INDISSOCIABILIDADE ENTRE ENSINO, PESQUISA
PERCURSOS DE UM PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
Alderlândia da Silva Maciel – UFAC
Sueli Mazzilli – UNISANTOS
Agência Financiadora: CAPES
E
EXTENSÃO:
A universidade brasileira tem sido, ao longo de sua história, palco de disputas entre diferentes
projetos de sociedade, que se manifestam em diferentes modos de conceber o papel social desta
instituição. Quando da elaboração da Constituição Brasileira de 1988, o Fórum Nacional da
Educação na Constituinte liderou a aprovação de emenda popular que formulava o princípio da
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como paradigma de uma universidade
socialmente referenciada e expressão da expectativa de construção de um projeto democrático
de sociedade, que se tornou o artigo 207 da Constituição. Este estudo analisa como este
princípio foi se configurando no cenário da educação superior brasileira nos vinte anos que se
sucederam após a promulgação daquela Carta Constitucional. Partindo da premissa que as
políticas e ações governamentais para a educação superior no Brasil, orientadas prioritariamente
por interesses econômicos, se contrapõem à idéia de universidade contida naquele princípio
constitucional, analisa-se os percursos desse principio, a partir das críticas de estudiosos
pautadas pela expectativa de materialização desse princípio, como matriz conceitual do papel
social da universidade brasileira.
A política educacional para a educação superior proposta pelo Estado brasileiro
vem sendo analisada por estudiosos da área a partir da crítica ao modelo denominado Estado
mínimo, que traz como conseqüência, na educação, a valorização dos mecanismos de mercado,
apelo à iniciativa privada e às organizações não-governamentais, em detrimento do lugar e do
papel do Estado como poder público, resultando na inevitável redução das ações e recursos que
deveriam ser investidos na educação pública.
Estas pesquisas mostram que está presente nas atuais políticas para o ensino
superior um conjunto de ações já concretizadas, que põem em questão o papel da universidade
como lócus de aquisição e produção do conhecimento. Para Sguissardi (2006),
O fim do século XX pôs a educação superior na berlinda. A ciência e
o ensino superior tornaram-se muito mais presentes como fatores de
produção e parte integrante da economia, mercadorias ou quasemercadorias, em países centrais, da periferia e semi-periferia. Da
mesma forma que o diagnóstico neoliberal identifica entre as
principais causas do fracasso da economia do Estado de bem-estar sua
crescente falta de competitividade, também a educação superior –
entendida como parte essencial da economia moderna – necessitaria
passar por um choque de competitividade (p. 1035, grifos do autor).
Em tempos de reformas neoliberais, as políticas educacionais para o ensino
superior desempenham um papel fundamental em um contexto mais amplo das ações do Estado
brasileiro. Embora não exista um projeto oficial aprovado pelo governo que contenha uma
proposta para este nível de ensino em todas as suas dimensões, é possível identificar reformas
pontuais levadas a cabo, em sua grande maioria, mediante aprovações de leis, decretos e
2
portarias. Paralelamente às críticas e insatisfações diante das políticas públicas para educação
superior em curso, emergem também, dos discursos críticos, uma concepção de universidade
pública que se contrapõe à evidenciada nas políticas governamentais.
Analisando a literatura que tem como foco principal as propostas dos governos
neoliberais, seus desdobramentos e conseqüências para o ensino superior, encontram-se análises
e propostas que se distinguem da concepção mercadológica e utilitarista que pauta as políticas
vigentes.
Buscando identificar na história da universidade brasileira a matriz conceitual que
sustenta as análises criticas sobre o modelo de educação superior em curso, é possível
reconhecer o importante papel que exerceu na formulação de uma concepção de universidade
voltada para os interesses da maioria da população as teses elaboradas pela Associação Nacional
dos Docentes do Ensino Superior (ANDES), que tem no princípio da indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão sua ancoragem. Partindo da hipótese que esta concepção de
universidade foi historicamente gerada pelas forças sociais que incorporaram o discurso contrahegemônico em nossa sociedade, este estudo analisa as polêmicas e contradições que envolvem
o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nos vinte anos após sua
inclusão na Constituição Federal de 1988.
Para o desenvolvimento da investigação que deu origem a esse artigo, foram
realizadas entrevistas com algumas pessoas que participaram/participam das discussões sobre as
ações da ANDES-SN referentes à sua proposta de universidade. A idéia foi conhecer – para
além da literatura consultada – um pouco mais da história da ANDES-SN e da construção de
sua proposta para universidade brasileira a partir de seus protagonistas.
