, falei para a Kéia que fossem à frente, porque eu queria passar numa gruta que ficava logo ali e rezar à Nossa Senhora, minha santa protetora. Devia uma promessa. Depois de alguns minutos de fé, os alcançaria na orla atulhada de pessoas. Por isso a indicação da Kéia: guarda-sol vermelho, bem na frente do prédio. Saí do apartamento, desci pelo elegante elevador e, de canga e chapéu, me dirigi até a gruta. No caminho, ao invés de rezar baixinho, ia recitando as palavras da Kéia, quase como se já estivesse com o terço nas mãos: guarda-sol vermelho, bem na frente do prédio; guarda-sol vermelho, na frente do prédio; guarda-sol vermelho, frente do prédio... Na gruta, lá estava a imagem de Nossa Senhora. Ajoelhei-me e, não sei 38 por que motivo, mas ao acender as velas pedi para que tudo corresse bem comigo, um pedido um tanto incomum, mas que realmente me ajudou depois. Saí da gruta depois de agradecer novamente à Santa e me dirigi à praia. O primeiro problema logo apareceu; ou melhor, desapareceu: qual era mesmo o prédio da Kéia? Qual daqueles tantos prédios imensos era o da Kéia? A pintura é igual em quase todos, ficam sempre à beira-mar, com vários carros estacionados à frente. A praia na frente também é idêntica para todos. Começou aí a mais longa busca por um guarda-sol de que eu tenho notícia. Sem perder a calma, mas um tanto preocupada, já que tudo começava a parecer agressivo, desde o barulho dos carros até a quantidade de pessoas nas calçadas, continuei minha caminhada pela orla em busca do prédio, do guardasol vermelho e, mais importante, da minha filha e de minhas netas. A primeira hora logo escoou e eu ainda à procura do dito guarda-sol vermelho com todas elas debaixo; bem que podiam ter armado acampamento no meio da rua, seria mais fácil encontrá-las, pensei alegre. A segunda hora também foi num instante, mas eu continuava minha caminhada pela cidade, mesmo com o sol ainda alto queimando os banhistas na areia. Quando dei por mim percebi: eu, Carmen Sá Sens, em Balneário Camboriú, completamente perdida! Nesse meio tempo, Mário, o vizinho da Kéia, e suas duas filhas, que já tinham saído em minha busca, decidiram anunciar o fato à rádio patrulha. A versão deles, que me chegou depois, é a de que o anúncio havia sido o seguinte: “procura-se uma velha de chapéu e canga”! Apesar de completamente perdida, não tinha sede, não sentia calor, cansaço, nem dor de cabeça. Foi mesmo um milagre quando a Lucinda, minha irmã, me achou na rua e me guiou de volta para casa. Sentei-me, não tão cansada quanto deveria estar, pelo esforço físico, e tomei um copo d´água. Só então percebi o quão assustados estavam todos. O vizinho Mário, sempre muito levado, para quebrar o gelo começou a me 39 contar em detalhes da preocupação por que passaram. Narrou o susto da Kéia, o desespero pelas buscas, mas, ao invés de dizer que haviam anunciado apenas “Procura-se uma velha de chapéu e canga”, disse que o que foi transmitido a todos os policiais foi: “Procura-se uma velha de chapéu e canga; quem achar, favor ficar com a velha e devolver a canga”! 40 RUBENS, O NAMORADO DE BOM RETIRO Na época uma localidade de Tubarão, Armazém era gostosa de se passar as poucas férias que eu tinha naquele tempo. Na linha conhecida como Várzea das Canoas, o clima agradável e a companhia de minha querida tia Cecília Neves faziam-me retomar as forças para o pesado serviço da casa de meu pai. Numa dessas férias conheci um rapaz chamado Rubens. Sinto uma pequena necessidade de omitir o nome, mas já se passaram tantos anos que não há mais o porquê. Era jogador de futebol de um time da região e, apesar de apelidado de Sapo, era alto, bonito, forte e encantador; parecia ter tudo para ser o homem perfeito. Além disso, sempre conversava comigo com respeito e hombridade. Eu, por outro lado, podia ser descrita como uma daquelas menininhas do interior e que não estava acostumada com as artimanhas dos homens mais experientes da cidade grande. Não que o Rubens fosse da capital ou, então, de alguma das outras grandes cidades da região, mas tinha vivido suficientemente pelas rodas de conversas dos homens de negócios para saber o que queria da vida. E presumo que tenha sido numa dessas rodas que aquele que parecia ser apenas um sujeito bem intencionado tomou conhecimento da profissão de meu pai. Afinal de contas, um tabelião em Salto Grande provavelmente despertava a curiosidade dos que voltavam seus olhos apenas para o dinheiro, fazendo com que o interesse de Rubens por mim já não se resumisse ao afeto ou à amizade... só que eu fui a última a perceber isso. Apenas me dei conta quando, no meio de uma noite da calma Armazém, escutei um barulho na janela do quarto em que eu dormia na casa da tia Cecília. Alguém parecia me chamar lá fora. Conhecia a voz, mas não atinei instantaneamente quem sussurrava o meu nome. 41 Curiosa pela cena romântica que se iniciava, abri a janela e logo reconheci o Rubens. Floreou um bocado elogiando a minha beleza, meu jeito de ser, meus olhos, meu sorriso. Tudo isso antes de mostrar pelo que tinha vindo: propunhame fugir consigo para casarmos e vivermos em outro lugar. Na hora, não conseguia raciocinar. Paralisou-me a idéia de deixar a casa em que morava, a família, os amigos; enfim, tudo, para partir com um homem que conhecia há pouco tempo, mas que por outro lado sempre se mostrara encantador e fiel. Acredito que alguma luz divina tenha iluminado esse momento, fazendo com que eu, depois de passado o susto, prontamente negasse o pedido e, com a mesma educação que sempre me tratou, o mandasse embora. Na manhã seguinte contei o ocorrido para a tia Cecília, que me alertou das reais intenções do Rubens. Comunicou logo o fato ao seu marido e ao meu pai, que tomou a situação como insulto e determinou que eu acabasse definitivamente com as esperanças do rapaz. Na casa logo passei a dormir no quarto das minhas primas, vigiada pelo sono leve de meu tio. Como jogador de futebol e traste à toa, na linguagem da época, não voltou tão cedo, mandando-me apenas cartas e bilhetes na intenção de verificar se eu aceitava a proposta. Obviamente, depois de eu ter relatado aquilo para minha tia, todas as correspondências chegavam às minhas mãos apenas depois de devidamente examinadas por ela ou pelo marido. Especialmente as do Rubens também chegavam ao conhecimento de meu pai, que estava em Salto Grande. Com o alerta da tia Cecília, tudo ficou mais claro e dei graças a Deus por dispensar a mim um particular olhar naquele momento. Percebi que o traste à toa queria me raptar para conseguir alguma coisa de meu pai, a quem ele atribuía, enganado, ser um homem de grande fortuna. Terminei por carta tudo o que nem sequer havia ao menos começado. Pedi que nunca mais me procurasse e que parasse de tentar se corresponder; que me esquecesse de vez. A última notícia sua que tive nesse período foi de quando 42 entrou para o exército, em Florianópolis... Muitos anos depois, quando eu já era viúva e morava em Ituporanga com meus filhos, recebi uma visita um tanto inesperada. Depois de passar pelo consultório médico de meu filho Mário César, um educado senhor apareceu lá em casa no início da tarde com uma pasta de trabalho. A Eucléria, minha terceira filha, o atendeu à porta e, não lembro por que motivo, deixou-o esperando no escritório enquanto eu terminava os serviços domésticos. Percebi apenas, em algumas rápidas olhadas, que o tal homem trabalhava com as mãos trêmulas na máquina de datilografia, manuseando com dificuldade seus papéis. Não sei se pela falta de almoço ou pelo nervosismo do momento, mas não aparentava mais qualquer tranqüilidade e, então, convidei-o para uma xícara de café na cozinha, presumindo que o tremor não passasse de fome. Quando começou a falar, o timbre grave e acentuado e o sotaque da região logo me fizeram reconhecer a voz e a pessoa. Era o Rubens, aquele sujeito à toa que conheci em Armazém e que tinha me proposto fugir da casa de meus pais para viver em sua companhia, com a única intenção de adquirir um belo dote. Estava evidentemente mais velho, mas ainda conservava os belos traços e a mesma postura firme e forte que denunciava ter mesmo passado pelo exército. Também, fitando-me insistentemente, mantinha a futilidade da época em que jogava futebol e chamava-se Sapo. O susto da situação novamente me deixou sem palavras. Apenas me mantinha aparentemente serena e escutava suas novas propostas. Mesmo casado e com filhos, propunha não mais fugirmos, mas que ele passasse a, quem sabe, abandonar sua família para casar-se e viver comigo em Ituporanga. Como argumentação durante a “oferta”, falava de sua vida, de suas conquistas e de como seria mais feliz ao meu lado. Tão logo me voltou a consciência, despistei-o com todas as evasivas que encontrei, partindo, em seguida para um firme e irrespondível não. Rubens ainda tentou contra-argumentar, mostrou seu belo sorriso e demonstrou seu grande 43 interesse mais uma vez. Eu, no entanto, com a velocidade que só o pensamento permite, ponderei os muitos contras e os poucos prós da oferta e, totalmente decidida, acabei de vez com suas expectativas: gentilmente o acompanhei até a saída, pedi que se retirasse e, com um suspiro aliviado por detrás da porta espreitei com os ouvidos até não mais ouvir o salto de seus sapatos na calçada. Graças a Deus, desde então nunca mais o vi. 44 PROSA E VERSO NA FESTA DA CEBOLA Esta lembrança já é um pouco mais recente, mas não vejo problemas em misturar o antigo com o atual. As mais belas recordações de ontem sempre me vêm quando estou entre os meus amigos de hoje, de forma que a mescla de histórias passadas e presentes é natural. Acho até que cria um certo ritmo à narrativa. O leitor é que dirá se estou certa. O Márcio sempre foi muito criativo e inteligente. Além de tudo, quando metia uma idéia na cabeça não havia quem o demovesse. Interessado que sempre foi pela história da família Sens, com o auxílio da internet e de listas telefônicas de todo o país conseguiu cadastrar quase cinco mil parentes num programa de árvore genealógica. Além de todo o aparato tecnológico, sempre que pode o Márcio aproveita os encontros da família para fechar mais um elo perdido, para encontrar mais algum Sens e, obviamente, para conhecer uma ou outra história. Foi assim que no dia 9 de março de 2005, em Ituporanga, estivemos reunidos para resgatar um pouco do passado desta família que me orgulho de pertencer. Aproveitamos a Festa da Cebola para convidar famílias de São Paulo e do Rio Grande do Sul, além de parentes vindos de Florianópolis, Lages, Itajaí, Blumenau, Jaraguá do Sul, Campos Novos, Itapema e, claro, Ituporanga. Foi muito interessante conhecer pessoas cujo sobrenome é o mesmo que carrego e que nem de longe podia imaginar que existissem. A festa corria animada e eu aproveitava a alegria do momento para rever bons e velhos amigos, como a companheira de vários episódios marcantes de minhas vida, Elvira Sens Cunha. Elvira havia sido rainha de Ituporanga no ano em que eu fui sua princesa; três anos depois, em 1941, eu fui a rainha e ela a princesa. Tivemos oportunidade de relembrar esses e outros dias tão maravilhosos 45 dos nossos tempos de juventude e beleza. Sim, é bom que saibam que nem sempre tive oitenta anos; já tive meus dias de beleza – e que beleza – tanto é que fui princesa e depois consegui promoção para o cargo de rainha. Nesse dia, em Ituporanga, entre uma confidência e outra, entre um gole de água mineral e outro, Anita Sens Grah e Elvira Sens Cunha relembraram já bastante animadas a canção que nós mulheres cantávamos quando tramitava pelo Congresso Nacional o projeto de lei que conferia voto à mulher. Os versos aos poucos surgiram e logo estávamos as três cantando em alto e bom tom o hino de cidadania: PROJETO DO VOTO DA MULHER Sou a favor do projeto Que dá o voto à mulher Há de passar o decreto Que muita gente não quer Havendo algum candidato Que o voto meu queira ter Há um processo barato A fim de o bem merecer Pode votar no marido Para o fazer senador Sendo ele do seu partido Ou de outro competidor Ainda estaremos à frente Para governar o país Então é que finalmente O Brasil vai ser feliz É simples sua cabala Olhar sorrindo pra mim E agora aqui nesta sala Batemos palmas assim. 