O VIOLÃO FEMININO NA REPÚBLICA VELHA: Um Recorte social entre 1920-1930. José Jarbas Pinheiro Ruas Júnior Dentro deste breve artigo, gostaríamos de expor alguns eventos que se mostraram importantes e favoráveis ao desenvolvimento da prática violonística entre as décadas de 1920 e 1930 no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Neste período, destacamos a importante contribuição dada pelas mulheres pertencentes a “boa sociedade” carioca, que empunharam seus violões e contribuíram formidavelmente à promoção da reconstrução da imagem do “mavioso” instrumento. Instrumento que por suas mãos conquistaram inúmeros adeptos à prática e à audição, tornando-o digno pelos esforços promovidos durante este dado período a frequentar as “altas” rodas da sociedade carioca. Tal empenho dado por estas jovens senhoritas revelam-se aos nossos dias pelas fontes que nos chegaram, mostrando nosso amado instrumento sendo empunhado não apenas por elas, como também por tantos outros amantes dedicados e empenhados no objetivo de ascender o violão às salas de concerto, deixando gradativamente ao passado o estigma de instrumento renegado às baixas classes sociais, caracterizado por mero acompanhador de canções. Até este dado momento da República Velha a imagem do violão estava diretamente associada à figura do malandro, do boêmio, aos conjuntos de choro que tocavam por toda cidade e às serestas realizadas à luz do luar que nem sempre terminavam de forma harmoniosa. Marcado pelo profundo desprezo e por severas críticas, o violão era apresentado esporadicamente em respeitosas apresentações dignas do reconhecimento da crítica musical deste período. Durante anos os grandes nomes do violão internacional apenas passavam pelo Rio de Janeiro a fim de embarcarem com destino a Buenos Aires, única “praça julgada por eles capaz de recompensá-los”, como explicita o Dr. Dantas de Souza Pombo, editor da revista “o Violão”. Dentro dessas pontuais e eventuais apresentações violonísticas ocorridas durante a República Velha, destacamos o recital de Nair de Teffé, realizado em outubro de 1914, no palácio do Catete. Nair de Teffé, mulher de inúmeros talentos, criada na França, desenvolveu suas atividades artísticas por lá, tal como o gosto pela música e pelas artes plásticas. Dedicou-se ao desenho, especificamente na arte de fazer caricaturas da alta sociedade, destacando-se assim como a primeira mulher brasileira a fazer parte da história do desenho nacional. Em 1913, case-se com o então presidente da República Hermes da Fonseca. Seu recital tomou status de escândalo devido ao pronunciamento no senado por Rui Barbosa, que fora derrotado por Hermes da Fonseca nas últimas eleições presidenciais. Em seu discurso, Barbosa critica a execução da música Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga. Esta música, integrante do programa da recepção presidencial, foi considerada por ele a “mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, irmãgêmea do batuque do cateretê do samba”. Nair de Teffé pode ser considerada como uma das precursoras do fenômeno dado no final dos anos 20, quando inúmeras senhoritas empenharam-se na apresentação de recitais de canto e violão ao público. Em 1917, um ano após a primeira série de apresentações do violonista paraguaio Augustin Barrios pelo Brasil, o Rio de Janeiro recebe três concertos da então conceituada violonista espanhola, discípula de Francisco Tárrega (1852- 1909), Josefina Robledo. O recital de Josefina Robledo foi grandemente elogiado pelo Jornal do Commércio, apontando as virtudes de sua excelente execução ao instrumento no programa realizado. Destacamos uma parte das palavras dirigidas à violonista por meio da crítica feita pelo Jornal. “A Sra. Robledo concorreu fortemente para elevar o violão no conceito social. Ella pode gabar-se de ser uma violonista de valor incontestável, possuidora de uma execução rica de recursos, preciosa de sonoridade. À primeira impressão duvida-se de que todos aquelles effeitos com que a Sra. Robledo encanta os ouvidos do seu auditório sejam tirados do ingrato instrumento por ella dedilhado e que mantém sempre em posições distintas e elegantes.” Após estes recitais, a violonista espanhola retornou ao Brasil, residindo aqui por aproximadamente dois anos, divididos entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, onde desenvolveu