Do material bibliográfico selecionado para realização deste estudo merecem
destaque aqueles que se constituíram como fontes primárias de análises do percurso do princípio
da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão a partir de sua inclusão no artigo 207 da
Constituição Federal de 1988 até 2008. Nesta perspectiva, foram tomadas produções da
ANDES-SN tais como Relatórios de Congressos, a Proposta da Andes para Universidade
Brasileira, publicações da Revista Universidade e Sociedade, entre outros documentos.
Dos estudos sobre a trajetória da universidade brasileira e dos embates ocorridos na
década de 1960, onde se evidenciam os conflitos em torno de um novo projeto de universidade
– e, possivelmente, vai se construindo um pensamento crítico com relação à universidade, tida
como promotora de ascensão política e social para uma pequena parcela da população, e se
redefinindo outras premissas que poderão ser identificadas no processo de construção do projeto
de universidade da ANDES – destacam-se os de Fernandes (1979); Fávero (2000); Cunha
(1986); Pécaut (1990); Sguissardi (2006) e as pesquisas realizadas por Mazzilli (1996); Navarro
(2001); entre outros autores.
3
Das publicações da literatura referentes ao período estudado, foram eleitos autores
que abordam as políticas públicas educacionais para o ensino superior considerando a relação
entre projetos de universidade e projetos de sociedade e que reconhecem estas políticas em suas
múltiplas determinações e contradições, como parte de um contexto político e econômico mais
amplo. Especial atenção foi dedicada à análise das políticas públicas educacionais para o ensino
superior dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, denominado também octênio FHC,
e aos seis primeiros anos do Governo Lula da Silva (2003-2008), uma vez que as políticas
desenvolvidas por estes governos são as mais evidenciadas no período que nos propusemos a
estudar e as que mais impacto negativo causaram à aplicação do princípio da indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão como elemento constituinte fundamental de uma universidade.
Elegemos também algumas publicações do Grupo de Trabalho Política de
Educação Superior (GT 11) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(ANPED) durante o período de investigação mencionado: 1988-2008. Este GT é constituído
pelos principais pesquisadores da área de políticas de educação superior, sendo um espaço
privilegiado de divulgação da percepção dos teóricos sobre o tema, o que justifica nossa opção
em buscar neste acervo aqueles que tratavam especificamente de questões relacionadas ao
princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, durante estes vinte anos de sua
inclusão no artigo 207 da Constituição Federal de 1988.
Por fim, no intuito de conhecer dados oficiais relativos ao ensino superior que
permitissem situar indicativos de materialização do principio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão, recorremos ao resultado do último censo da educação superior,
informações referentes ao ano de 2008, divulgados em novembro de 2009, de acordo com o
órgão responsável, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira –
INEP.
O artigo aqui apresentado reúne alguns pontos destacados ao longo da
investigação.
De acordo com a bibliografia e documentos consultados, a ANDES, juntamente
com outras entidades sociais que integravam o Fórum da Educação na Constituinte (1987),
formulou a idéia da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como possibilidade de
uma universidade pública, gratuita, autônoma, democrática e socialmente relevante. O período
de reabertura política constituiu-se em um solo fértil de debates e houve toda uma mobilização
das forças de oposição, atuantes no campo da educação, que contribuiu decisivamente para a
inclusão deste princípio no artigo 207 da Constituição Federal. Assim, a Proposta das AD’s e da
ANDES para a Universidade Brasileira (ANDES, 1982) como um projeto datado, teve toda sua
significação naquele contexto – pós-ditadura, reabertura política, democratização, reorganização
do movimento social.
4
Desde então, a ANDES-SN reafirma constantemente sua proposta de universidade
sem abrir mão do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como base
de uma universidade socialmente referenciada, em que pesem os embates e dificuldades
enfrentados nos últimos vinte anos com as políticas públicas oficiais. A última versão publicada
daquela proposta, (ANDES, 2003), ao referir-se aos princípios que fundamentam o denominado
padrão unitário de qualidade, reafirma:
O princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão
reflete um conceito de qualidade do trabalho acadêmico que favorece
a aproximação entre universidade e sociedade, a auto-reflexão crítica,
a emancipação teórica e prática dos estudantes e o significado social
do trabalho acadêmico. A concretização deste princípio supõe a
realização de projetos coletivos de trabalho que se referenciem na
avaliação institucional, no planejamento das ações institucionais e na
avaliação que leve em conta o interesse da maioria da sociedade
(p.30).
