Biblioteca Escolar e comunidade: anotações sobre uma relação sem experiência Gustavo Bombini, Coordenador do Plano Nacional de Leitura, Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia da Nação, Argentina. Gustavo Bombini é Professor e Formado em Letras pela Universidade de Buenos Aires. Doutor em Letras pela mesma Universidade. Professor de Didática da Língua e da Literatura na Universidade de Buenos Aires, La Plata e San Martín. Coordenador Geral do Pós-título de Literatura Infantil e Juvenil do Ministério da Educação da Cidade de Buenos Aires e Coordenador do Plano Nacional de Leitura do Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia da Nação. Autor de livros e artigos sobre sua especialização. O que entendemos por biblioteca escolar? Há de ser uma pergunta que em suas possíveis respostas se dirige rumo a múltiplas zonas e alternativas. Na hora em que biblioteconomista pedagogos – especialistas do currículo e planejadores das gestões da educação tratam de imaginar projetos diversos para a biblioteca escolar -, o que parece se impor é uma heterogeneidade de horizontes e expectativas, de cenários e sujeitos sobre o que vale à pena repensar cada vez mais. Por uma parte, a definição do projeto de biblioteca escolar não estará desligada do projeto escolar como manifestação concreta de uma política educativa. Pensar na biblioteca escolar sem ter em conta o projeto político-pedagógico da escola e da educação em geral, suporia a intenção de sustentar a possibilidade de um modelo homogêneo e único, eficaz em todas as circunstâncias. (1) Sem dúvida, os projetos de biblioteca escolar a definir haverão de estar atravessados em cada caso pelas características sociais, hábitos culturais, tradições que fazem parte da vida da comunidade escolar e do entorno mais imediato rumo à atividade pedagógica e cultural que a escola irradia. Nesta trama há de ver se diversos sujeitos envolvidos, que desde diferentes posições participarão do convite da biblioteca. Cada um desde suas posições simbólicas de serem próprias da assimetria do escolar, por um lado o professor, o bibliotecário, um sujeito possuidor da “cultura” que se diferencia na comunidade, por outro - principalmente - os alunos e talvez outras crianças e jovens excluídos do sistema educativo. Trata-se de um modelo possível de biblioteca que haverá de propor outros circuitos possíveis na ida e na volta dos livros. A biblioteca escolar na comunidade de aprendizagem Uma noção que poderia resultar adequada para contextualizar esta posição com respeito à biblioteca escolar é a de “comunidade de aprendizado”. Trata-se de um conceito dinâmico que provém do campo da alfabetização inicial e que se refere especificamente à necessidade de entender à alfabetização inicial não no sentido restritivo, senão no sentido amplo. Se em sua missão alfabetizadora, a escola primária tinha sua aposta fundamental ao aprendizado dos aspectos do código, desde uma posição mais globalizadora e cultural, é necessário ressaltar que a aproximação à cultura escrita se dará no contexto, pois “ler – segundo afirma a especialista Marta Soler Gallart - implica construir pensamentos e aumentar os aprendizados e motivações educativas” (2). Neste sentido, a autora se estende em seu conceito de leitura dialógica sobre a qual afirma que: “não se reduz ao espaço da aula senão que abarca mais espaços: inclui a variedade de práticas de leitura que podem ser realizadas na biblioteca, em atividades extra-escolares, no lar, em centros culturais, e outros espaços comunitários, e se realiza com todas as pessoas que interagem nas vidas cotidianas de cada menino e de cada menina, dentro e fora da escola”. Como se vê, as cenas possíveis para a leitura haverão de se produzir em espaços diversificados e entre eles, a biblioteca ocupa um lugar significativo, ao que imaginamos em diálogo e articulação, levando adiante uma tarefa cooperativa com outras instituições, com outros espaços, com diversas pessoas comprometidas com esta prática. Propicia-se, deste modo, uma direcionalidade ampliada para as tarefas da escola como instituição altamente valorizada pela comunidade e que estaria envolvendo a muitos que são beneficiários indiretos mais ou menos próximos à escola. A biblioteca se torna em uma ponte para a construção de laços e relações possíveis. Neste sentido, sustentamos que a escola deve reconhecer aliados estratégicos para o desenvolvimento de sua tarefa e que estes aliados estratégicos