46 Emocionei-me a ponto de arrepiar o braço diante da lembrança, não só pela relevância política do gesto, mas também pela alegria que via nos olhos das amigas, pelas recordações de tempos tão amargos que aos poucos se transformaram, ainda que derramando o sangue e levando a vida de muita gente. 47 O PILÁH ERA O MAIS MIJÃO O Piláh era o mais mijão. O que sempre lembro da infância do meu quinto filho, o Márcio, é que foi o que mais tempo permaneceu fazendo xixi na cama. Naquela época, os colchões da casa eram de palhas de milho, que nós mesmos preparávamos, desfiando as palhas com garfos de cozinha, para ficar bem fofo. Como ele quase que diariamente mijava na cama, até os sete anos, mesmo já indo à escola e sendo coroinha da paróquia local, aqueles colchões tinham que ser diariamente expostos ao sol, para secar. Claro que eu procurava entendê-lo. No começo estranhei, mas depois percebi que não adiantava demonstrar meu descontentamento. Ao vê-lo descer as escadas do sótão, pela manhã, resignava-me a perguntar: “fez xixi na cama”? E, antes de ele responder, eu já adivinhava: “não só, ensopou, não foi”? O Márcio às vezes afirmava que sim e noutras vezes já dizia direto: “não fiz xixi, só ensopei”. Quando então o Piláh ia se deitar, eu e o Vitório tentávamos saber se já havia urinado antes, para reduzir o volume que iria descer pelo colchão de palha; a mijada, essa era certa. Na véspera de seu aniversário de sete anos, num domingo em julho de 1958, férias escolares, o Vitório o levou à capital catarinense e, como de costume, ficou hospedado na casa do tio Defendente Rampinelli, em São José. O Márcio dormiu lá também, no sótão, também numa cama de palha de milho, mais rala um pouco que os nossos colchões em casa. Na manhã de sete de julho, segunda-feira, dia de seu aniversário, como fiquei sabendo tempos depois, a tradicional mijada do Márcio ultrapassara o colchão, o assoalho do sótão, o forro da casa, e pingara no rosto do tio, que dormia num quarto embaixo. Como o Márcio conta até hoje, “não lembro se ele 48 gostou ou não do sabor, mas estou certo de que era meio salgado”! O Vitório no dia seguinte tinha assuntos a tratar na capital, relativos à aposentadoria de meu pai Emiliano Sá. A caminho de Florianópolis, na Ponte Hercílio Luz, segundo as palavras juradas de Vitório, já que ninguém acreditaria naquilo, o Márcio avistou pela primeira vez o mar e soltou a inesquecível frase: “pai, que arrozeira grande!”. Pacientemente o Vitório apresentou o mar ao menino e de maneira impressionante conteve a gargalhada: sabia que o Piláh estava acostumado a ver planos de água em nossas arrozeiras das Águas Negras, de modo que a confusão estava justificada. Quando passei lá outra vez, acho que por força da bondade do coração de mãe, aquilo me pareceu mesmo uma arrozeira, das grandes, pois nas margens havia capins aflorando, como o arroz que ele conhecia. Pelo menos é essa a versão que conto até hoje para o Márcio. Como o costume na casa era apenas de banho geral aos sábados, o segredo do Márcio de fazer xixi na cama não podia ser escondido dos colegas da escola, tampouco da professora e nem dos padres, pois o cheiro certamente o denunciaria. O vigário da paróquia, percebendo a situação, receitou leite com casca de ovo moída, triturada. Por outro lado, a freira da sacristia, que fazia as hóstias de trigo, receitou ao menino comer crista de galo. Dessa forma, quando os galos iam para a panela, lá em casa, a crista era reservada para o Piláh. Felizmente, a partir dos oito anos o controle da urina foi possível, e até hoje não se sabe por que motivo, mas o Márcio, brincalhão como sempre, jura que foi graças às cascas de ovos e cristas de galo. Daí, acabados os problemas com a bexiga, todos tinham que encontrar outro motivo para brincar com a paciência do Márcio. Passou agora a ser enxovalhado pelo potencial de seu estômago. O Vitório dizia que ele tinha os olhos maiores que o estômago, pois não parava de comer fatias de pão. Certa vez, na mesa, o Vitório o questionou: “Queres ainda mais pão? Quantas fatias já comeste?”. Ele respondeu guloso: “Só sete”, e acabou ganhando a oitava. 49 Diz o Márcio que é por essas e outras que até os dias de hoje não passa dos cinqüenta quilos, mas um estudo genético da família pode comprovar que o peso não é realmente um problema por aqui. 50 CINQÜENTA HINOS E DUAS CERVEJAS O Moacyr sempre foi muito divertido. Conta as histórias da própria infância e da sua juventude fazendo piada dos infortúnios. Diz ele, por exemplo, que a grande glória da sua infância foi ter recebido uma carona da professora do primário. E lembro bem da situação. Estávamos num daqueles dias abafados que anunciavam a vinda do verão, lá por novembro, e o Moacyr, como sempre, foi para a escola a pé. Mas dessa vez, ao sair de casa estava pulando em um pé só. A princípio achei que não passasse de uma brincadeira sua, mas depois fui descobrir que não conseguia caminhar porque tinha vários furúnculos nas solas dos pés, o popular “mijacão”. Arrastava-se pela estrada com uma cara triste, uma cara de dificuldade que devia dar dó. Foi então que a professora do primeiro ano passou de bicicleta e, sensibilizada, ofereceu a tão sonhada carona. Posso até imaginar o modo triunfal com que o Moacyr entrou no Grupo Escolar naquele dia, no bagageiro da “tia”, para inveja de todos os coleguinhas. Com treze anos decidimos mandá-lo estudar no Colégio Diocesano de Lages. Ele ainda hoje acha que a disciplina era muito rigorosa, mas, do jeito que era brincalhão, acho que as recomendações dos frades até que não passavam muito dos limites. Pelo que lembro ele passou cerca de quatro anos no internato, mas sempre que voltava para casa relatava que qualquer deslize era punido com castigos severos. Uma ou outra vez, me disse, chegava a apanhar, com o que eu não concordava, mas também não me intrometia para não desautorizar os professores. Uma vez o Moacyr me contou que estavam todos os meninos se preparando para o almoço, na tradicional fila organizada pelos padres. Não que fosse um silêncio absoluto, mas a exigência era para que ficasse o mais próximo 51 possível disso. Mas não é que ele, justamente na fila, foi fazer uma brincadeira qualquer e acabou levando um sopapo do padre! Além disso, como era de costume, teve de escrever cinqüenta vezes o Hino Nacional. E pelas lembranças que eu tenho, essa não foi a única vez. Noutra ocasião ele me confidenciou que haviam construído escondido um rádio e que demoraram muito tempo para conseguir instalar uma antena boa, porque o trabalho tinha que ser feito durante os jogos de futebol. Devagarzinho, devagarzinho ele saía do campo, corria para o quarto e passava a mexer com suas ferramentas. Pobrezinho. Um dia o padre chegou perto e ouviu ele e o Mauri, que estudavam juntos, conversando sobre o rádio. Desconfiado, levantou a cama onde escondiam tudo e, de novo, mais um sopapo e cinqüenta cópias do Hino Nacional. Já sem agüentar mais escrever e reescrever o Hino, o Moacyr passou a trocar a sobremesa do dia por dez cópias do “Ouviram do Ipiranga...”. Depois foram mais cinqüenta por cantar no banheiro. Na verdade, como ele mesmo me relatou, o castigo não foi só por cantar. É que lá estava ele dando uma de tenor e alguém bateu na porta. O Moacyr pensou que era algum dos colegas que estava na fila do banho e mandou tomar, mandou tomar... bem, tomar banho é que não foi. Era o padre, e ele levou mais cinqüenta Hinos. Com o tempo a família foi crescendo e o dinheiro se reduziu. Não dava mais para manter o Mauri e o Moacyr no internato. Por sorte as relações de amizade que tínhamos nos permitiram pedir a um casal de Lages o favor de receber o Moacyr. O Mauri também foi para lá, com um tio. Uma história que o Moacyr sempre conta é a das manias do português com quem foi morar. Isso, o Moacyr passou a viver com um casal. Ele, o seu Mário Mendonça, era português; ela, a dona Ruth, era alemã. Haviam morado com meus sogros na época da Guerra e achavam que nos deviam esse favor. O Moacyr de novo se foi, agora com o sentimento de ser um estorvo na 52 casa deles, como se estivesse cobrando uma dívida que não era sua. Compreendo bem o sentimento dele, porque também não gosto de passar muito tempo na casa dos outros. Hoje, com oitenta e cinco anos ainda moro sozinha. Uma das histórias interessantes desse período do Moacyr é que o seu Mário, muito teimoso, tinha um carro velho que quebrava todos os dias. E sempre era o mesmo defeito. Sempre na mesma roda. Como era mesmo muito teimoso, não levava as peças de reserva para consertar o carro quando quebrasse. Deixava todas com o Moacyr, que as mantinha guardadas num saquinho amarrado à sua bicicleta. Era só o seu Mário demorar para o almoço que lá ia o Moacyr levar uma peça. O seu Mário arrumava o carro, devolvia o saquinho para o Moacyr e continuava o percurso. Nunca ficava com as outras peças, porque tinha decidido que não e pronto. Era mesmo muito teimoso e mais parecia gostar de ver o Moacyr correndo de bicicleta para cima e para baixo. E era assim com a outra mania do seu Mário, que o Moacyr relata sempre, a de tomar cerveja. O problema não era a cerveja em si, mas que sempre quem saía de bicicleta para comprar a cerveja, adivinhem quem era? Claro, o Moacyr. O seu Mário tomava sempre duas cervejas por dia, mas aí também não estava o problema. É que ele sempre mandava o Moacyr pegar uma cerveja de cada vez, mesmo sabendo que tomaria duas. Quer dizer: todo dia o Moacyr tinha que buscar duas vezes uma cerveja na venda para o seu Mário. Ô teimosia! 53 MÃE DO ANO Depois da morte de meu filho Mário, em junho de 1989, a solidão me atingiu severamente em Ituporanga. Para todo lugar que olhasse, lembrava dele. O consultório que ainda continuava lá, os amigos que vi crescer e agora não tinham mais a sua companhia, as ruas por onde ele brincou, correu, namorou e trabalhou; enfim, um pedaço de mim havia ido embora. Seguindo os conselhos dos filhos, que já começavam a se concentrar em Florianópolis, e ouvindo também os amigos e parentes, decidi me mudar para lá. A proximidade com o mar, diziam uns, ajudaria a manter forte minha saúde; a alegria dos filhos, era a minha certeza, aplacaria um pouco o sofrimento. Tomei coragem, despedi-me dos parentes e, com o coração na mão, pela última vez olhei a casa que foi palco de tantas recordações felizes e de tantos acontecimentos marcantes. Ficaria alugada, com a preocupação de conseguirmos alguém que a mantivesse conservada. No início, já em Florianópolis, a saudade se inverteu. Passei a lembrar dos meus parentes de lá, da tranqüilidade, da missa rezada do jeito que eu já conhecia; até do soar dos sinos que badalavam ao meio-dia e às seis da tarde eu sentia uma pontinha de saudades. Mas com o tempo me acostumei. Quando completava um ano em Florianópolis, minha vizinha Coracy me convidou para entrar na Acojar, a Associação Comunitária do Jardim Santa Mônica, que fica muito perto da nossa casa. No começo me intimidei um pouco. Uma cidade diferente da minha, e eu entrando logo assim numa associação? Expliquei que não queria entrar, que me sentia envergonhada... A Coracy, com seu jeito altivo, disse sem esperar eu completar o raciocínio: “Que timidez que nada, vamos, vamos!”. Assim é que eu “decidi” entrar na Acojar. Tudo ali me foi muito bom. Fiz boas amigas, me mantive animada e, para 54 completar, minhas caminhadas tinham uma motivação a mais: ir até a Acojar. Organizamos um almoço beneficente, que com a venda de artesanato rendeu um bom dinheiro. Em julho participei da Festa Julina, onde havia o tradicional cachorro-quente, pinhão, pastel, além, é claro, da famosa pescaria. Até arrisquei um quentão. Certa vez, já em 1996, a Acojar participou do concurso de mãe do ano, que elegia em cada bairro a mãe que tivesse mais filhos. Eu ganhei com dois a mais que as outras mulheres e assim fui eleita a mãe do bairro Santa Mônica. A vencedora foi revelada no salão do Albino, em Ingleses, tudo é claro regado a muita cuca e doces caseiros. Já de posse da faixa, cuidadosamente bordada com a inscrição “Mãe do Ano” pela minha cunhada Ludy, lembrei nostalgicamente do tempo em que fui princesa e rainha de Salto Grande. Em determinado momento, durante a festa, a banda começou a tocar e um cantor interpretava as melhores músicas de nossa época, inclusive Saudade de Matão. Todas fomos para a pista enquanto a rainha era coroada no palco. Dancei muito com o meu neto Eduardo. Ah, que tarde maravilhosa aquela! 