Em termos de concepção de universidade, observamos que, mesmo quando os
teóricos que fazem a críticas às políticas oficiais não mencionam a proposta de universidade da
ANDES-SN, há certa articulação com os princípios básicos desta proposta naquilo que
vislumbram como referência de universidade necessária à inclusão da maioria e ao defenderem
estas três funções como primordiais para alcançarmos um patamar mínimo de qualidade, como
se pode observar nos argumentos de Mazzilli (1996):
A tentativa de implantação de um modelo de universidade baseado no
modelo empresarial de qualidade e produtividade vem se dando a
partir de iniciativas de avaliação do ensino superior fundadas na
avaliação do trabalho acadêmico, no enfoque dos desempenhos
individuais, sem circunstanciar as condições concretas e históricas, do
ponto de vista social e institucional, em que esse trabalho ocorre (...)
contrapondo-se ao discurso oficial, entidades científicas e sindicais e
diversos teóricos têm apontado outras saídas para a crise. A
democratização da universidade, nessa perspectiva, significa atribuir o
poder de decisão a quem a faz e ao Estado sua manutenção, o que
implica garantia de acesso e de permanência, socialização da produção
e da gestão (...) a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão
é apontada, nessa perspectiva, como critério de qualidade na
concretização de um trabalho acadêmico assim referenciado. (p. 9).
A autora expressa, assim, que o papel social da universidade na construção de uma
sociedade igualitária e democrática requer a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão. Como aponta Pucci (1991, p.33-42), a expressão “indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão” não deve ser considerada como uma fraseologia de efeito, mas deve ser
um instrumento na direção da construção de uma universidade de um bom nível acadêmico,
pública, autônoma, democrática, que efetivamente propicie a inclusão da maioria de acordo
com suas necessidades concretas.
Neste mesmo sentido, Mancebo (2008) também reconhece que,
5
mesmo considerando toda a conjuntura adversa para a educação
superior, há que se registrar o que oferece tensão e conflita (...)
movimento que se contrapõem, seja no campo acadêmico, ou no
campo sindical [trabalhos apresentados nas Reuniões Anuais da
ANPED, especialmente os do GT 11, e as lutas e enfrentamentos da
ANDES-SN] às políticas para educação superior (...) tais iniciativas
críticas e insurgentes dão consistência à crença de que, em se tratando
de universidade, sempre existe a possibilidade de um momento de
suspensão, no qual se reelabora outro código de sociabilidade, outro
código de civilidade e de relação com o público, no qual se pode
construir o dissenso, desafiando o paradigma do pensamento único,
para indagar outros saberes, outras práticas, outros sujeitos, outros
imaginários capazes de conservar viva a chama de alternativas para
essa ordem social de hegemonia do capital (Lander, 2001) e de
construir um sentido social, ético e mais igualitário para a
universidade (p. 68-69).
Com efeito, a concepção de ensino superior disposta no artigo 207 da Constituição
Federal, “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão
financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão”, consagra uma luta histórica dos movimentos sociais (de educadores, de
docentes, da comunidade científica, de estudantes e da sociedade civil organizada em geral) em
defesa da liberdade acadêmica e de autogestão (Catani e Oliveira, 2002, p. 78). Para estes
autores, este artigo 207
(...) parece ter implícita a pretensão de confirmar um dado modelo de
universidade, ou melhor, de confirmar a própria universidade como
instituição e ideal de referência para o conjunto das IES. Nesse
sentido, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão visa a
concretização de um padrão de qualidade na oferta da educação
superior, assim como a limitação de fortes constrangimentos estatais,
mercadológicos ou de outra natureza que consubstanciem dependência
nos processos de ensino, de produção e de difusão do conhecimento
(p. 79).
