Estratégia de escuta psicanalítica aos imigrantes e refugiados: uma oficina de português Christian Haritçalde Miriam Debieux Rosa Sandra Letícia Berta Cristiane Izumi Bruno Maya Lindilene Shimabukuro O presente trabalho é a descrição de uma estratégia clínica para a escuta psicanalítica de sujeitos imigrantes e refugiados: a Oficina de Português. Tal Oficina aconteceu no início de outubro de 2007 até meados de abril de 2008, na instituição Casa do Migrante, que foi fundada em 1974 como entidade civil responsável por prestar assistência a migrantes brasileiros que vinham em busca de emprego em São Paulo. Atualmente a Casa do Migrante se coloca como uma instituição que fornece abrigo a migrantes brasileiros, imigrantes (em sua maioria latino-americanos) e refugiados (especialmente refugiados africanos e colombianos) que acabam por chegar na cidade de São Paulo e estão sem local para se fixar. As escutas clínicas realizadas na Casa do Migrante, incluindo assim a Oficina de Português, fazem parte do projeto Migração e Cultura: Experiência de atendimento a pessoas em situação de vulnerabilidade psíquica e social, do Laboratório Psicanálise e Sociedade do Instituto de Psicologia da USP. Tal projeto tem como objetivo a pesquisa e favorecimento de intervenções clínicas e psicossociais que visem o trabalho com sujeitos migrantes, imigrantes, refugiados e “retornados” na elaboração da história de seus percursos, rompimentos e lutos, assim como promover a inserção social destes, tanto no ambiente da cidade (nesse caso, São Paulo), quanto possibilitar a formação de novos laços sociais. O trabalho na Casa do Migrante sempre teve o cuidado por fornecer escutas a partir do viés psicanalítico, mas, em vista dos objetivos propostos no projeto, ele não poderia se reduzir ao padrão de um consultório. No seu desenvolver, o trabalho sempre levava em conta a presença e articulação de escutas individuais, atividades grupais (com adultos e crianças) e trabalhos político-institucionais com a entidade. A Oficina de Português se insere dentro das atividades grupais que planejamos para a escuta clínica de imigrantes e refugiados, e, para tanto, tinha de lidar com as particularidades da escuta destes sujeitos, assim como levar em conta as características da instituição. O trabalho dentro da Casa do Migrante sempre demonstrou certas peculiaridades, tanto pela população abrigada no local, quanto pelas movimentações político-institucionais da entidade. A principal destas características é o fator de imprevisibilidade que nos defrontamos lá. Não era um fato incomum existir uma semana em que a Casa estava com quase todas suas vagas de abrigo ocupadas, para logo na semana seguinte, sem um grande motivo aparente, esses abrigados irem embora e a Casa se encontrar com poucas pessoas hospedadas lá. Isso tornava qualquer trabalho de longo prazo extremamente difícil. Muitas vezes, um grupo iniciado, que já havia estabelecido certo vínculo entre si e com os psicólogos, era bruscamente encerrado porque alguns de seus membros deixavam o abrigo, assim como novas pessoas entravam no meio do processo. O trabalho nessa instituição sempre detinha o caráter de um novo começo, e tivemos de levar isso em conta para realizar nossas intervenções clínicas. Outra dificuldade surgida era o problema em se ter uma adesão dos abrigados às atividades que propúnhamos. Nossa inserção dentro da instituição era por vezes difícil, e muitas vezes nossas atividades não eram esclarecidas ou divulgadas aos abrigados recém chegados à Casa. Isso se aliava ao fato de que muitos abrigados se mostravam resistentes às atividades em grupo, preferindo apenas participar de escutas individuais. Fator de isolamento que já chamava nossa atenção: era incrível como, mesmo sendo destituídos de laços sociais para com a cidade onde eram recém chegados, os abrigados (migrantes, imigrantes e refugiados), dificilmente criavam laços sociais entre si. Algo do reflexo que o outro era para a sua situação, a de ser uma pessoa deslocada num campo social, parecia despertar um insuportável nesses sujeitos. Os migrantes e imigrantes, muitas vezes alvos de xenofobia, reproduziam esse mesmo comportamento frente a seus companheiros de abrigo. Essas características sempre nos faziam pensar em qual poderia ser uma melhor abordagem para o trabalho grupal com o sujeito imigrante. Após um tempo de tentativas diversas, reflexões e discussões, tanto entre os membros do projeto quanto entre os abrigados, acabou por nos levar a uma nova tentativa de abordagem clínica: a Oficina de Português. A angústia frente ao desconhecimento da língua sempre foi um tema recorrente no atendimento ao imigrante. O desamparo causado pelas rupturas sociais com a antiga pátria sempre era reintroduzido graças às dificuldades lingüísticas. A incapacidade de se comunicar com um outro colocava os imigrantes em uma posição de excluídos, de um resto, por não serem capazes de participar de uma nova ordem simbólica graças à questão da língua. Operar a partir deste desconhecimento da língua portuguesa nos pareceu ser uma ótima estratégia clínica para enlaçar os imigrantes e refugiados em uma escuta psicanalítica grupal. Esperávamos que, através de suas demandas de um aprendizado lingüístico, determinados conteúdos subjetivos viessem à tona, para que pudéssemos trabalhá-los, fazendo assim que estes sujeitos pudessem reconstituir o seu percurso de vida e de deslocamento, os rompimentos pelos quais passou, assim como permitiria levantar questões comuns às angústias deles, permitindo assim a construção de laços sociais entre aqueles que vinham participar da Oficina, da sua condição de estrangeiro, e destes com a cidade de São Paulo, onde estavam começando a se inserir. A Oficina de Português contava com a participação de dois