55 KÉIA ELETRIFICADA Que os meus filhos gostavam de brincar com eletricidade, com motores, com ferramentas, isso eu já sabia; o que não podia imaginar era o gosto da Kéia por fios e tomadas... Final de tarde, hora que eu gostava de varrer o terreno do pomar, também conhecido pelos membros da família, como “lado das galinhas”, já que naquele espaço mantínhamos as criações de animais. Como sempre, assobiava uma música qualquer, para passar o tempo e me ocupar. De repente, um grito desesperado corta o silêncio. Larguei a vassoura e sai correndo. Não sabia ao certo de onde vinha, quem era e por que gritava daquele jeito, feito uma louca. Só uma coisa estava em minha mente...era uma de minhas filhas e precisava de mim. Corri, subi aos pulos os degraus da escada que levam até a casa e lá encontro dependurada e aos berros minha filha Eucléria. Estava presa, recebendo uma descarga elétrica. Presa a uma barra de ferro, que não sei porque cargas d´água estava lá, e a “pamonha” da empregada sem coragem para fazer qualquer coisa. Sem pensar, arranco-a de lá. Fomos ambas parar no chão. O perigo de eu ficar também grudada era grande, mas não medi as conseqüências, nem parei para raciocinar no que poderia ocorrer... puxei a Kéia logo e com toda a força que eu tinha. Refeitas do susto, ainda ofegantes, olhamos o esboço de engenhoca na tomada. A Kéia iniciava um choro e, para contê-la, logo falei em um tom divertido: “A culpa só pode ser do Márcio, metido a engenheiro desde que saiu dos cueiros. Deve ter deixado algum fio solto”! Mas a Kéia sempre aprontava alguma e essa não foi nem a primeira nem a 56 última. Noutra ocasião, lembro que estávamos no mês de muitas enchentes, março. O Rio Itajaí do Sul estava começando a transbordar e as correntezas ficando cada vez mais fortes. Mas mãe é sempre a última a saber... estava tranqüila, preparando o jantar, quando ouço uns cochichos, umas vozes vindas de longe que num dia qualquer não despertariam a menor atenção. Novamente era a Kéia aprontando uma das suas. Ela e a Maria Helena Isidoro, vizinha, justamente nessa época nada propícia para “esportes” aquáticos estavam deslizando pela correnteza, indo direto para a cachoeira, e ninguém podia fazer nada. Quem seria o louco para se aventurar naquelas águas, e o que aquelas duas malucas estavam fazendo numa canoa? Ah! Sim... salvando um gatinho. Mas por que não usavam o remo? Haviam perdido, só podiam contar com as mãos. “Vão para a margem, segurem na vegetação, nas árvores!” – gritavam as pessoas que assistiam ao desespero das duas. E graças a Deus elas conseguiram. Mas foi por muito pouco, porque faltavam apenas alguns metros para chegar à conhecida cachoeira “Salto do Seu Marcolino Miguel”, uma verdadeira fonte de rugas para as mães da região. A Maria Helena não escapou de umas boas palmadas; quanto à Kéia, achei melhor nem contar para o Vitório, para não aborrecê-lo. 57 MAIO – MÊS DAS MÃES O inverno começava a mostrar sua violência no Alto Vale do Itajaí. Sempre fazia muito frio nessa época do ano e o trabalho de casa se tornava difícil. Cuidar da roupa da filharada era uma tarefa por demais exaustiva para quem não dispunha de máquina de lavar e muito menos de secar, sacrifício que se estendia por todo o inverno, não somente por causa do frio em si, mas pela neblina que se formava do rio e que cobria o sol tão esperado pelos moradores de suas margens como era nossa família até os anos 80. Maio deveria ser apenas mais um mês no calendário. Mas não. Era e continua sendo diferente de todos, a partir do primeiro de seus dias – o dia de meu aniversário, coincidentemente também o dia do trabalho. Não sei se poderiam me chamar de trabalhadora, mas sinto que represento isto mesmo – o trabalho. Conheci o trabalho doméstico infantil de forma bastante triste, como já mencionei. Apesar de me libertar do regime imposto durante minha infância, quando passei à vida adulta e me casei não consegui vencer as tradições que fariam de mim uma esposa obediente, dona de casa zelosa pela economia doméstica e, por vezes, “patroa” mesmo. Não posso esconder, e todos que me conhecem sabem disso, a “patroa” Carmen é daquelas que por jamais ter aprendido a mandar acaba fazendo até hoje quase todo o serviço da casa. De uma forma ou de outra, o certo é que nesse difícil trabalho sempre tive grandes compensações, porque a dedicação à educação de meus filhos resultou em frutos que hoje exibo com o maior orgulho. Por isso, pela dedicação ao trabalho e pela coincidente data do meu aniversário, sempre fui muito bem lembrada por todos. Além disso, em especial no mês de maio, mês em que se homenageia Maria, mãe de Jesus e, por extensão as mães cá da Terra, o primeiro dia e o segundo domingo são sempre de festa, de 58 Carmen e Mauri presentes, de mensagens e muito carinho para comigo. Lembro o quanto as crianças se empenhavam para, no dia das mães, quando ainda na escola, ensaiar cantos, recitar versos, compor textos, ilustrar seus trabalhos com desenhos, fazer artes manuais e presentear-me com orgulho. O Vitório quase sempre dava uma mãozinha. Ajudava a Ezir nas tradicionais composições sobre o dia das mães, para que ela demonstrasse aos professores que havia realizado a lição de casa com louvor, o que lhe garantia, além da nota máxima, o direito de exibir o texto no dia da grande homenagem às mães. Pai e filha entravam em sintonia e produziam lindos discursos. O mérito... ah o mérito, esse pouco importava. O que valia mesmo era a mensagem, e embutida nela, o esforço de todos para ensinar e aprender a valorizar a mulher mais importante do mundo, como ouvi muitas vezes. Era muito bom pressentir os murmúrios das crianças para manter em segredos suas falas teatrais e esconder os presentes até o dia da festa. Enquanto o Márcio torneava colheres de pau e confeccionava rabos-quentes, o Mário subia as escadas do sótão e lá do alto ensaiava algumas frases em tom de discurso. Eu pensava... esse vai ser padre. Gostava de se colocar no púlpito. Emocionaram-me as cartas e cartões vindos de Lages pelo correio. Continham belas mensagens escritas pelo Moacyr e Mauri, cada um mostrando sua identidade, seu estilo. O Mauri fazia questão de provocar fortes emoções. Dizia coisas lindas que me faziam chorar. O Moacyr era mais seco e direto, mas igualmente carinhoso. Os dois faziam tudo o que podiam de longe, uma vez que vir à festa das mães, numa época em que a estrada ainda não era completamente asfaltada, era por demais dispendioso. Além disso, a viagem de Lages a Ituporanga era muito demorada e não valia a pena vir apenas para um final de semana. Eles faziam esse percurso somente nas férias escolares. Chegado de fato o dia das mães a festa era mesmo na escola. Lembro que no pátio interno do Grupo Escolar Mont´Alverne, os professores reuniam de um lado as crianças e de outro as mães. Com as bandeiras do Brasil e de Santa 59 Catarina hasteadas ao centro e um palco de madeira enfeitado com folhas de palmeira e flores de palha de milho, montado provisoriamente para as apresentações, a diretora da escola – Irmã Maria Serena Boeing – fazia a abertura da solenidade e em seguida uma das professoras (geralmente a Dona Bentinha) dava o tom inicial ao canto previamente ensaiado com o grupo inteiro: Mãe é uma só que a gente tem no mundo Mãe é o amor mais puro e mais profundo... Na seqüência eram apresentados todos os outros números e eu, que várias vezes participei dessa festa com um filho pequeno nos braços e outro na barriga, ficava sempre cansada. Mas numa dessas ocasiões, lembro perfeitamente, mesmo cansada entrei na brincadeira, quando uma mocinha, imitando Carmen Miranda, cantou: “Mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar...”. O Vitório sempre estava lá. Ele também gostava de ver as crianças se apresentarem. Mas seu maior interesse era procurar no mural da escola, entre os trabalhos exibidos, a redação de um dos nossos filhos. E encontrava confirmando o que já sabia. A composição da Ezir estava lá, para satisfação do pai coruja e para engrandecimento de seu ego. Uma vez a Evanir ensaiou um verso muito bonito. Eu a escutei várias vezes em casa. Ela havia decorado até de trás para frente. Mas, chegado o dia da apresentação, ficou tão nervosa que sua voz não saiu e começou a chorar. Apesar de tudo, todos bateram palmas. Acho que o que embargava sua voz naquele momento, dentre tantos outros motivos, era a emoção de repetir frases que ela, mesmo querendo do fundo do coração, não teria coragem de dizer pra mim. Esses eram os melhores presentes que alguém poderia ganhar no dia das mães: os filhos dedicados a me encantar, a fazer brotar um suspiro, um sorriso, uma emoção maior. Por falar em presentes, recordo dos do Vitório. Como, 60 embora tivéssemos boas condições financeiras, não havia espaço para esbanjar, o Vitório me presenteava com móveis, eletrodomésticos e outros utensílios para a casa, para aproveitar a ocasião e melhorar um pouco o lar. Claro, também esses seus presentes, que davam vida nova ao local que mais gostávamos de passar o tempo, eram igualmente bem-vindos e me envaideciam com a lembrança no dia das mães. Daquele tempo para cá muito mudou. Com o crescimento da família, hoje alguns dos meus aniversários são comemorados em grande estilo. Quando completei oitenta anos todos os meus filhos vieram para Florianópolis, organizaram um almoço maravilhoso no Clube 12 de Agosto, com direito a missa rezada pelo capelão da Polícia Militar Valdemar Groh e tudo. Os netos cantaram “Como é grande o meu amor por você”, do Roberto Carlos. Meu neto Arthur preparou um vídeo maravilhoso que foi exibido no telão do clube. Eu, vestida num tailleur verde com chapéu preto, estava tão bem comigo mesma que jurava ter a companhia do Vitório naquele momento feliz. 61 O TOMBO DA ZETE Certa vez, lá nos idos da década de 60, resolvi tirar umas férias bem merecidas. Depois de tanto tempo do duro trabalho do lar, um pouco de praia não faria mal a ninguém, principalmente na casa da Zulma, onde todo dia era dia de festa. Em Balneário Camboriú, ainda mais porque além de ter muitas amigas gostava de receber e fazer almoços e jantares deliciosos. Claro que para desfrutar plenamente daquelas férias precisava de um descanso também da criançada. Sempre fui uma mãe atenciosa, mas – ninguém é de ferro – uma folga dos onze (a Eliete ainda estava por vir) de vez em quando faz qualquer um revigorar. Naquele ano já longínquo, então, resolvi deixar meus filhos com o Vitório, que tomaria conta deles enquanto a praia e a Zulma me acolheriam. Minha cabeça ia longe em Balneário Camboriú, quando pressenti que algo ocorria de errado em Ituporanga. Pensei que pudesse ser alguma outra coisa e não dei muita importância na hora. Dias depois, já de volta, fui saber o que afinal tinha ocorrido. Enquanto eu gozava da hospitalidade de minha irmã, os acontecimentos e as brincadeiras das crianças em Ituporanga corriam soltos. Naquela tarde brincavam no terreno ao lado da casa, cujo piso fora todo forrado de pedras para manter a limpeza. Algumas das pedras eram irregulares, outras muito lisas e algumas chegavam a ser de fato pontudas, todas rejuntadas de cimento para impedir o crescimento de ervas daninhas. As crianças se divertiam jogando peteca e brincando com uns pedaços de cana-de-açúcar que haviam colhido. Os mais gulosos chupavam a cana até não poderem mais; os mais levados apostavam quem atirava mais alto um pedaço de pouco mais de quarenta centímetros. Pois não é que um desses pedaços de cana foi parar no segundo andar da 62 casa, no telhado, mais precisamente bem dentro da calha instalada para evitar que a chuva sujasse as paredes na queda. As crianças, cheias de coragem e mais repletas ainda de inexperiência, frustradas pelo iminente fim da brincadeira, não pensaram duas vezes. Notaram que para se chegar à calha “bastava” pular a janela do quarto do piso superior e andar por cima das telhas até encontrar o pedaço de cana. Para essas aventuras geralmente ninguém se habilita, mas sempre tem alguém muito rápido e esperto que sugere um nome para a tarefa. Maurício, Beth, Evanir, Mauri, Márcio, não, nenhum deles. Mandaram a Zete, justamente a menor de todos, a que dali alguns anos ganharia o concurso de boneca viva. A justificativa era simples: por ser a menor não quebraria nenhuma telha do Vitório. Assim é que a Zete, com então pouco mais de quatro anos, corajosamente tomou para si o encargo, ajustou a roupa, arrumou cabelo e foi o se esticando, esticando, esticando, até ficar na pontinha dos pés, tudo para alcançar a cana que estava trancada na calha, bem na beirada do telhado, um pouco abaixo do nível da janela. Alguns ajudavam ali mesmo; outros continuavam lá embaixo esperando o resgate heróico da cana. Não sei se pressentiam o perigo, mas só de imaginar a cena penso nos olhos esbugalhados das crianças roendo as unhas com o malabarismo da pequena. 