Tão logo aprovada a nova Carta Constitucional, no entanto, inúmeras foram as
tentativas de retirar o art. 207, através de emendas constitucionais, uma vez que o padrão de
qualidade exigido por este artigo feria interesses políticos e econômicos tanto dos setores
públicos como privados. Embora frustradas essas tentativas, com a aprovação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, em 1996, abre-se na educação brasileira espaços para, na
prática, permitir a omissão deste princípio. Ao tratar da educação superior, a Lei nº 9394/96
prevê apenas, em seu artigo 45, que esta “será ministrada em instituições de ensino superior
públicas ou privadas, com vários graus de abrangência e especialização”. O decreto 2.207/97,
substituído em seguida pelo decreto nº 2.306/97, estabeleceu, oficialmente, a tipologia das
instituições de ensino superior, regulamentando o disposto no artigo 45 da LDB, criando a
figura dos polêmicos Centros Universitários e abrindo um leque de opções para a organização
6
das IES, possibilitando o oferecimento de cursos superiores apenas através do ensino, sem a
inclusão da pesquisa e da extensão como funções que, associadas ao ensino, cumpririam o
dispositivo constitucional. Um decreto mais recente sobre a concepção e grau de autonomia dos
centros universitários, o de nº 5.786/2006, no artigo 2º define que “Os centros universitários
(...) poderão criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação
superior, assim como remanejar ou ampliar vagas nos cursos nos termos deste decreto”.
Conforme argumentam Fávero e Segenreich (2008) este decreto não somente se
volta à definição de centro universitário de 1997, mas também
enfatiza a excelência do ensino sem menção à indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão, como também é reduzido o percentual
mínimo de professores em tempo integral a ser exigido nas avaliações,
diminuindo de 33% para 20%. Quanto ao seu grau de autonomia, ele
atende aos principais interesses das mantenedoras dessas IES (...)
percebemos que prevaleceu a visão de uma instituição que tem,
praticamente, todas as prerrogativas de autonomia de universidade
sem a obrigação de desenvolver institucionalmente a pós-graduação
stricto sensu e a pesquisa (p. 176, grifos nossos).
Do ponto de vista da legislação e das políticas públicas para o ensino superior
como um todo, o quadro que se apresenta em relação ao cumprimento do princípio da
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão é pouco promissor. Observa-se que este
fator não é algo isolado, mas que faz parte de uma política maior, que extrapola, inclusive, os
limites da política nacional. As ações governamentais brasileiras em seu contexto de ajustes
macroeconômicos para América Latina, sob orientação de organismos externos – como o Banco
Mundial, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional – requereram
também ajustes em outras áreas como a educação.
É esta demanda mais ampla que explica, portanto, o percurso polêmico do
princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nos últimos vinte anos, não
sendo reafirmado nem na Lei de Diretrizes e Bases nº 9394/96, nem nas legislações posteriores,
pois as mesmas são produzidas dentro de um em contexto que não interessa esta
indissociabilidade: a expectativa é que seja encurtado o tempo de formação para que o alunado
retorne imediatamente para o mercado de trabalho. Para isto a formação em forma de
treinamento é suficiente, dispensando a formação possibilitada pela pesquisa e pela extensão.
Na revisão da literatura feita sobre o princípio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão, percebemos que muitas palavras-chaves que estão na legislação tornaramse uma sorte de jargão para alguns analistas. Muita gente fala hoje do princípio da
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como se fosse algo apenas da lei, não um
princípio teórico, de uma visão que se contrapõe à universidade concreta que temos.
7
Gomes e Moraes (2009, p. 1), ao afirmarem a tese de que a “transição ou a
transformação histórica dos sistemas de educação superior segue três grandes fases: vai do
sistema de elite para o sistema de massa e deste pode chegar ao sistema de acesso universal”,
argumentam:.
No curso histórico da sociedade brasileira já se encontra claramente
delineado a fase do sistema de elite de educação superior, o qual, por
razões econômicas, políticas, sociais e culturais vêm sendo
profundamente remodelado por meio de políticas de corte “liberalconservador” (governo FHC) e “neoliberal-populista” (governo Lula)
(...) fazendo emergir, apenas contemporaneamente, o sistema de
massa. Contudo, estamos muito distantes de um sistema de acesso
universal, cenário que não se apresenta, infelizmente, como realidade
possível nas duas ou três décadas vindouras deste século (p. 12, grifos
dos autores).
Os governos FHC e Lula da Silva, ao flexibilizarem a organização e
funcionamento das Instituições de Ensino Superior por meio de decretos, contribuíram ainda
mais para reduzir o grau de cumprimento do princípio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão como referência para as IES, que, além de transmitir, deveriam produzir e
compartilhar conhecimentos mediante sua função de extensão.