um trabalho didático a um restrito grupo de violonistas, ensinando os fundamentos da técnica ao instrumento da então denominada Escola Moderna do violão de seu grande mestre, Tárrega. Anos mais tarde, em 1929, a revista “O violão” em seu editorial expressa a grande importância da presença desta grande violonista em nossas terras com as seguintes palavras, “Infelizmente ainda não temos quem se assemelhe a Robledo, como não temos conhecimento de alguém que tenha feito, aqui, a escola completa de seu formidável mestre e incomparável creador. Não temos porque até aqui muito pouca gente conhecia essa escola. Embora Josefina Robledo tivesse leccionado no Rio, não tendo Tárrega nenhum método publicado, ella foi trasmitindo sua escola, aos poucos, aos seus alumnos. Seu discipulo, Eustachio Alves, foi que concatenou com ella, todas as escalas, harpejos e exercicios e graças a elle, quando Robledo partiu, tiveram alguns dos nossos violonistas a ventura de possuil-os, como José Rabello e outros amadores. (…) depois da sua estadia aqui foi que o estudo do violão se elevou e passou a ser seriamente cultivado.” A presença de Robledo parece-nos ter sido tão marcante ao meio musical carioca que a loja “A guitarra de Prata” produziu com exclusividade violões batizando-os com o nome da distinta e prestigiada violonista, divulgando-o com os seguintes dizeres em propaganda a revista “O Violão”: “O violão modelo Josefhina Robledo é um instrumento de elite para a elite. Elaborado em proporções technicas e de lavor sóbrio é um typo muito próprio para o bello sexo e satisfaz sempre tanto os mestres como os discípulos. CAUTELA! O modelo Josefhina Robledo é de nossa exclusiva fabricação, e é fácil identificar os legítimos os quaes trazem no interior o rotulo representando a eximia violonista executando no seu instrumento”. Antes de tratarmos sobre a revista “O violão” destacaremos algumas ações importantes e distintas por parte do Jornal “Correio da Manhã”, dirigido por Edmundo Bittencourt. Por volta de 1926, o jornal inaugura uma coluna denominada “Pelo que é nosso” dedicando esse espaço para a divulgação das “coisas” de nossa terra, tratando sobre o nacionalismo e o regionalismo. Em 1927, o “Correio da Manhã” promove o concurso “Pelo que é nosso”, aberto para várias categorias dentre elas, música - violão e canto - onde o objetivo era proporcionar à cidade uma grande vitrina da música brasileira. As provas de música foram realizadas no Theatro Lyrico. O concurso de violão por sua vez contou com a participação de três candidatos, a menina Yvonne Rabelo, Américo Jacomino – o Canhoto - e o cego Manuel de Lima. Os candidatos deveriam executar além de uma peça do repertório clássico, uma obra de estilo típico brasileiro e ainda uma peça de livre escolha. Entretanto, devido a grande debilidade de acesso ao repertório erudito à época, apenas a pequena Yvonne executou uma obra do repertório clássico, ficando então com o segundo prêmio, por tão nova ser capaz de interpretar uma peça de tal repertório. O primeiro prêmio foi entregue para o violonista Américo Jacomino por sua experiência ao instrumento. A partir da criação da coluna “Pelo que é nosso”, o violonista Joaquim dos Santos, mais conhecido como Quincas Laranjeiras, um dos grandes e mais requisitados professores de música do Rio de Janeiro neste período, contribuía semanalmente para o crescimento do repertório violonistico por meio das publicações de seus arranjos e partituras neste espaço. Ao final de 1928 surge um dos principais estandartes empenhados a ascensão e defesa do “mavioso” instrumento. Trata-se da revista “O violão”. Publicada mensalmente entre os anos de 1928 e 1929, foi um dos responsáveis pela difusão da técnica violonística da Escola de Tarrega, além de ter promovido e divulgado concertos e arranjos a ela endereçados. Estes arranjos eram enviados ou por grandes nomes da música da época, ou por seus fiéis e apaixonados leitores. Em seu editorial de abril de 1929, a revista credita ao Jornal “Correio da Manhã” “o desejo de crear, estimular e incentivar o estudo de violão” entre a alta sociedade carioca. Nota-se tal campanha de estímulo entre os leitores deste “grande órgão da imprensa brasileira” nos seguintes dizeres expressos na primeira publicação da coluna “Pelo que é nosso”: “Revivamos a modinha nacional; o que é nosso, muito