$ubsídio por Conta Um realizador vai até ao ICAM pedir um subsídio por conta para poder pagar por adiantado os impostos que tem em atraso… Actores : Um realizador que faz de Alvaro García de Zúñiga Francisco Nascimento * Alvaro García de Zúñiga que faz de realizador Ana Zanatti * *Ana Zanatti e Francisco Nascimento trabalharam com o realizador Alvaro García de Zúñiga na curta-metragem “Um Dia na Vida” produzida pela Filmes do Tejo em 1999. Equipa Técnica : Argumento e Realização: Alvaro García de Zúñiga Direcção de Fotografia: Tony Costa Som: Alvaro García de Zúñiga Produção: Teresa Albuquerque Locais de filmagem : Lisboa (Miradouro de São Pedro de Alcântara - Edifício do ICAM - Praça da Câmara Municipal) e nas instalações da Plano 9 (rua do Ataíde n.º14) Filme (35 mm) - cor - som dolby stéreo. Música : Rocarocolo (Marc Perrone / André Minvielle - arr. André Minvielle) por André Minvielle - Prod.Édition du Tilleul / Labeluz compagnie Lubat de Gasconha 1998. Equipamento de Imagem: Plano 9, Planar Equipamento de som: Plano 9 Maquinaria: Videocine Pós-produção: Plano 9, Concept Laboratório: Tóbis 1 $ubsídio por Conta sinopse&carta de intenções: sinopse Um realizador vai até ao ICAM pedir um subsídio por conta para poder pagar por adiantado os impostos que tem em atraso… Carta de Intenções Cara Grândola, Há quanto tempo se suspeita que o governo é quem mais comédia ? Eu queria fazer-lhe chegar esta carta de intenções para que saiba que o filme que quero fazer é bem intencionado. E que não é minha intenção com ele vir a pôr nenhum dedo em nenhuma chaga. Chega. Suponho eu que querer fazer o filme Subsídio por Conta deve dever-se ao facto de eu ficar com a sensação que as coisas parecem baralhar-se cada vez mais. Tem piada, não tem ? Um beijinho do seu Alvaro 2 $ubsídio por Conta Alvaro García de Zúñiga $ubsídio por Conta Sequência 1 - Exterior - dia Lisboa. Miradouro de São Pedro de Alcântara. Entre o tráfego e o movimento da cidade vê-se um homem entrar no edifício do Instituto do Vinho do Porto. Sequência 2 - Interior - dia O homem (um realizador conhecido do meio lisboeta) sobe as escadas. Dirige-se ao ICAM. Ao chegar à porta carrega no botão da campainha. Ouve-se o "Click" eléctrico das fechaduras a abrir. Sequência 3 - Interior - dia O homem entra. Há um corredor e uma porta com uma pequena janelinha tipo "guichet". Volta a tocar, desta vez na segunda campainha. Depois de um momento a janelinha abre-se e aparece a cara do empregado - do funcionário queria eu dizer - que não é outro senão o Francisco Nacimento. O REALIZADOR : - Bom dia. FUNCIONÁRIO (Francisco Nascimento, a partir de agora Fruncionário Nascimento) : - Boa tarde. O REALIZADOR: - Sim, boa tarde, desculpe. Nota-se-lhe um fortíssimo sotaque hispânico. Até podíamos dizer que é sudaca se quisermos mesmo ser picuinhas. 3 FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO : - Diga. O REALIZADOR: - Sim. Eu sou o Alvaro García de Zúñiga e venho a fazer um pedido de subsídio por conta. FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Espanhol, não é ?. O REALIZADOR: - Português. Quer ver ? Tira do bolso o seu BI que está dobrado ao meio. FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Olhe que o BI não se pode dobrar. O REALIZADOR: - Ah sim ? Não sabia ; aliás assim dobradinho tem justo o mesmo tamanho de um cartão de crédito. FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Pois é. Nunca tinha dado por isso. Mesmo assim. Não se pode. É ilegal. O REALIZADOR: - Mas olhe que não diz "Não Dobrar" em parte nenhuma… FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Pode ser, mas ao ser dobrado fica sem validade. Agora vai ter de fazer outro. O REALIZADOR: - Paciência. O que é que se vai fazer agora… bom, como lhe estava a dizer : Eu chamo-me Alvaro García de Zúñiga e sou realizador e escritor