A LDB nº 9394/96, que muito se distanciou do projeto construído pelos setores
progressistas da Educação, não reafirmou o princípio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão, entre outros motivos, porque foi aprovada ao sabor dos interesses muito
mais do governo e dos setores que representam a educação privada do que pelos que defendem a
escola pública de qualidade.
Estes são alguns argumentos que permitem explicar porque tem se mostrado tão
difícil a consolidação do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Os dados oficiais sobre o ensino superior no Brasil, referentes ao ano de 2007,
coletados em 2008 e divulgados em 2009, de acordo com o órgão responsável, Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, foram também
relevantes para analisar o percurso do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e
extensão nos últimos vinte anos – particularmente nas políticas públicas propostas e
implantadas no ensino superior no governo FHC e nos seis primeiros anos do mandato de Lula
da Silva.
O Censo da Educação Superior é realizado anualmente pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), que coleta os dados sobre a educação
superior brasileira com o objetivo de oferecer aos dirigentes das instituições, aos gestores das
políticas educacionais, aos pesquisadores e à sociedade em geral, informações detalhadas sobre
a situação atual e as grandes tendências deste setor. (INEP, 2009)
8
De acordo com os dados obtidos neste Censo, de um total de 2.252 IES, apenas 183
(8,1%) são universidades, ou seja, somente destas é requerido o princípio da indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão. A maioria absoluta das IES, 2.069 (91,8%), é representada
por Centros Universitários, Faculdades, CEFET e IFET, sem nenhum compromisso com a
realização de pesquisa e extensão. Analisando esses dados, portanto, é possível verificar que a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão realiza-se de forma muito limitada nas IES
e que sua predominância concentra-se nas IES públicas.
Outra questão relevante com relação a esses dados é que as 183 universidades
existentes se subdividem em públicas (federais, estaduais e municipais) e privadas (particulares,
e comunitárias/confessionais/filantrópicas), o que representa um total de 97 (41,1 %) sobre 236
IES e 86 (4,2 %) sobre 2016 IES, respectivamente. Embora o número de universidades públicas
e privadas seja quase igual, quando se toma o total de professores em tempo integral e por
titulação vamos ter entre elas uma significativa desproporção.
Essa discussão remete a questões do âmbito das políticas internacionais e pode ser
entendida a partir da consolidação do neoliberalismo no Brasil, que gerou a contraposição
estatal/público versus privado/mercantil. De acordo com Sguissardi (2009), este debate gerou
uma polarização entre a desqualificação do estatal e a supervalorização do privado. A educação
privada, neste contexto, passa a ser vista como simples mercadoria.
Os dados sobre a educação superior constantes dos censos oficiais de educação
(INEP/MEC), a partir do ano de 1999, passam a diferenciar a categoria administrativa privada
em: particular (com fins lucrativos), que são gerenciadas por grandes grupos internacionais, que
tem ações na bolsa de valores, e as que vêem no lucro financeiro o seu maior objetivo, e
comunitária, confessional e filantrópica (ou sem fins lucrativos).
Sguissardi (2009) demonstra que nos últimos nove anos, ou seja, de 1999 a 2008,
o número de IES dobra (105,3%), mas o número de IES públicas
aumenta apenas cerca de 1/5 disto, 22,9%; o das privadas
(comum./confes./filant.), apenas cerca de 1/7 disto ou 15,5%; e o das
particulares ou privado/mercantil, cerca de 10 vezes o índice das IES
públicas e de 13 vezes das IES privadas, 200,1% ou quase o dobro da
média nacional! (p. 12)
Esse mesmo autor revela também que no octênio FHC o “percentual de IES
públicas reduz-se de 25,6% para 11,9% do total e o de suas matrículas, de 41,6 para 30,2%” (p.
10). Já as IES privadas, saltam de 74,4% em 1994 para 88,1% em 2002, e as matrículas passam
de 58,4% para 69,8% no mesmo período e, embora se mantenha a tendência do maior
crescimento do setor privado em relação ao setor público, nos seis anos que correspondem a um
mandato e meio do Governo Lula da Silva – 2002-2008 –,
9
o crescimento, tanto de IES quanto de matrículas, é bastante menor
que nos anos imediatamente anteriores (...) Embora a proporção do
número de IES tenha se alterado pouco, no caso das matrículas vê-se a
continuidade da diminuição, ainda que um pouco menor, do
percentual público (de 30,2% para 25,0%) e correlato aumento do
percentual privado (de 69,8% para 75,0%)”. (p.10-11).
