NÃO POSSO AFIRMAR em que momento
tudo começou. Não sei nem se alguma coisa começou. Meu verdadeiro ponto de partida são as
horas brancas em que permaneci diante da tela.
Virando todas as noites que antecederam o número
um do topo da página decidi não crer nas palavras.
Elejo então como o momentoemquetudocomeçou
o dia de hoje, mais do que isso, o agora. Espero o
ônibus num ponto. Sei que parece um bom ponto
de partida para o delírio que ora ensaio, mas este
pela última vez.
Talvez vinte, trinta, quarenta minutos tenham passado. Nenhum ônibus sequer. Talvez
ainda seja noite, mas o calor não para de derreter
as pessoas que, como eu, esperam. Os poucos que
têm forças para andar se quebram como ovos e
escorrem fundindo-se ao piche. Não muito longe,
recipientes transbordando vermes e baratas malcheirosos aguardam a companhia de lixo. Algumas árvores morrem além. O paredão que normalmente acolhe os que esperam, recuados no ponto
de ônibus, já devorou alguns de meus pares. Tento
curtos passos lá e cá, na intenção de distrair a impaciência que urra no meu estômago e lembrar o
número do ônibus. Em vão. Mal sei aonde devo ir.
Se lembrasse ao menos de onde vim teria uma pista. Nada. Reconheço apenas o ponto, a parada que
placas da cidade.
Pela décima vez retiro um passe do bolso.
Meu último bem. No mais apenas a roupa do corpo: blusão desbotado, jeans, tênis. O relógio que
pesa em meu pulso perdeu seu valor. Apenas uma
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insossa recordação de quando o tempo funcionava, nas histórias e na vida. Tendo perdido esse
tempo, decidi não crer mais nas histórias, muito
menos na vida.
te para pagar a passagem. Não sei desde quando
aquela falsa moeda morava em meu bolso. Moedas mesmo, deixei-as no último bar. Talvez fosse
a brotar entre o poste e a calçada. Arrastei-me
dissimuladamente até ocupar a primeira vaga do
espaço onde em breve se estenderia a mancha
comprida do oásis que os postes oferecem aos que
esperam ônibus inexistentes, à noite, no calor.
O vale ovaleovale, anda logo senão te furo.
Saído de dentro do poste, ele me ameaça com um
canivete. Apesar de bem mais alto, seus olhos
e as feições da arma que empunha parecem-me
inofensivos. É o único que tenho, eu tentaria argumentar. Antes que o pensamento se formalize,
ele avança voraz mordendo o vale-transporte com
que eu acabava de enxugar o suor da testa. Sob
seu canino esquerdo esguicha sangue do meu
rasgo que os dentes do faminto desenham na misuas unhas deslizam dilacerando meu braço até
encontrarem resistência na pulseira que arrebenta.
O relógio cai. Pelo outro lado o canivete perfura
calmamente meu fígado.
Polícia, chamaapolícia, uma mulher, que
também esperava, inicia uma súplica estéril e se
cala sob o olhar de reprovação dos outros que resistem no ponto. Uma sirene, ao longe, anuncia a
aproximação da viatura. Assustado, o pivete recua
e me sorri ofegante. Por seus lábios entreabertos
pinta-se a bandeira da França com um fragmento
azul do bilhete rasgado e gotas de sangue, sobre o
branco dos dentes. A sirene cada vez mais próxima. Atravessando rapidamente a rua, ele se atira
na caçamba de lixo e desaparece para sempre.
O sangue escorre pelo buraco do lado direito do meu abdome. A vista começa a embaçar. Esde onde deveriam surgir os ônibus, desponta uma
ambulância em alta velocidade, cada vez mais
próxima. Fecho os olhos aliviado. Pelo menos poderia sair sem pagar passagem. O volume da sirene chega ao máximo e volta a se afastar, lançando
a poeira da rua em meu corpo.
Lá vai mais um desses ricaços com parada
cardíaca, comenta alguém no ponto. Um vulto
quente se aproxima. Entreabro os olhos e percebo
que um sujeito se agacha ao meu lado. Tento me
erguer. Com o relógio de pulseira arrebentada nas
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mãos, ele me olha envergonhado, como um ladrão
disfarça andando. Ei, quero gritar. Não tenho voz.
Agora, como fazer para voltar? Antes, embora não houvesse ônibus, embora não houvesse
volta, aquele vale era minha salvação. Não há
mais saída. De qualquer jeito, eu já tinha decidido
não crer na liberdade. Talvez tudo tenha começado mesmo muito antes de meu pai ir embora,
quando eu ainda acreditava. Mas não é possível
voltar. Tudo o que posso construir é a partir dessa
parada.
primo a ferida com a mão. Um maldito ônibus
tempo em direção à porta. Me imagino subindo
no veículo como os outros, mas nem me mexo. A
mulher que clamara pela polícia me atira discretamente um lenço antes de galgar a escada. Umas
contrações no fígado dão-me a impressão de que
minhas entranhas ainda estão sendo investigadas
pelo canivete.