e venho pedir um subsídio por conta. Pequeno momento de desconforto. O REALIZADOR / Alvaro continua : O REALIZADOR: - É assim : Eu tenho uma série de projectos para fazer que mais tarde ou mais cedo vão ganhar os concursos aqui do Instituto. Para já vou apresentar uma curta sobre dois lutadores de luta greco-romana com tendências suicidas. Depois, para o concurso de apoio à escrita estou a pensar num guião que combine actualidade e seja suficientemente barato para poder vir a ser realizado, não sei se se lembra do outro que eu já fiz da outra vez que ganhei o concurso e que ainda não foi feito porque é de época e sai caríssimo, por isso, agora estou a pensar numa coisa assim actual, uma alegoria, um caso de zoofilia no Alentejo, terras queimadas, não sei, algo assim desse género… e também tenho um título que me anda a dar voltas na cabeça e tem a ver com um fait divers : Um tiro no escuro pela Culatra. É bom não é ? 4 A cara do interlocutor diz tudo. Não importa, O não se desmancha e continua : REALIZADOR / Alvaro O REALIZADOR: - E depois também o documentário : aí não tenho dúvida nenhuma : o meu próximo é "História Universal do Sushi". Mais tarde ou mais cedo vou conseguir fazê-lo. Eu sei que parece uma doidice, mas não é. Tem a ver com o problema dos nossos "valores universais", entre aspas, ocidentais e a visão oriental segundo a qual nós devemos ser umas bestas. Quase. Daí o sushi, que aparece nisto tudo como símbolo estético, aquilo do Elogio da Sombra do Tanizaki, e por aí fora, e que é bastante mais "universal" que os nossos ditos valores, etc. Vai ser um grande filme digo-lhe, bom, e depois lá chegamos às primeiras obras. Para já há que ter em conta que eu já ganhei as curtas, os documentários, a escrita. Até o multimedia já tenho ganho. Assim vejamos : estamos no começo de 2004, uma curta, depois a escrita, 2005, o documentário, montagem, tudo isso, as primeiras obras, perdendo alguns concursos, digamos que aí já estamos por volta de 2007 - 2008. Tendo em conta que como disse o João somos todos realizadores bissextos… Fruncionário Nascimento : - Qual João ? FERNANDO VENDRELL: - Botelho. Pequena expressão de acordo. O REALIZADOR / Alvaro segue : O REALIZADOR: - Pois. Também acho. Bom, então, depois, Ah! depois tenho pensado que o melhor é tentar alguma coprodução lá fora, coisa de não ter que passar anos à espera de fazer a segunda longa-metragem, está a ver ? Tenho uma ideia fenomenal para isso : Lembra-se do Urso de Jean-Jacques Annaud ? bom. Esta passa-se no Alasca. Uma historia de tráfico de psicotrópicos que envolve um urso bipolar ; eu até já tinha pensado falar com o irmão gémeo do Paulo Branco em Paris que é um dos maiores produtores independentes da Europa. 5 FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Não acha que isso é um bocadinho esquisito demais ? O REALIZADOR: - Isso o quê ? FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - O do urso. O REALIZADOR: - Não, não sei, eu penso que deve ser algo com altos e baixos, eu imaginava uma coisa bastante psicologicista, intimista digamos, com algo de thriller psicológico até, está a ver ? E depois há que ver. Olhe . nunca se sabe. Nestas coisas nunca se sabe. FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Pois é. É por isso que eu deixei de ser actor : Ou isso ou telelenovela. O REALIZADOR: - Pois. FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - E assim não dá. O REALIZADOR: - Pois. FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Claro que de qualquer modo uma pessoa não está nisto pelo dinheiro. O REALIZADOR: - Pois é. FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Se fosse pelo dinheiro um gajo dedicava-se aos negócios, criava uma universidade, ou melhor, dedicava-se ao futebol, aí sim, ganha-se lindamente e além disso não se paga impostos. O REALIZADOR: - Justamente, falando de impostos: eu já fiz todo o cálculo. A minha carreira toda… Tira uma folha de papel dobrada em quatro do bolso. Desdobra-a para o outro ver e continua dizendo : O REALIZADOR: - Vê ? Está tudo calculado. Com uma media de actividade bastante esporádica e tudo. Até os 75 anos. Já que como você disse nós não ganhamos muito, que muito, nada, e nem pensar em vir a deixar de trabalhar, não é ? FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Sim, sim. mas mesmo assim, tanto filme, tanta coisa, não acha um bocado exagerado O REALIZADOR: - Não sei, até se pode dizer que calculei por baixo. Olhe o Manuel de Oliveira… E pense se tivesse calculado com base numa activid-longevidade como a dele… E além do mais eu fiz isto pensando que eu vou durar três anos menos que a esperança de vida media dos portugueses. E que, salvo o Oliveira, em geral os cineastas normalmente vivem menos que os outros. 6 FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Sim, deve ser. O REALIZADOR: - Pois é. Acredite. Como ia dizendo então : se juntarmos tudo, curtas, documentários, longas, coproduções, apoios directos, escrita, etc., os apoios que me virão a ser acordados andão a volta dos três e os quatro milhões e meio de euros. FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Como ! Tanto assim ? O REALIZADOR: - Tanto assim ? Olhe o que leva um agricultor por umas batatas !! E eu estou-lhe a falar de não sei quantos filmes… veja que com isto os espanhóis, já nem digo os franceses ou os americanos, nem fazem um telefilme ! FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Pois é. Tem razão. Isso não deve representar nem um periscópio. O REALIZADOR: - Para não falar do dinheirão que custa a nãoprodução agrícola… FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Pois é. deixe-me isso e eu vou ver o que se pode fazer. O REALIZADOR: - Agradeço imenso. E se poder veja lá se se pode ir adiantando um avanço por conta do total porque preciso de pagar urgentemente um adiantamento de uns impostos por conta que já tenho atrasados. Toca a campainha. (Somos salvos pelo campainha !). O fruncionário carrega no botão para abrir a porta. Sequência 4 - Interior - dia Entra outro homem (Alvaro García de Zúñiga) que fica à espera. O REALIZADOR / Alvaro despede-se : O REALIZADOR: - Bom. Muito obrigado. Eu amanhã passo por cá. Não se esqueça que tenho que pagar esse adiantamento que tenho em atraso, ta bem ? FRUNCIONÁRIO NASCIMENTO: - Sim. Fique descansado. Até amanhã. (Ao outro:) Sim ? Diga ? ALVARO GARCÍA DE ZÚÑIGA : - Boa tarde. Eu chamo-me (e diz o nome do realizador que acabou de sair). Sou realizador. E venho solicitar o pagamento de um subsídio por conta. Nós não vemos toda a acção porque a câmara, um pouco depois, vai-se embora. 7 Sequência 5 - Exterior - dia Tráfego. Movimento. O primeiro realizador / Alvaro sai do edifício do Instituto do Vinho do Porto. Sequência 6 - Exterior - dia Praça da Câmara de Lisboa. Tráfego. Já disse. Movimento. Também já disse. Vê-se o primeiro realizador / Alvaro entrar no edifício da Câmara. Sequência 7 - Interior - dia O realizador / Alvaro entra no grande hall do edificio em que entrou. Lê-se "MINISTERIO DA AGRICULTURA". O realizador / Alvaro sobe as escadas. Sequência 8 - Interior - dia Chega a uma repartição. Do outro lado do mostrador está a empregada. A funcionária queria eu dizer. Está a limar as unhas e tem um cartãozinho de plástico com o nome : Ana. E é verdade, porque é a Ana Zanatti. A Ana Zanatti enquanto lima as unhas deita uma olhadela desinteressada ao Realizador / Alvaro. O realizador / Alvaro fazlhe um sorriso um bocado desastrado e diz-lhe : O REALIZADOR: - Boa tarde, desculpe, eu acabo de comprar um bocado de terra para cultivo de coentros e salsa biológica e vinha a fazer um pedido de subsídio por conta… FIM 8