63 A Zete não fazia por menos. Habilidosamente, com uma das mãos segurava a cabeceira da cama, que ficava em frente à janela, e com a outra tentava apanhar a tal cana. Quem visse de longe acharia que passavam fome, tamanho o esforço. Ainda sem conhecer bem seus limites de criança, como a prudência já deveria ter indicado aos mais velhos, e cansada da força que fazia, para susto de todos a Zete se soltou e rolou rapidamente pelo curto espaço de telhado, despencando lá embaixo. Caiu sobre as pedras, desviando como que por milagre das mais pontudas, mas não emitiu um único som. Talvez o susto tenha sido tão grande que a fala simplesmente não saiu, como concluímos algum tempo depois. O pavor das outras crianças era imenso. Não sabiam o que fazer, não tinham forças para socorrer, não vinham idéias melhores do que simplesmente chorar. Foi aí que a Beth, sempre ágil, chamou logo o Moacyr, que dessa vez passava as férias em casa e se encontrava na varanda do segundo piso. Moacyr desceu as escadas de três em três degraus, pulou com a agilidade de sempre a janela da cozinha, apanhou a pequena que se encontrava inerte feito um saco caído no chão e parou o primeiro carro que passava em frente à casa, levando-a para o Hospital Bom Jesus. Imediatamente a Zete foi atendida pelo médico. Depois de uns rápidos exames, de mexer nas articulações e de examiná-la de ponta a ponta, o diagnóstico: sortuda, nada sofreu além de uns pequenos arranhões na testa. Sorte, milagre? Não sei, mas na vida a gente vê coisas sem explicação. Pois uma semana mais tarde outra criança caiu da mesma altura que a Elizete e não teve a mesma sorte. Minhas férias, é claro, foram interrompidas. O Vitório telefonou pedindo que retornasse, porque a tarefa de cuidar das crianças era demais para ele. 64 SEM QUERER QUERENDO Era comum ouvir gritos e choramingos das crianças, ora porque se machucavam, ora porque brigavam. Estavam sempre disputando um brinquedo, ou medindo suas forças. Mas ouvido de mãe logo se acostuma, e com doze filhos então se acostuma muito mais rápido. A Beth, pequena ainda, loiríssima, com parcos cabelos, magricela, tinha na época apenas cinco anos, mas vivia provocando seus irmãos do jeito que podia. Dessa vez provocava o Maurício (Nego), que então contava com sete anos. Para se livrar da impertinente menina, empurrou-a contra umas roseiras, no jardim de casa. Ela que havia se arranhado com os espinhos das rosas, correu logo para o meu colo, contando-me o sucedido. – Mãe, o Nego me empurrou e me machuquei! – Ah, minha filha, foi por querer ou sem querer? – Sem querer… A Beth conta que ela lembra dessa passagem e que eu ria sem parar, mas ela não entendia o porquê. Com certeza hoje, após ter tido a Vanessa, ela deve ter entendido. Não era possível tomar partido de filho algum, pois os pequenos conflitos faziam parte do dia-a-dia, e eles surgiam tão repentinamente como eram solucionados. Aprendi com experiências próprias que jamais devemos dar atenção maior do que eles merecem, pois corremos o risco de transformá-los em problemas de fato. 65 NUNCA MAIOR QUE EU As diversões dos meus tempos de juventude eram bem diferentes dos tempos atuais. As brincadeiras quase todas eram caseiras e simples. Do bilboquê aos jogos de bola, das bicicletas às bonecas; os brinquedos, ao invés de terem vida própria, como hoje, ganhavam vida com a nossa imaginação. E talvez isso é que os tornasse tão divertidos a ponto de hoje me despertarem imensas saudades as tardes tranqüilas em que buscávamos aventuras nos pastos da região. Numa dessas tardes de domingo decidi que aprenderia a cavalgar. Achava elegante a palavra, via os homens e as mulheres montados em seus belos animais e pus na cabeça a idéia, certa de que ninguém me demoveria: queria “ca-val-gar”, silabava para mim mesma. Eu jamais havia montado um cavalo, mas Laura, minha amiga, garantiu-me que seria muito fácil. “É como andar de bicicleta”, dizia ela. Buscando a coragem extra que necessitava para a “arriscadíssima” tarefa, subi numa pequena mula que Laura escolheu para mim, do tamanho exato de minha coragem e bem menor que o Marujo, o puro sangue que viríamos a comprar, eu e o Vitório, quando casados. No início tudo parecia complicado, até mesmo se equilibrar no lombo do bicho. Mas em menos de cinco minutos já tinha a convicção de haver dominado completamente os segredos da montaria. Empolgada com as descobertas, expliquei para a Laura que a mula andava muito devagar, perguntando o que fazer para apimentar a aventura. “Bata nela como esta vara”, me disse a Laura alcançando o pedaço de galho. Não tive dúvidas: pus toda a minha força no braço e passei o açoite no animal. Para o meu desespero, a mula provou não ser tão mula assim: disparou pelo pasto e me derrubou no chão. Para sorte minha o bicho era dócil e não me feriu. Mas bastou. A partir daí não queria mais saber de animais que pesassem ou medissem mais do que eu, como repito até hoje, o que não impediu de ter 66 sido atacada por uma vaca numa outra vez. Mas está já uma outra história para um outro livro. 67 OS PINTOS DA EVANIR A Evanir ainda era muito criança quando, pela primeira vez que me lembro, teve mais sorte que juízo. Era um dia de verão, mas muito feio – daqueles em que o céu escurece e as nuvens carregadas se preparam para bombardear a terra com a chuva forte. Ventava muito e a energia faltou, como acontecia em Ituporanga sempre que os primeiros pingos molhavam os fios da corrente elétrica. Diante da ameaça, chamei a filharada, alertei-os sobre os perigos e distribui tarefas para evitar estragos na casa com a tempestade. A primeira ordem foi para a Evanir e a Ezir. Ficaram incumbidas de recolher uma ninhada de pintinhos que certamente não sobreviveria ao temporal. Enquanto isso passei a distribuir as funções entre os outros. Ligeiro as duas começaram a correr e a apanhar um por um. Colocavam no colo e os envolviam com o vestido arregaçado. Tudo corria muito bem, não fosse uma pilha de madeira – esconderijo perfeito que parte da pintaiada escolheu para se abrigar. As duas alcançaram os outros pintos e então se dirigiram aos que faltavam. Nesse meio tempo o temporal se aproximava rapidamente. Como já estava escuro, a noite entrando, não conseguiam localizar aqueles últimos. Os outros, que já tinham terminado cada um a sua tarefa a essa altura, gritavam “vá por ali... vem por aqui..., lá tem outro”. Não adiantava, eram muitos e as pequenas já não enxergavam mais nada. Além disso, o medo da trovoada, eu sabia disso, passava a tomar conta delas. Não sei de qual das duas partiu a brilhante idéia, mas decidiram pegar uma vela, para, segundo elas, facilitar a busca. Mas, pelo contrário, o vento soprava e a vela apagava com freqüência, coisa que qualquer um podia imaginar, menos as duas, talvez pelo pavor da confusão. Contaram-me depois que a caixa de fósforos que traziam já estava no fim, 68 e que por isso a Evanir pegou um papel que estava pelo quintal e aumentou a chama, garantindo luz por mais tempo. Foi aí que, vitoriosa, localizou o último dos desgarrados. “Agora te pego, miserável”, ela deve ter pensado, porque logo em seguida, com toda a rapidez que o momento exigia, se debruçou sobre os paus de andaime empilhados e, apoiando os cotovelos sobre a madeira, deixava as mãos livres, uma para segurar a saia do vestido que envolvia os pintos e a outra para capturar a presa. Localizou enfim uma brecha e agarrou o danadinho. Nesse momento a galinha, com seu instinto protetor, bicou a bunda de uma delas. A vitória teria um sabor amargo. Ou melhor, um cheiro ruim. Antes de se pôr de pé, e com o incentivo da bicada, a Evanir sentiu um calor intenso e um cheiro de queimado bem perto, muito próximo mesmo, como ela contou depois a todos. “Ai, ai, o que é isso!?”, saltava e gritava ela. Olhou rapidamente ao redor e viu que o pedaço de papel já não tinha mais fogo; aliás, a vela mesmo ela não sabia mais nem onde estava. Instintivamente sacudiu o corpo, bateu as mãos e gritou desesperada quando percebeu que um barulhinho típico devorava seus cabelos a começar pela franja. O fogo havia alcançado seus lindos cabelos e ameaçava queimá-los por completo. Por sorte, no mesmo segundo a Evanir conseguiu deter o estrago, evitando ficar depilada como uma galinha escaldada pronta para ir para a panela. Afinal, brinca ela até hoje, “este não era o meu destino, mas o destino dos pintos quando virassem frango”. No dia seguinte, trovoada passada, encontrei os pintos secos, amarelinhos, belos e formosos, sobre as asas da sábia progenitora que no dia anterior não se estressou com a trovoada, mas sim com a caçada das tolas meninas a ponto de bicá-las na bunda para defender a prole. Mais tarde, já mocinha e bem assanhada, a Evanir dizia ter entendido o 69 recado: “Nunca levante a saia para prender mais que um pinto de uma só vez, você pode se queimar”. 70 GALINHA AO GRITO Os domingos eram o dia de honra de toda a família. A mesa era mais bem posta, os filhos estavam mais arrumados, até porque tinham vindo da missa, e o almoço era caprichado, geralmente com galinha. Galinha com polenta, galinha com macarrão, galinha ao molho pardo… Enfim, o prato principal era sempre a bendita galinha, certamente porque era mais barato e porque tínhamos sempre algumas dezenas pelo quintal. Naquele sábado, a véspera do dia mais esperado da semana, não seria diferente. Depois do longo almoço que marcava uma verdadeira reunião familiar, com conversas longas à mesa em que se discutiam com igual preocupação tanto a política nacional quanto as notas das crianças, o Vitório, como sempre, determinou a cada filho as funções para depois do almoço. Ao Mauri incumbiu matar a galinha para o dia seguinte. Mal sabia o Vitório o que ocorreria daí pra diante. Para matar as galinhas que tínhamos em casa, o método que se utilizava, o tradicional na região e em todos os lugares que eu conheço, consistia em torcer o pescoço da dita. Não saía sangue, era rápido, e o natural sentimento de compaixão fazia pensarmos que também fosse indolor. Para a galinha, é claro! Já pensando no suculento almoço, o Mauri foi até o quintal e pegou a melhor das galinhas, acalmou-a nos braços e pegou com firmeza em seu pescoço. A coitada, que já pressentia seu destino, arregalou os olhos e começou a espernear. Mas a Ezir, que até então espiava quieta, ainda com preguiça para começar a lavar a louça e matutando alguma coisa que eu nem podia imaginar, se antecipou: “Por que tu não cortas o pescoço com uma faca, ao invés de torcer? Ela morre mais rápido e não sofre tanto”, disse ela, triunfante com a sábia conclusão. 