graduandos de Psicologia, um mestrando em Psicologia Social e uma psicóloga formada, que distribuíam entre si conhecimentos de inglês, francês e espanhol. Os encontros se davam de forma semanal, em uma sala sediada na Casa do Migrante. Antes de cada encontro, os psicólogos da Oficina realizavam convites para os imigrantes e refugiados que estavam nos corredores da Casa, para, caso eles tivessem interesse, de participarem da Oficina de Português. Também não era um fato incomum que alguns sujeitos entrassem no espaço da Oficina em meio de sua decorrência, muitas vezes por causa de uma curiosidade para saber da atividade, ou mesmo como decorrência de um interesse pela atividade grupal, isso a partir de uma escuta individual prévia. A maioria das atividades da oficina era pautada pelas demandas de aprendizado dos próprios imigrantes. Logo no seu primeiro dia, ela atraiu a atenção dos abrigados africanos, que são aqueles com a maior dificuldade na língua portuguesa (já que, para os latinos, a comunicação em português era facilitada pelo conhecimento em espanhol. Os africanos, em sua maioria, ou falam inglês ou francês) e também os mais difíceis de se aproximar, devido muitas vezes às condições de refugiados destes. Muitas das frases que eles pediam para aprender eram ligadas a necessidades muito básicas de relação social (como saber falar “bom dia”, “obrigado”, “como você vai”), relação corporal (falar que esta com dor de cabeça, dor de estômago ou sem fome) e relação material (perguntar quanto custa as coisas). Tais frases nos mostravam um certo contexto de depauperação em que estes imigrantes estavam inseridos. Para estes, a possibilidade de poder simbolizar na língua portuguesa necessidades tão básicas, já era uma possibilidade de conquista de um certo reconhecimento e dignidade pessoal, o poder se afastar de uma posição de resto social. Por vezes, nós, psicólogos do grupo, propúnhamos um tema para o encontro, e a partir deste ensinávamos algumas frases em português. Alguns temas propostos foram “Como se apresentar”, “Casa e lar”, “Comida”. Estes encontros com temas definidos eram ótimos ganchos para que os abrigados participantes do grupo elaborassem suas histórias de vida, pudessem trazer os contextos sócio-simbólicos presentes em sua terra natal e confrontá-los com o presente que eles passam no Brasil, para uma tentativa de elaboração de luto. Quanto ao relacionamento que os abrigados desenvolviam entre si dentro do espaço da Oficina, era muito comum a tentativa destes de tentar transformar os encontros em “aulas particulares”, algo daquele isolamento do imigrante que nos referimos anteriormente. Mas também apareciam contextos grupais interessantes, especialmente quando acontecia de um dos abrigados se propor a ensinar um outro. Em um destes momentos, tivemos um encontro onde não estavam presentes apenas africanos, mas também brasileiros e latino-americanos. O encontro em si se transformou em uma enorme troca de línguas, onde aqueles proficientes em inglês ensinavam sua língua e aprendiam português e espanhol, os que falavam português o ensinavam e aprendiam inglês, e assim sucessivamente. Era interessante ver a opinião de brasileiros, que consideravam manifestavam apoio ao rompimento da barreira lingüística, através da Oficina, diminuindo assim a segregação que acontecia na Casa por conta dos diferentes idiomas. Mas a Oficina de Português também apresentava suas dificuldades. A demanda por “aulas particulares” era intensamente aliada a uma demanda exclusivamente pedagógica. Por vezes não nos colocavam na posição de psicólogos, mas sim na de professores de línguas, o que dificultava o processo de manejo clínico. Isso era evidente quando os abrigados vinham com demandas puramente gramaticais, que muitas vezes acabava dificultando as cadeias associativas que facilmente vinham à tona quando sua demanda estava mais ligada a um conteúdo específico de seu cotidiano. O problema central desta estratégia clínica que foi a Oficina de português era justamente como se situar entre esse o pólo da pedagogia e o pólo da escuta analítica, já que uma intensa afirmação do ensino colocava por terra a abordagem clínica, e a retirada do viés do ensino colocava poderia dificultar o elemento de interesse do grupo. Com esse desafio sempre se tornando cada vez mais pesado, aliado ao fato de que em abril de 2008, grande parte do contingente africano que vinha participar da Oficina acabou por sair da Casa, nos fez optar novamente por uma mudança de estratégia. Havíamos encontrado no interesse pela língua um ótimo modo de abordar o sujeito imigrante, de permitir que este pudesse elaborar seus percursos e possibilitar a criação de novos laços sociais entre os abrigados e com a cidade de São Paulo. Mas o viés pedagógico não nos satisfez, e agora resolvemos tentar um outro caminho, até mesmo oposto: estamos desenvolvendo agora um trabalho em cima do desentendimento, do equívoco, uma Oficina de Conversas que visam defrontar o imigrante com essa situação do não conseguir se comunicar, e, com isso, exercer um trabalho analítico a partir da escuta desta angústia. Deste modo, a Oficina de Português se mostrou como uma estratégia possível na abordagem ao sujeito imigrante e refugiado, na elaboração de seu luto e na sua inserção em um outro contexto social. Mas suas dificuldades inerentes ao próprio modo de como era aplicada nos fez dar um passo além, para novamente refletir e discutir um atendimento em grupo para estes sujeitos. Bibliografia Carignato, T.T., Rosa, M. D. e Bertas, S. L. (2006) Imigrantes, migrantes e refugiados: encontros na radicalidade estrangeira. In Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (REMHU). Ano XIV, N˚ 26, p.p. 83-118. Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios. São Paulo.