Observamos que sob o Governo FHC não foi criada nenhuma Instituição Federal
de Ensino Superior - IFES, enquanto que sob o de Lula da Silva foram criadas, até o início de
2010, 12 universidades e meia centena de campi de IFES preexistentes, além de expandir-se a
educação tecnológica.
Embora os estudiosos em geral tendam a caracterizar o Governo de Lula da Silva
como de certa continuidade dos dois Governos de Fernando Henrique Cardoso, identificamos
ações que os diferenciam no âmbito das políticas de educação superior. Em que pesem às
críticas feitas às ações afirmativas e políticas focais para educação superior do Governo Lula,
como por exemplo, o Programa Universidade para Todos (Prouni), o Programa de
Reestruturação e Expansão da Educação Superior (Reuni) e a política de cotas, têm se
apresentado como iniciativas emergenciais importantes, embora se saiba que não eliminam as
causas estruturais que condicionam o acesso (e permanência) ao ensino superior.
Quanto ao número de matrículas nas IES divulgado no Censo da Educação
Superior de 2008, divididas por categoria administrativa nos cursos de graduação presenciais,
de um total de 5.080.06 de alunos matriculados, 2.685.628 (52,7%) estão presentes nas
universidades, e, deste total, 1.574.683 (58,6%) estão matriculados nas Instituições Privadas,
que por sua vez, estão divididos em 735.041 (46,7%) matriculados nas IES particulares e
839.642 (53,3%) dos alunos matriculados nas comunitárias, confessionais e filantrópicas.
A probabilidade é que nesse último grupo ainda haja alguma condição de se
desenvolver a associação do ensino, pesquisa e extensão, mas isso ainda dependerá do regime
de trabalho e titulação dos professores, bem como da questão da pós-graduação, se consolidada
ou não, quando existiriam maiores oportunidades de pesquisa.
Considerando que a consolidação do princípio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão a universidade requer que o professor esteja num regime de trabalho de
tempo integral para poder exercer essas três funções, analisamos também, a partir da mesma
fonte, o regime de trabalho dos professores, se de tempo integral, tempo parcial ou horista.
De um total de 178.147 professores em regime de trabalho de tempo integral nas
IES Universidades, 103.130 (58%) estão no setor público. As IES Universidades privadas detêm
74.540 (28%) dos professores em tempo integral, e as IES Universidades comunitárias,
confessionais e filantrópicas, 48.067 (25,3%).
10
Se considerarmos, no entanto, o cômputo geral dos professores do total das IES, há
uma diferença considerável nesses números: de um total de 338.890 professores, apenas
132.382 (39%) trabalham em tempo integral.
Um outro requisito analisado foi o número de professores com doutorado que
atuam nas universidades, que, em tese, são os que fazem pesquisa. O censo revela que dos
167.388 professores que estão nas universidades apenas 61.608 (36,8%) possuem doutorado,
sendo que destes 47.243 (76,6%) ou ¾ dos docentes com essa formação atuam nas IES públicas.
Do total de docentes doutores das IES brasileiras (61.608), vinculam-se às
universidades privadas 14.365 (20,4%), divididos entre as particulares e as comunitárias,
confessionais e filantrópicas, 3.928 (27,3%) e 10.437 (72,7%), respectivamente. Considerandose que temos 97 (41,1%) universidades públicas sobre um total de 236 IES e 86 universidades
privadas (4,2%) sobre um total de 2016 IES, o fato de termos 47.243 (76,6%) professores com
doutorado nas públicas e 14.365 (20,4%) professores nas IES universidades privadas mostra a
desproporção no número de doutores, e mais uma vez a comprovação de que a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão tende a acontecer muito mais nas
universidades públicas que nas privadas e, em especial, que nas particulares.
Levando-se em conta que a pós-graduação consolidada nas universidades é um
fator importante a ser considerado quando nos referimos à realização do princípio da
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, selecionamos uma amostra de
universidades das três organizações acadêmicas – pública, particular, e comunitária,
confessional e filantrópica – para sabermos quantas delas podem ser consideradas com pósgraduação consolidada.
Definimos como parâmetro para essa característica o fato de determinada
universidade possuir no mínimo cinco mestrados e dois doutorados. As informações foram
buscadas no Cadernos de Indicadores da CAPES, considerando-se a coleta de dados do ano de
2008 dos programas de pós-graduação. A amostra foi aleatória, e buscamos um terço do total
das universidades constantes do Censo da Educação Superior de 2008. Neste sentido buscamos
as informações de 18 universidades públicas, 19 universidades comunitárias, confessionais e
filantrópicas, e 9 universidades particulares.