71 O Mauri olhou para a Ezir que olhou de volta para o Mauri e, ali naqueles olhares, concordaram que realmente o meio de execução do bicho mais rápido, indolor e eficaz seria na base da degola. Foram então à procura de uma faca que tivesse bom corte, peça que, se tivéssemos, seria rara naquela casa. Como é claro que não encontraram faca boa, pegaram apenas a melhor que acharam, já sem muito fio. O Mauri deu o primeiro golpe e nada; deu o segundo e nada. No terceiro golpe decepou o pescoço da galinha, que saiu ziguezagueando por todos os lados, espalhando sangue no chão e nas paredes. A Ezir, é claro, entrou em desespero… começou a berrar alto, a todo pulmão. Ou melhor, quase não tinha tempo para respirar. Gritava feito uma maluca, como se tivesse perdido a própria mão. O Vitório, que descansava após o almoço, ouviu os gritos e, já apavorado, saiu voando para o quintal. Os gritos vinham da oficina! – pensou ele, entrando em desespero com a previsão do pior – onde tínhamos, na parte dos fundos do terreno, ferramentas que todos usavam para fazer os seus brinquedos. O próprio Vitório brincava de marceneiro, utilizando o torno para suas mais malucas invenções e também para a mobília da casa. Ele logo imaginou que os gritos eram provocados porque alguém tinha se ferido na serra-circular, coisa que só de imaginar lhe causava o maior pavor e que por tantas e tantas vezes havíamos demonstrado receio. Pensou certamente que alguém havia perdido a mão na maldita máquina, porque aqueles só poderiam ser gritos de alguém que estivesse sofrendo muito. De tão apavorado, suas pernas quase não respondiam ao comando. Correu e a primeira coisa com que se deparou foi um rastro de sangue, bem vermelho, no chão. Ficou branco feito cera e não teve dúvidas, a Ezir tinha se machucado, e feio. Nesse meio tempo, enquanto o Vitório ainda pensava no que fazer, a galinha sem cabeça apareceu, pulando mesmo degolada. Deu mais algumas 72 rodopiadas e enfim, espirrando o resto de sangue que ainda tinha, caiu morta aos seus pés. O olhar fulminante do Vitório acabou com qualquer esperança de vida da galinha e, quando se virou para a Ezir, demonstrou como havia se irritado com aquela situação patética. A Ezir não teve outra reação; simplesmente emudeceu. Muito brabo pelo susto que tomou, pela única vez na vida bateu na sua filha mais velha. “O que será que deu na Ezir para provocar tamanho alvoroço por causa de uma galinha teimosa, que mesmo sem cabeça não queria ir para a panela naquele domingo?”, deve ter pensado ele. E berrava, e berrava muito. Ainda possuído pela raiva, o Vitório apanhou a galinha sem pescoço que eu já colocara na gamela e a jogou, com gamela e tudo, direto no rio que passa atrás de casa. Lá se ia nosso almoço. Com a paciência de sempre, eu, que presenciava tudo, ao ver o prato principal de domingo indo rio abaixo, corri para o Moacyr que acabava de chegar e ordenei-lhe que pegasse a canoa e fosse atrás da galinha. E nosso herói salvou a bendita. Finalmente o domingo, todos à mesa, sentados, servi o arroz, a polenta, as saladas… e mais nada. O Vitório logo protestou: “Não temos carne hoje?”. Respondi, segurando o riso: “Claro que não, tu jogaste a galinha fora”! Segurei a respiração alguns segundos, pisquei para as crianças e caímos todos na risada. A galinha, recuperada, ainda estava na panela, e todos menos o Vitório sabiam disso. Também, imaginem só, depois de todo aquele carnaval de sangue, suor e gritos, eu ainda ia perder o almoço? Nem pensar! 73 ZIGUEZAGUE NA ESTRADA Aos sessenta e quatro anos de idade me vi sozinha em minha casa de Ituporanga com minha filha caçula Eliete, a “mais nova”, como sempre a chamavam os parentes que se esqueciam do seu nome. Também, pudera, só da nossa parte são doze filhos! Por ser a mais nova talvez tenha sido a mais mimada. Dormia na minha cama e recebeu café com leite numa mamadeira até os dez anos de idade... Nunca se cansava de deitar no meu colo e relatar os acontecimentos do dia. E adorava narrar todos os detalhes enquanto eu fazia cafuné e mexia em seu cabelo. Nosso apego realmente era grande. A única boneca que a Eliete teve, por exemplo, foi batizada como “Carminha”, porque tinha os cabelos pretos, grossos e levantados para cima, parecidos com o meu penteado naquele tempo. Certa vez, falando das bagunças que fazia, a Eliete me fez lembrar de algumas vezes em que escutava som alto na sala, justamente no meu horário de sono, e mesmo assim eu não reclamava. Dizia, agora já adulta, que de toda a família eu era a que ela achava mais coerente e calma, que nunca tinha entendido de onde vinha tanta paciência. Os olhos da minha caçula ficaram então marejados e, quando me olhou novamente, respirou fundo e disse: “Não, a palavra certa não é paciência... é amor”. Pois bem, nesta época, com apenas a Eliete em casa e alguns filhos já casados e outros terminando seus estudos, a casa, apesar de grande, já não precisava de tanto esforço para se manter organizada. Era hora, decidi, de aproveitar o tempo e pôr em prática alguns sonhos antigos. A Eliete estava com 18 anos de idade e já sabia dirigir, então pensei: “Puxa, sempre quis aprender a dirigir, talvez ela possa me ajudar”. Já havia pedido à Eucléria e a meu filho Maurício, mas eles alegavam que eu já não tinha 74 idade para isso e não me dariam a carteira de motorista. Não estavam errados, mas mesmo assim insisti que a Eliete me ensinasse. Lembro que fomos para a Vila Nova, um pequeno vilarejo a poucos minutos de Ituporanga. A estrada era de barro e não havia muito tráfego, o que facilitava o aprendizado. Postei-me nervosa diante da direção, mas com um sorriso largo no rosto. A possibilidade de desafiar os limites, de dominar aquele veículo quando pouquíssimas pessoas da minha idade dirigiam, pelo menos lá em Ituporanga, me fazia alegre. E nem precisaria dirigir mesmo. A situação em si já contentava. Mas, é claro, eu queria aprender para valer. A Eliete dizia: “Acelere devagar! Tire o pé do acelerador! Cuide do freio! Mantenha a direção reta e na estrada!”. Eu me perdia com tantas informações e tentava, tentava, mas acelerava muito e tirava o pé da embreagem depressa demais. Resultado: o carro morria o tempo todo. Ziguezague também era comigo, pois não enxergava a estrada por conta da forte poeira que os outros carros que passavam faziam. Depois de várias tentativas, depois de quase atropelar uma galinha e subir em um barranco, a Eliete desistiu de me ensinar. Ela ficava nervosa e eu só ria, provavelmente de nervoso. Desde então ando a pé. Mas, cá entre nós, para quem não sabe da história toda digo sempre que prefiro assim “porque adoro fazer exercício”! 75 A CHAVE DA IGREJA Em 1º de maio de 1954, dia do meu aniversário de trinta e três anos, o frei Artur, vigário da paróquia, leiloou uma chave comemorativa pela inauguração da Igreja Matriz de Ituporanga. Inúmeros interessados apareceram, todos com a generosa intenção de contribuir para a solidez da obra que batizaria e casaria tantos fiéis ao longo dos anos. Com o bom coração que tinha, o Vitório arrematou-a num dos primeiros lances e me presenteou com a cobiçada chave do portão principal, permitindo assim que eu abrisse caminho para a população que participaria da missa. Foi uma honra inédita, algo que jamais eu poderia imaginar: pegar uma chave que pesava quase meio quilo e, no meio da multidão em expectativa, abrir justamente o portão principal, com mais de três metros de altura por seis metros de largura. Para quem vivia na década de 50, as festas maiores sempre se davam em torno do clero e a Igreja era o monumento maior, o símbolo mais grandioso e nobre. Os encontros sempre ocorriam após a saída da missa. Aí os casais de namorados tinham oportunidade para passear juntos, os casados aproveitavam o descanso do trabalho no campo e os solteiros flertavam. Todos, é claro, muito bem vestidos e bastante alegres depois da última bênção, “Vão em paz e que o Senhor esteja convosco”. Em Ituporanga predominava a doutrina Católica. O povo, com fé inabalável, era encaminhado e dirigido na religião com maestria por padres franciscanos. Todos os domingos, assim, eram motivos de festa. As missas ocorriam às 7h, às 8h30 e às 10h. Os fiéis eram tantos que lotavam a Igreja Matriz, que tem praticamente o dobro do tamanho da Catedral de Florianópolis. Os confessionários, nesse dia da entrega da chave, tinham filas imensas, mesmo havendo quatro disponíveis. O Mauri, que lembra bem dessa história, diz que os padres saíam dali com os ouvidos ardendo, não sei se de tantos pecados 76 ou do tempo que passavam ouvindo a gente que acorria. A missa mais pomposa era a das 10h: era vibrante, com um coro enorme postado atrás dos fiéis, em cima, num mezanino. Em respeito a Deus ou à doutrina nós não deveríamos olhar para trás, mas confesso que era quase impossível, porque o coro de quatro vozes e o órgão tocado por Dona Bentinha eram bonitos demais e faziam vibrar aquela igreja de entusiasmo. Imaginem então a minha emoção ao abrir, pela primeira vez, as portas de uma igreja de tamanho esplendor e grandeza! Era a maior concentração de fiéis já vista na época, que além de tudo contava com o barulho dos foguetes que faziam disparar os cavalos menos avisados. Levou quatro anos para que a Igreja fosse concluída, mas considerando o tamanho da obra considero tempo recorde. Iniciada no mesmo ano em que foi inaugurado a ponte pênsil Vitório Sens, em 1950, engajaram-se nela os melhores construtores e uma comunidade coesa e unida nesse objetivo. Por falar na ponte, lembro que ela foi feita para dar passagem aos fiéis até a gruta Adão Sens. Meu marido Vitório foi o mestre de obras. Fez o desenho da ponte em nanquim, em papel vegetal e, de caprichoso que era, inspirou-se na ponte Hercílio Luz, de Florianópolis. Outra lembrança dessa época é o ano de 1955, quando o Vitório foi ao 36º Congresso Eucarístico Internacional, no Rio de Janeiro, e no seu retorno trouxe alguns presentes para cada filho e para mim. Lembro-me muito bem como fiquei feliz e radiante ao ganhar uma saia toda plissada, com faixas verticais em preto e branco. Os meus olhos deviam brilhar de alegria, porque, ao vesti-la, serviu como uma luva; parecia feita sob medida. Muitas missas me viram com a mesma roupa. 77 AS MANIAS Meu pai Emiliano, vendo que a cada ano eu e Vitório aumentávamos a prole, me deu de presente uma máquina de costura Singer. Finalmente conseguiria remendar a contento as calças curtas da filharada, que sempre rasgavam na bunda, nos joelhos e nos cotovelos. Mas o Mauri tinha uma mania que contribuía para aumentar meu trabalho como costureira: mordia o balangandã no punho da manga para segurar o próprio braço com os dentes, puindo toda a roupa. Haja conserto! Não me lembro das manias do Titi (Moacyr), mas confesso que tinha muita dó quando o via chorar de dor de dente. Aos doze anos já tinha uma restauração de ouro no central superior. Também pudera, era o primeiro a achar os bolos e doces que eu escondia para serem devorados só na hora certa! O Mário César chupava tanto o dedo a ponto de deixá-lo fino e até cair a unha. Mais tarde, quando largou o vício, adquiriu a mania de mexer no cabelo, enrolando-o com os dedos, atrás da orelha direita. A Kéia tinha uma boneca de pano e não largava por nada desse mundo. Muitos choros começavam por causa da tal boneca, e às vezes era tanto o berreiro que pensávamos que havia se machucado. A Beth antes de dormir usava um paninho e fazia caretas com os lábios, como se estivesse mamando. Mesmo já grandinha parecia sempre meu pequeno bebezinho. A Nice, meiga como sempre, certa vez estava chorando no quarto. O Mauri me chamou, fui até lá e a encontrei em frente ao espelho. Quis saber a razão e cheguei falando baixinho, devagar, para me aproximar aos poucos: – Ô mãe, olha como sou feia, mãe! – Filha, tu não és feia! Por que tu achas que és feia? – Mãe, veja meu nariz, todo arrebitado, mãe! 78 – Ele não é arrebitado! Só é pequeno, isto é normal, tu também és pequena, quando cresceres ele também vai crescer e ficará maior. – É, mas vai demorar muito, e eu queria ser bonita agora. – O teu nariz é igual ao meu. Tu me achas feia? – Não, a senhora é bonita. – Então, Nice! Tu achas que vou fazer filho feio? Os meus filhos são os mais bonitos do mundo e tu pára de chorar porque tudo em ti é bonito. – A senhora acha? – É claro, olhe só os teus olhos, que lindos. – Mas eles não são muito grandes? – E desde quando olhos grandes são feios? Nariz muito grande é que é feio. Olhos muito pequenos também são feios. Não vê os japoneses, têm olhos pequenos e cara larga: eu acho feio. – É mesmo, mãe! Japoneses são feios, coitados... – Me dá um abraço, e vamos para a cozinha. Saímos nós duas juntas, rindo dos japoneses. Ah, cada mania que tinham! 79 NICE E SUA “HEROÍNA” Muitas situações marcaram a infância das crianças de um modo especial. Hoje, relatando-me algumas passagens antigas, percebo como meus filhos compreendiam, ainda que muito jovens, meu amor incondicional por eles. Exemplo disso é a história que a Eunice – a Nice – sempre conta, uma história que, segundo ela, é guardada “no coração com um carinho especial”. No verão de 1977, a Nice tinha apenas treze anos. Ela e a Eliete brincavam no jardim, próximo ao local que chamávamos de “lado das galinhas”, enquanto um jardineiro cortava a grama. A Nice, como era de seu costume, não perdia essas ocasiões para brincar com a grama recém-cortada. Encantava-se a pequena com o cheiro e com a sensação de renovação que trazia. Solícita, propôs-se a ajudar o jardineiro que, mesmo com a máquina elétrica, penava para terminar o trabalho e, já se antevia, não recolheria totalmente a grama do chão. E lá ia ela então com um balaio recolhendo a grama do chão. Como uma verdadeira jardineira a Nice carregava o balaio, rastelando a grama com as mãos até formar pequenos montes para depois pegar tudo de uma vez e ajudar com maior presteza. Mas não é que enquanto aproveitava o momento para apreciar o cheiro da grama e concluir a tarefa passa pela rua a mãe do Zé da Tute, que gritou sem mais nem menos, sem nem bem ter certeza de que havia alguém a ouvir: “Economia, a base da porcaria!”. A Nice se desconcentrou por apenas um instante, mas foi o suficiente para que um sorrateiro fio desencapado da máquina se escondesse debaixo de um daqueles montes de grama. A pobrezinha ignorou o grito revolucionário e voltou as mãos à tarefa, levando um tremendo choque. Pelo que contam as meninas, ela deu um único e enorme grito e saiu voando até a cerca, a aproximadamente um 80 metro e meio de altura do chão. Acometeu-a, segundo as palavras que a Nice costuma usar, “uma paz eterna, como que me despedindo do mundo”. Eu acredito. Quem já sofreu um choque pode ter a dimensão do que foi aquele. Quando foi socorrida, dizia não sentir mais o corpo ou qualquer extremidade. “Uma experiência inexplicável”. Lembra a Nice que não sentiu medo ou dor, somente muita paz. Uma paz, no entanto, a 220 volts. Com o grito, a Elizete sai correndo do chuveiro ainda toda ensaboada para ver o que estava acontecendo. A Kéia também acudiu correndo, e já pensava ser uma cobra. Eu, mãe já a essa altura calejada, estava do outro lado da casa, no quintal, mas saí em disparada, atravessei o pátio, desci as escadas e fui direto à tomada que estava ao lado da churrasqueira, sem nem mesmo raciocinar direito sobre meus atos. Graças a Deus, meu instinto materno não falhou. Puxei o fio e enfim desliguei a máquina. A Nice na mesma hora caiu no chão como uma gelatina, com um buracão no meio de seu dedo indicador. Mais alguns segundos e certamente não teria sobrevivido. Naquela noite fomos todos à Novena, agradecer a Deus por salvar a sua vida. A Nice conta hoje que entre suas preces agradeceu especialmente por ter uma mãe corajosa e com instinto protetor, “uma verdadeira heroína!”, como fala sempre que me encontra. 81 IRMÃS CORAGEM Era primavera do ano de 1978, só restavam em casa eu e minhas filhas Nice e Eliete. Eu contava já com 61 anos. A Nice já se achava “grandinha” com seus 14 anos e a Eliete ainda tinha 11. Os outros filhos todos já tinham saído para a universidade em Florianópolis. O dia estava lindo. Aproveitei para deixar as janelas todas abertas para o fresco ar de Ituporanga e passei para outro cômodo da casa na seqüência da arrumação diária. Deus ajuda quem cedo madruga, falei para mim mesma, depois de olhar o relógio na parede dando sete horas. De repente começa uma barulheira na cozinha. Ouço a Eliete correr e fechar todas as janelas. A Nice ia junto, tentando de todo modo ajudar, mas as duas começam um verdadeiro alvoroço. Escutando aquilo, fui rapidamente à cozinha dar conta do que ocorria; deparei-me com as duas ofegantes a me explicar que caçavam um passarinho. O pobre tinha entrado na cozinha e não conseguia mais sair. Queriam apenas colocá-lo a salvo na rua, devolver-lhe a liberdade. Rapidamente busquei com os olhos e de pronto percebi pelo vôo: que nada de passarinho! Era mesmo um morcego, e dos grandes! Um tanto assustada com a presença, gritei “Meninas, o que estão fazendo! Isto é um morcego”. Nesse exato momento toda a bondade do coração ainda infantil se evaporou e deu lugar a uma quase fobia. Gritavam e gritavam, até que correram para debaixo da mesa, ainda gritando, e me deixaram sozinha com a vassoura lutando contra o bicho. Na primeira oportunidade, num instante de coragem, correram para o quarto e lá ficaram quietinhas, observando minha ação pela brecha da porta: em cima da mesa, cabeça da vassoura para cima, tentava a todo custo convencer o morcego de que a cozinha não era o melhor lugar para ele. 82 Enfim o animal fugiu pelas janelas já abertas e as duas correram para me abraçar. Nesse instante a Nice me confidenciou: havia ficado com remorso por ter me deixado sozinha com o morcego, mas, “Mãe”, disse ela, “eu sei que sou grandinha, mas coragem para matar um morcego eu não tinha”. 83 TEMPOS DE PRINCESA Quando meu pai Emiliano de Sá e minha madrasta Clara Bunn se estabeleceram em Salto Grande, a atual Ituporanga, já havia um grande salão de bailes chamado Salão 7 de Setembro, de propriedade de Jacob Mathias Sens, aquele que viria a ser meu sogro. Não se pode dizer que era um luxo, mas para os padrões da época não deixava nada a desejar se comparado com os das cidades maiores. Todo em madeiras nobres, com cadeiras confortáveis revestidas dos melhores tecidos, o Salão 7 de Setembro era o ponto de encontro dos casais de Salto Grande. Ali se realizavam as festas dos casamentos mais ricos, as domingueiras e, é claro, o famoso baile anual para eleição da rainha de Salto Grande, que animava a cidade nas semanas que o antecediam e trazia gente de tudo quanto é lugar, inclusive de Rio do Sul. 84 JACOB MATHIAS SENS, CECÍLIA CLASEN E FILHOS A rádio começava a dar as primeiras notícias praticamente um mês antes. “Senhoras e senhores, em setembro vindouro realizar-se-á, no Salão 7 de Setembro, de Jacob Mathias Sens, o grandioso baile anual, que elegerá a rainha de Salto Grande”, anunciava o locutor com a voz empostada empolgando a todos. E logo o burburinho tomava conta da cidade. Todas as moças, não só as candidatas, tinham os mesmos pensamentos; em todas as rodas de amigas se ouvia o mesmo assunto: quem seriam as princesas, quem seria a rainha, que valsa escolher em caso de ser eleita; os detalhes eram pensados com antecedência de modo que dia após dia a ansiedade crescia progressivamente. Até 1938 eu só assistia a tudo isso de fora, mas com os olhos e ouvidos atentos a cada detalhe do que se passava; e sempre acompanhada de perto por meu pai, mesmo naqueles poucos bailes de que havia participado sem qualquer 85 pretensão maior. Mas nesse ano foi diferente. Meu pai chegou certa vez do serviço e, do jeito que sempre fazia, tirou as botas, olhou firme dentro dos meus olhos e perguntou: “Carmen, tu gostarias de participar da eleição de rainha de Salto Grande”? Eu sabia que eram requisitos para a eleição simpatia, beleza e um belo vestido. Aquela proposta, vinda de meu pai, era não só um presente como um grande elogio, porque pressupunha que eu exibia (ou poderia exibir) todos aqueles atributos. De início, muito encabulada e completamente atônita com a proposta – para mim até então algo inimaginável – não soube o que falar. Segundos depois, quando passaram como um filme todas as lembranças dos bailes anteriores pela minha mente – as recordações dos lindos vestidos das rainhas, das românticas valsas dançadas pelas eleitas com seus pares e da alegria das eleitas –, respondi rapidamente que sim, que aceitava participar do concurso, e lhe dei um beijo na testa. Lembro ainda hoje do sorriso de canto de boca de meu pai depois do meu “sim”: puxando rapidamente um lado dos lábios, sorriu introspectivo, praticamente só com os olhos. Parecia prever algo ou estar entabulando alguma surpresa para mim. Certamente, como bom pai que era, estava alegre de ter uma filha que pudesse participar de evento tão importante na sociedade em que ele e Clara Bunn procuravam aos poucos se inserir. A proposta, o sim, o beijo e o sorriso. Como fogo em pólvora, no instante seguinte iniciaram-se os preparativos, não sem antes espalhar entusiasmada para as amigas fiéis que participaria do concurso. A primeira preocupação era o vestido. A candidata deveria chegar ao baile muito bem pronta, quesito fundamental a ser avaliado pelos eleitores. Por isso tinha que pensar na possibilidade de frio e de calor, na fazenda que seria utilizada, no sapato, numa pulseira adequada, no colar e na flor que arremataria todo o conjunto. É claro, também precisei treinar a valsa, pensar de antemão qual seria a música escolhida, imaginar algumas palavras para falar na hora se fosse 86 solicitada a tanto. Tudo isso só aumentava a ansiedade, mas o principal e também o mais divertido de tudo, por conta dos cochichos na cidade, era escolher em sigilo quem seria o par da primeira valsa da rainha. Não que eu esperasse e estivesse confiante para ser eleita, mas tudo deveria ser previsto nos mínimos detalhes para não se correr o risco de, em sendo a escolhida, fazer fiasqueira diante de toda a sociedade. Meu pai se encarregou de comprar a melhor fazenda disponível na região para o vestido. Depois, me autorizou a levá-la à costureira Marta Ludwig, que, como se eu já fosse a rainha, colocou-me num pedestal, em frente a seu espelho, e tomou minhas medidas. O modelo do vestido fui eu quem escolheu. Nas semanas seguintes, principalmente no domingo após a missa, conversava com minhas amigas sobre as expectativas, sobre os candidatos a dançarem a valsa e sobre a música que escolheria. Claro que apenas para as mais íntimas eu revelava os detalhes, porque um toque de surpresa seria essencial no momento da eleição. Isso se realmente eu fosse eleita, porque ainda para mim tudo não passava de um sonho distante. A eleição nesse ano confirmou o nome de Elvira Sens como rainha, como todos prevíamos, o que não tirou o brilho de sua vitória. Mas inesperadamente, depois da Elvira, meu coração deu um salto e corei quando ouvi a voz do senhor Braulino chamar pelo meu nome: “Carmen Neves de Sá”, ecoou pelo Salão 7 de Setembro, “primeira princesa de Salto Grande”. Lembro bem que, ainda sem acreditar que pudesse realmente ter sido eleita, tomei assento como primeira princesa, como a segunda moça mais bem votada no baile. A alegria logo tomou conta mas, como registra a fotografia tirada à época, ainda estava um tanto quanto incrédula de que aquilo realmente estivesse acontecendo. 87 CARMEN NEVES DE SÁ ELEITA PRIMEIRA PRINCESA DE SALTO GRANDE EM 1938 88 O baile prosseguiu como todos os anos, com muita dança e muita alegria. Não pude ficar até muito tarde – os bailes começavam às nove horas – porque o trabalho de meu pai no dia seguinte já o chamava; precisávamos voltar. Nesse dia, lembro bem, dormi ao som das harpas dos anjos, com a sensação de haver realizado um sonho que até pouco tempo parecia inalcançável para uma pessoa que sofrera tanto na infância. Já empossada princesa de Salto Grande, tornei-me um pouco mais conhecida na cidade e certamente isso chamou a atenção do Vitório Sens, filho do dono do Salão 7 de Setembro, o homem que viria a ser meu marido. Uma vez ou outra, em largos espaços de tempo, acontecia de nos encontrarmos no caminho do armazém ou na missa. Trocávamos cumprimentos simpáticos, ele sempre um verdadeiro cavalheiro, acenando para mim com reverência. Diria mais tarde, quando enfim entendi por que meu pai havia dado aquele sorriso enigmático quando confirmei que participaria da eleição, que me tratava assim porque “uma princesa merece respeito e admiração”. Foram-se os últimos meses de 1938, passaram-se 1939 e 1940 sem que houvesse bailes, por conta de uma reforma promovida pelo Jacob Mathias Sens e pelos problemas decorrentes da Segunda Guerra Mundial, até que em 1941 novamente se ouvia a voz do locutor da rádio local conclamando todos a participar do “grandioso baile do Salão 7 de Setembro”, em que seria escolhida a rainha de Salto Grande, com suas duas princesas. As lembranças do baile anterior continuavam firmes na memória, assim como a vontade de participar mais uma vez. Mas eu, embora já com vinte anos, ainda não poderia decidir nada sem o aval de meu pai, nem mesmo se me candidataria ou não nesse ano. É claro que minha vontade era participar, não por interesse no título ou por intenção de competir, mas porque gostava muito de dançar, de ouvir uma boa música e de me divertir ao lado das pessoas que gosto. Certo dia, quase tomando a iniciativa para pedir autorização a meu pai, 89 chega ele em casa, tira as botas, senta-se à mesa para o jantar e diz logo de saída: “Carmen, tu já estás sabendo do baile deste ano?”. Eu, antevendo a próxima pergunta, disse ainda meio encabulada: “Sim, pai, deu na rádio durante a semana, estão comentando...”. Meu pai Emiliano então indagou, inicialmente circunspecto, mas abrindo um sorriso ao final: “E tu queres participar, não queres”? “Claro que sim”, respondi, e lhe dei um abraço, agradecendo novamente pelo bom coração que tinha. Instantes depois minha mente já não trabalhava noutra coisa: os deliciosos preparativos! Dessa vez – decidi depois que meu pai comprou a fazenda – o vestido seria mais longo, mais elegante, de gala. Cobriria o colo e teria cintura um pouco alta, franzida, para alongar o corpo. Haveria babados duplos nos braços, mas com a manga curta, e eu ostentaria um adereço especial no alto do peito, no lado esquerdo. Usaria braceletes e um colar que reservava apenas para ocasiões especiais. Os sapatos seriam também muito bonitos, mas o principal quesito neles seria o conforto: da outra vez, fosse o baile até um pouco mais tarde, voltaria para casa com enormes bolhas nos pés. Novamente passaram-se as semanas com toda apreensão e expectativa. Às minhas amigas mais íntimas havia confessado, sob as juras de segredo absoluto, quem escolheria para a valsa. Vitório Sens era o filho de Jacob Mathias Sens, o dono do Salão 7 de Setembro, um rapaz bastante trabalhador e íntegro, que há algum tempo, desde que fui eleita como princesa, demonstrava interesse por mim. Segundo havia chegado aos meus ouvidos, vinha se aproximando de meu pai no seu cartório, o que vinha ficando cada vez mais claro, já que todas as vezes em que precisava de seus serviços de tabelião para a emissão da licença para os bailes o Vitório puxava conversa especialmente com meu pai. Aliás, meu pai e o pai do Vitório costumavam tomar juntos alguns tragos no bar que meu futuro sogro tinha, além de jogarem bocha juntos, o que aproximava os laços entre as famílias. 90 E foi então que no dia 1º de setembro de 1941 meu pai me conduziu pelas escadarias do Salão 7 de Setembro e ganhei olhares curiosos de alguns, assim como, não posso mentir, olhares de admiração de outros tantos. “Então a filha do Emiliano concorreria novamente neste ano”?, podia-se entrever a pergunta nos olhos de muitos. Depois das formalidades iniciais, comandadas pelo senhor Braulino Guimarães, o juiz de paz de Salto Grande, iniciou-se a apuração de votos. Colhiam-se um a um da urna, depois eram lidos em alto e bom som e por fim depositados noutra urna para conferência em caso de impugnação. Toda a excitação do momento, a ansiedade das semanas anteriores, a expectativa, tudo convergia para o grande momento, em que o senhor Braulino declarava encerrada a votação e passava à apuração, somando os dados anotados em seu caderno com o semblante sério, quase carrancudo, que o caracterizava. Aí então levantava-se, olhava para todos, cumprimentava mais uma vez os presentes e enfim anunciava o resultado. Dessa vez começou de trás para frente, para tornar ainda mais tenso o resultado às participantes. “Com 161 votos, Elvira Sens é eleita a segunda princesa”, anunciou o senhor Braulino, concitando os presentes às palmas. “Com 183 votos”, fazia uma longa pausa, “Wictalina Sens é a primeira princesa”. Nesse momento já não esperava mais o resultado, embora ainda uma pontinha de esperança me fizesse grudar os olhos no juiz de paz. Enfim, depois de uma longa salva de palmas às princesas, o senhor Braulino, pedindo meio desajeitado o silêncio necessário para a leitura, deu o último resultado: “Com 271 votos... Carmen Neves de Sá é a rainha de Salto Grande”! Levei as mãos à boca, procurando conter o grito de exclamação. Inspirei firme para evitar que a emoção se tornasse por demais aparente e, em seguida, ao comando do juiz, subi ao palco do Salão 7 de Setembro para receber o maior dos três buquês de flores. Na foto consegui conter um pouco a alegria, até para 91 não desagradar as princesas, mas fiz a pose com naturalidade. CARMEN NEVES DE SÁ ELEITA RAINHA DE SALTO GRANDE COM 271 VOTOS, EM 1º DE SETEMBRO DE 1941 Um fato interessante que recordo bem é que Elvira, talvez um pouco magoada com a perda do posto, não quis posar para as tradicionais fotos, em que 92 a rainha ficava ao centro e cada uma das princesas ao seu lado. E, como não havia quem a convencesse a posar, o fotógrafo preferiu bater a foto comigo sozinha, sem nenhuma princesa. É por isso que na foto que tenho em casa estou eu no centro, com a placa indicando o número de votos abaixo, e os outros dois lugares vagos, mas igualmente com as placas das duas princesas. Após apurar os votos e declarar o resultado, o juiz Braulino Guimarães disse de forma solene: “A rainha tem o direito de escolher a primeira valsa”. Como eu já havia decidido previamente, disse elegante que minha preferida era Saudade de Matão, uma valsa que apesar da letra triste – fala de um amor impossível – tem melodia linda e fez muito sucesso à época. A letra era a seguinte: Neste mundo eu choro a dor Para uma paixão sem fim Ninguém conhece a razão Porque eu choro no mundo assim Quando lá no céu surgir Uma peregrina flor Pois todos devem saber Que a sorte que me tirou Foi uma grande dor Lá no céu Junto a Deus Em silêncio minha alma descansa E na terra Todos cantam Eu lamento a minha Desventura desta pobre dor 93 Ninguém me diz que sofrer Tanto assim Esta dor que me consome Não posso viver Eu só quero morrer Vou partir para bem longe daqui Já que a sorte não quis Me fazer feliz A orquestra afinou os instrumentos, começou os primeiros compassos e em seguida, mantendo a perfeita organização em tudo, o senhor Braulino anunciou que a rainha poderia escolher seu par. É claro que já havia decidido que o Vitório seria o escolhido, embora houvesse, não posso esconder, alguns outros pretendentes no baile. Comecei a descer do palco em direção ao salão e percebi no rosto do Vitório que, das duas uma, ou minhas amigas haviam quebrado o juramento ou o Vitório já havia percebido minhas intenções, porque parecia estar confiante demais. Como havia outros pretendentes e ele sabia disso, resolvi caminhar lentamente em direção ao Vitório, mas sem fitá-lo, mirando meus olhos em um outro rapaz, que estava às suas costas, levemente à esquerda. Seguia com passos calmos mas firmes, com a banda ainda na introdução à música e, quando me aproximei do Vitório, resolvi seguir o passo como se fosse para aquele outro pretendente. Senti de longe a respiração do meu futuro marido parar e vi seu rosto branco, sem saber como agir. Percebendo que faria uma grande bobeira, um verdadeiro fiasco, rapidamente dei meia volta, postei-me à sua frente e o cumprimentei, esticando o braço para dar minha mão direita a ele. Nesse exato momento da execução da música, o cantor introduziu a letra e como que um 94 ns suspiro coletivo pôde ser sentido pelos que conheciam nossa história e torciam por nós. “A Carmen escolheu o certo”, devem ter pensado. Escolhi bem mesmo! Logo que começamos os primeiros passos percebi o quão nervoso o Vitório havia ficado. Dançava duro, rodava muito forte pelo salão, e aí percebi que ele estava mais interessado em mim do que eu podia imaginar – e, confesso, até mais do que eu por ele. Algum tempo depois, numa das cartas românticas que recebi, Vitório escreveu que havia realmente ficado com um pouco de ciúmes. Entendi plenamente. Foi um momento de bobeira. O baile seguiu maravilhoso. Como era de costume, depois da primeira valsa com o escolhido, a rainha dançaria com todos os que a tirassem, até que o baile acabasse. E assim mesmo foi. Exausta, despedi-me de todos lá pela uma hora da madrugada e voltei para casa com meu pai. O Vitório, embora moço respeitável e correto, ficou até o final do baile, porque tinha que auxiliar seu pai até o final. Dessa vez, depois do baile, o Vitório tomou coragem e passou a me visitar em casa mais freqüentemente. Chegava à tarde, nos finais de semana, como quem não quer nada, como quem estivesse passando por ali ao acaso, via-me através da janela cuidando de algum dos afazeres domésticos e puxava a prosa. Noutras vezes nos encontrávamos na Tarde Dançante, a domingueira de Salto Grande. No começo conversávamos um pouco no portão, mas como não pegava bem para moças direitas, meu pai sempre pedia que entrássemos e nos deixava conversando na cozinha. Os assuntos eram os mais variados, mas o Vitório sempre falava mais – muito mais – porque tinha bastante assunto, já que lidava com o comércio e com muitas pessoas. Eu, que ainda não tinha a liberdade necessária para extrapolar os limites do centro da cidade, mais ouvia que falava. Os assuntos foram se mostrando cada vez mais interessantes, até porque o Vitório sabia bem como contar uma história, e então praticamente em todos os sábados conversávamos das seis da tarde até perto das nove horas. 95 Nessa hora, lembro bem, meu pai Emiliano, que como todos na época tinha o costume de dormir muito cedo por conta do trabalho, mandava o Vitório andar, dizendo meio ríspido da sala onde lia algum livro: “Carmen, tá na hora”. Era o sinal. Eu me levantava, agradecia ao Vitório pela conversa, abria a porta da casa e me despedia. A Zulma, brincalhona que só ela, sempre aprontava uma para o casal de namorados. A sua brincadeira preferida era nos espionar. Na cozinha havia uma janela que dava para o “quarto escuro”, o lugar onde ficavam algumas tranqueiras da casa. Enquanto conversávamos, a Zulma espiava pela janela, e como o Vitório sentava de costas para o quarto, só eu a via, o que às vezes me fazia perder a atenção na história. Não sei se o Vitório percebia meus olhares por cima de seu ombro, mas eu quase não conseguia conter o riso, principalmente porque a Zulma surgia com a cabeça na janela e fazia caretas. Puxava as duas orelhas, ficava vesga e mostrava a língua. Depois de se familiarizar com o Vitório, a Zulma passou a brincar também com ele, fazendo “uh, uh”, quase como se fosse bicho do mato. Aí não havia como conter a risada. Tanto eu quanto o Vitório gostávamos muito das suas brincadeiras, mas depois, quando queríamos fazer alguma confidência, quando os olhares ficavam mais românticos, quando o assunto era nosso futuro, aí a mandávamos para a cama. E justamente nesses momentos é que o Vitório começou a falar em casamento. Primeiro comentava de uma ou outra festa bonita que tinha ocorrido no Salão 7 de Setembro. Depois aos poucos começou a falar dos filhos que queria ter, da casa que queria construir, da felicidade que seria ter uma grande família. Eu não podia negar. Aquele homem elegante, trabalhador, que me tratava com o maior respeito e tinha bom papo certamente seria um bom marido, como de fato foi. O amor surgiu aos poucos, mas ainda hoje, apesar de sua morte há quase