nosso, o que podemos ter orgulho da nossa alma – a fala dos nossos corações … O violão! O altofalante da alma nacional. Nenhum outro instrumento sabe exprimir tão bem os nossos cantares plangentes e alegres”. Dessa forma o violão foi gradativamente obtendo acesso nesta parcela da sociedade anteriormente fechada a este, conquistando assim inúmeros adeptos. Dentro desse grupo de adeptos, destacaremos a participação e colaboração de algumas jovens amantes dedicadas a este instrumento. Estas senhoritas contribuíram para o desenvolvimento e ascensão do violão escrevendo arranjos e participando de recitais e sarais, alguns destes promovidos por jornais, clubes e grêmios frequentados pela aristocracia carioca. Utilizaremos algumas matérias da revista “o Violão” para mencionarmos algumas dessas jovens senhoritas que obtiveram grande notoriedade em seu tempo. Começaremos apontando duas jovens de bairros aristocráticos da sociedade carioca. Ambas foram eleitas miss de seus respectivos bairros. A primeira trata-se da senhorita Luisa Marinho de Azevedo, miss Leblon, aparecendo em foto dedicada à revista. A segunda jovem a ser mencionada é a senhorita Laura Suarez, miss Ipanema, que aparece à revista anunciando seu recital de violão e canto. Abaixo destacamos a nota feita pela revista, divulgando tal evento: “Annuncia-se para breve, segundo nos consta, em junho, um recital de violão e canto da senhorita Laura Suarez. Será, por certo, um acontecimento artístico á que a nossa sociedade elegante emprestará todo o brilho de sua presença, pois que como se sabe a senhorita em questão, é um fino temperamento de artista. Ainda mais, e o que é importantissimo, no momento, é ella a detentora do glorioso titulo de “miss Ipanema”, que os seus milhares de admiradores no bairro aristocratico lhe confiriram numa unanimidade brilhante. Sobram, pois, motivos para que esse dia seja ansiosamente esperado por todos aquelles que amam essas horas de arte e elevancia.” Em sua edição referente ao mês de julho a revista publica uma foto de Laura Suarez na tarde de seu recital realizado no Thetro Lyrico, posando à foto juntamente com alguns poetas. Destacamos nesta foto a presença da ilustre poetisa Anna Amelia Carneiro de Mendonça, mulher que esteve ligada a eventos da Federação pelo Progresso Feminino Brasileiro, movimento feminista liderado pela bióloga Bertha Lutz. Outra figura marcante no Rio de Janeiro neste instante foi a “Intelligente e progressista” Olga Bergamini, vencedora do concurso miss Brasil. Jovem talentosa, também violonista, encantava o público com sua bela voz. “Dotada de aptidões invulgares, nas horas de displicência, dedilhou os primeiros accordes aprendidos a esmo e os adaptou aos seus conhecimentos musicaes. Possuindo uma voz bem timbrada e educada, foi-se acompanhando e conseguiu adeantarse muito, adeantamento esse que se tornou maior depois do aparecimento desta revista da qual é leitora assídua e á qual dedica honrosa affeição”, como noticia a revista “O Violão”. Helena de Magalhães Castro, outra ilustre e talentosa cantora de muito sucesso que também empunhava o violão em suas apresentações de canto, obteve destaque na revista “O Violão”. Esta senhorita era conhecida por interpretar belissimamente as canções de nossa terra de forma inigualável. Assim, destacamos a nota dada pela revista ao seu concerto realizado no Theatro Cassino Beira-Mar. “Revestiu-se de um brilhantismo raro a noite de arte que, hontem, a senhorita Helena de Magalhães Castro proporcionou ao nosso publico elegante, no Cassino Beira Mar.(...) Como já tivemos occasião de dizer nessas mesmas páginas, Helena é a maior interprete de nossas canções. Nas toadas regionaes, é inexcedível além de que é uma declamadora eximia. Quem melhor o sabe, senão a elegantissima e numerosa assistência que nessa noite a applaudiu calorosamente? A nossa querida patrícia partira em breve, para Sevilha, onde vae representar o que é nosso, no gênero em que ella é inegualavel. Poucas vezes em occasiões semelhantes, se tem feito uma escolha tão acertada. Quem substituirá Helena no cantar com tanta brejeirice essas modinhas caipiras, essas toadas paulistas, canções gauchas, sambas nortistas, toda essa gamma de sentimentos dessemelhantes, tantos, que só uma intelligencia multiforme poderia abarcar?” Podemos assim observar nitidamente através destas