O lenço entre minhas mãos talvez fosse
para estancar o sangue. Cheguei a dobrá-lo como
uma compressa. Mas a ferida é enorme. Nem uma
bandeira poderia cobri-la. Nenhuma. Levei-o ao
nariz atraído pelo perfume adocicado. Certamen-
te não foi para servir de gaze que ela me jogara
aquele lenço. Foi, sim, seu penúltimo gesto de
resistência, assim como o fora chamar a polícia,
contrariando os que se afastavam em silêncio. Penúltimo porque o último foi ter entrado naquele
ônibus, me abandonando.
É o perfume do lenço que anestesia minha
dor. Fez-me lembrar rosa. Não por ser perfume de
rosa, que, na verdade, nem usava perfumes. É o
cheiro do teu corpo que me atrai, disse-lhe, certa
vez, quando passávamos por uma dessas lojas em
que vendedoras sorridentes e bem vestidas atacam possíveis fregueses empunhando sprays. Não
menti. Mas o que motivou realmente tal declaração melosa foi mais o meu bolso que o cheiro de
rosa. O fato é que ela nunca mais usou perfumes
e eu me habituei àquele cheiro. De mulher. Que
subsiste a qualquer perfume. O mesmo odor que
me inebria no lenço, evocando a vaga possibilidade de rosa estar me esperando em casa, como
sempre.
Mas agora não é sempre. Nossa casa já é
bem capaz de ter desabado como a noite desaba na
sombra do poste. Um barulho de motor me faz virar para a rua. Respiro – moribundo que vai dizer
a última palavra – e levanto. Se conseguir bater
um papo com o trocador, dizer que fui assaltado,
etc, etc, talvez ele me dê uma carona e eu chegue
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a tempo de tirar rosa dos escombros. Como toda
última palavra de moribundo, meu gesto também
morreu pela metade. Contorci-me de dor voltei a
sentar. O ônibus passou deixando-me com mais
poeira na cara e com o lenço embebido em sangue.
Foi-se tua última chance, rosa. Nenhum perfume permaneceria sob o vinho que brota do meu
as ruínas de nossa casa, tentando desistir como eu,
eu, como a cidade se desmilinguindo ao redor.
Do prédio em frente, através do silêncio da
rua deserta, vaza uma música. Levanto a cabeça:
apenas uma janela aberta e iluminada. É aquele
ponto luminoso e sonoro que parece conter o prédio. Um centro de gravidade que revoluciona as
leis da física: som e luz. Tenho certeza de que se o
valente morador daquele apartamento desligasse
um disjuntor a construção desmoronaria como o
resto da cidade.
Apuro a audição. É mesmo um samba do
Vinícius, mas não o da rosa. É aquele que diz
que pra fazer samba tem que ter tristeza, mas que
o samba é pai da alegria, qualquer coisa assim.
Tento prestar mais atenção, para ouvir a parte da
olhos de rosa, as mãos de rosa, o que me animaria
a levantar, pedir um trocado ao grupo de rapazes
carecas que se aproxima e esperar também o próximo ônibus, mas eles vêm em tanto alvoroço, falando tão alto que mal dá tempo.
Os carecas estão embriagados e articulam
uma língua impossível. Embora eu já estivesse
decidido a não mais esperar ônibus algum, minha mão permaneceu estendida. Que horas são,
por favor. Pergunto como quem pede uma esmola. Imediatamente se entreolham e desatam numa
contorce como um epilético; outro se encurrala no
muro – um condenado que espera o fuzilamento;
o terceiro se aproxima com um cigarro aceso, traga fundo. A brasa brilha e em seguida é apagada
na palma da minha mão estendida.
No mesmo momento, ouço a aproximação
de alguém pelo lado oposto. Dois disparos liquidam com o epiléptico e com o condenado. O fumante ensaia uma fuga correndo, mas um terceiro
tiro o faz continuar, rastejando.
Acaba com esse puto, o desconhecido que
se aproximara estende-me a pistola. Tem a aparência de um mendigo. Não temos mais o direito
nem de pedir esmolas, diz. É um mendigo. Devemos nos unir contra esses vândalos, continua. E
pelo jeito me confunde com algum colega. Olho
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para o fumante que ainda se arrasta e ganha alguma distância. Tomo a pistola em minhas mãos e
fuzilo o mendigo. O fumante já tinha me deixado
em paz e os outros dois se confundiam com o cimento mole da calçada.
Procuro ainda a voz de Vinícius, mas só há
rosa não me espera mais. Está soterrada, provavelmeio dos escombros como a imagem que guardo
dela. Como um eco que estoura meus tímpanos.
Desde quando anotei o número um no topo
Sonhei que para escrever bastava ligar o computador e abrir a janela: gaivotas raras, o Pão de Açúcar eterno e um ou outro avião sobre a Guanabara.
fundo de garantia foi por motivo de saúde. Não
pude sair deste apartamento moribundo. Meus vizinhos me evitam. E me contento com a paisagem
dos fundos: uma rua malcheirosa onde cabeças
frenéticas disputam o espaço com carrocerias motorizadas.
Apesar de ser apenas uma placa, uma convenção – o que é a cidade senão um conjunto de
convenções disfarçado em arquitetura? – a parada
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