quarenta anos, é intenso o que sinto por ele, não só pelo que construímos 96 juntos, mas pelo companheiro fiel de tantas ocasiões que foi. Por livre e espontânea vontade assenti quando me perguntou se podia pedir minha mão em casamento ao meu pai. Lembro bem do dia em que fez o pedido: o Vitório, apesar de já conhecer meu pai há algum tempo, estava nervoso e empalideceu quando abriu a boca para falar: “Seu Emiliano, peço sua bênção para me casar com sua filha Carmen”. Meu pai, que, é claro, a essa altura já sabia das intenções do Vitório e concordava – porque caso contrário o teria mandado embora de nossa casa há tempo –, aceitou prontamente. Apertou a mão do Vitório, desejou-nos felicidade. Para minha surpresa, o Vitório já havia se antecipado: tirou do bolso as alianças e colocou a minha, na frente de meu pai, em meu dedo anular direito. Ali também me deu um beijo no rosto, bastante educado; na boca, só depois de casados. Naquele instante percebi que ao dizer que aceitava, meu pai deu aquele mesmo sorriso de canto de boca, sorrindo com os olhos, com que havia me perguntado anos atrás se gostaria de participar do baile. Só ali entendi o que já era óbvio: meu pai e o Vitório há tempos vinham conversando sobre nosso casamento. Para mim não importava; aliás, achei é muito bom que a família inteira já estivesse de acordo com nossa união. Talvez por isso tenha sido abençoada por Deus. Quatro meses depois casaríamos, o que significou um grande apuro para fazer o enxoval. A maioria das roupas de cama, de mesa e de banho era comprada, mas alguma coisa sempre tinha de ser feita à mão. Comprava-se o tecido em metro e costuravam-se os detalhes, como bainhas, babados e nomes. A dona Marta Ludwig costurou boa parte do enxoval, ajudando em muito a família. Como data da cerimônia o Vitório propositalmente escolheu o dia 30 de maio de 1942. Nesse dia haveria em Ituporanga a tradicional Coroação de Nossa Senhora, festa em que a Igreja era muito bem aprestada pelos religiosos. Quando 97 eu soube da coincidência tive mais uma vez a certeza de quão inteligente seria o meu marido. Escolheu o dia justamente para aproveitar a decoração da Igreja e gastar um pouco menos! Hoje minhas amigas sempre dizem que família boa assim nunca viram na vida, o que me deixa muito orgulhosa. Sei que no fundo a união entre os irmãos e o respeito que têm por mim e pelo Vitório são fruto dessas sementes bem plantadas que foram nossos primeiros passos juntos. Depois, é claro, a educação durante os anos, o carinho e a felicidade que sempre procuramos manter entre todos, tudo foi igualmente fundamental para manter forte a família. E que todos assim continuem e perpetuem esse espírito em suas famílias, com a mesma coragem e determinação que tivemos, com o mesmo companheirismo que fez parte de nossa família desde o começo. Esse é meu maior desejo. 98 MINHA RELIGIOSIDADE Ao concluir este livro, ao lê-lo e relê-lo, percebo uma verdade: ao longo de minha vida sempre nutri a fé, o amor e a esperança. A fé em Deus, porque sei que sem Sua mão protetora o fardo teria sido pesado demais, pois foi Ele quem me guiou, me fez vencer as intempéries da vida e suas adversidades. Busquei sempre na religião o conforto espiritual para minhas dores. Foi na fé em Deus que obtive respostas para as perdas tão prematuras de meu amado esposo Vitório e de meu querido filho Mário César. Só na religião consegui forças para vencer a solidão e levar adiante minha missão de mãe. Na religião encontrei também o conforto nas situações difíceis de minha infância. É muito comum nos sentirmos desencorajados e desesperados quando as coisas não vão bem, mas Deus age em nosso benefício, mesmo nos momentos de dor e sofrimento. Sei disso e sempre agradeço a Ele. No amor também consegui guiar minha vida, porque sem esse sentimento nada se constrói. Ele é a base de tudo; sem o amor não teria conseguido manter unida a família, nem educado meus filhos com tanto zelo e dedicação. E na esperança percebi que sempre há motivos mais do que suficientes para recomeçarmos a cada manhã. Por isso sempre digo e repito, “nunca deixe de acreditar, porque parte de nós é o que esperamos da vida”. Com paciência alcançaremos sempre nossos sonhos. É só confiando em Deus, experimentando Sua presença e amor que nos sentiremos encorajados e esperançosos para continuar o caminho. Muito do que vivi e do como vivi é fruto desse apego a Deus. E é por isso que hoje, com meus oitenta e cinco anos, tenho forças para reunir meus filhos e com a ajuda de todos eles concluir uma obra como esta, que vinha desde há muito tempo gestando para só agora dá-la à luz. 99 Espero que o resultado tenha agradado ao leitor que até aqui chegou e, se possível, possa nele inspirar o respeito e admiração pelo passado, mas sempre com o ânimo de perseguir o futuro com tenacidade. 100 ANEXO ÚNICO FELIZ NATAL Discurso proferido no Natal de 2005 – E de onde vem o fio? – Como é que gira o pinheiro e as luzes não apagam, meu Deus do céu? – Tem motor? É... como dava orgulho ver toda aquela gente acudir lá em casa para ver o presépio montado pelo vô Vitório! Nós ainda éramos muito pequenos, não tínhamos a menor idéia do que estava acontecendo, mas os olhos ficavam esbugalhados ao ver os olhos mais esbugalhados ainda da vizinhança que admirava a engenhoca construída pelo meu pai, um sujeito que mal tinha completado os estudos formais. Devia ter gente que achava que ele era mágico! Sempre perguntavam as mesmas coisas, e, com o tempo, já sabíamos até explicar. – E de onde vem o fio? – perguntava o vizinho da frente. – E gira!!! – dizia assustada a vizinha. – Como funciona? – perguntava um forasteiro de passagem pela cidade. Mas preferíamos ficar quietinhos, esperando para ver se adivinhavam o segredo: o motor ficava embaixo do assoalho e um intrincado sistema de roldanas criava sete rotações diferentes. Numa tocava o disco com trinta e três rotações, noutra o pinheiro girava, noutra o presépio se movia. E ainda sobrava para a iluminação do pinheiro e para uma roda d'água, que imitava a presença de vaga-lumes. 101 Que orgulho dava ser daquela família! Que orgulho dava o Natal em Ituporanga. E hoje estamos aqui novamente! Depois de um tempo desativada voltou com tudo o que para mim era a fábrica dos sonhos de Natal. E que orgulho dá lembrar de tudo o que vivemos nesta casa e tentar repetir um pouco das façanhas de tanto tempo atrás! Hoje todos vêm com seus carros. Tem gente que vem até dos “States” de avião. Mas na época, um dos melhores presentes que ganhamos foi um carrinho de correr morro, todo construído pelo nosso pai Vitório. Naquele tempo Schumacher para nós era só o sobrenome de alguns primos, mas já nos considerávamos hexacampeões no “grande prêmio” do “Morro do Hospital”. O carrinho que o vô Vitório construiu era quase um caminhão: tinha cabine para umas duas crianças – se fossem só da família, de tão magros, devia caber uns dez! –, rolamento, roda torneada que imitava pneu de verdade, direção de madeira, capô de lata, freio de pé, central e até cinco parafusos nas rodas. 102 Era pra se sentir rico mesmo! Morando numa casa que tinha mata-junta, essa proteção entre a junta de uma tábua e outra da casa, e tendo a piazada da cidade a nos empurrar morro acima para poder descer uma vez no caminhão dos filhos do Vitório, na minha cabeça de criança vivíamos mesmo como pequenos príncipes. Era como o Titi dizia mesmo: “quando criança, parecia que éramos ricos”. E o bom é que toda a nossa riqueza vinha da simplicidade, da alegria, da dedicação e da grande amizade que sempre uniu nossa família. Ninguém era rico de dinheiro. Em casa todo mundo ajudava para que ninguém passasse dificuldades, mas a impressão que eu sempre tive é de ter tido a melhor infância do mundo. Uma família unida, irmãos sempre juntos e aquele Natal maravilhoso que se repete ainda hoje, mesmo depois de quase quarenta anos da morte do pai Vitório. Na verdade, com o passar dos tempos passei a achar que tinha aí um toque de Deus. E na minha imaginação de criança, só poderia ser um agradecimento divino àquela família que fazia os mais bonitos altares de Corpus Christi da cidade. Como eu costumo dizer: “era um feito de encher os olhos”. Isso tudo com a ajuda da tia Metcha e da tia Lotte. 103 Ah, que bons tempos aqueles! E ainda bem que hoje conseguimos repetir um pouco das façanhas da época. Lembro ainda que a Kéia ganhou um prêmio de melhor bandeira numa procissão, o Márcio fez inovações elétricas numa roda d´água, cada vez o Moacyr inventava um peão mais diferente que o outro, biblioquês e carrinhos. O Nego fez um jogo de xadrez todo no torno, e nosso pai Vitório, apesar de asmático, sempre achava tempo e disposição para nos ajudar. Hoje somos mais de cinqüenta filhos e netos da Carmen e do Vitório. Muitos nem conheciam a casa de Ituporanga. Os netos mais velhos, que cansaram de esfolar os joelhos correndo com os brinquedos trazidos pelo Papai Noel na entrada da fábrica de balas devem estar espantados com o que vêem hoje. Aquela casa – gigantesca para os pequenos que mal conseguiam subir pelas escadas – hoje está novamente linda, como sempre foi. Talvez alguns dos primos ainda hoje olhem para o morro e pensem que o Papai Noel mora lá, numa gruta do lado da cruz, como dizíamos a eles. Mal sabem que é no Pólo Norte! E quantos ainda hoje tentam descobrir qual dos tios era o Papai Noel, que vinha de Saveiro e fazia mágicas e brincadeiras? O olhar radiante dos pequenos quando viam o bom velhinho sorridente chegar também ficou e ainda hoje fica marcado na memória de todos. Tenho a certeza que, como eu, cada um dos irmãos ainda se emociona quando lembra do rosto de seus pequenos quando viram pela primeira vez o tão esperado Papai Noel. E de lembrar do rosto de cada um imagino como era para as crianças: uma viagem interminável de todos os cantos de Santa Catarina e até do Rio de Janeiro para uma casa cheia de mistérios, onde sempre os tios contavam histórias mirabolantes. Tinha aquela do café camargo que muitos ainda pedem para contar ainda hoje.... E o sótão cheio de quinquilharias que intrigava a todas as crianças? Primeiro porque já era difícil e arriscado chegar lá: alto, escuro, quente. Depois, porque todos diziam que os bichos, cobras, gambás e outros monstros 104 assustadores pegavam as crianças que não se comportavam. E o porão? As capas dos discos velhos do vô Vitório davam medo. As revistas antigas também apavoravam. As crianças apostavam para ver quem era o mais corajoso a entrar primeiro. Passava-se por uma portinha estreita para entrar no porão “mal assombrado”, como as crianças gostavam de chamá-lo, onde iam “fazer aventuras”. A poeira era tanta que volta e meia um saía espirrando e assim ficava o dia inteiro. Isso quando não levava um tombo e incomodava o resto do Natal! Mas, na verdade, para as crianças toda a casa era o grande palco das brincadeiras com os presentes que na noite anterior tinha sido trazidos pelo Papai Noel: era a pista de corrida das bicicletas ultravelozes; o campo de batalha dos soldadinhos; a cozinha das bonecas das meninas; o campo de futebol e a quadra de vôlei dos que tinham ganhado uma bola; enfim, a casa do vô Vitório era a casa dos sonhos de Natal. Para os adultos, mais uma oportunidade de se reencontrarem, colocarem na balança a correria do ano inteiro, trocarem idéias mirabolantes sobre inventos, experiências e novas idéias que surgiam. Para nós adultos não adiantava. Apesar de não ter mais torno, tínhamos que dar um jeito de inventar e reinventar as coisas, de construir e reconstruir a vida e os laços de fraternidade que sempre nos uniam. No fundo no fundo, acredito que a vida da vó Carmen e do vô Vitório sintetiza a grande mensagem de Natal que gostaria de passar neste ano: sejamos sinceros, sejamos irmãos, sejamos amigos, sejamos honestos e trabalhadores; como o torno que esculpia a madeira na casa de Ituporanga, preparem o coração para celebrar o nascimento daquele que é símbolo de bondade, respeito, amor e compreensão e lapidar nossas vidas de acordo com os ensinamentos Dele. Feliz Natal a todos! 105