matérias publicadas pela revista “O Violão” a presença do nosso instrumento participando ativamente dentro da esfera da “alta” sociedade carioca. Com grande notoriedade no cenário nacional e posteriormente internacional apresentamos a jovem senhorita Olga Pragner. Olga dedicou-se ao estudo do violão logo após sua chegada à cidade do Rio de Janeiro por volta de 1923, tendo aulas do instrumento com Patrício Teixeira, responsável também por promover sua carreira artística e fonográfica. Juntamente com seus estudos de violão, Olga graduou-se em canto pelo Instituto Nacional de Música (atual Escola de Música da UFRJ). Por aqui também desenvolveu uma carreira didática ensinando a um grande número de senhoritas a arte do violão. Dotada de uma técnica excepcional, na década de 40, Olga muda-se para os Estados Unidos por conta de sua carreira musical. Lá conheceu o renomado violonista e concertista Andreas Segovia, com quem se casou. Por meio de sua união com Segovia, Olga obteve um aprimoramento da sua técnica ao instrumento. Uma das práticas muito comuns a grande parte dos violonistas na década de 1920 e 1930 era a produção de arranjos e adaptações para o instrumento a fim de ampliarem seu repertório. Além dos arranjos de sua autoria, Olga recebeu inúmeros arranjos de compositores renomados, como a Bachiana nº 5 feito pelo próprio Villa Lobos, dedicado a ela, bem como os de autoria de seu próprio marido que apresentavam segundo ela, uma extrema dificuldade tanto ao canto como ao instrumento. Assim como Olga Pragner, outras mulheres também produziam seus próprios arranjos. Os pontos de publicação destas obras estavam normalmente destinados à coluna do Jornal “Correio da Manhã” ou à revista “O Violão”. Eis aqui uma nota da revista referente aos meses de agosto-setembro com o título “Bom signal” apontando justamente a respeito dos arranjos enviados por suas distintas leitoras. “Publicamos no numero passado uma intelligente colaboração da senhorita Célia Borges, neste numero outra collaboradora nova surge, não menos intelligente, a senhorita Maria Luiza Galdo e, para o próximo, já temos uma adaptação de canto e acompanhamento em violão da senhorita Olga Pragner, a maravilhosa interprete de canções que todos nós admiramos. (...) A labareda esta ahi crescendo cada vez mais, alimentada a sua força pela arte e pela graça brasileira de Olga Pragner, Helena de Magalhães Castro, Jessy Barbosa e outras tantas sacerdotisas, que em recitais e reuniões familiares mantêm o fogo sagrado. A revista rejubila-se com esse movimento que é toda a sua recompensa almejada e aqui estará para contribuir com o seu grão de areia.” Além de Olga Pragner, outras senhoritas imortalizaram suas lindíssimas vozes por meio das gravações em discos de 78 rpm como Stefana de Macedo, Jessy Barbosa, Helena de Magalhães Castro, Heloísa Helena, a paulista Yvonne Daumerie, a miss Brasil Olga Bergamini e tantas outras. A revista “O Violão” durante todo seu período de publicação cedeu suas páginas ofertando o merecido espaço e voz a todos aqueles que lutaram pela ascensão do instrumento. Nota-se em suas páginas espaço principalmente cedido às mulheres violonistas daquela época, publicando suas cartas, arranjos, recitais e fotos. Podemos afirmar que este estandarte do instrumento datado do início do século XX deu o merecido e devido valor ao belo sexo atuante na área da música brasileira. Esta atuação feminina diante do instrumento foi considerada um fenômeno julgado como um movimento altamente promissor que frutificou, continua frutificando e dará ainda muitos frutos à nossa música. A todas as mulheres que empenharam seus esforços à ascensão deste nobre instrumento dedicamos estas breves palavras. BIBLIOGRAFIA BURKE, Peter. O que é história Cultural? Ed. Zahar, 2005. ____________. Formas de hacer História. Alianza Editorial, 1996, Madrid. CASTRO, Renato Moreira Varoni de: Os caminhos da Viola no Rio de Janeiro no século XIX. Tese de mestrado UFRJ, 2007. CATROGA, Fernando: Memória, História e Historiografia. Ed. Quarteto, 1ª Ed., 2001, Coimbra. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e outros. 2ª ed. – Rio de Janeiro: DP&A,1998. PEREIRA, Fernanda Maria Cerqueira: O violão na sociedade carioca (1900-1930): técnicas, estéticas e ideologias. Tese de mestrado UFRJ, 2007. 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