Identificamos que das 18 universidades públicas, 14 possuem programas de pósgraduação consolidados. Das 19 universidades comunitárias, confessionais e filantrópicas,
apenas 4 possuem no mínimo cinco mestrados e dois doutorados, e das 9 universidades
particulares nenhuma delas cumpre esse critério, embora algumas possuam programas de pósgraduação em nível de mestrado.
11
Os dados dessa amostra estão de acordo com os do estudo de Morosini e Souza
(2009, p.15), quando, ao examinarem os programas de pós-graduação por nível e dependência
administrativa, concluíram que “os dados revelam que são as IES federais que abrigam o maior
número de programas (1.280), seguidas das IES estaduais (621), das IES particulares (493) e
municipais (16) (MEC/CAPES, 2009)”.
Compreendendo que a realização de pesquisas requer um alto custo e necessita de
um grande número de doutores em regime de trabalho de tempo integral, é compreensível que,
de fato, sejam as universidades públicas que conseguem cumprir com o princípio da
indissociabilidade.
Esses fatores devem ser considerados nas nossas análises com relação à associação
entre ensino, pesquisa e extensão nas universidades brasileiras. Se por um lado, já entendemos
que esse requisito só é exigido das universidades e não das outras modalidades de IES, por outro
lado, a expansão acelerada do setor privado/mercantil tem colaborado para enfraquecer ou quase
ignorar o cumprimento da exigência constitucional (artigo 207 da CF) nas IES particulares com
status de universidade, pois como afirma Sguissardi (2009, p.302)
Um modelo neoprofissional ou neonapoleônico tem caracterizado o
perfil da maioria de nossas instituições de educação superior, que
também poderiam ser classificadas como universidades de ensino,
escolas profissionais, numa proporção a cada dia maior no confronto
com as de perfil neo-humboldtiano ou universidade de pesquisa (...) e
como caracterização complementar de ambos os perfis (...), se tornam
a cada dia mais presentes os traços de uma universidade que, sem ter
sido de fato autônoma, no caso do Brasil, a não ser com raras
exceções conhecidas, se revela mais e mais heterônoma e competitiva.
(grifos do autor).
Nesse contexto, a competitividade econômica do mercado educacional tem se
sobressaído com relação à expansão do ensino superior público. Em que pese a criação das IFES
e dos novos campi no governo de Lula da Silva, a tendência – segundo os estudiosos e os dados
apresentados pelo Censo da Educação Superior de 2008, bem como pela base de dados da
CAPES – é que, nos tempos que virão, se acentue a tendência à expansão mais acelerada do
setor privado/mercantil. Um setor que, como vimos, vem sendo cada vez mais desobrigado de
compromissos com padrões de qualidade para a educação superior.
Considerações finais
O Brasil conta com uma proposta sistematizada de universidade, que tem o
princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como matriz conceitual e
operacional, que guarda significa aproximação com consistente produção teórica que, fundada
nas relações entre Estado, universidade e sociedade, aponta alternativas diante da inegável crise
em que se encontra a universidade pública brasileira, pautada em análises críticas de estudiosos
12
das políticas públicas para o ensino superior promovidas pelos últimos governos,
particularmente nos últimos vinte anos. Um pensamento solidamente articulado, a conviver com
as contradições conceituais e operacionais sobre o papel e as funções da universidade na
sociedade contemporânea e com a crise sindical e dos partidos ideológicos e revolucionários
(sentido gramsciano), que geram profundo pessimismo e ênfase no pensamento único de
despolitização e desmobilização (Frigotto, 2001, p. 35-36).
Os dados estatísticos analisados permitem concluir pela baixa incidência da
possibilidade de práticas efetivas da indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão na
universidade brasileira. Essa demonstração poderia ser muito mais inquestionável se cruzarmos
os dados relativos aos três principais fatores que determinam as condições da prática dessa
associação: pós-graduação consolidada, titulação acadêmica e o regime de tempo integral.