se mostram, geralmente, proclives a estabelecer todo tipo de articulação que acarrete uma tarefa conjunta entre a escola e a comunidade. O diálogo escola-biblioteca-comunidade é cotidiano e nesse diálogo do dia-a-dia configuram-se linhas de sentido que dificilmente poderíamos preanunciar, planejar com antecipação, prever. Na verdade, trata-se de construir modelos o suficientemente flexíveis que nos permitam reconhecer estas variáveis contextuais como parte da vida mesma da biblioteca e não como exceção ao modelo, como déficit ou como carência. Acaba sendo difícil imaginar para quem transita habitualmente certos cenários urbanos - rodeados de instituições educativas e culturais, de eventos variados e de ofertas com as que cada dia o mercado nos tenta (livraria, etc.) -, o lugar significativo que haverá de ocupar a biblioteca escolar como possibilidade de acesso à cultura escrita. É por isso, que a noção de comunidade e – em conseqüência – a relação entre biblioteca escolar e comunidade, deve ser considerada em toda a sua diversidade e extensão, pelo que na hora de definir possíveis modelos de biblioteca, os mesmos assumirão tantas variantes quanto variantes de contextos comunitários existirem. Evidentemente, os modos de administrar uma biblioteca em uma escola urbana de mais de dois mil alunos de uma cidade capital diferirão dos modos de fazê-lo em uma escola rural de pluralidade de séries, onde as crianças que estão atravessando a experiência da alfabetização inicial com crianças de mais idade que são convidados a pesquisar em campos de conhecimento complexos ou se deixarem seduzir por gêneros literários que propõem desafios em sua leitura. Porém, também haverá diferenças qualitativas significativas entre uma escola urbana superpopulada que se encontra de cara com uma oferta cultural diversificada em uma grande cidade e uma escola das mesmas dimensões da mesma cidade, mas localizada em um setor periférico e de escassos recursos econômicos. Em cada um destes possíveis espaços, a biblioteca escolar forma parte de uma sintaxe diferenciada e de acordo com ela é que se vão reconhecendo suas funções, vão se configurando seus estilos, seus modos de fazer. Muda o contexto e mudam as demandas e acho que é o caráter necessariamente flexível dos projetos de biblioteca os que porão a sensibilidade necessária para responder a essas diferenças. Desta maneira, por exemplo, uma biblioteca de uma escola rural que por acaso seja a biblioteca de sala, começará a reconhecer certa demanda do exterior. Cada vez que esta biblioteca emprestar livros aos alunos da escola, esses livros talvez estejam inaugurando uma cena impensada no lar destas crianças. Os pais como leitores mediadores para as crianças e/ou eles mesmos como leitores, estão participando de um evento de cultura escrita que a escola pôde propiciar; cenas do mesmo tipo são registradas no laço entre as escolas e as famílias. A relação biblioteca escolar-comunidade que estou postulando reconhece, tanto no âmbito rural como no urbano, a possibilidade de inventar outros laços possíveis com outras instituições e outros atores que podem compartilhar com a escola a preocupação pelo ensino. Sejam instituições mais formais ou outras surgidas de imperativos conjunturais, de novas necessidades de contextos sociais críticos, a biblioteca escolar, a própria escola como uma instituição duradoura da cultura letrada tem em seu entorno aliados estratégicos que não só atenderão a problemas relacionados aos campos da saúde ou da alimentação, senão que essas mesmas instituições haverão de compartilhar com a escola suas preocupações pelo ensino e por garantir às crianças seu ingresso na cultura escrita. Desta maneira, reconhecem-se numerosas experiências de refeitórios infantis – onde recebem alimentação crianças que não podem recebê-la nos seus lares – nos quais se instalam espaços destinados ao apoio escolar e ao trabalho com a leitura literária, como parte de uma forma integral das crianças. Também, centros de aposentados e outros tipos de centros comunitários colocam-se em contato através das escolas. Alguns exemplos possíveis Na Argentina temos registrado uma série de experiências, que em sua potência e em sua originalidade, estão ratificando-nos a hipótese de que não existe um modelo único de biblioteca escolar, senão que há uma incidência direta das características dos contextos nos quais se encontram as bibliotecas escolares: (3) Deixar de ver televisão em Salta Uma experiência registrada a partir da experiência da Biblioteca do Programa Integral para a Igualdade Educativa (PIIE) ocorre na província del Salta, no nordeste da Argentina. Trata-se de uma escola localizada em uma região de escassa população e com grandes carências econômicas. A bibliotecária leva adiante uma série de estratégias de promoção, graças – as quais - consegue interessar aos alunos na leitura de textos de literatura infantil e inclusive na reescritura em paródia de textos tradicionais. Em algum momento, a bibliotecária se pergunta: “Como fazer para que estas experiências de leituras cheguem além dos limites da escola? Como pensar em que a família também possa fazer parte deste projeto?”. Alguns pais ou avós haviam participado em alguma convocatória anterior, mas ainda faltava uma grande porcentagem de famílias. Implementa-se finalmente o que foi chamado de “Caixinha Viajante”, que consiste em uma caixa com 10 livros acompanhados por um caderno, no qual as famílias relatam a experiência de leitura com os livros de literatura. Os temores pela possível perda ou estrago dos livros se dissipam; os livros têm que circular entre todos e aqueles considerados não leitores são tão cuidadosos com os livros quanto os leitores assíduos. As famílias dão testemunho do impacto gerado pela presença da Caixa Viajante em seus lares: “Levar os livros para casa nos parece uma boa idéia, porque é uma experiência linda poder se sentar e lê-los em família”. ou “Levar estes livros nos fez desfrutar do belo que é uma boa leitura, pois ao fazer isto, deixamos de ver televisão e – desse modo -, as crianças se entusiasmaram em ler alguns livros, que por sorte, são muito interessantes e adequados para a idade deles. Descobrimos que a leitura em família nos permite estar unidos.” A meados dos anos noventa, a crítica cultural argentina, Beatriz Sarlo, indicava que os velhos projetos da escola, das bibliotecas populares, dos comitês políticos, das sociedades de fomento, dos clubes de bairro, já não são lugares onde – em um passado – definiam-se perfis de identidade e sentidos de comunidade” (4). Esta crise dos modos tradicionais de circulação da cultura escrita poderiam ser lidas dez anos mais tarde em outro código e ao respeito podemos advertir que a mudança nos modos de circulação dos bens culturais não significa necessariamente uma renúncia dos sujeitos da sociedade a acessar a cenas possíveis, onde ler e escrever se apresentam como parte das experiências da vida. Deixadas de lado algumas instituições de serviço público, ausente o Estado benfeitor pelo impacto das políticas neoliberais, a escola se vislumbra como o único reduto daquilo que o Estado pode e deve garantir, como é a possibilidade do acesso aos bens simbólicos e culturais. Não se trata de um abuso dirigido à escola pedindo-lhe mais do que pode ou desnaturando-a de sua função primária. Pelo contrário, a escola potencia a um extremo toda a sua capacidade de produzir transformações culturais em seu entorno, recupera um papel perdido, talvez na margem escolarizante de um currículo cristalizado e endogâmico: vê-se outra vez a si mesma como uma instituição potente da comunidade. (1) Em seu interessante livro Las bibliotecas escolares: soñar, pensar, hacer (Díada, Sevilla, 2002) o professor Guillermo Castán enfatiza a necessidade de enquadrar o projeto da biblioteca escolar dentro do contexto mais geral de um projeto político-pedagógico da escola na qual a mesma se encontra. Diz Castán: “A biblioteca deverá ser um elemento ativo na tomada de decisões educativas e ao mesmo tempo uma ferramenta útil para o desenvolvimento do currículo e deverá, portanto, ajudar a responder às perguntas chaves de para que, que, como e quando ensinar em nossas escolas. (2) “Lectura dialógica. La comunidad como entorno alfabetizados” em Soler Gallart, Marta e Teberovsky, Ana, Contextos de alfabetización inicial. Barcelona. Horsori-ICE-UB. 2003. (3) Trata-se de ações de capacitação e promoção da leitura, desenvolvê-las no marco do Plano Nacional de Leitura do Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia em diferentes províncias da Argentina. Agradeço aos capacitadores Marcela Carranza da Cidade de Buenos Aires, a Chiquita Mac Donald del Chaco, a Patricia Bustamante de Salta e especialmente a professora Norma Noemí Delgado da Escola Nº. 4728 “Alba Coronel de Pereyra Rozas” de Salta. (4) Sarlo, Beatriz: Escenas de la vida posmoderna. Buenos Aires. Ariel. 1994.