Apenas por hipótese, demonstrável caso se pudesse dispor dos dados primários em relação a
esses três fatores, o que não é o caso, poder-se-ia afirmar que somente um terço ou pouco mais
das universidades apresentam as condições ideais para a observância desse princípio
constitucional. Em outras palavras, se poderia afirmar que somente cerca de 3% das 2.252
praticam a associação ensino-pesquisa-extensão e somente certa de 17% do total de alunos
matriculados no total de IES viveriam, durante sua formação, a experiência dessa associação ou
de universidades de pesquisa, os demais cerca de 83% formando-se em universidades de
ensino.
Ao final deste estudo, é possível concluir que, se a proposta de universidade da
ANDES-SN, particularmente a questão do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa
e extensão, for entendida em sua dimensão utópica, temporal e histórica, ela terá um papel
extremamente importante enquanto horizonte que nos move em direção a um projeto de
universidade socialmente referenciada, podendo constituir-se em instrumento teórico e político
a orientação da prática social, na busca pela emancipação da sociedade e da universidade atual.
REFERÊNCIAS
ANDES Proposta das AD’s e da ANDES para a Universidade Brasileira. Cadernos ANDES. nº
2. Florianópolis: ANDES, 1981.
ANDES-SN. Proposta do ANDES-SN para a Universidade Brasileira. Cadernos ANDES nº 2. 3.
ed. atualizada e revisada. Brasília: ANDES-SN, 2003.
CATANI, Afrânio; OLIVEIRA, João. A educação superior. In: OLIVEIRA, R.; ADRIÃO, T.
(orgs.). Organização do ensino no Brasil: níveis e modalidades na Constituição Federal e na
LDB. Xamã: 2002.
CUNHA, Luis Antônio. A Universidade Temporã. 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1986.
FÁVERO, M. L. A. (b) A Universidade do Brasil – Das origens à construção. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ/Inep, 2000, v.1.
13
FÁVERO, M. L. A; SEGENREICH, Stella Cecília Duarte. Universidades e centros
universitários pós-LDB/96: tendências e questões. In: BITTAR, Mariluce; OLIVEIRA, João
Ferreira; MOROSINI, Marília (Organizadores). Educação Superior no Brasil: 10 anos PósLDB. – Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2008.
FERNANDES, Florestan. Universidade Brasileira: Reforma ou Revolução? São Paulo: Alfa
Ômega, 1979.
FÓRUM DA EDUCAÇÃO NA CONSTITUINTE - Proposta Educacional para a Constituição.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília: MEC/INEP, 68 (160): 665-668,
set./dez./1987.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a Crise do Capitalismo Real. 5. ed. São Paulo: Cortez,
2003.
GOMES, Alfredo Macedo; MORAES, Karine Nunes de. A expansão da educação superior no
Brasil contemporâneo: questões para o debate. Texto apresentado na XXXII Reunião Anual da
ANPEd, Caxambu, MG: 2009 (Mimeo). Disponível no site http://www.anped11.uerj.br/
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO
TEIXEIRA, Censo da Educação Superior. Resumo Técnico. Ministério da Educação, INEP,
Brasília, DF: 2009.
MANCEBO, Deise. Reforma da Educação Superior: o debate sobre a igualdade no acesso. In:
BITTAR, Mariluce; OLIVEIRA, João Ferreira; MOROSINI, Marília (Organizadores).
Educação Superior no Brasil: 10 anos Pós-LDB. – Brasília: Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2008.
MAZZILLI, Sueli. Ensino, Pesquisa e Extensão: uma associação contraditória. Tese de
Doutorado. São Carlos, SP: Universidade Federal de São Carlos, 1996.
MOROSINI, Marília; SOUZA, Andréia. A Pós-graduação no Brasil: formação e desafios.
http://www.riseu.unam.mx/documentos/acervo_documental/txtid0070.pdf. Acesso em 30 de
novembro de 2009.
NAVARRO, Ignez Pinto. ANDES-SN: Um sindicato de intelectuais. Mato Grosso: ADUFMT,
2001.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil – entre o povo e a nação. Tradução:
Maria Júlia Goldwaser. São Paulo: Ática, 1990.
PUCCI, Bruno. A indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Impulso: Piracicaba,
1991.
SGUISSARDI, Valdemar. Reforma Universitária no Brasil – 1995-2006: Precária trajetória e
incerto futuro. Educação & Sociedade, Campinas, CEDES, v. 27, n. 96, p. 1021 – 1056, out.
2006.
SGUISSARDI, Valdemar. Universidade Brasileira no Século XXI: desafios do presente. São
Paulo: Cortez, 2009.
Download

INDISSOCIABILIDADE ENTRE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO