5
Carlos Carreira, A ALMA PORTUGUESA E O CHEIRO DA CASA DOS MEUS AVÓS...................................... 173
Elter Manuel Carlos, A SINGULARIDADE DA LEITURA DO OLHAR CABO-VERDIANO............................. 183
Joaquim Miguel Patrício, SÍLVIO ROMERO: O ELEMENTO PORTUGUÊS NO BRASIL.................................... 190
Maria Seoane Dovigo, DE UTOPIAS E UCRONIAS: A DEMANDA DA GALIZA............................................... 193
Maria João Coutinho, ONDE A PALAVRA É MÚSICA E DANÇA........................................................................ 196
Maria Leonor L. O. Xavier, A FILOSOFIA ENTRE AS HUMANIDADES............................................................ 201
Paulo Santos, REFLEXÃO INVOCATIVA DO LEGADO DE ANTÓNIO TELMO............................................... 206
J. Pinharanda Gomes, APOLOGIA DA GRAMÁTICA ELEMENTAR................................................................... 208
Adriano Moreira, DISCURSO DE DOUTORAMENTO HONORIS CAUSA........................................................ 215
RUBRICAS
ENTRECAMPOS, de J. Pinharanda Gomes............................................................................................................. 220
AS IDEIAS PORTUGUESAS DE GEORGE TILL, de Jorge Telles de Menezes...................................................... 222
DO ESPÍRITO DOS LUGARES, de Manuel J. Gandra........................................................................................... 223
LITERATURA ORAL E TRADICIONAL, de Ana Paula Guimarães....................................................................... 227
CARTAS SEM RESPOSTA, de João Bigotte Chorão................................................................................................ 230
BIBLIÁGUIO
ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA, por Maria Luísa Malato Borralho................................................................ 232
O SEGREDO DE GRÃO VASCO, por António Carlos Carvalho............................................................................... 239
A FILOSOFIA JURÍDICA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX, por José Esteves Pereira................................................ 240
MIGUEL REALE: ÉTICA E FILOSOFIA DO DIREITO, por Antônio Paim............................................................. 242
MENSAIGE, por Fernando de Castro Branco............................................................................................................ 243
A MINHA SALA DE AULA É UMA TRINCHEIRA, por Sérgio Quaresma............................................................... 244
EXTRAVOO
Rémi Boyer, METAFÍSICA & INICIAÇÃO............................................................................................................. 248
POEMÁGUIO
Samuel Dimas, SAUDADE DO PARAÍSO CELESTIAL......................................................................................... 6
João Carlos Raposo Nunes, NA GUARIDA DE SEBASTIÃO DA GAMA.............................................................. 6
Renato Epifânio, PASCOAES.................................................................................................................................... 7
Catarina Inverno, PORTUGAL................................................................................................................................ 66
Eduardo Aroso, AQUI ME TENHO, ASSIM ME QUERO..................................................................................... 71
Manuel Neto dos Santos, LUÍS DE GÔNGORA, NACIONAL.............................................................................. 96
Teresa Dugos, CHUVA; DA ESPERA; AURORA..................................................................................................... 151
Joaquim Carvalho, PORTUGALICIA....................................................................................................................... 161
Henrique Madeira, RENASCENÇA......................................................................................................................... 182
Maria Leonor Xavier, A FACE MAIS TERNA.......................................................................................................... 189
Delmar Maia Gonçalves, VIDA E MORTE.............................................................................................................. 189
António José Borges, BARBAROSSA INDELÉVEL SUCUMBIRÁ......................................................................... 192
Marco Aurélio, SUPRA-CAMÕES............................................................................................................................ 195
Carlos Carranca, AGORA......................................................................................................................................... 200
Maria Filomena Xavier, À PROCURA DA CORDA FINAL.................................................................................... 200
Carlos Gonçalves, DESPOSAMENTO..................................................................................................................... 219
Giancarlo de Aguiar, CARAVELAS DE NUVENS................................................................................................... 219
Jesus Carlos, GUINÉ................................................................................................................................................. 229
António Simões, DITOSO SEJA; QUANDO O SOL.............................................................................................. 231
Maurícia Teles da Silva, O RIO DA SAUDADE....................................................................................................... 258
Sam Cyrous, SE O FÊNIX TIVESSE UM LAR........................................................................................................ 259
MAPIÁGUIO................................................................................................................................................................... 259
COLECÇÃO NOVA ÁGUIA........................................................................................................................................... 260
ASSINATURAS.............................................................................................................................................................. 261
EDITORIAL
A
lguns continuam a defender que a nossa tradição filosófica e cultural é pobre, mas a Nova
Águia persiste em provar que assim não é. Não
pretendendo afirmar que essa tradição filosófica e
cultural é “melhor do que as outras” – nunca foi
esse o nosso espírito –, procuraremos apenas demonstrar que ela é uma tradição rica, digna de ser
honrada. Assim, claro está, a conheçamos.
No décimo número da Nova Águia, mantemos
essa demanda, destacando, desde logo, Leonardo Coimbra, por ocasião dos 100 anos d’O
Criacionismo, uma das obras mais marcantes da
nossa tradição filosófica. Leonardo Coimbra
foi, como é sabido, uma das figuras maiores
da “Renascença Portuguesa” – cujo centenário
igualmente neste ano se comemora, conforme
salientámos no número anterior. Enquanto Professor da Faculdade de Letras do Porto, foi ele,
de resto, o grande “Mestre” de alguns autores de
referência da Filosofia Portuguesa – nomeadamente, Álvaro Ribeiro e José Marinho (por nós
evocados no oitavo número).
A par de Leonardo Coimbra, destacamos neste
número Dalila Pereira da Costa – falecida em
Março deste ano. Tal como fizemos com António
Telmo (no sexto número), a Nova Águia homenageia assim aqueles que, nas últimas décadas,
mais têm contribuído para o enriquecimento da
nossa tradição filosófica e cultural. E Dalila Pereira da Costa foi, sem dúvida, uma das autoras
que nos deixou uma Obra maior, que certamente continuará a interpelar as próximas gerações.
Para além destes dois autores, neste número destacamos ainda duas figuras mais antigas
mas, nem por isso, menos relevantes: Manuel
Laranjeira e João de Deus. Sobre João de Deus,
publicamos alguns textos apresentados num
Seminário que se realizou, em Abril deste ano,
sobre a sua Obra, que tão inspiradora foi para a
geração da “Renascença Portuguesa”. Sobre Manuel Laranjeira, por ocasião do centenário do
seu falecimento, publicamos alguns textos que,
não por acaso, salientam a actualidade da sua
Obra. Como não nos cansamos de dizer, a Nova
Águia, enraizando-se numa tradição, nunca
teve um olhar passadista – quando se volta para
o passado, é para repensar o nosso presente e,
sobretudo, abrir horizontes de futuro.
Como sempre tem acontecido, também neste
número houve espaço para desenvolver outros temas e evocar outros autores – Teixeira de Pascoaes, desde logo, por ocasião dos 100 anos d’O Saudosismo (recordamos que o Poeta da “Renascença
Portuguesa” foi o autor de capa do quarto número da revista), mas também Faria de Vasconcelos, nos 100 anos da sua morte, e Milton Vargas,
insigne filósofo brasileiro recentemente falecido,
que, como recorda António Braz Teixeira, foi
«membro destacado do que se convencionou
designar por “Escola de São Paulo”, movimento
especulativo desenvolvido na capital paulista, durante a década de 50 e 60 do século XX, em torno
do Instituto Brasileiro de Filosofia».
Para além das secções habituais da Revista, que
se mantêm, neste número inauguramos uma
nova, “Noticiáguio”, que, mesmo a fechar, regista alguns acontecimentos dignos de nota. Como
sempre, ficaram muitos textos de fora – salientamos, em particular, dois conjuntos textuais
sobre dois Poetas, Ramos Rosa e Couto Viana,
que iremos publicar já no próximo número, que
terá como tema maior o Mar, na sua relação
com a nossa Cultura, com a nossa Língua, já
que, seguindo o lapidar mote de Vergílio Ferreira: “Da minha língua vê-se o mar”. No décimo
número da Nova Águia, poderíamos, talvez, ter
um registo mais comemorativo – afinal, não são
muitas as revistas deste cariz que atingem esta
marca. Mas, também aqui, preferimos olhar
para o futuro – quando chegarmos ao centésimo
número, faremos, então sim, um número comemorativo. Fica desde já prometido.
Direcção da Nova Águia
Samuel Dimas
RAZ ÃO MIST ÉRIC A
Hoje, no rio, só se adivinham
pedras imersas,
junto da tua respiração afogada.
A fundura dessas pedras é grande!...
É linha de água
acrescida da fundura da nossa dor…
O rio onde o amor nasceu e correu
foi o mesmo rio onde o amor esmoreceu
e morreu...
Sem mais além para ir
a vivermos
o futuro foi morrendo
despindo pouco a pouco de alma
a gente…
Sempre que cri ver-te,
tua aura esmorecida senti-a tão distante
quanto o meu coração de mim…
— Por o teres levado contigo…
Joaquim Carvalho
DO R EM Q UE TE EN CL A USUR A STE
A Florbela Espanca
O nosso sorriso vivo
por ser claro e certo
foi como um campo de linho puro
que vestiu de branco o luar.
Os instantes alados de eternidade
nascidos em nós,
cedo se desfizeram…
Desses instantes restaram fragmentos
de histórias que os povoaram
como quando se acorda de um sonho…
Onde estão agora as pedras
emersas do rio
nas quais poisaste os pés
sempre que me abraçaste?
— A altura dessas pedras era grande!…
Era a altura da linha de água
acrescida do nosso amor…
Hoje, mais do que nunca,
sinto a dor
em que te enclausuraste…
Essa dor
que te levou a partir imersa em água
sem me perguntares se queria ir contigo…
Sem nos darmos conta perdemo-nos
entre a foz e a nascente…
Tornaremos a achar-nos
no poente
das coisas invisíveis?…
— Neste instante solitário,
cheio de lembranças tuas,
sou já, no rio,
corrente vertical descendente…
Porque sei
que, ao pôr-do-sol, me esperas…
a Leonardo Coimbra, filósofo do Mistério
Os poemas dão a forma exacta
da alegria criadora da Origem
e os argumentos dão a presença vaga
da dor redentora da existência,
só na exuberância inventiva e imaculada
da graça
se reúnem em excelsa comunhão
o mundo espiritual e o mundo material
dessa babel de palavras.
Poesia e filosofia encontram-se
na tarefa sublime
de procurar o coração da realidade
e do alto da montanha
que o esforço reflexivo permitiu escalar
um rasto de luz espiritual
inunda a vida.
Calam-se as vozes intolerantes
da crítica e da ambição
e as almas
encantadas pela presença do Mistério
apontam para o destino glorioso do Paraíso.
Trata-se da audaciosa e humilde
preparação para o voo abismal da Morte
em que o brilho das flores é mais vivo e forte
e o cheiro do bosque mais intenso.
Na poesia
damos o salto imprudente
da alteridade imanente
das relações precárias e dolorosas
para a alteridade transcendente
das relações eternas e felizes.
A harmonia do Universo
conquista-se na liberdade criativa
da águia e do condor
e não na necessidade cronológica
da vida biológica e do movimento astral,
Porque as flores silvestres
que nascem dessa ordem natural
nunca sabem de que terra são
e de que cor se faz o festim
com os pássaros.
LEONARDO COIMBRA
– nos 100 anos d’O Criacionismo
8
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
NO 1º CENTENÁRIO DE O CRIACIONISMO
J. Pinharanda Gomes
Uma tese vencida, não refutada
Leonardo Coimbra, após os estudos de Física e
Matemática em Coimbra, depois das experiências na Escola Naval (1903-1905), e do curso
de Matemática na Escola Politécnica do Porto
(1906-1909), decidiu habilitar-se pelo Curso
Superior de Letras (1909-1910), ano em que
obteve a licenciatura para docente, sendo colocado no Liceu Central do Porto.
Com residência na Rua do Monte Olivete, na
encosta do antigo Sítio da Cotovia (Escola Politécnica) para S. Bento da Saúde, o percurso de
casa para o edifício onde o Curso Superior de
Letras estava instalado (antigo Convento de Jesus, actual Rua da Academia das Ciências) era
de proximidade, o principal troço do percurso
sendo o ocupado pelo Jardim do Princípe Real.
Os professores do Curso tinham-se envolvido
em repetidas instâncias em vista de uma reforma dos estudos, os quais foram objecto de dois
Decretos, em 1901 e 1902, que reorganizaram
o currículo escolar. Assim “o período de 1901 a
1911 foi calmo, a satisfação do Curso pela reforma tão intensa [...] e a criação da Faculdade de
Letras, não preocuparam tanto os professores,
que repousavam, depois duma luta tão árdua e
persistente”, só satisfeita pela República. Em frequentes lugares, Teófilo Braga aparece como Director do Curso nesta época. De facto, além de
ter sido Secretário, só foi Director no biénio de
1877-1879, no mais sendo professor1. Em 5 de
Outubro de 1910 assumiu as funções de Presidente da República, mas o Director do Curso era
o seu apaniguado Consiglieri Pedroso, a quem
logo sucedeu, no ano lectivo de 1910-1911, o
1
Cf. Busquets de Aguiar, O Curso Superior de Letras (18581911), Lx.ª, 1939, p. 123, ob. cit., p. 292.
erudito J. M. Queiroz Veloso, que, na nova Faculdade de Letras, foi Director até 19292, quase
sempre eleito por unanimidade.
Num ambiente pelos vistos pacificado, Leonardo Coimbra, aluno da secção de Ciências, obteve
notas brilhantes, tendo recebido elogios de pelo
menos dois professores, Francisco Adolfo Coelho
e Joaquim António da Silva Cordeiro que, não
obstante, veio a constituir-se como seu inimigo3.
Enquanto Leonardo exercia a docência liceal no
Porto, o Governo da República prosseguiu a
actividade legislativa de carácter reformista envolvendo o ensino, promulgando, pelo Decreto de
19.4.1911 as Universidades de Coimbra, Lisboa e
Porto4 e, criando, pelo Decreto de 9.5.1911, as Faculdades de Letras de Coimbra e Lisboa5. No Outono deste ano, melhor, a 27 de Outubro de 1911,
tomou posse do cargo de Director do Colégio dos
Órfãos de Braga, substituindo o Padre Francisco
Cruz, que viria a encontrar-se no itinerário religioso de Leonardo, quer presidindo ao seu matrimónio católico, quer sendo padrinho de baptismo
do filho Leonardo Augusto, na época natalicia de
1935.Pouco mais de um mês Leonardo serviu o
Colégio, pois em 15 de Dezembro já concedia
uma entrevista ao jornalista Oldemiro César, dando conta das razões que o levaram a abandonar a
Directoria6. Livre, decidiu-se a concorrer ao Concurso para professor assistente do 6.º Grupo de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa.
Cf. A.H. Oliveira Marques, Notícia Histórica da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa (1911-1961), Lx.ª, Ocidente,
1970, p. 43.
3
S. Dionísio, L.C., Testemunhos dos seus Contemporâneos, Porto,
T. Martins, 1950, p. 412.
4
Diário do Governo n.º 93, 22/4/1911.
5
D. do Governo n.º 109, 11/5/1911.
6
Cf. L. Coimbra, Cartas, Conferências, Discursos, Entrevistas e
Bibliografia Geral, Lx.ª, Fund. Lusiada, 1994, pp. 42-46.
2
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Pela reforma de 24 de Dezembro de 1901, os
estudos filosóficos abrangiam as cadeiras de Psicologia e Lógica (1.º ano) e História da Filosofia
(2.º ano). Pelo Decreto com força de lei de 19
de Agosto de 1911, o 6.º Grupo do curriculo
facultativo é o de Filosofia, com as cadeiras de
Filosofia (Psicologia, Lógica e Moral), História
da Filosofia Antiga, Medieval e Moderna, Psicologia Experimental e Estética e História da Arte,
distribuidas por 4 anos7.
O painel com as efigies magistrais decerto se
representava na imaginação de alunos e de candidatos. O Director era José Maria Queiroz Veloso (fal. 1952), de Barcelos, médico pela Escola
Médico-Cirúrgica do Porto, adversário de uma
educação “eivada de puras e abstractas noções
teóricas”, professor de História da Civilização
no C.S.L. desde 1901, que tinha como prioridade a formação de professores, bibliófilo sistemático, cujo lema foi “sem documentos não há
história”8. Era professor ordinário.
Professores eram também:
Francisco Adolfo Coelho (fal. 1919), desiludido
do ensino oficial, seguiu uma carreira autodidáctica, aceitando influências de Comte, Spencer, e dos
idealistas alemães. De carácter racionalista, preferiu as disciplinas de Filosofia, Etnografia e Educação, seguindo os modelos germânicos, sendo autor
de obras eruditas e teorético-prácticas, com teses
que ordenou nos dois volumes de Questões Pedagógicas (Coimbra, 1911-1912)9. Por assimilação dos
linguistas alemães, introduziu a filologia científica
no país, sendo considerado personalidade menos
dominada pelo dogmatismo positivista.
Francisco Xavier da Silva Teles, (fal. 1930), médico
da Marinha, teve a seu cargo a cadeira de Geografia10.
Teófilo Braga, (fal. 1924). Foi o principal douMattos Romão, Alguns Aspectos da Evolução dos Estudos Filosóficos na Faculdade de Letras de Lisboa. Comunicação apresentada
no Congresso de Actividade Científica Portuguesa. Coimbra,
1940. Coimbra, 1942, p.4. A.H. Oliveira Marques, Notícia Histórica da Fac. de Letras da Universidade de Lisboa (1911-1961),
Lx.ª, Ocidente, 1970. Nesta obra, a pp. 66-67 constam os elencos dos professores dos seis Grupos: Filologia Clássica, Filologia
Romântica, Filologia Germânica, História, Geografia e Filosofia.
8
Relatório Litterario e Económico da Escola Distrital de Évora,
Lx.ª, 1898, p. 18; A. Nóvoa (Dir.), Dicionário de Educadores
Portugueses, Porto, ASA, 2003, pp. 1425-1427.
9
Dicionário de Educadores, ed. cit., pp. 345-357.
10
Dic. de Educadores, ed. cit., p. 137.
7
9
trinador e mestre do Curso Superior de Letras,
paradigma dos positivistas portugueses e formador do republicanismo. Foi professor desde
1872 a 1923, e capital sistematizador da História da Literatura Portuguesa11.
José Maria Rodrigues, (fal. 1942), teólogo, especializou-se em Filologia Clássica e Estudos Camoneanos, de que foi introdutor na Faculdade de Letras12.
Manuel Maria de Oliveira Ramos, (fal. 1931),
era professor de Ciências Históricas em 1904,
assumindo em 1911 a cadeira de História Geral
e de História de Portugal13.
Foram professores extraordinários:
Agostinho Fortes, (fal. 1940), linguista e ensaísta
literário, formado no Curso Superior de Letras,
substituiu Consiglieri Pedroso na cadeira de História Geral em 1911. Teorizador da instrução
popular e das escolas normais superiores14.
David Lopes, (fal. 1942) foi professor do C.S.L.
desde 1901 e, desde 1911, da Faculdade de Letras. Ensinou Literatura Francesa e Língua e Literatura Arábicas15.
José Leite de Vasconcelos, (fal. 1941), médico,
dedicou-se depois à Linguística, Arqueologia e
Etnologia, de que é capital referência portuguesa. Leccionou desde 1911 a 192916.
Entre os primeiros professores da Faculdade
inscreve-se também Gustavo Cordeiro Ramos,
(fal. 1974) que estudou didáctica das línguas na
Alemanha e foi conceituado germanista e agente
de política cultural como Presidente do Instituto para a Alta Cultura, mas só foi professor na
Faculdade a partir de 191317.
A explicação de Leonardo sobre as razões que
o levaram a abandonar o Concurso não contém os nomes dos professores que integravam
o júri, nomeando apenas o professor Silva
Cordeiro (arguente) e referindo o Presidente
do Júri, sem dizer o seu nome. Cremos que o
Id., ib., pp. 191-195 e a Bib. aí aduzida.
Id., ib., pp. 1216-1217.
13
Grande Enc. Port. e Brasil., vol. 19, p. 414.
14
Dicionário de Educadores, cit., pp. 592-593.
15
Pedro Cunha Serra, Rev. Da Faculdade de Letras, 3.ª s., n.º 11, 1968.
16
José Leite de Vasconcelos. Livro Do Centenário (1858-1958). Lx.ª, 1960.
17
Dic. de Educadores, ed. cit., pp. 1148-1150.
Para alguns aspectos do movimento de docentes cf. Hugo Gonçalves Dores, A História na Faculdade de
Letras de Lisboa (1911-1930), FLUL, 2008, pp. 125-127.
11
12
10
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
júri seria constituído por algumas pessoas das já
mencionadas, no entanto, seria útil descobrir,
no Arquivo da Faculdade de Letras (o que não
conseguimos), o processo deste caso.
No teatro das Provas, o principal comparsa foi
Joaquim António da Silva Cordeiro (Braga,
1860 – Telhal, Lx.ª, 1.1.1915. Filho de um padre, e posto na Roda dos Expostos, cursou, como
eclesiástico, o 1.º ano de Teologia em Coimbra, derivando depois para Direito18. Seguiu a
carreira de professor liceal, sendo admitido no
Curso Superior de Letras em 1901 e transitou
em 1911 para a Faculdade de Letras, regendo o
6.º Grupo (Filosofia). Positivista, recebeu influências do Curso de Filosofia Positiva de Augusto
Comte, mas nos Ensaios de Philosophia da História (1882), revela também influências de outros
pensadores franceses desde Bossuet a Voltaire, e
também do italiano Vico. Quando publicou este
livro, deu notícia de esperar produzir outro volume com as escolas alemãs, desde Kant a Hartmann e inglesa, centrada em Alberto Spencer,
mas não chegou a levar o projecto por diante.
Começou por ensinar Filosofia no Curso Superior
de Letras, substituindo Augusto Maria da Costa
e Sousa Lobo (fal. 1900), um krausista, falecido
em 1902, prosseguiu idêntica função na faculdade
de Letras, desde 1911 a 1913/1914, sendo depois
substituído por Agostinho Fortes (1914/1915).
Considerado escritor de “elegância literária e
solidez científica”19 a sua obra prima intitula-se
A Crise nos seus Aspectos Moraes (1896), considerada qual balanço moral dos últimos vinte
anos (desde 1876), em que descredibiliza o regime monárquico. Foi obra estimada. O futuro
Cardeal Cerejeira tirou dela alguma inspiração
no passo em que, analisando a sociedade portuguesa no tempo de Clenardo, se refere ao
carácter nacional. Nesta obra, como anotou algures Álvaro Ribeiro, transita da ideologia positivista para a sociologia realista, inspirado em
Proudhon e em Lassalle. Nos Ensaios já revelara observações às teorias sociais de Condorcet,
Amadeu Carvalho Homem, Do Iluminismo ao Positivismo. J.A. da Silva Cordeiro e a sua Obra, Revista de História
das Ideias, Vol. III, Coimbra, 1981, pp. 37-76. Nova ed., Lx.ª,
Centro de História da Universidade de Lisboa, 1999. Prefácio
de Sérgio Campos Matos.
19
A.C. Homem, ob. cit.
18
para o
Século XXI
modificadas pelos correctivos de Littré, tendo
apontado Bossuet como “o derradeiro campeão
duma filosofia exausta”. A caminho da escola
racionalista, recusa a ideia de uma “providência descaroável” que pune, extermina e aniquila. Com formação económico-financeira, (Cf.
Questões de Finanças, 1851), dedicou criticas páginas a Teófilo Braga, a quem apontou a falta de
formação económica, sendo incapaz de transitar
dos factos políticos para os factos económicos, e
clama: “Quando até os Reis se dizem socialistas,
não brada aos céus esta lacuna de estudos económicos num hierafante da literatura que aspira a exercer um poder moral?20” Parece querer
disputar a primazia doutrinal a Teófilo, a quem
argui de não atentar nos problemas económicos
na sua teoria sociológica21.
Foi, sem dúvida, um dos promotores do mutualismo socialista, e, do ponto de vista como
docente universitário deve-se-lhe a introdução
da cadeira de Psicologia Cientifica no currículo
do Grupo de Filosofia da Faculdade de Letras.
Terá, em algum tempo, e já com evidentes sinais
quando foi do concurso a que Leonardo concorreu, sofrido de uma doença do foro psiquiátrico. Segundo o historiador do Curso Superior de
Letras, “faleceu louco”22. Tento sofrido do complexo de perseguição, a sua vida foi algo acidentada. Sérgio Campos Matos procurou restabelecer
uma biografia do famoso professor, tendo sido
surpreendido com o facto de o Processo de Silva
Cordeiro ter desaparecido do Arquivo da Faculdade de Letras, enquanto na Reitoria apenas há
uma carta de pêsames enviada pela Sociedade de
Estudos Pedagógicos em 13 de Janeiro de 1915.
Conseguiu, não obstante, ter acesso ao arquivo
do Hospital do Telhal, verificando que ali foi internado, depois de Egas Moniz ter estabelecido o
diagnóstico de “paralisia geral”23, no Telhal tendo falecido, sem que haja recebido grandes provas de apreço. Matos Romão esteve no funeral.
Leonardo obtivera a licenciatura no Curso Superior de Letras, era, portanto, filho da casa, embora esta tivesse mudado de nome. O concurso
Silva Cordeiro, ob. cit., p. 391.
Id. id., p. 385.
22
M.B. de Aguiar, ob. cit., p. 248.
23
Sérgio Campos Matos, Pref. a A Crise, ed. cit., p. LVIII.
20
21
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
destinou-se a aprovar um professor assistente para
o curso de Filosofia da Faculdade de Letras.
Já com responsabilidades familiares, pois casara
em 11 de Julho de 1907, só iniciou o Curso em
1909, tendo concluído com distinção em todas
as cadeiras. A nova Faculdade não implicara
uma reforma radical, sendo porventura considerada como uma “espécie de simbiose de Faculdade de Filosofia Castiça e Filosofia Positiva”24,
isto considerando o peso dos grupos de Filologia: Clássica, Românica e Germânica.
Por forma a preparar a tese para o concurso, fixou-se na Lixa, onde a pensou, a pesou, e a escreveu “quase de um jacto”, entre 5 de Maio e 20
de Junho de 1912, um sábado. Na segunda-feira
seguinte, o filho adoeceu, sucumbindo a 29 desse
mesmo mês25. Nascera em 25 de Junho de 1908.
O original manuscrito seguiu para a Tipografia
Costa Carregal, do Porto, que servia as Edições
da “Renascença Portuguesa”, e produziu um volume com o formato 240x160 mm., e 341 pp.
mais 1 com Errata. A data da impressão refere
apenas o mês de Agosto de 191226. Título: O
Criacionismo. (Esboço de um Sistema Filosófico).
A tempo, Leonardo entregou na Faculdade, e conforme exigência da Lei, 20 exemplares que foram
depositados no “claustro magistral dos lentes”.
No transporte, contou com a ajuda de um mestre tipógrafo da Tipografia Costa Carregal. A este
propósito Sant’Anna escreveu que, passadas quatro
décadas (cerca de 1950?) Delfim Santos lhe dissera, com prudente sigilo, que tais livros “seriam
achados, intactos, nos Arquivos da Faculdade”27.
O que de irregular, insólito e, até, estranho da
parte do professor arguente, Silva Cordeiro se
verificou, veio a público, e tem sido contado em
diversos escritos acerca de Leonardo, bastando
neste caso ter presente que foi o próprio Leonardo que tornou público o episódio, ocorrido
durante a defesa da tese na Faculdade, em 13 de
Dezembro de 191228, uma sexta feira.
Sant’Anna Dionisio, L.C., O Filósofo e o Tribuno, Lx.ª.,
INCM, 1985, p. 37.
25
S. Dionisio, L.C., Testemunhos, Porto, Tavares Martins, 1950, p. 415.
26
Na B.N.P. há vários exs., um deles, supomos que 1.º a chegar,
entrou em 17 de Outubro de 1913 mas, a lápis, alguém anotou: “impresso data anterior”.
27
S. Dionisio, L.C., O Filósofo e o Tribuno, ed. cit., p. 61.
28
E não 1913, como escreve a Grande Enc. Port. e Brasil., Vol. 7, p. 95.
24
11
Perante o júri, o Professor Silva Cordeiro quis
discutir a tese, e segundo o testemunho de Leonardo, “amontoou argumentos sobre o que
eu nela não dizia, não tendo, portanto de que
me defender”. Gerou-se um ambiente de “fúria
e desordem”, e, admitindo que a lucidez retomasse o seu lugar, Leonardo transigiu, mas, na
dúvida, e perante a hipótese de caso negativo,
escreveu uma nota que lhe poderia dar o direito
de “ulteriormente proceder, sem que se diga que
o faço por interessados e ocasionais motivos29. A
nota foi autenticada pelo tipógrafo Costa Carregal e António Correia, de Alijó.
Posteriormente, Leonardo tornou pública uma
explicação, sob a rubrica “Porque abandonei o
Concurso”, decerto para esclarecer, de uma vez por
todas, aqueles que eventualmente o questionassem
sobre o desaire. O texto pode ter sido elaborado
ainda nos dias mais próximos de 13 de Dezembro,
e decerto pelo fim do ano ou princípios de Janeiro
de 1913, em vista da data da publicação30.
Na falta de bilateralidade dos testemunhos, o de
Leonardo tem prevalecido, constituindo uma
página triste da história do ensino superior oficial, pois, segundo Leonardo, o confronto entre o arguente e o concorrente tocou as raias da
inconveniência social, pelo que, face aos sinais
de complexo de perseguição de Silva Cordeiro,
afluentes a uma “atitude de absoluta incompreensão e irritante ataque”, que voltou a repetir-se por ocasião da primeira prova oral e, perante
um “jogo de palavras sem sentido”, e não “entendendo tal atitude como decente”, Leonardo
abandonou o concurso.
Eis porque, resultando em idêntico fruto, o caso
de Leonardo é diferente do antigo caso de Cunha
Seixas. Prevalece agora, a favor da personalidade
Nota manuscrita existente no Memorial Leonardo Coimbra,
da Universidade Católica do Porto. Publicada por Ângelo Alves na revista Humanistica e Teologia, Vol. 15, Porto, 1994, p.
64. Reproduzida in Leonardo Coimbra, Cartas, Conferências,
Discursos, Entrevistas, e Bibliografia Geral, Lx.ª, Fund. Lusiada,
1994, p. 56, e, de novo por Â. Alves, L.C., Filósofo da Liberdade
e do Amor Infinito, Lx.ª, Fund. Lusiada, 2003, pp. 241-242, e
também nas Obras Completas de L.C., Vol. I, Tomo II, Lx.ª,
INMC, 2004, p. 397.
30
A Vida Portuguesa, Ano I, n.º 6, Porto, 1913, p. 42, sem
qualquer Nota Prévia explicativa. Compilado in L.C., Dispersos, Vol. III, Lx.ª, Ed. Verbo, 1988, pp. 245-248. Reproduzido
em Obras Completas, Vol. cit., pp. 398-400.
29
12
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
leonardina, o facto de, após a declaração acima,
ter posto um ponto final no assunto, não tocando mais, ao que parece, na pessoa de Silva Cordeiro, cuja doença evoluíra, a vida lhe sobrando
quase dois anos, morrendo discretamente, de tal
modo que o Anuário da Universidade de Lisboa
apenas indica como data terminal o mês de Dezembro de 1914.
Seria de esperar que, perante a Declaração de
Leonardo a Faculdade viesse a público dar uma
explicação? Seguiu-se o silêncio, com Silva Cordeiro sem dúvida maculado com os juízos e
opiniões que o esvaziavam de autoridade moral
e profissional. Na falta de contraditório, prevalecem os argumentos leonardinos, mas tudo teria sido assim? Não terá havido, na penumbra,
uma espécie de conspiração destinada a afastar
Leonardo do concurso, fazendo da “loucura”
de Silva Cordeiro, o executivo de um mandato,
abusando da sua falta de saúde mental?
Perante o ensino oficial, perante os monolitismos de vária índole cultural, política e social,
surgira algo de novo, fora de portas, sem o comando das instituições – a “Renascença Portuguesa”, em que Leonardo se envolveu desde o
primeiro dia. A “Renascença Portuguesa” não
conquistou de imediato os corações dos portugueses, mas anunciou um projecto de vida, uma
missão cultural e um ideal patriótico mediante
a educação. Propunha-se algo que as instituições
do Estado jamais haviam conseguido. Ignoramos os sentimentos da generalidade do corpo
docente, embora possamos registar o ascendente
regional de alguns: Queiroz Veloso era de Barcelos, Silva Cordeiro era de Braga, e os dois candidatos, sendo um alentejano, outro duriense,
ambos exerciam o ensino liceal no Porto, cidade
vital do movimento e da sua principal publicação literária, científica e filosófica, A Águia (2.ª
série, desde Janeiro de 1912). Surgia também o
projecto das Universidades Populares. Uma entrevista concedida por Leonardo e Álvaro Pinto
ao jornalista Oldemiro César, decerto não passou desapercebida e terá causado algum abalo.
Ela surgiu qual manifesto: “Somos poucos e em
atitude oposta aos preconceitos desta época de
mercantilismo cosmopolita e industrial e industrioso materialismo. Teremos a guerra canina
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
dos literateiros, mas, se conseguirmos achar a
fórmula em que a actualidade lusitana encarne o
eterno, venceremos nós”31. Esta afirmação tinha
endereço. Prejudicial foi, julgamos, o pormenor
de Álvaro Pinto ter mencionado o Criacionismo
de Leonardo, já tido na Biblioteca da Editora.
Afirmação extemporânea? Poderá ter sido negativa a notícia de que a tese para o Concurso fora
editada mesmo antes da realização deste?
De facto, enquanto Mattos Romão só em Novembro conseguiu concluir a tese, a de Leonardo, segundo o registo da tipografia no volume,
diz que O Criacionismo foi impresso no Porto,
na Tipografia Costa Carregal, para a Biblioteca da Renascença Portuguesa, em Agosto de
1912… Além do mais, Leonardo sofria os efeitos da aura de anarquista….
Resta agora a ideia de que os pacotes dos livros entregues por Leonardo estavam intactos,
ficando-se com a ideia de que ninguém, nem
mesmo os elementos do júri, tinham passado os
olhos pelo texto. Ora, a menos que Leonardo tivesse ofertado um exemplar pessoalmente a Silva
Cordeiro, este fez alguma leitura da tese, o que
se conclui pelo testemunho de Leonardo: fez a
crítica da teoria da sensação, a crítica de Tannery
à lei de Fechner-Weber, e zangou-se por ter citado Gourd, pelo menos três vezes.
Desistente Leonardo, aberto ficava o caminho
para o outro concorrente, João António de Mattos Romão (n. Crato, 1882 – ? c. 1960), formado
em Filosofia Natural pela Universidade de Coimbra, defensor do cientismo e do positivismo segundo o modo de Ribot, e de Piéron, em cujos
Laboratórios de Psicologia, criados anos mais tarde, estagiou. Admirador de Wundt e, portanto,
da tabela classificativa das Ciências já muito diferente da comteana (propondo, a par das Ciências
da Natureza as Ciências do Espírito, incluindo as
fenomenológicas consideradas na Psicologia), parece que estaria mais próximo do perfil intelectual
de Silva Cordeiro do que Leonardo.
Apresentou a tese intitulada A Energia na sua Dupla Evolução Scientifica e Filosófica32 que elaborou
Entrevista: A Renascença Portuguesa, O Mundo, Ano 14, n.º
4283, Lx.ª, 10.8.1912. Cf. L. Coimbra, Cartas, Conferências,
Discursos..., ed. cit., p. 50.
32
Lx.ª, Tip. A Editora, Lda, 1912, vol. 8.º de 167+2 pp. com
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
enquanto professor efectivo no Liceu Alexandre
Herculano do Porto, tendo concluído a sua redacção
em 2 de Novembro de 1912, redacção essa levada
a efeito sob pressão, já Leonardo havia terminado
a sua em 20 de Junho, quase seis meses antes. No
preâmbulo, refere “toda a precipitação na redacção
definitiva e o carácter, por assim dizer vertiginoso
das revisões”, em vista dos prazos a cumprir, cujo
fim se aproximava. Além disso, ainda teve de ceder algum tempo para obter umas traduções de
textos alemães, efectuadas por gentileza pelo Eng.
Edouard Dalphin, que não sabemos se traduziu
do alemão para o francês ou logo para português.
É um pormenor de curioso registo, pois o acesso
dos nossos letrados à língua alemã era, nesse tempo, pouco frequente, pelo que a Alemanha invadia Portugal através da língua francesa, algumas
vezes em edições de origem belga, como julgamos
ter sido o caso de Wundt. Assente na interpretação de Wundt, cujas ideias de energia e de entelequia e cujas leis do acréscimo progressivo da
Energia psíquica e da Síntese Criadora, ele tomara
de Aristóteles e renovara numa interpretação não-substancial mas actual, a dissertação constitui-se,
aliás como confessa o autor, na apologia do “grande princípio da Evolução”33.
O caso Leonardo/ Faculdade de Letras não põe
no esquecimento o caso Cunha Seixas/ Curso Superior de Letras, ocorrido em Dezembro, 1878/
Janeiro, 1879, uns trinta e quatro anos antes. Nenhum dos autores de sistemas filosóficos originais
e completos, (Seixas com o Pantiteísmo, já emergente na tese Principios Geraes de Philosofia da
História (1878), só plenamente explicado na edição póstuma de Principios Geraes de Philosophia
(1898), e O Criacionismo de Leonardo Coimbra),
conseguiu obter a admissão à docência, o primeiro no Curso Superior de Letras, na direcção de
Teófilo Braga, o segundo na recém-criada Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de que
Teófilo era também professor.
Houve, todavia, diferenças processuais. A tese
de Cunha Seixas foi aprovada por unanimidade,
tal como a tese de Zófimo Consiglieri Pedroso, sobre A Constituição da Família Primitiva.
31
Bibliografia e Errata. Sobre M. Romão cf. Dicionário de Educadores Portugueses, ed. cit., p. 1218.
33
M. Romão, ob. cit., p. 167.
13
Ora, havendo um único lugar em disputa (o de
professor de História Universal e Pátria, que era
ensinada pelo falecido Augusto Soromenho),
para dois candidatos aprovados, a Direcção do
Curso preteriu Cunha Seixas e nomeou Consiglieri Pedroso. O caso deu origem aos protestos
de Cunha Seixas, mas sem efeito, porquanto,
pelo Regulamento de 22 de Agosto de 1865,
só ex-alunos podiam concorrer a professores
do Curso, e só por haver falta de diplomados
se admitiam concorrentes oriundos de outras
origens. Seixas vinha da Faculdade de Direito
de Coimbra, era advogado e jornalista em Lisboa, Pedroso fora aluno e diplomado pelo Curso Superior de Letras, sendo também, segundo
parece, em virtude da obediência a Teófilo e às
ideias republicanas, protegido do Mestre português do Positivismo34. Uma vindicativa reacção
levou Seixas a proceder como impiedoso, e por
vezes sarcástico crítico dos livros que Teófilo ia
publicando. Perdera-lhe todo o respeito, mesmo
quando adoçava as críticas com algum elogio sobre uma ou outra qualidade do visado35.
Matos Romão, que lhe sucedeu na regência da
cadeira de Filosofia, considerou Silva Cordeiro
juntamente com Adolfo Coelho, “um dos mais
agudos e brilhantes espíritos que conhecemos”,
elogiando-lhe o facto de ter sido um apaniguado da psicologia científica segundo o método de
Wundt36. Dedicado ao ensino, reformou-se em
1952. Leonardo seguiu por outro caminho, ignoramos se, por acaso durante a sua actividade ministerial, alguma vez teve de se cruzar com o rival.
Se não se cruzou ele, cruzou-se, ainda em vida
de Leonardo, Álvaro Ribeiro. Foi no dia 21 de
Novembro de 1931, no Liceu Pedro Nunes, em
Lisboa, onde Álvaro Ribeiro, prócere discípulo
leonardino e seu notável promotor, se submeteu ao exame de admissão para o estágio de professor do ensino liceal. Presidente do Júri: Mattos
Cf. Álvaro Ribeiro, Os Positivistas, Lx.ª, Liv. Francisco Franco, 1951; José Filipe Moreira, José Maria da Cunha Seixas, Contribuição para o estudo da sua Vida e da sua Obra, Lx.ª, Fac.
de Letras, 1963, com a documentação oficial do episódio; P.
Gomes, Cunha Seixas. Uma Filosofia da Modernidade. Antologia
de Estudos. Câmara Mun. de S. João da Pesqueira, 2006.
35
Cf. P. Gomes, “Teófilo Braga perante Cunha Seixas”, inédito,
lido no Colóquio promovido pela Univ. Cat. do Porto, 21.5.2011.
36
Mattos Romão, Alguns aspectos da Evolução dos Estudos
Filosóficos na Faculdade de Letras de Lisboa, ed. cit., p. 7.
34
14
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Romão. Juízo final: inapto para o exercício da
carreira em virtude de a sua voz ser pouco audível37. Não era mentira, mas Romão nem previa
que reprovava um filósofo.
Quanto a Leonardo, dar-lhe lugar no elenco de
professores, seria condenar o monopólio da magistratura positivista em vigor. Se o cenário para
o afastamento de Leonardo não foi preparado,
pelo menos pode sugerir que foi, e, nesse caso,
houve duas vítimas, um arguente manipulado,
e um concorrente desautorizado. Do episódio
resta O Criacionismo.
*
“O Criacionismo”
ou O Positivismo Refutado
O património filosófico português apresentado nos alvores do vigésimo século está longe,
já não diremos de encher as medidas, mas de
proporcionar algum conforto. A ditadura positivista tornara-se um facto, sobretudo a partir
de 1870 tendo entrado, não directamente pelos ritos de doutrina científica e filosófica, mas
porque serviu um momento histórico-cultural,
vigente e militante através das Conferências do
Casino, (1871) e logo afirmado como ideologia
adequada à promoção de reformas institucionais e sociais: proclamação de um novo regime,
menos atracção pelos estudos teorético-especulativos, protecção, na medida do possível aos
estudos práticos, oposição frontal às filosofias
fundadas ou promotoras da Metafísica e da Teologia, ensino oficial apostado na erradicação
de uma Neo-Escolástica, qual a ensaiada desde
o magistério da encíclica Aeterni Patris (1879)
e a aposta no que entendeu constituir a educação científica38.
A implantação pública e escolástica do Positivismo suscitou um leque de reacções porventura
complementares, ainda que nem sempre de análogas formulações.
Positivismo é termo homónimo, ou equívoco,
porquanto o mesmo nome serviu para designar
Álvaro Ribeiro e a Filosofia Portuguesa, Lx.ª, Fund. Lusiada,
1995, p. 238.
38
F. Deusdado – P. Gomes, A Filosofia Tomista em Portugal.
Porto, Lello & Irmão, 1978.
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
ou identificar diferentes modos de pensamento
filosófico, quais esses que de um modo geral
constam do que designaremos por estado da
questão, “status quaestione”, elaborada por Leonardo Coimbra num amplo espólio destinado
a ilustrar as “filosofias vulgares” que o Criacionismo se propunha refutar, designadamente,
o materialismo, o energetismo, o monismo, o
evolucionismo (embora Leonardo faça a distinção entre as vias de Bergson e de Spencer), o
cientismo, o pragmatismo, o contingencialismo
e outras variantes que o filósofo tornava abrangidas pelo adjectivo cousistas39. De O Capital
de Karl Marx só em 1912 apareceu um resumo
traduzido do francês por Emília Araújo Pereira.
O processo da implantação do Positivismo
acha-se admiravelmente explicado no ensaio
que Álvaro Ribeiro dedicou ao cenário preenchido por um monopólio, elevado a dogma de
educação nacional pelo magistério de Teófilo
Braga, no Curso Superior de Letras e na escola
subsequente, criada já sob o regime republicano40. Ao Positivismo de origem escolástica juntou-se o positivismo dos publicistas, veiculado
através de jornais e de periódicos de matriz política inspirada no positivismo, não tanto por ser
uma filosofia, mas por constituir um modismo,
um termo de fácil reconhecimento pelo público
massivo, e privilegiar a imediateidade dos factos.
“O espírito nacional é, não direi anti-filosófico,
mas afilosófico, como prova a nossa miséria na
literatura respectiva”41 – deste modo Adolfo Coelho julgava o País, o pensamento português e
a eficácia das escolas públicas. Meia dúzia de
anos antes deste juízo, Sampaio (Bruno) exarara
o veredicto: “Esta penúria lusitana em matéria
filosófica foi (é ainda) atribuída ao efeito deprimente de uma educação perversamente adequada a embrutecer gerações”42. Um lato inventário
ou elenco de opiniões já foi por nós antologiado
e, salvo as diferenças geradas pela polémica do
problema da Filosofia Portuguesa (a partir de
1943), a maioria dos votos exprimiu esse sentido,
considerando Portugal a terra mais anti-filosófica do planeta43.
Na sequela da implantação da ditadura chamada
República, o ano de 1912, a título de constituir
mais um ano na transição da Monarquia para o
regime republicano, foi de uma atroz pobreza.
Aprofundaram-se as reivindicações de um estrato
social sem Deus nem religião, é estabelecido o regime de censura à imprensa, activa-se e agudiza-se
a perseguição à hierarquia católica, à luz da lei que
era considerada a verdadeira Lei Básica da República44, o Estado apropria-se dos bens eclesiásticos,
seminários são encerrados e, na prática, interditos.
Da República, “anojado”, já Sampaio Bruno se
afastara, enquanto Guerra Junqueiro, indisposto
com os caminhos do republicanismo, clamava:
“Não uma República doutrinária, estupidamente
jacobina, mas uma república larga, franca, nacional, onde caibam todos. Não um partido, mas da
nação”45. Ano de triagem sócio-religiosa com efeitos culturais, aprofundamento do poder do ateísmo e do positivismo materialista.
Quando percorremos uma listagem de bibliografia filosófica relativa aos primeiros anos do
século XX, resta-nos, de 1902, A Ideia de Deus,
de Sampaio (Bruno) e, por tradução, O Curso de
Filosofia do Cardeal Mercier (1904), já destinado a pouco sucesso, pois era sobremodo seguido nos Seminários, depois encerrados, cremos
que pouco ou nada nos Liceus e, quanto à sua
possível acedência à informação da Faculdade
de Teologia, estava sentenciada, porque a Faculdade de Teologia de Coimbra encerrou, sendo
transformada em Faculdade de Letras em 1911
juntamente com a transformação do Curso Superior de Letras em Faculdade de Letras de Lisboa.
Conferindo o subsídio legado por Fidelino
de Figueiredo, no que a 1912 respeita, a edição filosófica oferece-nos uma obra curiosa de
João Antunes, que também usou o pseudónimo de João Oculto e valorizou a religiosidade
P. Gomes, Liberdade de Pensamento e Autonomia de Portugal,
Lx.ª, Espiral, 1976, pp. 51-86, com as opiniões de cada autor
no contexto da polémica.
44
P. Gomes, A Constituição da República fez 100 Anos, Nova
Águia, n.º 8, 2011, pp. 230-237. Foi uma lei considerada intocável, verdadeira deusa republicana.
45
G. Junqueiro, Anotações ao poema Pátria (1894).
43
L. Coimbra, O Criacionismo, Obras Completas, Vol. I, Tomo
II, Lx.ª, INCM, 2004, pp. 270-291.
40
Álvaro Ribeiro, Os Positivistas. Lx.ª, Liv. Pop. F. Franco, 1951.
41
Adolfo Coelho, Notas sobre Portugal, Lx.ª, IN, 1908, p. 538.
42
Bruno, A Ideia de Deus, Porto, Liv. Chardron, 1902, p. 26.
39
37
para o
15
leonardina46 (A Psicologia Experimental. Notas
de Propedêutica Filosófica); outra de Silvestre de
Morais, um antigo aluno dos jesuítas no Colégio de S. Fiel, onde, no ambiente da revista
Brotéria, terá ganho interesse pela ciência (Evolução e Determinismo)47 de Basílio Telles (La Notion de Temps) e, depois, ainda no ano seguinte
(1913) de Paulo Merêa (Idealismo e Direito) e
pouco mais, devendo registar-se o ensaio sobre
O Problema da Cultura e o Isolamento dos Povos
Peninsulares de António Sérgio48.
Se, do ponto de vista editorial, os elencos disponíveis se mostram exíguos, dispomos para
eles de confirmação em escritos de exegese cujo
horizonte pode incluir outros escritos como O
Encoberto (1904) de Bruno, ou este, já em 1912,
O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, de Teixeira
de Pascoaes49.
Houvera uma reacção anti-positivista, anti-materialista e anti-evolucionista (o anti-evolucionismo foi arguido pelo criacionismo peculiar do
pensamento cristão) trazida à vista tanto por autores de idiossincrasia espiritualista, como J.M.
da Cunha Seixas, como do surto neo-escolástico
posterior a 1879, e ao combate ao dogmatismo
científico, exemplificado na polémica que opôs
M.B. Fernandes Sant’Anna, S.J., a Miguel Bombarda (Questões de Biologia, 2 vols., 1899-1900).
Por outro lado, a encíclica Pascendi (1907) de Pio
X, pode ter contribuído para orientar os teólogos
no sentido da prudência face ao Modernismo50.
Portanto, num quase ermo filosófico, O Criacionismo, escrito e publicado em 1912, é como que
um milagre, e, todavia, como que solitário, sem
a companhia de autores portugueses aos quais
João Oculto, Quem é Cristo, Lx.ª, 1934.
P. Gomes, Pensamento Português, Vol. II, Braga, Pax, 1972
(pp. 17-36: O Pensamento Filosófico de Silvestre de Morais).
48
Fidelino de Figueiredo, Estudos de Litteratura, 4.ª série, Lx.ª,
Liv. Portugália, 1924, pp. 133-173.
49
António Quadros, A Filosofia Portuguesa, de Bruno à Geração do 57, in Rev. Democracia e Liberdade, vol. 42/43, 1987,
pp. 7-70; António Braz Teixeira, O Essencial sobre a Filosofia
Portuguesa (Sécs. IXI e XX), Lx.ª, INCM, 2008, no relativo ao
3.º período (1912-1943). Para uma visão crítica das épocas
anterior e posterior, cf. Miguel Real, O Pensamento Português
Contemporâneo 1890-2010. O Labirinto da Razão e a Fome de
Deus. Lx.ª, INCM, 2011.
50
P. Gomes, A Renascença Católica e a Renovação da Escolástica, História do Pensamento Filosófico Português, (Dir.: P. Calafate), Vol. IV/ Tomo 1, Lx.ª, Ed. Caminho, 2004, pp. 435-576.
46
47
16
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
pudesse recorrer para efeitos de aferição, de conferência, de contraste ou de confirmação das teses
em ordem ao sistema. A tese de Mattos Romão
(A Energia na sua dupla Evolução Científica e Filosófica) só foi conhecida nos finais de 1912.
Embora Leonardo parta do Positivismo e através
do mar positivista navegue para atingir o porto
criacionista, Teófilo Braga é um grande ausente,
como se não existisse. De autores portugueses
cita Miguel Bombarda, não por causa de razão
doutrinal, mas pela sua personalidade moral;
João Chagas, lateral, por relação a Bruno; Guerra
Junqueiro como modelo da arte de fremência
religiosa: José Teixeira Rego, a respeito das teorias do sacrifício e das actividades psicológicas
profundas; Tomás Ribeiro, num breve juízo crítico sobre arte poética; Basílio Telles, no tema
do mal e da perversidade, a propósito do Livro
de Job; e, mais vezes citado, Sampaio Bruno:
duas vezes para discordar da sua opinião acerca
do cálculo de probabilidades; uma vez acerca de
um ponto de vista sobre a lei comteana dos três
estados; outra vez para exemplificar um caso de
transmissão de pensamento, segundo o episódio
narrado n’A Ideia de Deus; e, por fim, para uma
objectiva discordância pela doutrina do espírito
homogéneo e puro inicial, da sua diminuição e,
por fim, da absorção de todo o heterogéneo51.
O texto leonardino expressa bem as leituras a
que procedeu, mas, em termos de recurso a contributo nacional é bem parco. Na ausência de
filósofos, apareceram os artistas e os poetas.
Pouco depois de implantada a República por
Decreto, sem equivalente eco geral nos corações, e estando presentes, não diremos Teófilo
Braga, patriarca do republicanismo vitorioso,
mas Sampaio (Bruno) e Guerra Junqueiro, (que,
em 1912 tinham as idades de 62 e 65 anos respectivamente, falecendo, o primeiro em 1915,
o segundo em 1923) viam com grave apreensão
o desenvolvimento inesperado e insólito da República. Alguns antigos, e outros das novas gerações, intuiram e racionalizaram a ideia de que
antes da revolução era necessária a educação, e
que uma política digna carece de condigna educação do povo para acatar as mudanças e semear
Acerca de Bruno, cf. O Criacionismo, ed. cit., pp. 124-125,
162, 229, 360 e 369.
51
para o
Século XXI
as sementes dos benefícios. Pequenas experiências tornaram-se apoio para um movimento ambicioso, desenvolvido desde o verão e formado
em 17 de Novembro de 1911, movimento esse
que se firmou com o nome de “Renascença Portuguesa”, iluminado pela imagem do nascer de
novo, da regeneração e transformação da vida
portuguesa, ou, como escreveu Teixeira de Pascoaes,
para “revelar a alma lusitana, integrá-la nas suas
qualidades essenciais e originárias”52.
O movimento recebia, em caminho, a revista
A Águia, fundada em 1910 por Álvaro Pinto, e
adaptou-a, ampliou-a, doutrinou-a, pelo que,
desde Janeiro de 1912 A Águia se afirmou como a
voz do génio português na sua expressão política,
filosófica e religiosa. O movimento, a revista, e os
demais projectos que a “Renascença Portuguesa”
concebera (edições, conferências, universidades
populares, etc.) estiveram na origem de posteriores acções e realizações culturais, ou de natureza
predominantemente estética, ou política, ou de
finalidades mistas, considerando-se que, através
das cisões e decisões, o travejamento renascentista
produziu, no mínimo, a vertebração sistemática
do movimento, sob pena de, em face do signo da
poesia e da arte, o fenómeno de A Águia prevalecer numa forma característica da invertebração do
pensamento filosófico português durante a vigência do Positivismo, ou de cair na tentação pragmática, comprometida em algum ideologismo
estranho à sua génese. Como Leonardo declarou
numa entrevista, o ideal do movimento consistia
em dar uma finalidade à vida nacional, perante
uma filosofia natural e uma justiça imanente que
não nos dissolveram, mas que podíamos correr o
risco de dissolução. Enfim, cumprir a actualidade
e encarar o eterno, de onde os óbvios “intentos
religiosos” renascentistas53.
A superação das principais ideologias em confronto – positivismo francês, evolucionismo
inglês e materialismo alemão – terá suscitado
entre nós uma certa ansiedade, qual fosse a de
ultrapassar tais potestades por via de antítese.
Cf. P. Gomes, Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lx.ª, Dom
Quixote, 2.ª ed., 2004, p. 284-287; Id., A Escola Portuense.
Uma Introdução Histórico-Filosófica, Porto, Caixotim, 2005.
53
Entrevista a O Mundo, Ano 14, n.º 4283, 10.8.1912, p. 1.
Cf. L. Coimbra, Cartas, Conferências [...], Lx.ª, Fund., Lusíada,
1994, pp. 49-52.
52
17
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Antero de Quental chegou a aludir a uma espécie de utopismo, a invenção de uma “filosofia
definitiva”, quando Domingos Tarrozo ousara
a tentativa da “filosofia da existência”. Outros
pensadores esboçaram imagens de sistema,
como “evolucionismo cinemático”, segundo o
esquecido Pereira de Freitas, ou o pantiteísmo
de Cunha Seixas e, por fim, o mais do que esboço, criacionismo de Leonardo Coimbra, o signo
do anti-positivismo sendo por diversos modos
comum a uns e outros, com realce para o caso
bem explícito da “Renascença Portuguesa”54.
O diálogo Filosofia/Poesia recebeu foro de privilégio na geração de A Águia, a Poesia como
que sendo uma outra face da Filosofia. Contemplando os poetas, Fernando Pessoa, que viria a
afastar-se do movimento para dar plena realização à sua arquitectura modernista, escreveu, nas
páginas de A Águia, começando na primavera de
1912 (ainda Leonardo não iniciara a redacção
da sua tese), o exaltante e questionado ensaio intitulado A Nova Poesia Portuguesa55. Tendo procedido ao diagnóstico e à exaltação da poesia,
Fernando Pessoa, que aí professou a esperança
na próxima vinda de um Poeta eminentemente
superior, preconizou também, em acto de conclusão filosófica, a assunção de uma doutrina
capaz de transcender os limites dos sistemas em
presença. Considerou dois – o panteísmo materialista e o panteísmo espiritualista, para elevar
perante os olhos do leitor qual hóstia consagrada, uma novidade – o “transcendentalismo panteísta”. Ele define este sistema como envolvendo
e transcendendo todos os sistemas. “Matéria
e espírito são para ele reais e irreais ao mesmo
tempo, Deus e não-Deus essencialmente”56. Era
como que o achamento da “India Nova”57.
Acaso o sistema preconizado por Fernando Pessoa
terá sido inventado e construído, ou o nome ficou apenas como título para eventual desenho?
Cf. Maria Celeste Natário, António José de Brito e Renato
Epifânio (Coord.), A Reacção contra o Positivismo e o Movimento da Renascença Portuguesa. Instituto de Filosofia da Univ. do
Porto/ Zéfiro, 2008.
55
A Águia, 2.ª série, n.º 4, 5, 9 e 12 (Abril, Maio, Setembro /
Dezembro de 1912). Compilado em volume e prefaciado por
Álvaro Ribeiro, Lx.ª, Ed. Inquérito, 1944.
56
F. Pessoa, ob. cit., ed. cit., p. 96.
57
Id., id., p. 106.
54
Álvaro Ribeiro subscreveu um parecer responsável, em que afirma que Leonardo Coimbra não
foi propriamente, o filósofo da ‘Renascença Portuguesa’, e explica o motivo: “A doutrinação patriótica de Teixeira de Pascoaes e a interpretação
filosófica de Fernando Pessoa, que deram os verdadeiros fundamentos ao novo movimento poético, ofereciam os aspectos nitidamente adversos ao
génio inspirador do pensamento criacionista”58.
Ora, o caminho leonardino já apresenta halos de
criacionista inspiração em dispersos anteriores a
1912, mormente nos temas da crítica do positivismo, da reflexão sobre o tempo científico e a
filosofia da liberdade, mas temos de aceitar que
o livro nasceu por exigências exteriores às razões
doutrinais e vitais da “Renascença Portuguesa”,
em que Leonardo não colhia, nem a necessária
documentação, nem a discursividade dialéctica
requerida para o acto. Todavia, é lícito admitir
que o ambiente vivido nos parcos meses de vida
desse movimento relativos ao tempo em que
Leonardo redigiu a tese, lhe terá sido favorável.
Nele não encontrou filósofos em que se inspirasse, mas achou os poetas que lhe confirmaram
a natureza e a dialéctica artística da poesia, “os
poetas novos” que o cousismo vulgar menos
conhecia. Foram, de momento, mais do que
os escolhidos por Fernando Pessoa, ao lado de
quem Leonardo passa sem notícia, enquanto dá
lugar de honra a um elenco de nomes que de um
modo geral pertencem ao número daqueles que
Pascoaes identificou sob o título, ou dignidade
de “poetas lusíadas”. Os que a “Renascença Portuguesa”, que Leonardo ajudou a fundar e que
tanto prestigiou, quis ter como próprios seus.
*
“A Metafísica (na concepção de Augusto Comte)
procura sobretudo explicar a íntima natureza
dos seres, a origem e destino de todas as coisas, o
processo essencial da produção dos fenómenos”,
do mesmo passo considerando que a eficácia
histórica destas entidades resulta da sua equivocidade, grau intermédio entre a explicação teológica (= 2.º estado ou 2.ª idade) e a explicação
positiva (3.º estado, final, ou 3.ª idade). Este
58
Á. Ribeiro, Leonardo Coimbra, Lx.ª, 1945, p. 11.
18
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
modo de entender concede ao espírito uma diferente aproximação, permitindo, ou interpretar
(a vida) como emanação sobrenatural, ou como
simples denominação de um fenómeno”59
Um crescendo, ou ametafísico, ou mesmo, anti-metafísico, recebido já do Humanismo, já, em
agudíssima ponta de lança do Enciclopedismo,
foi como que unificado numa colecta em que a
Filosofia é apresentada como ciência ou saber,
não das ideias e da arte lógica, mas saber dos
factos. Em vista da ampliação e dos resultados
palpáveis das ciências naturais, Comte elaborou
o diagnóstico do itinerário do conhecimento,
aduzindo a primazia do estado positivo como finalidade superior, o de uma filosofia como saber
totalmente unificado, mas construído pelo saber
dos factos científicos.
A classificação das Ciências, excluindo os apelos
às causas primeiras, ou às ultimíssimas causas,
implica que a Metafísica seja banida do sistema
das Ciências. Assim, na época positiva, e segundo
a leitura leonardina, “o pensamento metafísico
foi envergonhado pelo pensamento científico”
e, não obstante, a reflexão metafísica não foi
pura e simplesmente abandonada, mas persistiu, na ordem da especulação das ideias, já de
um modo ciente, já de um modo insciente (ou
inconsciente?) pelos próprios positivistas, este
matizado pormenor garantindo, até, a justeza
da cunhagem de um termo algo perplexante, o
termo “positivismo metafísico”60.
Ora, se deveras a Metafísica perdera foros na
revolução científico-industrial, o Positivismo gerou uma reacção e, como Leonardo afirma, entre
outros benefícios, “o pensamento filosófico deve
ao Positivismo o despertar de nova atenção pela
Metafísica”61, verificando-se que a Metafísica
não é um acessório descartável, mas uma realidade “intranha” ao espírito e ao seu pensamento. Se Comte implicou a recusa da Metafísica
mediante a lei dos três estados, minorou o essencial de saber que há um bem comum a todos – a
realidade, a realeza do pensamento.
A. Comte, Discurso sobre o Espírito Positivo, Cap. 1 § 2.
Este termo foi utilizado muitos anos depois por Amorim de
Carvalho, para caracterizar o positivismo de Sampaio (Bruno).
61
L. Coimbra, Obras Completas I, Tomo II. 1903-1912. Lx.ª,
INCM, 2004, p. 15.
59
60
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
O pensamento é valor e garantia para si mesmo, não procura aval fora dele, ele é o valor e
o respectivo aval, pois o pensamento avaliza-se
a si mesmo. Ainda que passível de relatividade,
não é laboratório de ideias puras, ou de noções
límpidas, em vista das exigências elaborativas
da intuição, mas é laboratório de ideias vivas,
em busca de uma harmonia e fraternização”62. É
portanto, dinâmico, próprio para decifrar-se a si
mesmo e ao Universo que não se resume, nem
de longe, a mecano ou mecanismo, mas existe e
persiste como real biótico, ou unidade biológica
(leia-se: vida e pensamento, biós + logos), corpo
vivo de verbo incarnado, pulsante. O mecanismo é um sistema estático: e os respectivos sistemas de conhecimento são incompletos.
O pensamento move-se, acompanha o mundo
que muda, o Universo que unifica, como um
absoluto de saber, que transita para além, das
noções inferiores ou primárias (que são a base
da pirâmide) para as noções superiores, mediais,
principiais e finais, o “mundo da liberdade”
identificado como sendo o universo “das noções
de mobilidade e de espontaneidade”, onde as experimentações já não acham lugar, “mas todo ele
é vida e só vida”63.
A experiência quotidiana, quadro do verificável e do verificado, a que as noções inferiores se
referem, requer uma construção dialéctica que
abranja o diverso ou múltiplo coordenável, a sua
fonte e o seu destino. Ela constitui um saber positivo, mas este positivo não se reduz à experiência positivista. Há lugar para conceber, para além
do positivo cousado da visão positivista, um
positivo segundo o entendimento criacionista,
sendo este racional e liberante, enquanto o primeiro se apresenta como fatal e encerrante, ou
limitante, a liberdade de pensamento do espírito
filosófico aí tornado refém do chamado espírito
científico, paradigma significando a redução de
todo o saber aos factos como sua fonte única e
critério último.
No método leonardino, aceite a Metafísica, o
pensamento avança infinitamente (ou em infindo, usando uma expressão achada na nossa literatura medieval) em síntese progressiva, subindo
do variável para o unitário, florescendo, não no
“sistema estático de conhecimento”, mas nas suas
entranhas, apreendendo-se como “infinito, eterno e criador”64. Pensamento pensante, operativo.
O banimento da Metafísica e, portanto, da Psicologia Racional, da Cosmologia e da Teodiceia
ou Teologia Racional, ergue um cerco ao infinito
pulsar do pensamento (único atributo pelo qual
o homem é criado à imagem do Criador, pois
Deus não tem imagem!) e a sua substituição por
algumas Ciências Naturais e pela Sociologia significa o fecho do cerco. Metafísica, contudo, não
é “tara”, é o próprio pensamento em liberdade
criatriz, o método criacionista para além do positivista, e da sua redução à matéria de facto.
Leonardo aponta a Augusto Comte o seu critério
anti-Psicologia, que teve, no entanto, o mérito de
atrair para ela maior interesse e apurada curiosidade, mesmo nos círculos mais subordinados à
ortodoxia positivista. Segundo Comte, o estudo
do espírito humano estático pertence às esferas
da anatomia e da fisiologia, (seria então possível
tactear a alma entre músculos e ossos) enquanto
o estudo do espírito dinâmico pertence às teorias
científicas sobre a marcha efectiva do espírito humano65. Leonardo esclarece e explica que, afinal
de contas, o que Comte condena é a “fenomenologia psíquica”, ou seja a “verdadeira psicologia”66.
Ora, a Psicologia é também uma dialéctica de
noções, partindo de um dado intuitivo, confuso
e descontínuo, nem espírito nem matéria, confuso e irreal, até se atingir o intuitivo já racionalizado, a noção que (perguntamos) se não será o
retrato da mónada.
A primeira realidade, a sensação, é já noção psicológica e não um simples dado ao sentido, pois
a sensação, em seu complexo sentido, é também
noção psicológica, e não mero dado exterior.
A Ciência, ser mental, resulta de uma actividade
que elabora oposições, garantindo um espírito
sensível e livre. O seu critério de verdade é o racionalismo. É sensível, porque não tira a vontade do isolamento passivo, mas da acção; é livre,
porque não se dilui nem funde no fluxo sensível,
antes o domina e o conserva.
L. Coimbra, ob. cit., p. 16.
63
Id., ib., p. 16.
Categoria real e sensível, tem conteúdo de ordem ideal67 tal domínio sendo constituído por
noções, e não por cousas. Na perspectiva positivista, apostada no descobrimento dos meios que
sirvam a reorganização da sociedade, a ciência
abandona o carácter de dialéctica construtora da
realidade, para servir de um instrumento a uma
realidade já realizada, caindo portanto num
cousismo, no ver leonardino “absolutamente
fora do pensamento”68. As ciências ficam então
dependentes de um objectivo que lhes é aprioristicamente traçado, por isso que o cousismo
positivista é duplo: de facto, por estranho ao
pensamento, e por utilidade de algo não justificado pelo pensamento. Nestes cousismos gera-se a ignorância do problema da certeza e do real
valor das ciências.
A afirmação do valor absoluto de cada ciência
dentro do seu legítimo domínio, ou especialidade, tem de reconhecer-se. A ciência obedece
ao princípio da máxima racionalização, todas as
ciências sendo de ordem ideal69, forma e matéria
das ciências sendo noções, e não cousas distintas.
As ciências assentam sobre intuições, e são ideias
na medida em que se realizam como uma “profunda racionalização da intuição”70. Sendo constituídas por noções (intuições racionalizadas),
colocam na base da construção científica a afirmação do Mundo e a afirmação do Espírito71.
Contra o positivismo estreme, o espírito viaja
para além das cousas e dos factos. É excelente a
imagem do caminhante que, no caminho, encontra uma pedra pequena, em que topa, recebendo a sensação que o magoa. Dupla noção:
sensação pétrea e dor. Olhando a pedra, o caminhante descobre nela um certo e curioso feitio,
por atenção. Enfim, elabora ainda uma terceira
noção, superior, a de que se trata de uma obra
de arte perdida!?
Da sensação à interpretação, o meio de cada
uma ser chama-se vida, objecto porventura da
Biologia, mas também todo o biologismo é
pensamento em virtude de um direccionismo
O Criacionismo, ed. cit., p. 17.
Id., p. 286.
69
Id., p. 18.
70
Id., p. 42.
71
Id., id., p. 60.
67
68
Id., ib., p. 17.
Id., ib., p. 183.
66
Id., ib., p. 184.
64
62
65
19
20
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
próprio, o Espírito, que se apresenta como real
pelo pensamento72. O mundo físico é acolhido
pelo físico que pensa e trabalha com noções e
pensamentos. Procede às experimentações com
pensamentos e se as suas teorias têm de respeitar
a experiência “é porque a experiência é uma realidade, um sistema de noções73. Idêntico juízo se
formula quanto à matéria, enquanto entendida
como “sistema de condicionalismos”74.
No entendimento leonardino, Comte demonstra dificuldade em separar o físico do lógico,
como ocorre na interpretação do conceito de
inércia, que, segundo Comte, é um artifício,
convindo, antes de mais, reconhecer que o estado passivo dos corpos é pura abstracção, directamente contrária à sua verdadeira constituição. “Segundo Comte, o pensamento primitivo
concebia a matéria como inerte e passiva, movida por seres sobrenaturais, mas com a filosofia
positiva tornou-se evidente que todos os corpos
naturais manifestam uma actividade75”.
Os pontos de partida afectam por igual as ciências físicas, em que falta um método patente ainda na sua classificação das ciências, não
atingindo a ideia de que uma teoria física é o
resultado de uma “incessante racionalização
pelo mecanismo e pela energética do complexo intuitivo”. Pergunta: “Uma teoria física (é)
uma hierarquia de noções? A sua ordem não é
historicamente perfeita, porque o dado intuitivo
é insondável dum golpe... Todavia “o trabalho
do raciocínio é sem descanso, em frente duma
intuição inesgotável”76 – o que parece ser ignorado pelo positivismo – e as “teorias erguem-se
para logo serem substituídas e o edifício é duma
instabilidade assustadora de todos os tímidos”77.
A vida flui como um rio imparável.
Leonardo objecta que no juízo de Comte há
uma afirmação (assunção?) metafísica acerca
do primitivo pensamento e uma confusão da
matéria científica com “a matéria vaga, informe
Id., p. 184.
Id., p. 134.
74
Id., p. 131.
75
Id., p. 67.
76
Id., p. 86.
77
Id., p. 86.
72
para o
Século XXI
e complexa da intuição quase passiva”78. Argumento: todo o pensamento primitivo é um
pensamento dirigido para a acção, interessado
e emotivo, em que os fenómenos se apresentam
imediatamente como “actos de caprichos estranhos” Contraída a noção comteana de inércia,
o seu princípio aparece natural e logicamente,
não é tanto uma lei física de modo estático concebida, mas uma noção, resultante do “racionalismo científico”.
Quanto ao espaço, a resposta positivista, influenciada por algum racionalismo “é um artifício cómodo”. “Tal concepção consiste em que,
em vez de se considerar a extensão nos próprios
corpos, a extensão seria algo num meio indefinido, no qual estivessem contidos todos os corpos
do universo”79. Leonardo considera este juízo
um semi-realismo em que o positivismo preconiza uma geometria inteiramente racional, obrigando ao estudo de todas as formas imagináveis,
e não dadas como corpos da natureza. Haveria
então duplicidade de fundamentos geométricos,
um empírico, imperfeito e contingente (o dos
corpos) e outro artificial (imaginável) de que
nada serviria. Conclui, portanto que se trata de
uma representação pré-científica que pouco a
pouco se eleva a noção. O espaço é homogéneo,
contínuo e infinito, susceptível de receber todas
as formas e movimentos”, ou, essencialmente
uno, é nele que o múltiplo ocorre80.
Em extremo esclarecimento, Leonardo propõe
que Tempo e Espaço “são informados e realizados por noções; não existem em si e para si. O
mundo não teve um começo no tempo, porque
o tempo não existe em si; o mundo não tem um
limite no espaço, porque o espaço não é em si
[...] Voando em pensamento ao fim do mundo,
ele continuará”81.
Leonardo critica as falácias no domínio da matemática, da mecânica e da astronomia, apontando, entre o mais, a necessidade de, na base
das observações e experiências científicas, se
considerar a teoria do erro e o cálculo de probabilidades, que o filósofo francês achava ser uma
73
Id., p. 68.
Id., p. 41.
80
Id., pp. 43 e 44.
81
Id., p. 344.
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
“ociosa e inútil especulação”, de onde, a seu ver,
as bases das ciências experimentais seriam o vício e a inutilidade. Na crítica da tese comteana,
Leonardo menciona Bruno, que partilharia da
ideia de Comte – e argumenta que o cálculo de
probabilidades é um ramo da matemática tão
lógico como outros”82.
Em vista da redução do saber à organização social, a Sociologia conduz à redução ou cousificação da natureza humana, tanto estática como
dinâmica, sendo esta regulada “pela falecida”
(adjectivo leonardino) lei dos três estados83.
Se na Biologia o Positivismo incorre no cousismo de postular a irredutabilidade perante o
transformismo, o que na Sociologia ocorre é a
cousificação da natureza humana, cujo único
instrumento de acção consistirá na ciência, que
tem um único fito: “reorganizar a sociedade pela
identificação da opinião”84 – o que, a nosso ver
equivale à cousificação da noção, à debilidade
das mónadas e ao perigo do unanimismo contra
o pluralismo. Ora, a unanimidade de opinião
é insuficiente; a ordem carece do acordo dos
sentimentos, o mesmo é, da convergência das
subjectividades, o acordo da vontade e do sentimento, que são noções psicológicas, isto é, de
uma ciência, a Psicologia, que Comte rejeitara.
A última e porventura mais durável experiência
reorganizativa do social foi o Catolicismo, que
fez da união pela religião a chave do sucesso,
porque a religião detinha as respostas capazes de
satisfazer as reivindicações práticas, intelectuais,
morais e afectivas, mas as ciências filosóficas podendo atingir o acordo das ideias ou do pensamento, podem não bastar para obter a harmonia
das vontades. Ora, negada a principialidade da
via religiosa, o positivismo vem a recaír no reapelo a essa mesma causa, inventando a “religião da humanidade” (a ideia de Deus ausente)
destinada à preconizada organização, todavia,
esta ideia ou ideal da “religião da humanidade”, vem a constituir um “aberrante apêndice”
da filosofia positivista, obrigada a recorrer, ao
saber dos mistérios da renegada Psicologia, situados, afinal, como Comte queria, na Fisiologia e
na Sociologia. Sentimento e vontade são estranhos à realidade científica, e, portanto, noções
dificilmente coordenáveis em função de um
direccionismo ou finalidade. Além disso, o recurso comteano à ideia em causa leva a cousar o
sentimento e a vontade em nível inferior à sua
essencial realidade85.
Ora, arte e religião constituem disciplinas e não
substâncias, diremos nós, actos e doutrinas, e
não matérias, a Religião excedendo o homem
social, objecto de antropolatria, sendo ele, afinal, o fiél da balança da nova religião. Cousando, como simples factos, certas realidades do
vulgarismo intelectual, obsta ao desenvolvimento da dialéctica das noções. Dito a nosso
modo, o precónio comteano da nova religião
conduz a nada, ou, talvez, ao narcisismo do
homem sobre si mesmo. Com efeito, embora
admita a vastidão dos saberes abrangida pelo
positivismo, e bem assim o incontestável agon
de construir ou de constituir uma sistematização científica, Leonardo entende, em juízo
final, que o cousismo orientou o positivismo
para “erros graves” e mesmo perigosos na ordem ética, moral e social, ao suprimir, com a
teoria do dever o Direito, teoria derivada do
cousismo sociológico (mais do que garante do
socialismo o mais radical) e da ignorância da
pessoa enquanto entidade moral e psicológica86.
A Teologia não é substituível pela Sociologia, nem Deus é substituível por uma Igreja.
O próprio movimento filosófico demonstra a
presença de dois momentos. “No primeiro momento apresentará a coordenação que a ciência
e arte impõem. Este primeiro é o ponto final
do movimento positivista. O segundo momento será aquele em que a pessoa se apreende em
Deus, como mónada; é o momento metafísico
e último”87. O último novíssimo do Criacionismo: o ascenso da noção interrogante dos
enigmas à plena contemplação, ou visão, em
teoria, da Verdade.
82
Id., p. 125.
Id., p. 229.
84
Id., p. 288.
85
83
86
78
79
21
Id., p. 289.
Id., p. 290.
87
Id., p. 311.
22
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
LEONARDO COIMBRA E O CRIACIONISMO,
100 ANOS DEPOIS
Maria Luísa de Castro Soares
H
á precisamente há 100 anos, no complicado pós-parto da República, Leonardo
Coimbra publica o seu ensaio O Criacionismo1,
constituído por duas partes, Esboço de um Sistema Filosófico e Síntese Filosófica.
Leonardo Coimbra esboça na obra um sistema
de pensamento próprio e original, o criacionismo, e o livro é a tese com que concorre para
o provimento da vaga de professor assistente de
Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa. Todavia, no dizer de António Quadros, é escolhido
para ocupar o lugar – e em vez dele – “o medíocre positivista Matos Romão, que acabaria por
dominar (e arruinar por muitos decénios) o ensino da filosofia naquela instituição”2.
A tese – um trabalho original de um dos mais
ativos doutrinários Renascença Portuguesa, de
par, na primeira linha, com Pascoaes e Cortesão3
– é considerada “a primeira exposição de um singular sistema filosófico que mais tarde, em 1914,
o autor complementaria com uma série de lições
sob a epígrafe de Pensamento Criacionista, proferidas na Universidade Popular do Porto”4.
Com relevo dado aos pensadores da Renascença
Portuguesa e ao magistério de Leonardo Coimbra, que despertou como se sabe algumas excecionais vocações filosóficas5, nas primeiras
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico. Porto: Edição da Renascença Portuguesa.
2
QUADROS, António (1989): A Ideia de Portugal na Literatura
Portuguesa dos últimos 100 anos. Lisboa, Fundação Lusíada, p. 106.
3
Idem, p. 105.
4
Idem, p. 106.
5
Lembramos, alguns dos seus discípulos, entre outros, José
Marinho, Augusto Saraiva, Álvaro Ribeiro, Sant’Anna Dionísio e Delfim Santos. Cf., a propósito, QUADROS, António
(1989): “Delfim Santos. Introdução ao pensamento filosófico
e pedagógico”. In Leonardo, Ano II (número duplo), Lisboa,
Setembro de 1989, pp. 22-29.
Sobre o magistério de Leonardo Coimbra, no pensamento de
Agostinho da Silva, este pensador confessa: “(…) Mas se há Pai,
1
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
décadas do século XX, ele e os intelectuais congéneres refletiam sobre a sociedade, a cultura, a
matemática, a física, as ciências humanas, a literatura, o ensino e interrogavam-se sobre a questão de saber qual “a finalidade da educação”6,
uma vez que os estudantes universitários andavam “tristes, fatigados, sem a alegria de viver que
é, no Homem, a alegria de compreender, incapazes de reações vitais, criadoras e entusiastas”7.
Devido a um sistema pedagógico inspirado no
comtismo positivista, no cientismo dominante
das mentalidades modernas8 – considerado por
Leonardo Coimbra como uma verdadeira violência moral – resultava a indiferença nos alunos
por falta de uma formação científica com base
numa reflexão filosófica.
não foi ele Leonardo, foi o conjunto da Faculdade de Letras do
Porto. Agora: sou muito grato a Leonardo Coimbra pela paciência que teve comigo”. In SILVA, Agostinho da (1989): Leonardo
Ano II (número duplo), Lisboa, Setembro de 1989, op. cit., p. 2.
6
COIMBRA, Leonardo (1926): O Problema da Educação Nacional (Tese apresentada ao Congresso da esquerda Democrática
em 1926). Porto, Edição de Maranus, pp. 5-11.
7
E Leonardo Coimbra continua: “ Porquê? Porque se está
praticando uma verdadeira violência moral com essas vítimas,
a flor, o escol dum povo, e que amanhã deveriam ter as responsabilidades da vida social. Se um aluno entra numa escola pelas nove horas da manhã e sai depois das cinco, é lícito
perguntar-se pelo horário de trabalho, que ao operário manual
não consente semelhantes atletismos. Onde fica a saúde, a graça, a alegria, uma hora para a meditação, para a vida interior
da imaginação, que é a base da invenção, ou da inteligência,
clarificando e ordenando? É na Patagónia? Não; é em Portugal,
e, mesmo assim não há materialmente tempo para dar os programas em toda a sua extensão!”. In Idem, ibidem.
8
No dizer de António Quadros, “a revolução triunfante de
1910 foi lisboeta e nasceu no signo do pensamento positivista
(…). Mas o positivismo com a rigidez da sua lei dos Três Estados, com o seu historicismo e com a sua leitura superficial
da realidade e do ser, nunca poderia fundamentar uma teoria
exigente e profunda de Portugal”. In QUADROS, António
(1989): A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos Últimos
100 Anos, op. cit., p. 75.
A filosofia da educação em vigor incorria no erro
flagrante de se imaginar possível uma epistemologia sem abertura à metafísica, num tempo em
que “o pensamento metafísico foi envergonhado
pelo pensamento scientífico”9, sendo indubitável que “a metafísica lhe é intranha”10.
A ausência de uma educação dinamizadora das
potencialidades criadoras era pois problemática,
tanto mais que, como Leonardo Coimbra assevera, “só são fortes as nações cultas”11 e a maior
“força social é a cultura”12.
Mais adiante, no seu ensaio O Criacionismo, o
pensador especifica mesmo o objeto da sua pedagogia, ao propor-se
“cultivar as liberdades criadoras da cultura nacional-humana.
Entendamo-nos: cultivar as liberdades e não
fazê-las, porque estas são propriedade intrínseca
do indivíduo psico-social que é o homem”.13
A pedagogia do pensador de formação científica
e matemática14 e simultaneamente de razão aberta ao pensamento especulativo visa, em suma,
“Conhecer, compreender e não aniquilar!”15.
O sistema filosófico exposto em O Criacionismo
inscreve-se numa dimensão espiritualizante que
se opõe fundamentadamente a um intelectualismo fossilizado e ao pragmatismo empírico, pois, “o
espírito humano é criador e tem a liberdade de
opor, ao fluxo sensual, afirmações ideais”16 e “a
filosofia, essa, é órgão da liberdade”17, que organiza o real sob as mais altas aspirações do espírito.
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico, op. cit., p. 1.
10
Idem, ibidem.
11
Idem, p. 7.
12
Idem, ibidem.
13
Idem, p. 9. Itálicos nossos.
14
MARINHO, José (2001): O pensamento de Leonardo Coimbra e outros textos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
pp.10-15.
15
COIMBRA, Leonardo (1913-1915): Obras Completas II.
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 46. Sobre a pedagogia de Leonardo Coimbra, cf. RIBEIRO, Álvaro (1977):
Memórias de um Letrado. Lisboa, Guimarães editores. Sobre
a pedagogia Leonardina e o conhecimento do belo como conhecimento do ser, cf. PATRÍCIO, Manuel Ferreira (1992): A
Pedagogia de Leonardo Coimbra: Teoria e Prática. Porto, p. 210.
16
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico, op. cit., p. 5.
17
Idem, ibidem.
9
23
No referido ensaio, reflete – desde o seu primeiro capítulo intitulado “Método”18 – sobre
o cousismo de determinadas doutrinas como o
positivismo, que rejeita19, ao defender inquestionavelmente “uma filosofia da liberdade e, por
isso, merece o nome de criacionismo”20, ou filosofia do progresso dialético da consciência e da
experiência redentora do universo.
Leonardo Coimbra, através do seu pensamento,
promulga a constituição dinâmica e experimental
da realidade. E o bem humano para que tende a
educação integral ou paideia é um processo em
desenvolvimento, que pressupõe o exercício da liberdade, em obediência à ordem racional e justa21.
De modo itinerante, no mesmo ensaio e em outras obras, Leonardo Coimbra reflete ainda sobre
temas como liberdade e determinismo, imanência e transcendência, razão experimental e razão
cósmica22, esquecimento e memória, morte e
continuidade moral, como também discorre sobre temas como a ciência, a religião, a filosofia e
a arte, considerados como momentos do pensamento e não como imposições dogmáticas:
“Sciência, moral e religião têm de ser momentos
do pensamento e não imposições estranhas. (…)
A dialética estética é o progresso vivo da personalidade. Ora esta é para uma série de concêntricos
abraços sociais.” 23
O seu apostolado, no campo da arte – tendo sempre por sustentáculo o pensamento criacionista,
cuja ideia-força é a liberdade criadora – dita que
Cf., Idem, pp. 1-6.
No ensaio O Criacionismo – Esboço de um Sistema Filosófico
(op. cit), Leonardo Coimbra recusa o cousismo de vários sistemas filosóficos, nomeadamente, o cousismo do materialismo
(p.236); o do idealismo de Berkeley que considera um “cousismo das sensações e do espírito”, pp.237-238; refere-se ao Kantismo como “scisão cousista entre razão teórica e razão prática”
(pp. 238-240). Considera também que “as filosofias que menos
pecam de vício cousista são a de Fichte e Hegel”, pp. 240-241.
20
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico, op. cit., p 257.
21
Cf, a propósito, DIMAS, Samuel (2012): A metafísica da experiência em Leonardo Coimbra. Estudo sobre a dialética criacionista da
razão mistérica. Lisboa, Universidade Católica Editora, pp. 63-78.
22
BORGES, Paulo (1994): “A Experiência da Criação em Leonardo Coimbra – Pessoa e Cosmicidade”. In AA.VV. (1994):
Filosofia e Ciência na obra de Leonardo Coimbra. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, pp.253-263.
23
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico, op. cit., p. 259.
18
19
24
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
“a arte é tam real como a sciência, e é mais até,
sob legítima interpretação. A sciência garante a
pessoa, e a arte é a continuidade viva da pessoa
sob todos os aspectos”.24
A razão e a espiritualidade, conceitos diferenciados, complementam-se e articulam-se para
este pensador. Quer isto dizer que as dialéticas
surgem como vivificadoras do espírito que deve
prevalecer sobre a matéria.
Ao meditar sobre o eu pensante, consciente e
pessoal, Leonardo Coimbra concebe-o como
um ser espiritual, que não acaba nos limites do
seu corpo natural, pois “morremos para que a
morte supere a vida”25.
Na sua doutrina filosófica, Leonardo Coimbra
procede ao enlace entre o natural e o sobrenatural, em permanente recusa daquilo que
mumifica o ser humano, daquilo que possa
apresentar-se como estático ou em permanente
imobilismo. Enfim, o pensador contraria “o cousismo moral da pessoa”26, através de uma filosofia
da liberdade radicada nas infinitas capacidades
criadoras do pensamento, que dinamicamente
se liberta de determinismos naturais, sociais e
mecanicistas. Na verdade – diz-nos:
“os sistemas estáticos são, pois, mais ou menos
incompletos. Se o Universo fosse um mecanismo
aparece[ria], à primeira vista como decifrável
todo o seu ser.” 27
Mas nem o universo nem o homem que nele
vive são inertes. E todas as noções materiais, experimentais e mecânicas são
Idem, p. 246. Itálicos nossos.
25
COIMBRA, Leonardo (1913-1915): Obras Completas II. (Coord.
Ângelo Alves). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 25.
26
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico, op. cit., p. 305.
27
Idem, p. 2.
28
Idem, ibidem.
24
Século XXI
“A inteligência Leonardina está longe de propor
a negação da alma em alguns homens; o que ela
propõe é uma alma, só que, nalguns casos, ainda em esboço, por isso que o logos ainda não se
revelou na sua palavra, mediante uma hipótese
incarnada, que será o grau perfectivo”.32
Descendo Deus ao nível da humanidade, Leonardo Coimbra levanta a humanidade ao nível
de Deus, “criador puro, que cria sem precedentes, por cuja actividade brotaram e brotam os
seres, fonte e contínua sustentação do criado”33.
O próprio ideal e ética de conduta em sociedade
explicitado na obra O Criacionismo dita que
“Uma sociedade é mais que os indivíduos que a
constituem (…) Assim, a Renascença é a vida social depositada nas cousas e durante muito tempo
latente, que, de repente desperta e muda a direcção
intelectual e moral dos povos que não tinham
concorrido para a sua elaboração”.34
VITORINO, Orlando (1989): “A filosofia de Álvaro Ribeiro
como doutrina do espírito”. In Leonardo, Ano II, op. cit., p. 14.
30
GOMES, Pinharanda (1989): “A palavra e o silêncio”. In
Leonardo, Ano II, op. cit., p. 4.
31
Idem, ibidem.
32
Idem, ibidem.
33
PIMENTEL, Manuel Cândido “O filósofo”. Consultado em
29 de junho 2012, p. 2.
http://www.biblioteca.porto.ucp.pt/lcoimbra/lcimgs/documentos/
PDFs/fil%C3%B3sofo.pdf
34
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico, op. cit., p. 185.
29
25
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
No dizer de Orlando Vitorino, “Leonardo
Coimbra afirmava, com boas razões, que toda
a filosofia é uma reactualização do platonismo”29.
Assim, na linha do platonismo, confirma‑se no
seu pensamento a dialética ascensional, uma
evolução através de todos os seres, uma ordenação hierárquica que vai da matéria até Deus.
A natureza será, assim, o espírito espraiado de
diversos modos e encarnado nos corpos de diferentes maneiras, como a Alegria, o Amor e outros sentimentos que advêm todos da Origem
ou ponto ideal. Mas, “a cristologia Leonardina
aponta [ainda] que o conhecimento em plenitude do ser divino só se conclui no mistério
da incarnação”30 e a participação de Deus nos
seres é diversa, vindo “a sua tese enunciar que
há homens que não são almas, mas esboços de
almas”31. É indubitável que, com isto, como sublinha Pinharanda Gomes,
“noções inferiores [e] são a base da pirâmide. É sôbre a sua sólida rigidez que as noções superiores de
fim, liberdade, etc. se enraízam. Mas lá no vértice
podem desabrochar flores muito diferentes. Em baixo têm as raízes, o sólo fecundo e a seiva murmura,
mas como deduzir com segurança a beleza da flor?
Se o vértice é a flor ideal da liberdade criadora, que se
pode deduzir do conhecimento da base, se ela assim é
pela atracção irresistível do vértice divino?” 28
para o
Esta renascença que Leonardo Coimbra confessa
ser um fim, ou melhor, uma patriótica ambição
é alcançável através da “consciência colectiva
livre [que] é diferente da consciência média do
grupo e é, por isso, uma realidade a que não bastam essas consciências”35 individuais. E o pensador clarifica em rodapé que
No plano antropológico, o pensador, “um representante e um precursor do pensamento cristão
existencial”39, propugna a elevação do indivíduo à realidade por si definida como a “pessoa
moral”, liberta de contingências ou de uma vida
capaz de deixar o homem dormente:
“O conforto do luxo pode ser tanto que adormeça,
no animal acariciado, o homem, que é um ser
inquieto, precisando das tempestades e do sossego,
das lutas e dos abraços.
“Pode haver renascença do próprio espírito de um
povo quando este, descaracterizado por influências
estranhas, procura o seu verdadeiro espírito. É esse o
aspecto da alvorescente Renascença Portuguesa”.36.
Almas estagnadas ou de revoltos pântanos, é-nos
bem preferível a impetuosidade do mar alto.
Insiste assim num ideal pedagógico que consiste em educar o povo dentro da sua cultura
identitária, por meio das escolas e universidades
populares, e que venha contrariar o instituído,
onde predomina
“o figurino francês de mistura com a asneira
nacional”.37
Leonardo Coimbra recorta a sociedade ideal republicana e portuguesa no âmbito do pensamento
criacionista que, partindo do processo de elaboração das noções científicas nelas se não detém, petrificado ou estagnado, procurando antes elevar-se
à constituição da última realidade irredutível.
O criacionismo é uma filosofia que germina e
floresce num meio acrimonioso, sobretudo depois da reforma educativa de 1911, em que o
ambiente mental português é excessivamente
marcado pelo positivismo francês “ao modo de
Augusto Comte e de Littré, divulgando-se uma
vulgata (…) que julgava encontrar na Idade Positiva ou Científica em que teríamos entrado
depois da Idade teológica e da Idade Metafísica,
todas as respostas para as grandes interrogações
Humanas”38. Uma tal mundividência, assente
numa perspetiva simplificadora e reducionista,
nem por isso abala o pensamento e o magistério
de Leonardo Coimbra, sempre disposto a dar a
voz pela sua verdade.
35
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
37
COIMBRA, Leonardo (1911): “A reforma do ensino secundário”. In A Montanha. Diário republicano da tarde. Porto,
Ano I, nº 66, 17.5.1911.
38
QUADROS, António (1989): “Delfim Santos. Introdução
ao pensamento filosófico e pedagógico”. In Leonardo, Ano II,
op. cit., p. 23
36
Esse homem viverá materialmente, e eu pergunto,
ao mais esfarrapado e faminto vagabundo com
uma chispa de ideal, se queria viver essa vida.
Triste mutilado que se amputou, pois o homem é
do tamanho do Universo!” 40
Se no seu tempo a ciência representava o “espírito da cultura moderna” e o tecnicismo de
feição utilitarista, positivista e imediata era tido
por modelo, para Leonardo Coimbra, o destino das ciências teóricas – naturais, do espírito e
filosofia – a “quem cabe o desenvolvimento da
cultura” não podem medir-se pelo pragmático
“rendimento imediato, mas pela sua produção
científica, de professores e alunos, e pela acção
social de dignificação intelectual do meio”41.
Para Leonardo Coimbra, o mundo está sempre por
fazer, e o homem deve atuar nele como infatigável
obreiro, criando e construindo livremente, subordinando o pensamento, a palavra e a ação a fins
ideais que possam dignificar a vida. Na verdade,
“O homem não é uma inutilidade num mundo
feito, mas obreiro de um mundo a fazer”.42
Ontem como hoje a frase tradutora da antropologia filosófica Leonardina é imorredoura e
exige uma reflexão no contexto atual.
*
Idem, p. 27.
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico, op. cit., p. 305.
41
COIMBRA, Leonardo (1926): O Problema da Educação Nacional (Tese apresentada ao Congresso da esquerda Democrática
em 1926). Porto, Edição de Maranus, p. 46.
42
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo – Esboço de
um Sistema Filosófico, op. cit., p. 5.
39
40
26
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Largos dias têm 100 anos, há mundo pela frente,
mas Leonardo Coimbra permanece válido com
o seu pensamento expresso em O Criacionismo
(Esboço de um sistema filosófico). A sua obra secular ainda nos fala no presente e comunicar é a
base de tudo, o chão, a certeza.
É esta a linha de pensamento que segue Manuel
Antunes, em Grandes Contemporâneos, para ilustrar a conceção que o título da sua obra exibe,
quando afirma:
“Nada há tão actual como Homero e nada há, porventura, tão antigo como o jornal desta manhã.” 43
Sabendo, embora, que este conceito de contemporaneidade tem apenas a sua validade em sentido lato44, concordamos com a opinião do autor,
quando afirma que
“Contemporâneo nosso é aquele que ainda nos
fala. Contemporâneo nosso é aquele que de tão
fundo ter descido ao abismo do humano, continua
a iluminar-nos com a sua descoberta, a instruir-nos com o seu discurso, a acompanhar-nos com
a sua irmandade. Contemporâneo nosso é aquele
em que a própria história quase se tornou espírito.
Contemporâneo nosso ou, melhor, de sempre”.45
Acresce dizer que, por estas mesmas razões, Leonardo Coimbra permanece contemporâneo nosso
ou, melhor, de sempre, cem nos depois…
Na verdade, continua a instruir-nos e a iluminar-nos… e urge segui-lo para que, “livres e fortes,
ANTUNES, Manuel (1973): Grandes Contemporâneos.
Lisboa, Editorial Verbo, p. 7. Uma tal justificação prefacial é
absolutamente necessária a um livro que abre com o capítulo
“Séneca, filósofo da condição humana”. Cf. Idem, pp.11-20.
44
Em sentido específico, no que diz respeito à literatura portuguesa, Carlos Reis e Fernando Martinho sublinham o ano
de 1953 como um marco de feição estético-literária (o termo
do neorrealismo) e o ano de 1974 como um marco de feição
política: o fim da ditadura do Estado Novo e a introdução da
democracia. Neste sentido, afirmam: “Entenderemos o ano de
1953 como relevante ponto de partida para demarcarmos o
contemporâneo (…). Um contemporâneo que, depois de 1953,
por assim dizer, se actualiza em função de um segundo e fundamental marco: o ano de 1974. Em ambos ocorrem eventos
de natureza distinta que decidem a transformação qualitativa da ficção portuguesa em direcção ao que, de facto, nos é
contemporâneo”. Cf. REIS, Carlos; MARTINHO, Fernando
(1992): Panorama da Literatura Universal II. Lisboa, Círculo
dos Leitores, p. 270.
45
ANTUNES, Manuel (1973): Grandes Contemporâneos, op.
cit., p. 7.
43
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
sejamos simples, verídicos e indagadores”46,
pois, em seu entender, “assim terá que ser a vida
futura, que é a anunciação de hoje e a realidade
de amanhã”47.
Eis mais um propósito que permanece válido e
por realizar!
Na verdade, hoje em dia, a crise que se vive,
não meramente económica, é uma crise de valores, crise das humanidades, crise no ser humano. Socialmente, o materialismo continua a
suplantar a espiritualidade; na educação reina a
“paz dos cemitérios”48; nos portugueses, “a paz
dos anestesiados”49; em política, “os que nos
representam”50 revelam, não raro, o desconhecimento daquilo que representam.
Ontem, como hoje, serve de lição o apelo ao espírito criador contra o materialismo, de que fala
Leonardo Coimbra, pois
Pelos media, sobretudo pela televisão, cativa-se o
povo com um pouco de ração de mundo, facto
que levou Otávio Paz a estabelecer que a humanidade futura se dividiria em duas raças: “a dos homens livres e poderosos que leem livros e os outros, aqueles que apenas olham para a televisão”52,
afirmação que Eduardo Lourenço amplia, ao
lembrar ainda aqueles que “nem leem nem veem
televisão”53 e que são os senhores da televisão.
Mediante o novo contexto determinado por estas e outras razões do tempo, pelas tecnologias
da informação e da comunicação, pela mundialização associada a uma perda de direitos
humanos, proclamados na velha Europa desde
1789, temos de saber seguir a lição de Leonardo
Coimbra, quando ensina que
“(…) as obras realizadas perdem o valor e podem
servir até para esmagar e oprimir, se lhes falta a
presença do espírito criador! (…)
Urge assim retomar princípios proclamados
pelo pensador como a confiança na continuidade da vida moral, a ascensão do indivíduo à
pessoa em contexto de sociedade; urge repensar o ser como realidade espiritual, liberto do
economicismo utilitarista e do autoritarismo de
princípios impostos exteriormente à atividade
do pensamento.
Só assim, “apreendido no Espírito, que se garante pelos sucessivos momentos de vitória, o
homem entenderá e realizará progresso”55.
Só assim, e à escala global, se formará a “sociedade universal das consciências”56 ou “a verdadeira fraternidade, irmanação no absoluto”57
almejada por Leonardo Coimbra.
Utopia?! Lembramos que a utopia sempre esteve
na base da transformação do mundo58. Por isso…
Eis porque a vida moderna é material e materialista de cinza, desânimos, tédio e morte!” 51
Dá-se valor às novas tecnologias, ao modo como
se pode passar uma mensagem em vários formatos e com uma velocidade que se arrisca a
ultrapassar o próprio acontecimento. Não há a
maturação que se exige para a maturidade do
pensamento. Também, segundo essa lógica,
compreende-se o mundo sem se sair do sofá e
aumentam as obesidades, sendo a mais preocupante a obesidade mental de uma sociedade impregnada de lugares-comuns.
São poucos os que procuram compreender o
universo em que se inscrevem, pois – ao invés
do que sonhou Leonardo Coimbra – já nada fazem que não comprem feito.
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo, op. cit., p. 310.
Idem, ibidem.
48
CASTILHO, Santana, “A paz dos anestesiados”. In Público, 14/03/2012. Disponível em http://santanacastilho.blogspot.
pt/2012/03/paz-dos-anestesiados.html. Consultado em 20 de
junho de 2012.
49
Idem, ibidem.
50
PINA, Manuel António, “Os que nos representam”. In
Jornal de Notícias. Disponível em http://www.jn.pt/Opiniao/
default.aspx?content_id=2443592&opiniao=Manuel%20
Ant%F3nio%20Pina Consultado em 30 de junho de 2012.
51
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo, op. cit., p. 310.
“o progresso exterior é tantas vezes opressão e
maldade”.54
“No infinito concerto das virtudes a realizar, sejamos prontos e audazes” 59
46
47
LOURENÇO, Eduardo (1998): “A Cultura na Era da Mundialização”. In O Esplendor do Caos. Lisboa, Gradiva, p 20.
53
Idem, p. 20.
54
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo, op. cit., p. 310.
55
Idem, p. 310.
56
Idem, p. 258.
57
Idem, p. 258.
58
SOARES, Maria Luísa de Castro (2007): Profetismo e Espiritualidade de Camões a Pascoaes. Coimbra: Imprensa da Universidade.
59
COIMBRA, Leonardo (1912): O Criacionismo, op. cit., p. 300.
52
27
Largos dias têm 100 anos,
há mundo pela frente,
mas Leonardo Coimbra
permanece válido com o seu
pensamento expresso em O
Criacionismo (Esboço de um
sistema filosófico). A sua
obra secular ainda nos fala
no presente e comunicar
é a base de tudo, o chão,
a certeza. É esta a linha
de pensamento que segue
Manuel Antunes, em Grandes
Contemporâneos (…),
quando afirma: “Nada há tão
actual como Homero e nada
há, porventura, tão antigo
como o jornal desta manhã”.
28
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
A VISÃO GINÁSTICA EM LEONARDO COIMBRA
Maria de Lourdes Sirgado Ganho
A
mor e Absoluto são noções centrais no pensamento de Leonardo Coimbra. Como refere
em A alegria, a dor e a Graça: “as almas verídicas
(porque há aparência, esboços de alma) nutrem-se
dum único alimento – o absoluto”1. Esta afirmação, sem dúvida, interpela-nos, faz-nos pensar: em
que consiste ser-se uma alma verídica?
Claro que o filósofo nos dá, na sua obra, a resposta, com tudo o que de redutor uma resposta
pode implicar, diremos antes, dá-nos aproximações à resposta, pois há sempre algo que fica na
margem do mistério, outro termo que Leonardo
usa, para a compreensão da realidade, na sua radicalidade de ser.
Podemos considerar que almas verídicas são
aquelas que estão orientadas para a verdade, o
bem, o belo, o justo. Podemos encontrar na itinerância do filósofo algumas figuras que são a
fonte da sua veneração, pois tal como ele, ainda
que por vias diferentes almejam esse acesso ao
ser. É o caso de Antero de Quental, de Teixeira de Pascoaes, de si próprio frente ao enigma
do ser, frente ao mistério, que escapa a qualquer
forma de objetivação. Mas, sem dúvida, São
Paulo, São Francisco de Assis são almas verídicas, que se “nutrem de absoluto”, numa abertura
em excesso ao que as atrai para um centro de
ser e que impele a que cada vez se seja mais ser.
Dialética ascensional, sem dúvida, em que Jesus
Cristo, a figura do absoluto, incarnado, é também manifestação do que é de ordem superior,
do que transcende e excede o homem mas que,
ao mesmo tempo, lhe confere o sentimento de
pertença, de ligação, de dependência.
A sua filosofia do ser, mediante a sua dialética a
que podemos chamar totalista, mostra que há no
homem, na união da alma e do corpo, um desejo
Coimbra, Leonardo, Obras de Leonardo Coimbra, Porto,
Lello, vol.I, p.399.
1
de ser na multiplicidade das suas possibilidades:
homem como ser produtor de ciência, de arte, de
ética e que se abre, em ligação de amor, ao que o
excede, mas que nele se anuncia como presença.
Ser, sendo, numa abertura a Jesus Cristo, o absoluto de amor, que pela Graça o homem tem a
possibilidade de experienciar, no âmago de si mesmo. Ciência, arte, moral, religião são diferentes
dimensões do humano, irredutíveis entre si mas,
ao mesmo tempo, mantendo relações fundamentais. Esta uma intuição central de Leonardo, e que
uma hermenêutica da obra São Francisco de Assis.
Visão franciscana da vida2, permite exibir. Será,
pois, esta obra que iremos interpretar.
A Visão Franciscana da Vida
Nesta obra, Leonardo Coimbra dá-nos a sua interpretação do significado espiritual, quer de São
Francisco de Assis, quer mesmo do seu legado espiritual e religioso, procurando traçar o seu perfil
de Santo através dos momentos que considera
serem essenciais da sua vida, bem como das atitudes e espantos admirativos que suscitou, começando nós por colocar em evidência a Leonardina
“visão ginástica do mundo”, ou seja, como nos
diz: aquela em que se sobe “da foz à nascente”3.
Precisamente por estarmos perante uma visão ginástica, é possível começar-se pela consideração
de “o louco de Assis”, louco de uma lucidez extraordinária, que sobressalta, como um mundo
ao contrário, onde só a alegria e a Graça tomam
lugar, em que São Francisco vai “descobrindo novos caminhos” que o vão conduzir a um destino
excecional. E que ainda hoje nos interpela.
Refere Leonardo Coimbra: “Começamos a ver
que este louco de Assis é como o louco de Tarso, como os mártires de Roma e de Lião, um
2
3
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Cf. Idem, Ibidem, vol.II, p. 871 e sgs.
Idem, Ibidem, vol.II, p.913.
contagiado da infinita ‘loucura da cruz’4 “. Loucura que é lucidez extrema, pela novidade que
traz consigo e que eleva o homem aos píncaros
da alegria, ao Absoluto de amor. Encontramo-nos, com São Francisco de Assis, perante uma
nova atitude frente à vida, como um renascer de
si mesmo, na visão ginástica que põe em causa o
que é próprio do senso comum e faz estremecer
a alma verídica, pois esta está aberta e responde a
este apelo todo feito de misteriosa admiração. A
visão ginástica tem essa força: despertar a admiração, ser envolvente e interpelar cada ser racional para que seja na autenticidade de ser.
São Francisco de Assis, alma verídica, que viveu
a alegria e a Graça de um modo radical, mas
que pela visão ginástica escandalizou a sua cidade natal, bem como escandalizou o mundo,
levando consigo paz e bem. E a cidade rendeu-se, o mundo rendeu-se a esse louco que abraçou
a irmã pobreza (que loucura!), considerando-a
central na sua mundividência. Como refere
Leonardo Coimbra: São Francisco de Assis vai
pedir uma alta dama em esponsais: a nobre Senhora Pobreza. É a loucura evangélica ressuscitada: sem arrimo, sem saco, nada levando consigo pelos caminhos”5. Mas, nesta valorização da
pobreza, que marcou o franciscanismo, não se
tratava de abdicar de tudo, não estamos perante
a pobreza imunda, a pobreza pela pobreza, sem
um sentido superior, bem pelo contrário, esta
Senhora Pobreza é ontológica, é metafísica pois
está assente na visão ginástica, no subir “da foz à
nascente”, sustentado esse subir pelo sentimento de dependência da criatura frente ao Criador.
Leonardo Coimbra vinca bem a importância
deste sentimento de “dependência”, pois ele é
sustentado pela Graça que, colocando-se para lá
do senso comum, “abre às verdades cristãs”.
O homem que vive segundo o paradigma da pobreza, para São Francisco, é aquele que sabe que o
seu Criador provê o “pão nosso de cada dia”, por
isso considerava que o franciscano devia viver da
esmola diária, sem nada deixar para o dia seguinte
e repartindo com os pobres no dia a dia. Viver
da esmola, ou seja da dependência, aceitando na
alegria e com a Graça o destino quotidiano, mas
sempre em simpatia e ligação com o absoluto.
E assim se aceitam as maravilhas da criação, se
4
5
Idem, Ibidem, vol.II, p875.
Idem, Ibidem, vol.II, p.876.
29
aceitam as criaturas, pois estas são símbolo, ou
imagem, do seu Criador, que é absoluto de amor.
Foi um amor sem medida aquele que Francisco
sentiu e, deste modo, foi levado ao ápice de ser.
Com a sua visão ginástica despertou o mundo
para o maravilhoso da criação divina. A visão
ginástica é o revelador da criação: obriga a olhar
o mundo com ternura e simplicidade, a olhar
Deus com amor, que se vive no excesso, sem
esquecer o homem que a seu lado vive no desalento e que é preciso confortar. A visão ginástica tudo abraça, o mundo, os outros homens e
Deus que é fundamento.
Mas, se a pobreza é virtude central do franciscanismo, a humildade também tem aqui o seu lugar.
Humildade, o húmus onde o homem pela alegria
e pela Graça vive a dependência ontológica e metafísica, relativamente ao “Infinito” de amor. A
humildade, na visão ginástica é a foz e o Infinito é
a nascente, de tal modo que pela pobreza e humildade o cristianismo agiganta-se. Na mais humilde
forma de ser está presente esse estremecimento de
relação ao ser. Humildade como virtude e sentimento de nihil sum frente ao Criador.
E mais uma vez acentua-se o sentimento de
dependência ontológica e metafísica, ou seja, o
homem não é um ser autónomo, ser religioso é
aceitar e religio, que eleva e preenche. Do mesmo modo, a natureza também não é autónoma,
ainda que possa ser maravilhosa e misteriosa,
como o próprio homem. Mas, na verdade, tudo
depende do Altíssimo e Bom Senhor, como nos
diz no Cântico das Criaturas.
Pobreza e humildade, virtudes franciscanas, por
excelência, ainda que a humildade venha de muito
antes, nessa visão de que dando atenção ao que é
húmus, a partir daqui pode elevar-se, e que permite o confraternizar a partir da compreensão de uma
igualdade originária, frente ao Ser, ao Infinito.
Mas podemo-nos interrogar: qual a razão que
leva Leonardo Coimbra a deter-se tanto neste
sentimento de dependência ontológico-metafísica? A resposta só pode ser aproximativa:
porque considera São Francisco um modelo
intemporal e, nesse sentido, considera também
que é relevante esta chamada de atenção para o
descentramento da pessoa. De facto, num mundo individualista, como o da sua época, como
também acontece hoje, mundo em grande parte
despersonalizado, de qualquer modo há quem
viva como se não tivesse amarras – cheio de si,
30
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
convencido que “dirige” e que “governa”6. Ora,
um tal homem é aquele que se sente autossuficiente e, nesse sentido, não deixa que a Graça
atue, não está aberto ao abraço da alegria. O homem que pensa que se basta a si mesmo é aquele
que, como se estivesse cheio, colocasse uma carapaça que o afasta de tudo o que não são os seus
interesses mais egoístas.
Ora, o louco de Assis, com a lucidez da sua visão ginástica, exibe a universal dependência das
criaturas frente ao Infinito de amor, daí a valorização da esmola, que significa, precisamente,
que não se é autossuficiente. Sem dúvida São
Francisco colocou-se, totalmente, na mão de
Deus e espera essa esmola de ser, que é a sua
riqueza interior, afirmação da alegria e da Graça. Sentimento de simpatia, reconhecimento de
uma “fraternal origem” e vontade de, na pobreza
e na humildade, voltar o olhar para a nascente
e sentir saudade do encontro, adiado em vida.
A pobreza cristã, como nos diz Leonardo Coimbra, assinala a dependência total, frente ao infinito
e a fraternidade no domínio do finito, fraternidade que é caridade, ou seja, amor ao próximo. Ora,
a caridade é, leonardinamente, o hino triunfal da
alegria, pois a caridade é uma dádiva do Criador.
A caridade é humilde e, nesse sentido, promove
a prática social e o universal convívio de todas as
criaturas7 Ela, verdadeiramente, é um “viver de
companhia”, com o mundo, com os homens, com
Deus, objeto dassua permanente atenção. O homem está, na sua essência focado em Deus, como
amor. Encontramo-nos com a visão ginástica que
se estende à valorização da natureza e, nesse sentido, Leonardo Coimbra refere o olhar inocente
do Santo relativamente à natureza, que se traduz
no louvor e simpatia para com as criaturas, que o
Cântico tão bem assinala. Com efeito, refere Joaquim Cerqueira Gonçalves: “O conhecido Cântico das Criaturas é uma bem concreta síntese do
que importava proclamar contra o negativismo
neomaniqueísta”8. Este é, de facto, uma visão otimista, norteada pela alegria e pela Graça.
Mas segundo Leonardo, este louvor promove um
reencontro em que a natureza oferece alegrias
Cf. Idem, Ibidem, vol. II, p. 883,
Idem, Ibidem, vol. II, p.887.
8
Gonçalves, Joaquim Cerqueira, Os animais nossos irmãos. Ser-viver-compreender – a ordem dos fatores não é arbitrária, in “Filosofia e Direitos dos Animais. Questões de Filosofia Aplicada”,
Lisboa, UCP, 2011, p.16.
6
7
para o
Século XXI
inocentes ao “grande Poeta de Assis”, porque a
irmã natureza é, também, uma “sociedade de convivência”, de amizade, que, por exemplo, as aves,
na sua inocência original, exibem amistosamente9.
O homem celebra com a natureza um pacto de
amizade que só a alegria e a Graça justificam,
pacto de amizade que, na interpretação Leonardina, é fonte da ciência moderna.
Ora, sabendo-se que São Francisco de Assis não
era um defensor do saber e da ciência, pois estas desviavam da oração e do amor a Deus e ao
próximo, tal facto, contudo, não significa que
na tradição franciscana não haja sementes da ciência moderna. O espírito de caridade está nela
presente e Descartes, Pascal, ou mesmo Leibniz,
consideram que a ciência e a técnica só tinham
sentido dentro deste espírito do amor ao próximo. Pense-se, por exemplo, em Pascal que criou
e geriu a primeira Companhia de Transportes
Públicos na Paris do século XVII. Fê-lo levado
pelo amor aos mais pobres aos mais humildes,
pensando naqueles que menos tinham.
Mas, aprofundando esta amizade com a natureza, Leonardo Coimbra afirma que Duns Escoto
prepara o trabalho científico moderno. E chama
a atenção para os sábios franciscanos preocupados com os arcanos da natureza. Rogério Bacon
é um exemplo desta amizade, bem como desta
ciência moderna. Do mesmo modo podemos
falar em ética, em arte, moldadas pelo espírito
franciscano, focalizado este numa visão religiosa
do mundo, em que a matriz franciscana se exibe.
Conclusão
A hermenêutica desta obra Leonardina mostra,
em meu entender, a coerência do seu pensamento, de tal modo que com a noção de visão
ginástica vai pondo em evidência os traços fundamentais do franciscanismo, ao mesmo tempo
que o faz dentro da sua própria matriz de pensamento. Diálogo com esta visão ginástica, tendo
presente a sua visão, que é de simpatia. Claro
que encontramos afinidades inequívocas com o
Franciscano que viveu a alegria, a dor e a Graça
na origem, de tal modo que ambos vão, de companhia, subindo da foz à nascente, numa atitude
que causa espanto, mas que muitos ainda hoje
admiram e procuram acompanhar.
9
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Cf. Coimbra, Leonardo, Ibidem, vol. II, p.888.
31
A MONADOLOGIA RÍTMICA DE LEONARDO COIMBRA
Rodrigo Sobral Cunha
“Quem diz ritmo diz uma forma de movimento,
uma lei de sucessão, antes, um tempo com uma
organização interna”, escreve Leonardo Coimbra
em Do Amor e da Morte1. Para além da definição rigorosa, todavia, a magnitude da noção de
ritmo do filósofo criacionista, noção toda qualitativa e palpitante ao longo da sua obra, justifica
que se considere em breve ensaio uma ritmontologia leonardina, à semelhança da ritmanálise
do seu condiscípulo Lúcio Pinheiro dos Santos.
De Maio a Julho de 1911, o trânsito das duas
formulações inaugurais da Nova Monadologia2
de Leonardo Coimbra é distintamente marcado
pela repercussão da noção do ritmo como chave
explicativa do Universo como “sociedade cósmica de seres”, teoria depurada no ano seguinte na
obra O Criacionismo3. Superando o mecanismo
determinista (onde in extremis o infinito da inércia equilibraria o infinito da força, impedindo o
movimento), consiste o “ponto essencial da nova
hipótese” em que é “a diferença de ritmo” que
introduz a descontinuidade das ligações e assim,
a diversidade da existência. As mónadas hierarquizam-se desde o inorgânico inerte (em newtoniana reacção igual à acção) até à alta consciência
(na qual o excedente energético psíquico atinge
a liberdade criadora). As escalas física, biológica
e psíquica crescem assim em coordenada amplitude rítmica e proporcional compreensão do
Universo. A diferença de ritmo explicaria, enfim,
a génese do conhecimento e da consciência, bem
Do Amor e da Morte, Porto, Livraria Chardron de Lello &
Irmão, 1922, p. 17.
2
“Nova monadologia” e “Aos poetas portugueses religiosos:
uma monadologia (fragmento)”, in Obras Completas (19031912), tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2004, pp. 248-249 e 261-265.
3
O Criacionismo (Esboço de um Sistema Filosófico), Cap. II,
in Obras Completas (1903-1912), Tomo II, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2004, pp. 351-381.
1
como da causalidade e viabilizaria uma sociedade
cósmica de ritmos plurais escalonados, nisso se
fundamentando, pois, a ciência, a filosofia e uma
moral cósmica ou religião.
Se a actividade da pedra praticamente se esgota
num presente absoluto, sem excedente de acção,
já com a vida aparece a adaptação e o tempo. A
planta, para além da resposta newtoniana, eleva-se
em busca da luz, resolve dificuldades, move-se
num ritmo mais largo e a sua actividade excedente permite considerar a sua sensibilidade. O
animal tem maior excedente energético livre,
embora quase completamente actualizado em
sensações e imagens. Genericamente, as “mónadas de pequeno ritmo”, dispersas em instantes,
são num “esquecimento perpétuo e numa escravização contínua à sensação actual”. Num nível
superior, uma vez equilibrada a acção exterior,
aparece ampliada a memória e a previsão, uma
espécie mais nobre de hereditariedade, o tempo mais largo. No dizer de Leonardo Coimbra,
cada ser contém materialmente os outros de menor ritmo ou alma e cada ser tem por limite o
gasto de energia a que o obrigam os outros seres,
ou o Mundo. Daí que possa asseverar o filósofo
criacionista que a ciência quando mede a inércia
mede de facto a diferença de ritmo. A cinemática
espácio-temporal assinala, por outro lado, o raio
de acção imediata e é portanto o ritmo de acção
que permite seriar as mónadas. Todos os seres
têm uma face inerte, absolutamente actualizada
e uma face de actividade livre. “O homem resume toda a escala” e percorre-a desde o bruto
(metaforizado “calhau”), passando pelo homem
aprisionado nas solicitações mecânicas e sensuais
(metaforizado “burro”), seguindo-se um nível médio da humanidade onde o prazer e o egoísmo são
subordinados pela herança social (“as consciências parcamente ritmadas além da simples vida”,
32
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
escreverá n’A Morte4), até se alcançar a pessoa
livre, aquela que vence as solicitações inferiores
ou limites materiais (em relativa reacção anticousista, pode dizer-se), chegando-se finalmente
à pessoa que ultrapassa a simples reacção ao real
e encontra no seu “excesso rítmico” a liberdade
activa e vivamente criadora. São as “mónadas
de larga e generosa vida”, que restringem o
campo do esquecimento e livres vivem numa
espécie de imortalidade pela “comunicação das
almas”. Assim se compreende essencialmente o
conhecimento, na visão leonardina, já que “os
seres medem, pois, a realidade pela amplitude
do seu ritmo, excedente psíquico, alma ou liberdade.” “O ser ondula em ritmos”, escreveu
o filósofo em A Morte e n’A Alegria, a Dor e a
Graça afirmou que “a alma humana é um ressoador universal”5 e a compreensão “um esforço
do coração para o ritmo dos outros corações”6.
A dinâmica do pensamento é, neste sentido,
uma rítmica nocional da vibração relacional da
vida experimental, refluindo no horizonte leonardino um neo-hegelianismo tonificado pelo
élan vital bergsonista7 e por uma revalorização da
A Morte, in Obras Completas (1913-1915), Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 111.
5
A Alegria, a Dor e a Graça, in Obras Completas (1916-1918),
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 165. Tal é
o que poderíamos designar o princípio ritmognósico leonardino:
“A alma humana é um ressoador universal, ela repete a forma e o
ritmo de todas as vibrações” (A Questão Universitária, in Obras de
Leonardo Coimbra, Porto, Lello & Irmão, 1983, p. 612).
6
“Qualquer coisa como um coração que aprende a ritmar os
seus períodos pelo ritmo de corações concordantes e sem que
esses ritmos fossem sempre os mesmos, mas de modo que cada
palpitação só por virtude do seu universal acordo se fizesse mais
profunda, significativa e cheia de amoroso sentido” (A Rússia
de hoje e o Homem de sempre, in Obras de Leonardo Coimbra,
Porto, Lello & Irmão, 1983).
7
Nos estudos sobre A Filosofia de Henri Bergson considera
Leonardo Coimbra em consonância com o filósofo francês:
“Conhecer é fazer uma consciência apropriada ao ritmo da
realidade”. É isso que faculta à nossa intuição a compreensão de que um protoplasma conserve certas características de
um ritmo que ele próprio imite, ou entender, como se lê n’O
Criacionismo, que “o tempo religioso é rítmico, como todas as
manifestações de actividade colectiva”. Todavia, encontrando o
filósofo português no francês “o enlaçamento do contínuo e do
descontínuo no ritmo da nossa mesma duração consciencial”,
aliás “como no próprio movimento da vida”, mais advertirá, em
fundamental diferenciação, que se “também nós acreditamos
na duração, somente achamos que a duração depende duma
superduração que é o nosso absoluto”. Daí que, referindo-se
ao esforço de “preparação para atingirmos uma consciência
apropriada ao ritmo de cada plano de realidade”, seja por con4
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
actividade sintética psicológica (onde a consciência de Heraclito se sobrepõe, por assim dizer,
à constelação Pitagórica). Para a dialéctica criacionista, com efeito, “o tempo é a medida do ritmo das mónadas” e “a mónada é tanto mais real
quanto maior for a sua actividade de síntese, isto
é, quanto maior for a unificação das oposições”8.
Tal é a medida racional da liberdade rítmica da
mónada, bem como da sua realidade e verdade,
traduzindo-se no grau de constância que a diferença de ritmos das mónadas mais livres permite
verificar em relação às menos livres. Os pólos extremos são assinalados pela mónada com a “existência dum apagado ritmo, vibrando ao sabor
das oposições” e de outro lado, a mónada metafísica que sintetiza em liberdade criadora os ritmos
associados, elevando-se à compreensão poética e
filosófica da sociedade cósmica que é o Universo. Lê-se em Do Amor e da Morte: “O primeiro
beijo da luz toca o planeta e levanta no mesmo
ritmo de alegria o tropel dos rebanhos, as asas
da cotovia e os arrepios da emoção do pastor”.
A dialéctica criacionista sintetizará, por exemplo,
a alegria e a dor na graça, ou o amor e a morte
na amorosa imortalidade. “O que sabemos é que
uma onda de amor imponderaliza o Universo”,
escreveu Leonardo Coimbra n’O Criacionismo. A
nossa liberdade compreende assim a actividade
perfeita de Deus e à mónada religiosa, “que se
apreendeu em heróico esforço criador”, cumprirá a acção amorosa, de justiça e beleza, de divino
“amor amante”, que faz crescer a realidade, como
a excelsitude do “eterno condutor de ritmos”,
pois “o amor infinito é essa fonte originária, que
ergue e sustenta todo o Universo”9.
As janelas do poliedro criacionista rutilam abertas
ao ritmo ontocosmológico e o filósofo da alegria, que aspira a “ouvir a conversa de todas as
cousas”, verifica que “a actividade humana é rítmica, o que é ainda mais uma face do múltiplo-uno, que é o ser”. “Tudo vibra e murmura” e “a
seguinte de planalto que o pensador lusitano formule este convite: “Coloquemo-nos num largo mergulho intuitivo no ritmo
do nosso mais profundo ser, ali onde lateja a vida universal
que passa. Então compreendemos, sentimos, que a realidade é
uma criação incessante” (A Filosofia de Henri Bergson, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, pp. 42, 62-63, 142,
147, 194-195, 212-216).
8
O Criacionismo, ob. cit., p. 362.
9
O Criacionismo, ob. cit., pp. 351-381.
primeira palavra é ressonância musical”, escreve
n’A Luta pela Imortalidade, obra onde identificará o belo com o ritmo que em nós revive as actividades cósmicas10. Debruçada “à flor dos rios”,
a razão experimental considera dessarte a actividade estética do nadador, “no fluídico, assíduo,
ubíquo e insistente abraço das águas”, entregue
à “alegria de nadar”11. Estelante, o ritmo heróico
arremessa a própria vida no ritmo da vida universal12. A obra de Leonardo Coimbra pode ser,
pois, vista como um convite a uma sabedoria do
ritmo, cujo arco se distende a partir do sentido
da harmonia cósmica, passando pela revivescência rítmica dos seres, até ao pulsar ubíquo do
Universo ante olhos criacionistas.
Notícia sobre as origens da Ritmanálise
A propósito da importante relação entre a monadologia rítmica leonardina e a Ritmanálise,
observe-se que na pessoa de Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos reconheceu Leonardo Coimbra, além da amizade verídica, o melhor intérprete do pensamento criacionista. Nos antípodas
da Primeira Guerra Mundial há-de ter sido, pois,
esse período de superior convívio dos filósofos
em Lisboa, no triénio de 1914 a 1917, durante
o qual Lúcio e Leonardo deram aulas juntos no
Liceu Gil Vicente. A teoria do ritmo leonardina
e as formulações iniciais da Ritmanálise entraram, com efeito, em diálogo íntimo a partir de
1916, segundo o testemunho do próprio Lúcio
Pinheiro dos Santos na homenagem ao filósofo
Na sugestiva imagem do filósofo, assim se acha a ondulação
do mar nas oitavas d’Os Lusíadas, “esculpindo no Infinito a fisionomia espiritual da Pátria”.
11
A Luta pela Imortalidade, in Obras Completas (1916-1918),
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, pp. 307,
309, 311, 319.
12
“Somos debatidos e múltiplos; mas, nas horas de acção, naquelas horas em que tudo dentro de nós se acorda e tem um
ritmo, no momento em que a vontade se estende pelos músculos e é atitude, preexistência, preformada obra, uma grande e
solene unidade se faz dentro de nós, como que somos o alongamento dum mais vasto esforço, o ponto de apoio dum querer
universal que se liberta e expande.
Se o homem se põe a escutar o coração que alimenta os mundos, a propulsão do seu sangue arremessa a própria vida no
ritmo da vida universal.
O homem atravessa a vida, numa tensão de heroísmo, de vontade de alma significativa e real” (A Alegria, a Dor e a Graça,
ob. cit., p. 133).
10
33
desaparecido, posto que foi Leonardo Coimbra
“o primeiro a compreender, por volta de 1916,
a significação filosófica dos primeiros trabalhos
da Ritmanálise que só vinte anos mais tarde haveriam de encontrar acolhida no pensamento de
Bachelard, o filósofo do ‘novo espírito científico’ e junto de alguns dos novos trabalhadores
da moderna pesquisa filosófica” (1950). Em Do
Amor e da Morte (escrito pelos inícios de 1920)13
ressoam ecos claros do diálogo entre Leonardo
e Lúcio e bem assim as múltiplas teses ritmológicas à época (especulativas, cosmológicas,
antropológicas, etc., muitas das quais, aliás,
com posterior desenvolvimento ritmanalítico),
encontrando-se nas personagens pseudónimas
de António o próprio Leonardo e em Célio
uma versão anagramática de Lúcio. Do Amor e
da Morte contém admiráveis sínteses ritmanalíticas criacionistas como esta: “Se o Amor é o
próprio pensamento divino, o Amor e a Morte
caminham de mãos dadas: o Amor abrindo o
Mistério às almas, a Morte impelindo as almas
para as novas alturas do Amor.” Entretanto, o
pomo de uma fecunda discórdia era aí assinalado por António que criticava a “teoria dos ritmos de secância dada pelo Acaso” e os “ritmos
insecáveis”, contrapondo a isso uma “sociedade
de ritmos” e pois um “mundo de simpatias”
guiado pela consciência (rematando enfim: “Se
consentes em olhar deste modo, dir-te-ei que
amo a tua ideia dos ritmos”). Daí que fosse também possível a António afirmar que “A harmonia das esferas é uma autêntica realidade para a
alma-ritmo que a possa abranger”14. Do Amor e da
Morte, obra tão espontânea quanto pouco lida,
contém, entretanto, uma ritmanálise do amor.
Observou Joaquim Domingues: “Com a aguda inteligência
de que era dotado, Sant’Anna Dionísio aponta uma passagem
do diálogo Do Amor e da Morte (Porto, 1922) em que a noção
de ritmo serve de suporte ao desenvolvimento da argumentação
de um dos interlocutores. Se tivesse a intenção de alargar a indicação de passagens de idêntico carácter, bem poderia fazê-lo;
e mais longe iria ainda se, no mesmo horizonte nocional, atendesse às passagens construídas sobre as noções de vibração, de
ressoador, de movimento simpático, entre outras. O que tudo
conflui para sublinhar a afinidade entre o pensamento dos dois
amigos, por sinal ambos matemáticos e admiradores da poesia e
da música” (Joaquim Domingues, “Lúcio Pinheiro dos Santos:
Ensaio Biográfico”, in Teoremas de Filosofia, n.º 2, Porto, 2000).
14
Do Amor e da Morte, ob. cit., pp. 14-18, 32-33, 70, 96, 107.
13
34
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
O ALCANCE UNIVERSAL DAS TEORIAS METAFÍSICAS DA
EXPERIÊNCIA E DA REDENÇÃO EM LEONARDO COIMBRA
Samuel Dimas
“E porque não será o cárcere,
um dia, jardim e éden?” 1
1. Perante o escárnio de alguns pseudo-filósofos,
que pejorativamente sublinham o percurso auto-didacta de Leonardo Coimbra, teimando em
acusá-lo de um pensamento medíocre, que não
consegue respostas para as interrogações essenciais da filosofia e que mais não faz que tentar
enganar-nos, continuaremos a realçar a nobreza
e originalidade do seu pensamento, reafirmando
que a filosofia criacionista leonardina tem um
alcance universal e está ao nível das mais geniais
da época contemporânea.
Para demonstrar esta afirmação, convocamos
para o diálogo o filósofo, teólogo, matemático e
economista Bernard Lonergan. Podemos dizer,
por exemplo, que a teoria dos níveis de experiência consciente, apresentada na obra Insight em
1957, já tinha sido enunciada, embora noutros
termos, por Leonardo Coimbra na obra A Luta
pela Imortalidade em 1918. De forma análoga,
a filosofia da cultura e do progresso do conhecimento, assente sob a perspectiva do sociólogo
francês Lévy-Brulh e descrita por Lonergan nos
textos de Topics in Education de 1959, já tinha
sido longamente desenvolvida por Leonardo
Coimbra no início dos anos 20 em obras como
O Pensamento Filosófico de Antero de Quental ou
A Razão Experimental. Não é necessário “emigrar” para França, para a Alemanha ou para o
Canadá, para ler grandes obras de filosofia e
estudar grandes autores, capazes de conciliar as
mais recentes investigações da ciência com as
mais recentes interrogações metafísicas.
Leonardo Coimbra, A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre,
Porto, Livraria Tavares Martins, 1935 p. 22. Passaremos a citar
por RHHS.
1
Recusando as perspectivas monistas e dualistas
do pensar idealista e empirista, a dialéctica do
ideorrelismo criacionista procura justificar racionalmente o sentido da livre relação entre a
unidade do Ser e a pluralidade dos seres através
de uma ontologia pluralista e de uma metafísica moral de cariz personalista que introduz as
noções de «imortalidade integral da pessoa»2 e
de «espiritualização da matéria», concebidas no
sentido, não apenas platónico da libertação das
almas do cárcere do corpo, mas no sentido judaico-cristão de «terras, sóis e corpos glorificados»3.
Estas questões têm a sua fundamentação e âmbito na noção metafísica da Experiência4, que é
introduzida por Leonardo Coimbra no contexto
da sua obra «A Luta pela Imortalidade» e que
remete para a noção da existência de um fundamento moral e divino na organização relacional
e social da realidade. O pensamento de Leonardo encerra uma teoria integral do Ser.
Nele encontramos a intuição dos génios, que
evitando a catalogação do pensamento em correntes contrapostas de realismo e idealismo,
empirismo e racionalismo, reconhece a capilaridade do acto humano de conhecer, na pluralidade inter-relacional das suas várias funções.
Tal como virá a descrever Lonergan, através da
mesma intuição, o conhecimento humano tem
muitos veios e muitas direcções, havendo uma
íntima cumplicidade entre os actos da inteligência e os actos da imaginação, que apontam para
uma verdade inesgotável que não se reduz a cerLoc. cit.
Leonardo Coimbra, Jesus, Porto, Renascença Portuguesa,
1923, in OC, vol. V, tomo I, Lisboa, INCM, 2009, p. 266 [3638]. Passaremos a citar por J.
4
Cf. Leonardo Coimbra, «A Luta pela imortalidade», in OC,
vol. II, p. 36. Passaremos a citar pelo título do texto e com as
referências da edição crítica: OC.
2
3
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
tezas definitivas e estáticas. Nesta forma plural
do acto de conhecer, não ficam esquecidas as dimensões poéticas e artísticas. Esta comunicação
íntima entre as diversas funções do pensamento,
traduzida por Lonergan e por Leonardo, pelos
diferentes níveis de experiência consciente, inviabiliza uma hermenêutica que reduza a realidade à sua parcialidade.
O nosso intelecto tem muitas palavras, ou como
diria São Tomás de Aquino a partir de Santo
Agostinho, o verbo interior que nos move a
procurar a solução dos problemas e nos leva à
descoberta, encerra uma pluralidade de verbos e
de acções. A injustiça dos filósofos é reduzirem
a riqueza de verbos a um único verbo, como se
residisse aí a verdade absoluta das coisas: a verdade não está apenas na fenomenologia, como
não está apenas no existencialismo, como não
está apenas na filosofia analítica. Por esta razão,
Leonardo e Lonergan são geniais e pertencem à
galeria dos mais universais dos filósofos, sendo
incorrecto definir o primeiro de idealista e o segundo de intelectualista: para estes autores, mais
importante que os resultados, que dependem do
nosso ponto de partida, é a apropriação das operações do acto de conhecer, isto é, o modo de
funcionar da consciência, apreendendo-se aí a
universalidade do ser humano.
Posicionando-se ao nível dos melhores pensadores da época, em relação ao desenvolvimento
destas questões filosóficas da experiência integral do Ser, podemos identificar que a metafísica
moral de Leonardo Coimbra consegue superar
alguns dualismos ainda deixados pela filosofia ética de Émile Boutroux; consegue evitar o
monismo substancialista da teoria metafísica
da experiência de Alfred Fouillé; recusa o materialismo de neutralidade ética e religiosa da
filosofia científica de Bertrand Russell; evita o
ontologismo de autores como Platão ou Hegel,
que reduzem a Acção Criadora às ideias de Bem
ou de Absoluto, e defende a perspectiva personalista de Ser; supera a antinomia entre razão
e experiência de Antero de Quental; supera a
antinomia entre razão e intuição de Bergson;
antecede o valor dado às emoções filosóficas de
autores como Eugenio Trías, através das experiências noético-emocionais da Alegria, Dor e a
35
Graça; e ainda tem a genialidade, não só de ir
muito além daquela que viria a ser a perspectiva fenomenologista de Michel Henry acerca da
redenção da realidade corpórea, como também,
através da sua teoria criacionista antecipa aquela
que viria a ser a teoria heurística do Ser do filósofo Bernard Lonergan, considerado por muitos
como um dos melhores filósofos do século XX.
Só por ignorância ou má fé se poderá defender
que o ideorrealismo do criacionismo português de
Leonardo Coimbra não tem a mesma dignidade
do empirismo inglês, do idealismo alemão, do vitalismo espanhol ou do espiritualismo francês. Só
por ignorância e má fé se continua o elogio da
Filosofia Alemã e se recusa a Filosofia Portuguesa. A título ilustrativo, podemos invocar o pensador Eduardo Abranches de Soveral, que livre
de tal preconceito, desenvolve uma fenomenologia criacionista, a qual, à semelhança do pensamento leonardino, também se fundamenta num
ontologia personalista e também culmina na noção de redenção integral.
O pensamento de
Leonardo encerra
uma teoria
integral do Ser.
2. A partir da reflexão de Émile Boutroux acerca da recusa da necessidade absoluta da ciência
dedutiva, que de forma puramente formal e
abstracta determina a imobilidade da natureza,
em nome de uma teoria da contingência, que
afirma, não apenas o carácter livre do Ser absoluto, mas também a intervenção dessa liberdade
no curso dos fenómenos5, a noção criacionista
leonardina acerca do valor ontológico da Experiência afigura-se como uma tentativa de superar o dualismo clássico entre a imobilidade
do Ser de Parménides e o fluxo incessante da
Natureza de Heraclito.
Esta tensão antinómica entre a unidade do Ser
Cf. Émile Boutroux, De la Contingence des Lois de la Nature,
Paris, Librarie Félix Alcan, 1921, pp.7; 136; 146; 149.
5
36
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
e a pluralidade dos seres e entre o carácter imóvel e idêntico da razão e o carácter dinâmico e
diverso da experiência será sinalizada por Leonardo Coimbra, de uma forma muito particular, no pensamento de Antero de Quental, que,
ao defender a noção de que a realidade cósmica
particular denota uma determinada direcção
que resulta de uma acção espiritual a partir de
uma origem comum última, acaba por sucumbir ao monismo idealista de Hegel, em que a
pluralidade do Universo se dissolve na unidade
do Absolutus6.
Para Leonardo Coimbra, a superação proposta
por Antero para a antítese identificada entre a
pura razão, que define o Ser como o Absoluto
que subsiste por si, e a experiência sensível, que
define o real como o mundo fenoménico7, embora signifique a recusa do naturalismo da lei
dos fenómenos em nome dum psiquismo que
sugere a interferência da liberdade no determinismo (pelo exercício da vontade), ainda cede à
tentação da razão imobilizante que, esquecendo
a alteridade relacional da sociedade, faz do Espírito absoluto a verdadeira e única Realidade8.
A doutrina da cousa exerce um desvio sobre o
pensamento de Antero, que dirige cada eu e
todos os eus, não para o universal concreto da
eterna Vida de troca e fraterna companhia, em
que nenhum ser é diminuído ou aniquilado9,
mas para a dissolução num universal abstracto
da Substância, perdendo-se as manifestações de
convívio, crescimento e invenção de bondade de
beleza, que alimentam esse Amor10.
Para Leonardo Coimbra o acordo para a antinomia entre as tendências monistas e imobilizantes
da razão e as tendências pluralistas e dinâmicas
da experiência, que também significa a antinomia entre a razão abstracta e cousicista e a razão
personalista e temporal, só pode ser dado pela
realidade da unidade e subsistência no diverso,
Cf. O Pensamento Filosófico de Antero de Quental, Porto,
Editor J. Pereira da Sil­va, 1921, in OC, vol. IV, Lisboa, INCM,
2007, pp. 367-370 [85-94]. Passaremos a citar por PFAQ.
7
Cf. Antero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na
Segunda Metade do Século XIX, in op. cit., p.168;
8
Cf. PFAQ, pp. 358 [63-64].
9
Cf. «O pessimismo e o optimismo», in OC, vol. I, tomo I,
p. 175.
10
Cf. PFAQ, p. 360-361 [70-71].
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
que é a Razão Experimental ou a Memória Inventiva. Uma Razão que é criadora, livre e evolutiva
e que é «memória inventiva dos seres e do Ser
em troca e acordo social»�, actualizando-se em
convívio na ilimitada correlação consciente entre o adquirido do pensamento e o novo da realidade. Uma Razão e que tem como limites que
se tocam a Razão Absoluta da pura identidade e a
Percepção Instantânea da pura inércia11.
Neste sentido, defende com Émile Boutroux a
teoria de que a contingência dos fenómenos,
dados na experiência e determinados na hierarquia das leis gerais do Mundo, é expressão da
liberdade infinita da acção criadora e providencial do ser perfeito e necessário de Deus12. Para
o metafísico francês, a contingência das coisas,
que se comprova nos movimentos de mudança,
progresso ou decadência, é o sinal exterior da
potência infinita da liberdade que constitui o
fundamento da realidade13.
No entanto, superando a posição de Émile Boutroux, que faz uma nítida cisão entre o carácter
contingente e sensível da experiência, que apenas apreende as coisas actualmente realizadas,
e o carácter necessário da razão, que nos dá a
natureza superior dos seres revelados aos nossos
sentidos, no âmbito do seu poder criador anterior ao acto14, Leonardo Coimbra vai dar um
novo alcance ontológico e gnosiológico à noção
de Experiência, caracterizando-a como um longo e cúmplice convívio meditativo do pensamento com o Ser, em que a actividade dialéctica
intuitivo-racional e hipotético-construtiva vai
criando as diversas noções da realidade, desde a
inerte à espiritual15. A Experiência não é aparente, nem condicionada de forma a priori, mas ao
contrário, nada a excede e é a sua radical existência que constitui o dinamismo essencial da
realidade, explanando os seus infinitos modos
de ser16 e tendo na noção de Deus a plena e per-
feita Unidade17.
O que está em causa é a possibilidade de se
abarcar a verdadeira dimensão da Experiência
do real na pluralidade dos seus diferentes planos
ontológicos. O pensamento criacionista aponta
para uma solução metafísica do Ser integral, que
inclui na sua constituição o dinamismo da dialéctica científica e gnosiológica em permanente
ascensão para o plano ideal das experiências artística, moral e religiosa. Apresenta, assim, uma
interacção consciente da sensibilidade, da inteligibilidade e da vontade que configura heterogéneos estádios de actividade cognoscente e agente. Estes correspondem aos níveis ontológicos da
experiência bio-psicológica, científica, estética,
moral, metafísica e religiosa que, como descreve
Leonardo Coimbra, «resultam da diferenciação
duma unidade original, que é o próprio movimento da Vida»18.
3. Em relação à mistérica e progressiva compreensão da Direcção evolutiva do Universo para
a sua integral consumação espiritual, podemos
dizer que o criacionismo recusa, não só o idealismo radical das perspectivas monistas e abstractas, mas também o positivismo empirista
radical de autores como, por exemplo, Bertrand
Russell, que estabelecendo a oposição entre
o conhecimento intuitivo e revelacional da filosofia mística de autores como Bergson19 e o
conhecimento analítico e racional da filosofia
lógico-científica20, acaba por pretender reduzir
a filosofia à neutralidade ética e religiosa do estudo estritamente racional e analítico da experiência científica21. Leonardo Coimbra rejeita que
os motivos éticos e religiosos possam ser considerados apenas como um produto do instinto
gregário, constituindo-se como um estorvo para
o progresso da filosofia22, e partilhando com
Émile Boutroux e Alfred Fouillé a ideia de que o
elemento moral é a essência do mundo metafí-
6
Ibidem, p. 363 [75-76].
Cf. Émile Boutroux, De la Contingence des Lois de la Nature
p. 150; 151; 156.
13
Cf. ibidem, p.136; 151.
14
Cf. ibidem, p. 151.
15
Cf. ADG, p. 160 [195].
16
Cf. A Luta pela Imortalidade, Porto, Renascença Portuguesa,
1918, in OC, vol. III, p. 288[78]. Passaremos a citar por LI.
11
12
Cf. ADG, p. 182 [232].
LI, p. 285 [73].
19
Cf. RE, pp. 36-37 [40-41].
20
Cf. Bertrand Russell, Mysticism and Logic, London, Penguin
Books, 1954, pp. 15-16.
21
Cf. RE, p. 58 [69].
22
Cf. Bertrand Russell, Mysticism and Logic, p. 95.
17
18
37
sico23, elabora uma dialéctica metafísica de inspiração ética e religiosa que define o Ser como
Acto Puro de fraternal Caridade e o Universo
como meio redentor dos seres criados.
Para Leonardo Coimbra a experiência real não é
a exiguidade dos factos, mas a história do esforço e da vontade em atingir a realidade eterna da
imortalidade integral, transfigurando o mínimo
equilíbrio mecânico em essencial corpo moral na
restauração da pura e espiritual relação de eterna
coexistência dos seres com o Ser24. A actividade
pensante, que se afirma no juízo e se liberta, pela
memória, do fluxo da sensibilidade, pode reconhecer, não apenas a coordenação espiritual da
realidade25, de onde dimanam o ideal artístico e
o poder da acção moral, como também a Fonte
desta, que é o próprio Mistério de Deus26.
Mas só é possível dizer alguma coisa acerca da
Vida infinita da Experiência desta misteriosa
Relação de Amor, de que todos os seres participam27, mediante o metafórico salto da razão do
volume espiritual para a nocturna visão mistérica
da Revelação e do lirismo metafísico do hipervolume espiritual, entendido este como a dimensão
de ser em que, no Fim, se dá o incêndio integral
da matéria e onde tudo se plenifica «em pura luz
divina, de omnipresença ou amor»28.
É pelo carácter de relação íntima entre o lógico e
o mistérico, o intelectivo e o intuitivo, o analítico e o analógico da Razão mistérica que Leonardo Coimbra vai além da positividade dialéctica
da ciência e da filosofia para afirmar, pela linguagem emocional do lirismo metafísico e da revelação, o ser misterioso de Deus, não apenas como
fonte da Vida, da beleza e do Bem na dimensão
incomensurável do hipervolume espiritual29, mas
também como a própria Unidade da Experiência
que faz o acordo do Ideal e do Real e da qual
Cf. Émile Boutroux, De la Contingence des Lois de la Nature,
Paris, Librarie Félix Alcan, 1921, p. 148.
24
Cf. «A luta pela imortalidade», in OC, vol. II, p. 36.
25
Cf. RE, p. 291 [383]; cf. C., p. 17 [3].
26
Cf. O Criacionismo: Esboço dum Sistema Filosófico, Porto,
Renascença Portugue­sa, 1912, in OC, vol I, tomo II, p. p. 17
[3]. Passaremos a citar por C.
27
Cf. ibidem, p. 285 [376].
28
RE, p. 294 [387].
29
Cf. «O mistério», in OC, vol.I, tomo I., p. 182.
23
38
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
participam todas as experiências parcelares30.
Ao contrário da teoria metafísica da experiência
das ideias-força de Alfred Fouillé 31, para quem
a experiência completa e total é a inacessível e
necessária síntese última entre o físico e o mental, o sensível e o inteligível, contentando-se o
homem, por isso, com a experiência mais ampla
possível32, para Leonardo Coimbra a Unidade
integral da Experiência realiza-se na pluralidade
relacional do Ser perfeito de Deus, pelo saber
criador do convívio compreensivo e fraternal
consigo mesmo e com todos os seres, excedendo-se em invenções amorosas sem limite33. A essência de Deus é a mistérica Experiência da relação aumentativa do conhecimento e do amor34.
Para Alfred Fouillée, como a metafísica não
pode alcançar totalmente o seu ideal da experiência completa da síntese universal, ela será
sempre relativa e progressiva35. Para o filósofo
português o carácter progressivo da metafísica
não se fica a dever, tanto à limitação e contingência do saber humano, mas sim, à própria
essencialidade dinâmica e criadora do Ser Supremo, de que todos os seres participam e dependem no excesso de possíveis relações sobre
as relações já consumadas36.
À semelhança daquela que viria a ser a definição
heurística de Ser de Bernard Lonergan, como
aquilo que não é conhecido à partida pela actividade cognitiva, mas apenas pode ser definido nos
termos do próprio processo do conhecer, numa
dinâmica intelectiva irrestrita de progressiva
completude37, também para Leonardo, a expeCf. «Comemorações das Constituintes de 1820», in OC,
vol. IV, pp. 196-197.
31
Cf. Alfred Foulliée, L’Avenir de la Métaphysique fondée sur
l’expérience, Paris, Félix Alcan éditeur, pp. 300-301.
32
Cf. ibidem, p. 290.
33
Cf. «Comemorações das Constituintes de 1820», in OC, vol
IV, pp. 196.
34
«O Ser perfeito deve tirar de si tanta invenção amorosa que,
ao encerrar de um abraço, terá de o abrir de novo para o ampliar
mais, pois, por virtude do próprio gesto inicial, as realidades
aumentaram a grandeza do seu convívio.» («Comemorações
das Constituintes de 1820», in OC, vol IV, p. 197.)
35
Cf. Alfred Foulliée, L’Avenir de la Métaphysique fundée sur
l’expérience, p, 293.
36
Cf. LI, p. 322 [137].
37
Cf. Bernard Lonergan, Collected Works of Bernard Lonergan,
n.º 3 – Insight: A Study of Human Understanding, Edited by
Frederick E. Crowe and Robert M. Doran, Toronto, University
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
riência-síntese metafísico-religiosa, embora unifique dialecticamente a diversidades dos saberes,
é dinâmica e progressiva porque participa da
própria realidade dinâmica da Unidade divina
da Experiência radical, que ao contrário da concepção clássica de eternidade imóvel, se constitui como Consciência inventiva, renovando-se
pela sua acção criadora nos caminhos infinitos
da ciência e do amor38.
Uma Experiência divina, que nos diversos modos de ser se constitui como um acto misericordioso que tudo socorre amorosamente do abismo do Nada39 e que, de acordo com o descrito
por Leonardo Coimbra no seu diálogo escatológico com o pensamento de Guerra Junqueiro,
encerra um movimento de dupla redenção, porque faz a distinção entre a salvação das almas,
que se dá no amor eterno; e a salvação da matéria, que se dá na glorificação daquilo que em si é
resistência, mal e desordem40.
Mas a consumação plena do Paraíso Celestial
anunciada pelo sentimento saudoso da visão
mistérica aponta-nos para uma redenção integral, porque, ao contrário, por exemplo daquela
que virá a ser a perspectiva fenomenológica de
autores como Michel Henry, não se refere apenas
à glorificação ou espiritualização da carne humana41, mas sim de toda a realidade corpórea, num
movimento misterioso, que na sua obra «Rússia
de Hoje e Homem de Sempre» Leonardo apelida de universal ressurreição42 ou ressurreição integral43, no abraço totalizante da vida44.
30
of Toronto Press, 1997, p. 470.
38
Cf. «Comemorações das Constituintes de 1820», in OC, vol
IV, p. 196.
39
Cf. GJ, pp. 288-289 [15-17].
40
Cf. ibidem, p. 353 [123].
41
Cf. Michel Henry, Incarnation: Une Philosophie de la Chair,
Paris, Seuil, 2000, pp. 373-374.
42
RHHS, pp. 316-317.
43
Ibidem, p. 61.
44
Ibidem, pp. 60-61.
39
LEONARDO COIMBRA. DA FILOSOFIA E DO SEU ENSINO
Artur Manso
“A ciência é uma elaboração de percepção,
procurando eliminar o sujeito e a espontaneidade criadora. A filosofia introduz o sujeito, o
Universo inteiro em vez de sistemas isolados, as
suas relações recíprocas, e a duração concreta. A
arte permite eternizar por modelos sempre presentes e vivos todas as virtudes e entusiasmos.”
Leonardo Coimbra
N
este ensaio é minha intenção percorrer os
escritos de Leonardo Coimbra onde o filósofo da Renascença Portuguesa se pronunciou
sobre o ensino da filosofia nas escolas portuguesas. Tentarei por a claro a sua ideia de filosofia
e a forma de a tornar ensinável num sistema de
ensino oficial. Seguirei a apresentação cronológica dos textos sobre a temática da edição crítica
das obras de Leonardo, ainda em curso, que o
Centro de Estudos Portugueses da Universidade Católica – Porto, em boa hora iniciou e tem
continuado com regularidade.
O interesse pelo ensino da filosofia é muito precoce em Leonardo, mesmo que primeiramente tenha feito a sua formação noutra área. Em
1913 ministrou um curso de História da Filosofia na Universidade Popular do Porto em quatro
lições e em outras tantas aulas, na mesma Universidade, um curso de Filosofia. O esboço dos
respectivos programas encontra-se no volume II
das obras críticas1, páginas 38 a 41. Da análise das matérias propostas para estudo, nota-se
uma componente demasiado teórica e excessivamente extensa se tivermos em conta o público a
que se destinava: gente trabalhadora, operários
diversos, com escolarização rudimentar, que
no fim de uma cansativa jornada de trabalho,
1
Obras Completas (edição crítica. Coordenação científica:
Ângelo Alves. Organização, fixação do texto, notas e índices:
Afonso Rocha. Recolha dos dispersos: José Cardoso Marques).
UCP-CRPorto/IN-CM.
prescindiam do merecido descanso para aumentar
os seus conhecimentos nos cursos que a Universidade Popular graciosamente ministrava.
Neste regime de educação não formal fica logo
mostrado que Leonardo concebe um ensino da
Filosofia a par da sua história. A abordagem histórica das matérias filosóficas impõe-se-lhe em
relação a um tratamento sistemático das mesmas.
Outra característica importante na consideração
da filosofia e do seu ensino por parte do filósofo portuense é a preocupação de a assimilar em
conjunto com as características do homem português. A universalidade da filosofia não pode ignorar as características espácio-temporais daqueles
que a ela se dedicam e a tentam servir. Nas sábias
palavras de Manuel Ferreira Patrício, para Leonardo “O ensino nacional derivava do ensino
universitário e o ensino universitário derivava do
ensino da filosofia”. A confirmar esta observação,
Leonardo, em 1917, no texto intitulado A poesia
e a filosofia moderna em Portugal, tinha escrito:
“A maior criação intelectual dos portugueses é a
poesia” (cf. Obras, vol. III, p. 217), apresentando aqueles poetas que, em seu entender, eram os
alicerces da filosofia portuguesa, poetas de pensar
metafísico, pois, como continua a escrever “se é
certo que o mais sincero e ingénuo documento
da alma humana é a arte, a poesia portuguesa
deve revelar-nos, em acção viva, o nosso pensamento metafísico” (ib.). A filosofia portuguesa
que nesta fase parece confundir-se com a poesia
metafísica que por cá se fazia, traria, no entender
de Leonardo, várias vantagens à filosofia clássica
e ao seu rigorismo: “A filosofia, sem imaginação,
procura-se, perde-se em abstratos sistemas de
lógica, sossega-se no burguesismo positivista, e,
volvidos novos olhos sobre a poesia, retoma imaginação; sorri, medita e canta” (ib., p. 218).
Que poesia e que poetas portugueses têm para
o nosso pensador um cunho filosófico nas suas
40
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
obras, passíveis de ser estudados e meditados?
Os maiores poetas/pensadores são, então, apontados: Antero de Quental, em cuja obra predomina
a representação, António Nobre, cuja poesia está
embrenhada de sensibilidade, Guerra Junqueiro, cujo pensamento a representação se embrenha num platonismo imanente e anuncia
a unidade do Ser, João de Barros, guiado pelo
determinismo. Mas o maior de todos, aquele
cujo pensamento e poesia ganha um estatuto filosófico por excelência é Teixeira de Pascoaes, o
poeta de Marânus, cuja contemplação apurada
põe a claro um panteísmo pluralista (cf. ib., pp.
218-219). Não há dúvida que os poetas eram
os representantes da melhor filosofia portuguesa, já que Leonardo afirma perentoriamente: “A
filosofia propriamente dita procura-se, é menos
interessante por mais detalhada, como em Amorim Viana, nas críticas de Antero e na teologia
de Sampaio Bruno” (ib., p. 220). Seguindo esta
linhagem de poetas/pensadores portugueses especulativos, também refere a sua obra, nomeadamente O Criacionismo, O pensamento criacionista, A morte, A alegria, a dor e a graça, colocando-a
ao lado dos poetas que enumera, continuando a
destacar na especulação filosófica o labor poético,
em verso e em prosa, de Pascoaes, que em seu entender escreve prosa como quem escreve poesia,
dizendo da sua especulação: “O seu anticousismo, o seu pluralismo social, o carácter do equilíbrio social, permanentemente reinventado pelos
seres sociais, o poder criador do pensamento, a
realidade metafísica das memórias, o princípio da
conservação e evolução da memória, tudo isto é
de molde a pressentir o seu parentesco espiritual
com o pensamento poético português” (ib.).
Em 1918 Leonardo escreve mais um texto sobre
o ensino da Filosofia começando por nos dizer
que “De todas as grandes sínteses sociais, a mais
vivaz e persistente é a filosofia, pelo seu próprio
carácter de permanente e procurado balanço,
equilíbrio e unificação das crenças (hipóteses e
realidades científicas) e desejos (actividade estética e moral) que são a vida das sociedades”
(Obras, vol. III, p. 227). O filósofo portuense
não contesta que haja outras disciplinas capazes
de promover uma síntese do saber, mas nenhuma o faz de uma maneira tão completa quanto a
filosofia, pois só esta percorre os vários estádios
do conhecimento humano: o lógico, o gnosiológico, o antropológico, o ontológico. Isto é, só
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
a filosofia promove um conhecimento geral e
unificado das relações entre os diversos conhecimentos e as grandes preocupações dos homens.
Ao tempo em que Leonardo escreve, o campo de
cada saber no ensino liceal ainda não se encontrava bem definido. Em Portugal já era grande a
influência da nova organização dos conhecimentos resultantes da renovada mentalidade positivista, mas a definição efectiva dos saberes dela
emergentes ainda não conhecia um elenco definitivo. O nosso filósofo estava atento ao progresso das ciências e pensava que a Filosofia só tinha
a lucrar com a dispersão dos saberes, mostrando-se convicto de que “É na psicologia e sociologia
que o ensino liceal da filosofia encontra matéria
nova. O resto é conhecido” (ib., p. 28).
O pensador portuense entende que a perenidade do conhecimento filosófico é compatível
com as novas ramificações do saber, mesmo que
estas já tenham sido partes integrantes do corpo filosófico. As novas descobertas e especificações de cada ramo do conhecimento levou a
filosofia a perder progressivamente uma parte
significativa das disciplinas que a compunham,
mas isso, para Leonardo, não a devia impedir
de recorrer às disciplinas que já tinha acolhido
sempre que fosse necessário tornar mais efectivos os seus ensinamentos. Mesmo com a autonomização dos saberes em novos corpos científicos autónomos, continuava a considerar a
filosofia como “a única mãe fecunda de ‘ilusões
viáveis’, daquelas que no fim, nós ignoramos se
não serão a melhor e a mais autêntica realidade. Sem ela a própria poesia não teria motivos
eternos de esperança, pois o homem precisa de
acreditar nas próprias ilusões” (ib., p. 229). Para
si o conteúdo ontológico da filosofia continua
a prevalecer sobre o procedimento lógico. A especulação impõe-se à dedução e indução que
procedem a partir da experiência. A filosofia
fica mais próxima da poesia do que do conhecimento racional, porque seja qual for o domínio e o poder de desenvolvimento da razão, ela,
para cumprir o seu papel, jamais poderá deixar
de ter como meta e objectivo o ir mais além,
constante desafio ao conhecimento racional
para que não se fique pelos factos conhecidos
que são apenas um degrau na ascensão infinita
ao que ainda nos é desconhecido. Ir às coisas
mesmas, especular sobre a origem e o limite da
acção e do conhecimento é a tarefa mais nobre
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
da filosofia que nenhuma outra disciplina está
em condições de realizar.
Aquando da sua primeira passagem pelo Ministério da Instrução Pública – entre 2 de Abril de
1919 e 28 de Junho do mesmo ano, menos de
um trimestre –, mesmo que as verdadeiras reformas a apontar ao seu curto mandato se prendam com a organização dos ensinos primário e
primário superior, deixou indicações para a reforma do ensino/programa de filosofia e transferiu a Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, para a Universidade do Porto, criando, assim, aquela que veio a ser conhecida como
a primeira Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, concebida, nas suas palavras e fazendo
jus aos seus propósitos educativos mais profundos, como “uma escola de filosofia para onde a
atracção da Beleza chamasse as almas incertas da
gente moça do meu país” (vol. III, p. 48), a que
acrescenta o ambiente de total liberdade daqueles que nela ensinam e aprendem.
A nível liceal, eis, então, as linhas do programa
que traçou para a sexta e sétima classe:
VIª Classe
“A filosofia como ciência dos princípios ou das mais
altas abstracções, fundo comum de todas as ciências
A filosofia como doutrina sincrética donde evoluem as ciências particulares
A filosofia como doutrina das realidades inabordáveis pelos métodos científicos
A filosofia disciplina de reassimilação unificadora
dos dados científicos, artísticos, morais e práticos
Os desígnios da filosofia deveriam ser acompanhados pela Actividade científica composta pelos seguintes saberes
A Matemática, a Física, a Química; a Biologia;
a Psicologia; a Sociologia; a Ideologia Social; a
Actividade Estética; a Actividade Moral (cf. Vol
III, p. 230)
Para a VIIª Classe propunha como conteúdo da
disciplina de Filosofia, os seguintes tópicos:
Os problemas filosóficos; o problema do Conhecimento; o problema Metafísico; o problema Moral;
História da Filosofia (cf. Vol III, pp. 233-234)
Como material a usar para o ensino da filosofia
referia: a leitura na aula do último capítulo do en-
41
saio de Sampaio Bruno A ideia de Deus; um livro
de iniciação filosófica; uma História da Filosofia
(cf. ib., p. 234), apontando, ainda, a necessidade
dos liceus possuírem todos os livros que fossem
considerados indispensáveis ao ensino/aprendizagem da filosofia nos moldes propostos.
Ora, como o ensino oficial tem nos professores os
mediadores do conhecimento entre os objectivos
traçados pelos programas e as verdadeiras necessidades e capacidades de aprendizagem dos alunos,
Leonardo entende que no campo específico da Filosofia “O professor terá em vista levar o aluno à
unificação activa dos seus conhecimentos, sugerir a
curiosidade pelos problemas e fazer sentir a beleza
e a dignidade do pensamento” (ib., p. 230).
O professor deve sugerir e não impor, unificar e não
dispersar, ser fonte e exemplo de conhecimento.
Mas para que o ensino funcione a nível liceal, Leonardo acha que deve ser pensado a nível superior. A Universidade era para si o local
do pensamento teorético que permite traçar o
rumo à nação, competindo a esta nobre instituição, pensar os currículos de todos os níveis de
ensino e formar os professores. Ao tempo a educação portuguesa e o ensino universitário eram
tão desprezados que Leonardo, quando ocupava
o cargo de ministro, em 1919, sugere, quanto às
universidades públicas, que “o governo as ligasse
com os esboços de universidades populares já
existentes sem esta conjugação, possível é dar-se a circunstância de se intensificar em certos
meios a cultura pública, com pleno esquecimento de populações desamparadas do auxílio dos
beneméritos” (vol. IV, p. 470).
A Universidade tinha a obrigação de se assumir
como a “consciência intelectual da nação”, pela
“educação directa e pela educação difusa. Directamente porque em seu seio vivem ou do seu seio
saíram os valores espirituais da Pátria; indirectamente, porque dela todo o pessoal docente das escolas veio a receber em primeira ou segunda mão
o seu ensino” (ib.: p. 145). Associado a este aspecto prático de formação dos altos quadros da nação
e da exclusiva coordenação na preparação de todos
os profissionais do ensino, a Universidade teria,
ainda, que se dar a conhecer e mostrar a sua influência através dos meios de difusão da opinião
mais massificados e populares: “do jornal, do livro, do café, do clube e da rua é luz tamisada de
mil maneiras, mas que em última origem pertence
à Universidade” (ib.). Basicamente, convinha que a
42
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Universidade como parte integrante e fundamental da Unidade do Estado e do conhecimento,
fosse capaz de dar a conhecer a todos os portugueses o trabalho que faz e a finalidade do mesmo. Os cidadãos, com mais ou menos estudos,
com mais ou menos cultura, têem de compreender a razão de ser e a superior importância destas
instituições, uma vez que elas, apesar de todos os
progressos, são sempre de poucos e para poucos.
Compete-lhes, por isso, instituirem-se como o
principal veículo de agregação das partes dispersas do conhecimento que depois se plasmará em
acção, criando, para tal, “a consciência intelectual
da Nação e a sua riqueza espiritual e económica:
pelas ciências alarga a sua compreensão da vida
cósmica e indirectamente pela Técnica e Medicina cria a riqueza; pelas letras toma consciência
em si da sua realidade histórica e psicológica, da
sua essência espiritual e indirectamente cria a
técnica da acção social. Uma Universidade tem,
pois, por alma as Faculdades de Letras e Ciências, representando aquela como que a vontade
consciente e esta a inteligência especulativa que
fundidas darão a Acção ou Técnica: direito, medicina, engenharia, comércio, etc, etc.” (Obras, vol.
IV, p. 145).
Parece evidente que a Universidade, ao contrário por exemplo da Igreja, dos partidos, do exército e de outras instituições afins, era, nas suas
finalidades e objectivos, completamente desconhecida pela maioria dos portugueses. Como
instituição fechada e minoritária, que acolhia essencialmente os indivíduos das classes mais privilegiadas habilitando-os para uma carreira de
chefia e mando onde tantas vezes se revelavam
incompetentes e prepotentes, era olhada com
desdém pela quase totalidade dos portugueses.
Do alto da sua sapiência, parece que se sentia
muito bem atrás da barreira que se tinha criado
entre a corporação e o povo que a alimentava e
que ela se propunha servir. Por diversas questões, o ensino e a educação não entusiasmavam
as massas e dentro de todo o sistema educativo, a Universidade era, porventura, a estrutura
da sociedade olhada com mais desconfiança e
incompreensão. As lutas dos académicos passavam completamente ao lado das preocupações
das populações, mesmo daquelas onde estas
instituições tinham a sua sede. No entender de
Leonardo, impunha-se corrigir a carga negativa
que pairava sobre esta instituição de ensino e
para o
Século XXI
investigação, pois como acrescenta em 1926, era
essencial que a nação pudesse contar com uma
Universidade que fosse “antes de mais nada, o
saber teorético, seja: faculdade de ciências da natureza, faculdade de ciências do espírito e faculdade de filosofia o grupo teorético, ciências da
natureza e do espírito, filosofia, daria a formação de todo o corpo dos professores de ensino
superior teórico, secundário e primário superior ou
fundamental por grupos de ciências, dos professores
de belas-artes e dos professores das técnicas superiores por cadeiras ou grupos de cadeiras de
modo algum dispensáveis a estes últimos professores como, por exemplo, psicologia, história
das ciências, teoria da ciência, etc, etc” (Obras,
vol. VI, pp. 174-175).
No pensamento desenvolvido pelo filósofo portuense, a Universdade, enquanto agregadora e difusora do conhecimento teorético, desempenha
um alto valor na educação, uma vez que tem a
seu cargo a formação dos professores de todas as
áreas. Para si é evidente que se um professor apenas possuir uma educação parcelar no ramo do
conhecimento que se propõe ensinar, por muito
boa que seja, será sempre insuficiente. Poderá saber como ensinar e o que ensinar, mas não terá
o conhecimento adequado que permita efectivamente aumentar o saber geral dos diversos alunos.
Não saberá estabelecer relações nem centrar as
problemáticas que ensina num plano mais alargado do aparecimento e difusão do conhecimento.
É certo que porventura tais falhas não impedirão
os profissionais do ensino de desempenhar bem o
seu papel. Os alunos, uma vez formados, poderão
ser bons profissionais, mas faltar-lhes-á a base mínima da cultura nacional e humana que os possa
ajudar a ser cidadãos mais esclarecidos e, em consequência, mais críticos e participativos.
Não nos esqueçamos que apesar da democratização do ensino oficial e do seu alargamento a cada
vez mais cidadãos, a frequência universitária,
continua a ser reservada a uma pequena percentagem de indivíduos. Porque assim é, convém que
os níveis de ensino básico, secundário e técnico,
nas mais diversas áreas, garantam não só uma boa
formação profissional, mas também uma sólida
formação humanística e cultural e isso só será
possível se os seus agentes a tiverem adquirido ao
longo do processo educativo a que são submetidos. O ambiente adequado a essa aprendizagem o
mais completa possível é a Universidade.
43
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
A PEDAGOGIA FILOSÓFICA DE LEONARDO COIMBRA,
À LUZ DE A ALEGRIA, A DOR E A GRAÇA
1
Manuel Ferreira Patrício
D
issemos1 que há em Leonardo Coimbra
uma pedagogia superficial e uma pedagogia profunda. Também dissemos que entre a
filosofia e a pedagogia existe um laço da maior
intimidade. O caminho que começa na superfície abre-se gradualmente para a profundidade.
Temos tentado percorrer esse caminho. Vimos
o profundo sentido cósmico da filosofia criacionista de Leonardo. Julgamos ter também evidenciado, manifesta e ocultamente, o verídico
sentido pedagógico dessa filosofia. Ao dizermos
pedagógico queremos dizer anagógico; e ao dizermos anagógico queremos dizer, mais rigorosamente, pan-anagógico. Do que Leonardo fala
sempre é da criação contínua de perfeição para a
Perfeição. Nenhuma obra do filósofo exemplifica tão bem esta ideia como A Alegria, a Dor e a
Graça. Lê-la filosófico-anagogicamente é dirigirmo-nos para as profundezas do seu pensamento.
Fizemos uma longa leitura dessa obra – uma leitura ainda assim tão breve! Seremos agora, mais
do que breves, sumários. Seja-nos permitido
cingirmo-nos ao itinerário por ela assinalado e
desenhado. Nesse itinerário – nessa via sagrada!
– há três passos: a Alegria, a Dor e a Graça. Há
primeiro para viver e para ser, há primeiro que
viver e que ser, a Alegria; há depois a Dor; há
finalmente a Graça. São três núcleos de realidade, são três núcleos de conhecimento. Fernando
Pessoa deixou escrito: “ Quem quer passar além
O texto que se segue é extraído da obra do autor A Pedagogia
de Leonardo Coimbra – Teoria e Prática (Porto, Porto Editora,
1992, páginas 619-623). O autor considera-o inteiramente
actual. Considera, também, que será útil lê-lo e meditá-lo
neste ano do centenário da publicação de O Criacionismo,
dado o seu carácter sintético e sistémico.
Foi muito simpático o Senhor Engenheiro Vasco Teixeira, ao
aceitar o pedido de publicação neste número da Nova Águia.
Os meus agradecimentos.
1
do Bojador / Tem que passar além da Dor”. O
pedagogo profundo quer passar, e quer fazer
passar, além da Dor; quer, portanto, chegar, e
fazer chegar, à Graça.
Há o itinerário que nos leva da Alegria à Dor e
da Dor à Graça. A Alegria, como a Dor, como
a Graça – tem cada uma delas o seu próprio
itinerário. Viver é movimento; conhecer é movimento; ser é movimento. Educar não pode,
pois, ser outra coisa senão esse movimento de
aproximação infatigável do mais alto, do mais
pleno, do mais perfeito. Leonardo dá-nos o movimento da Alegria pelo movimento do Dia: é
analogicamente que nos fala. O que no Dia está
presente é a Luz. O que na Noite está ausente
– ou se esconde, ou é em repouso criador – é a
Luz. Vivemos a Alegria sob o signo da Luz: da
Luz que vem na aurora e vai no crespúsculo; da
Luz que vem no nascimento e vai na morte; que
vem na infância da humanidade e vai retirando
na sua senectude. É da Unidade Maternal da
Noite que a Luz vem; é para a Unidade Paternal da Graça que a Luz vai. Em cada “núcleo de
realidade” se cumpre o completo itinerário da
Alegria, da Dor e da Graça. A analogia da Luz
é o Sol. Havemos de ver que o Sol é a intensa
Luz Negra procurada ansiadamente pela Dor e
é a presença analógica final do próprio fulgor da
Graça esplendente.
A criança é a própria Alegria. Há que viver a
criança até ao fim. Até ao fim de quê? Da vida? Se
a criança for conservada resolvemos facilmente a
enigmática e obsessiva interrogação da Dor e sairemos da vida em Graça, na qual, de resto, sempre
então teremos vivido. Se o adulto conservar em si
a criança, é a Luz que conserva. O adolescente
é o descobridor do Amor. O caminho do adolescente para o Amor é físico-espiritual. É errada
44
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
toda a educação que não está à altura da exigência
da Alegria do Amor pelo adolescente. Quantos
maus educadores não orientam catagogicamente
a fome humana de Unidade tão forte no adolescente, em vez de o fazerem anagogicamente!
Leonardo expõe, em A Alegria, a Dor e a Graça,
uma filosofia completa do movimento. No movimento vê o esboço da alma. É no centro do
centro de cada forma que o movimento mora
e principia, propagando-se até aos abismos dos
infinitos espaços do Universo. A lei ou princípio
da inércia tem um papel fulcral na sua filosofia do movimento. Por ela aparece o Universo
como um espantoso equilíbrio social vivo. Se o
movimento é o esboço da alma, o que não será o
movimento da alma verídica! Por aqui se entrevê
a pedagogia leonardina do movimento, e o que
pode ser o princípio da inércia como princípio
da alma humana. Da doutrina do movimento deriva directamente uma teoria da arte e da
educação artística. O grande poder que o movimento atinge na arte é um poder de revelação.
As artes mais altas são, a este respeito, a música
e a poesia. É o movimento da palavra que em
ambas domina: da palavra verbal e da palavra
cósmica. É sempre para uma pedagogia da palavra, e não para uma pedagogia da imagem ou
do ícone, que nos aponta a filosofia de Leonardo Coimbra. Educar é ensinar a palavra, a qual
jamais se perde depois de aprendida. À filosofia
criacionista tem que corresponder a pedagogia
criacionista, pois que a criação é um acto da palavra. O que é o Mundo senão o próprio verbo
divino? E o que é a Cultura senão o próprio
verbo humano?
Quando,ao declinar o Dia, se olha para o que
a Alegria foi, é a Alegria da Memória que então
se vive. Essa é a Alegria Final, verdadeiramente a Alegria das Alegrias. É na suave Alegria da
memória que o homem guarda a plena posse
de todas as alegrias. A Memória, que inclui o
movimento, inclui, por conseguinte, o Espaço
e o Tempo. Não encontra guarida na filosofia
de Leonardo Coimbra qualquer pedagogia que
menorize, ou omita, a Memória. É ainda, como
se vê, a filosofia leonardina do movimento que
está presente na sua doutrina da Memória. Leonardo entende que o pensamento de Plarão,
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
propondo para a criança uma educação pela
arte, revela uma grande compreensão do interior da imitação, ou seja, do movimento imitativo. O que a arte põe na alma da criança é a
própria vibração da Realidade, o ritmo exacto
do seu movimento, a essencial fraternidade cósmica que habita esse movimento. Ora a pedagogia culminante, sendo a pedagogia do movimento,
há-de ser a pedagogia da memória, porque – como
escreveu Leonardo – “toda a Alegria do Universo é a posse plena da sua harmonia, a integral
memória do seu Ser”.
Cumprido o momento da Alegria, há que cumprir o momento da Dor. A Alegria é a presença pura da Realidade. A Dor é a presença da
Realidade como problema. Tem a Realidade
sentido? – eis o problema. Neste problema está
outro: tem o Homem sentido, tem a Vida do
Homem sentido? O que a consciência encontra
a envolvê-la é o grande, o terrível, silêncio do
mundo. Ela quer conversar com o mundo envolvente, mas descobre-se consciência solitária
no mundo. Ela quer conversar com o mundo
envolvente, mas descobre-se consciência solitária no cosmos mudo. A consciência, de qualquer modo, é. Mas não deixa também, aparentemente, de ser? Não aparecem e desaparecem
as almas? O que é a ausência de uma alma? É a
passagem da alma ao nada? Eis a dupla experiência da Dor: a dor da consciência solitária, a
dor da consciência desesperada. Os naturalistas
não têm resposta satisfatória para nenhum dos
dois problemas em que se desdobra a Realidade
como problema. Resposta satisfatória não têm,
nem Stuart Mill nem Sampaio Bruno. A Dor
da solidão e da mortalidade, o Sonho da companhia e da imortalidade: o problema de Deus
continua. No cerne da teodiceia dos naturalistas – que ainda assim a têm –, de Stuart Mill
e de Sampaio Bruno, encontra-se o problema
do Bem e do Mal. A não aceitação por Leonardo destas teodiceias mostra que elas são incompatíveis com a sua própria teodiceia. Não é
possível assentar uma satisfatória pedagogia na
teodiceia dos naturalistas, de Mill, de Bruno – é
o que teria de pensar Leonardo. Veja-se o caso
de Mill: nada vale a pena, porque o mundo, o
homem, o próprio Deus – nada faz sentido. À
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
luz de uma tal filosofia, que sentido pode ter
a educação? Diverso é o caso de Bruno: o seu
Deus não é uma hipótese, mas um ser bem real.
Porém, ser de potência finita. Nessa finitude se
abre o imenso horizonte da luta universal do
homem, em cooperação com Deus, pelo resgate
do próprio Deus. A educação tem aqui o seu
lugar – e alto lugar! – e o seu sentido. Acontece, no entanto, que o “homogéneo” final de
Bruno parece, panteistamente, ser o oceano
dissolvente das individualidades. Leonardo não
aceita que para tal oceano se dirijam as almas.
Se educar é aperfeiçoar a individualidade, como
pode este esforço resolver-se na dissolução da
individualidade? Leonardo veria no seu criacionismo teísta o fundamento sólido e satisfatório
de uma pedagogia que não podia ver na dos
naturalistas, na de Mill, mesmo na de Bruno.
Foi o filósofo português pensador e pedagogo
antiniilista. Comparemo-lo com Sartre: Sartre
desfaz o Ser em Nada, enquanto que Leonardo
refaz o Nada em Ser. Sartre encontrou um nada
de sentido; Leonardo encontrou o sentido do
próprio Nada. Uma filosofia como a de Sartre
não pode ser o suporte de nenhuma autêntica
pedagogia. Já a filosofia de Leonardo Coimbra dá sentido ao mínimo acto do educador.
A pedagogia da Dor do nosso filósofo insere-se numa ilustre linhagem portuguesa: Antero,
Nobre, Laranjeira, Basílio Teles, Pascoaes, Junqueiro... Atendamos, no entanto, a que a Dor
de Leonardo não se relaciona com a sensação,
mas com o conhecimento. Só pode praticar-se uma pedagogia leonardina da Dor ali onde
houver “conhecimento”. Só, pois, na puberdade e na adolescência pode iniciar-se uma tal pedagogia. A experiência da Dor só pode ser a experiência de uma consciência profunda. Como
Rilke, como Bergson, Leonardo quer uma pedagogia da consciência profunda. A psicologia
que há-de servir uma tal pedagogia não pode
limitar-se a ser a psicologia dita normal, tem
que ser também a psicologia dita paranormal.
Leonardo exige uma psicologia total, integral,
que não recuse nada do que é psíquico. William
James era um ilustre e sólido apoio para a sua
posição. É neste quadro que colocamos e interpretamos a defesa leonardina de uma pedagogia
45
dos grandes exemplos, dos grandes arquétipos
humanos. É uma nova luz para iluminar a sempre admirativamente referida pedagogia platónica da imitação.
Falemos da Graça. Onde encontrá-la? Desde
logo, no próprio esquema da dialéctica criacionista. Aí descobrimos que são três os grandes níveis ou planos da Realidade construídos,
garantidos e mostrados pelo pensamento criacionista: o nível do mundo mecânico, o nível
do mundo físico, o nível do mundo psíquico.
Há, do mundo físico para o mundo mecânico,
um excesso: é a Graça. Há, do mundo psíquico para o mundo físico, um excesso: é a Graça.
O mundo físico é a graça do mundo mecânico, como o pensamento é a graça do mundo
físico, como o pensamento divino é a graça do
pensamento humano. A Graça é o movimento
do movimento. A grande interrogação de Leonardo é agora esta: existe a liberdade? Este é,
para ele, o problema da Graça. A solução vai
ser positiva. Dentro da tradição metafísica ocidental, o nosso filósofo relaciona a liberdade
com a necessidade. São os dois pólos entre os
quais fica toda a Realidade e toda a experiência do homem. Porém, a liberdade é a Graça
da necessidade. O homem é pessoa moral livre.
Sem a liberdade o homem não seria homem.
O que o homem transporta para o quotidiano
na barca da liberdade é o eterno, para a parcela o todo, para o acidente a essência. Educar o
homem tem de ser fazê-lo o timoneiro capaz
dessa barca. O homem é racional. Porém, há no
homem duas razões: a Razão da Necessidade e a
Razão da Liberdade. Esta é a Razão do Excesso,
do Infinito, do Irracional, da Graça. Retomemos uma expressão anterior: é a Razão Poética.
O problema do movimento é retomado pelo
filósofo em A Graça. O que o movimento é à
luz da Graça é acção e, superiormente, acto. A
pedagogia da imitação alcança neste contexto a
altitude da liberdade da criação. É agora uma
pedagogia da actividade transmutada em acção
e da acção transmutada em acto. É agora, verdadeiramente, uma pedagogia da pessoa moral
livre e criadora. A Graça pulsa na intimidade da
consciência de cada homem. Essa pulsação da
consciência humana é como a da água tranquila
46
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
do lago para cujo centro se atirou uma pedra:
ela gera um fluxo de círculos concêntricos cada
vez mais amplos. Assim a alma sobe, em movimento expansivo, até à sensação de Deus. De
igual modo a alma sobe, em movimento expansivo, até ao pensamento e até ao sentimento de
Deus. Esse subir é sempre a vontade de Deus. É
a Graça que Leonardo vê a inundar, e a fecundar, a alma de S.Paulo. S.Paulo teve, vivíssimos,
o sentimento e o pensamento da Graça como
o Espírito, o Infinito, o Irracional, Deus. Mas
teve, mais escandalosamente, a própria sensação
da Graça como o Espírito materializado, o Infinito finitizado, o Irracional racionalizado, Deus
humanizado, ou seja, como Cristo. A ideia
leonardina da Graça é incompreensível sem a
ideia de Cristo. O próprio coração do Cosmos
vive da presença expansiva de Cristo. O Cristo de Leonardo Coimbra é Cristo cósmico. A
forma mais elaborada do criacionismo moral
de Leonardo Coimbra integra como elemento
essencial a realidade de Cristo. Cristo é um movimento partido do centro do Universo e tudo
assimilando ao seu íntimo segredo de amor. O
criacionismo culmina em cristologia. Cristo é o
vértice de todos os cones desenhados pela filosofia de Leonardo Coimbra. O sentimento de
amável dependência do Pai e de inteira comunicação é o coroamento da figura de Cristo. Ele
é, deste modo, o paradigma supremo da humanidade. Afirmamos, neste sentido, que a mais
alta pedagogia leonardina é uma pedagogia da
humildade cristã (mais rigorosamente, da humildade cristológica).
Está definido, e sumariamente percorrido, o itinerário de A Alegria, a Dor e a Graça. O termo
é a Serenidade. A Serenidade é o acordo profundo com o Universo. Leonardo faz coincidir
o termo da via sagrada com o pôr do Sol, que
é necessário acompanhar com uma forte tensão
de vontade para explorar a fundo a íntima correspondência cósmica que há entre o Universo
e o Homem. É uma analogia da Morte? Não. É
uma analogia da vida perenemente renascente.
Leonardo dá-nos, antes do silêncio da última sílaba, Cristo tornado o Deus-Menino nos braços
da Virgem-Mãe: analogia da criação contínua,
da eterna infância da criação.
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
47
A FALTA DE CORRESPONDÊNCIA – PARA UMA REINTERPRETAÇÃO DA
POÉTICA JUNQUEIRIANA À LUZ DA LEITURA DE LEONARDO COIMBRA
Miguel Filipe M.
É sempre para uma
pedagogia da palavra, e
não para uma pedagogia
da imagem ou do ícone,
que nos aponta a filosofia
de Leonardo Coimbra.
Educar é ensinar a
palavra, a qual jamais
se perde depois de
aprendida. À filosofia
criacionista tem que
corresponder a pedagogia
criacionista, pois que
a criação é um acto
da palavra. O que é o
Mundo senão o próprio
verbo divino? E o que é a
Cultura senão o próprio
verbo humano?
R
asurando cristalizações dispersas de leituras
de pretensão academista, Leonardo Coimbra é o produtor da mais profunda leitura da
poética e da obra junqueirianas que até à data
se compôs, reforçando nas mesmas a centralidade do «problema do destino humano»1 que
conforma uma experiência estetista da finitude
hipostasiada em condições limitantes (políticas, ideológicas, religiosas). Conforme sustenta, «a vida eterna e infinita era a preocupação
do Poeta»2, contrapondo-se àquele pascaliano
«Grande Silêncio»3 que fundamenta o horror dos
espaços infinitos, desde a configuração da experiência vital como experiência de uma fugacidade
elementar entre dois nadas, como relâmpago entre duas obscuridades, segundo título de Aleixandre: «E a vida será, então, um raspar de fósforo
na treva, um ponto de luz fulgindo instantaneamente. Será como esses relâmpagos que em noites tempestuosas, nas aldeias recônditas, varam a
escuridão e que surgem entre duas trevas»4.
A vivência disfórica da projecção nadificante
lança em Junqueiro o dubitativo como projecto de um desejo de per-sistência, espécie de
espinosista conatus contra a consciência infeliz,
perguntando-se se «a vida não será mais do que
um tumulto de ilusões, que o sopro do Nada
está varrendo continuamente?»5. Não apenas
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
158. Porto. 8-7-1923 In Idem (2006) Guerra Junqueiro. Porto:
Lello Editores. P 15.
2
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
158. Porto. 8-7-1923 In Idem. Op. Cit. P. 15.
3
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
158. Porto. 8-7-1923 In Idem. Op. Cit. P. 16.
4
Leonardo Coimbra (1929) Conferência proferida no Teatro
Constantino Nery. Matosinhos, 12-4-1929. Relato In Gazeta de Matozinhos. Ano II, nº 26. Matosinhos. 20-4-1929. In
Idem. Op. Cit. Pp. 131-132.
5
Guerra Junqueiro (1978) Obras de Guerra Junqueiro. Porto: Lello
Editores. P. 996. Doravante utilizaremos a abreviatura OGJ.
1
de fundo epistemológico, esta é para Junqueiro uma problemática ética segundo a qual «o
problema da morte é, no fundo, o problema da
vida»6. Esse «abutre da desilusão e do desespero,
o abutre satânico, o abutre invencível emerge
como um despojador da telicidade, argumentando que «a perfeição completa das almas exige
necessariamente a imortalidade»7.
A rasura da experiência projectiva, pela expectativa
do nada, origina a necessidade de formulação de
uma possibilidade de sentido. Propomos assim
uma releitura da obra junqueiriana à luz da fundamentação que Coimbra assinala para este sentimento disfórico, com um aparato conceptual
que lhe é afim, embora o não relatasse, próprio
da formulação da ironia trágica ou romântica de
pendor filosófico que palavras de Coimbra poderiam sintetizar. Afirmando que «entre o espiritual, o ideal e o real há uma desarmonia, uma
falta de correspondência»8, Coimbra denota em
Junqueiro a experiência própria de uma ironização do projecto existencial.
Junqueiro viveu, com efeito, «dolorosamente a
grande tragédia da existência»9. Essa desarmonia entre o espiritual-ideal e o real, essa falta de
correspondência, consagra, por um lado, a dialéctica que separa o próprio indivíduo em (pelo
menos) duas faces, a que nele habita a dimensão
inferior da existência e aqueloutra que nele é feita do chamamento dos limites, a face desejante
da revelação dum absoluto. Observando, a propósito de Junqueiro, que «a matéria vai morrendo
Guerra Junqueiro. OGJ: 915.
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 1040.
8
Leonardo Coimbra (1929) Conferência proferida no Teatro
Constantino Nery. Matosinhos, 12-4-1929. Relato In Gazeta de Matozinhos. Ano II, nº 26. Matosinhos. 20-4-1929. In
Idem. Op. Cit. Pp. 129.
9 Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
158. Porto. 8-7-1923 In Idem. Op. Cit. P. 16.
6
7
48
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
à medida que o espírito vai nascendo: o termo
da primeira é o Nada, o termo do último é o
Infinito»10, Coimbra sustenta o contraste entre
a unidade substancial do Ser e a variabilidade
das formas marcadas pelo devir a que se referia
Marinho11, aquele «contraste entre essa aspiração para Deus por via do esforço ascensional da
Vida e o permanente espectáculo da Morte»12.
Ao afirmar a dualidade fundamental do humano
– «toda a alma é clarão e todo o corpo é lama»13 –
Junqueiro dá conta dessa ironização da existência
que configura a tragicidade do existir, conforme
observa Coimbra14, na demanda da unidade que
sancionasse a des-união essencial entre o homem
e o cosmos, entre o homem e deus: «Ess’alma
Universal, / Essa concentração divina do Ideal /
É de quem sofre, é de quem geme, é de quem
chora, / É de todos os que vão pela existência fora
/(…) Calcando o lodo e olhando os astros no
infinito»15. A preensão da dualidade baixo/alto,
do que é ao que deve ser16, configura o bakhtiniano desejo fusional/unitivo carnavalesco17, promotor do levantamento de «rijas alavancas / Que
hão-de erguer este globo ao nível do Ideal»18.
Se Coimbra observou em Junqueiro a ausência
daquilo a que chamou uma ironia transcendente19, há ainda assim estoutra forma de ironia que
poderia dar-nos a pauta de leitura do pensamento junqueiriano, à luz das citadas observações
do autor20, que dá conta da discordância entre
Leonardo Coimbra (1923) A Águia. 3ª série. 11-12 (Maio-Junho) In Idem. Op. Cit. P. 33.
11
José Marinho (1950) Poesia e Verdade em Guerra Junqueiro.
Separata dos n.ºs 149 e 150 da revista Ocidente. Lisboa. P. 5.
12
Leonardo Coimbra (1926) O Primeiro de Janeiro. Ano 58, nº
43. Porto. 21-2-1926. In Idem. Op. Cit. P. 112.
13
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 337.
14
Leonardo Coimbra (1926) O Primeiro de Janeiro. Ano 58, nº
43. Porto. 21-2-1926. In Idem. Op. Cit. P. 110.
15
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 394.
16
Amorim de Carvalho (1998) Guerra Junqueiro e a sua obra
poética. Porto: Lello Editores. P. 19.
17
Mikhaïl Bakhtine (1970) L’oeuvre de François Rabelais et la
Culture Populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance. Paris:
Éditions Gallimard.
18
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 156.
19
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
159. Porto, 10-7-1923. In Idem Op. Cit. P. 20.
20
A concepção de ironia romântica que aqui privilegiamos é a
que resulta do substracto filosófico concebido pelo idealismo
germânico de inícios do século XIX. Trata-se de uma ironia de
situação, entendida, em termos latos, como situação existencial:
«De la même façon que l’ironie verbale joue sur une opposition
10
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
a dimensão real (concreta) da existência individual e a dimensão ideal (projectiva) da mesma,
faces coevas da moeda irónica. Entre o ilimitado e o limitante nasce a experiência ironizada,
portadora da angústia, dado que «l’homme
ne se perçoit plus comme une unité homogène mais comme un assemblage sous tension
d’éléments contradictories»21. Este carácter tensional, próprio da concepção romântica da ironia como «something like a human condition or
predicament»22, revela a experiência existencial
como forma do paradoxo23, sob a configuração
da dualidade experiência/expectativa24, de um
«indissoluble antagonism between the absolute
and the relative»25. Observando, segundo Schlegel, a «awareness of the limitations of the self»26,
a ironia funciona assim como auto-ironia27, problematizando a concepção do eirôn. A limitação
do real ao ideal, do que é ao que deveria ser28,
desvela-se na projecção de uma ausência29, figura do ideal relatada àquela «non-coïncidence de
entre le sens apparent des paroles et leur sens réel, l’ironie de
situation pervertit le rapport entre l’être et le paraître des personnages. Notre vision conventionnelle du monde demande
l’identité de l’apparence et de la réalité et elle suppose que ce
qui se ressemble s’assemble. Or, l’ironie est précisément ce qui
fait mentir cette vérité» (Pierre Schoentjes (2001) Poétique
de l’ironie. Paris: Éditions du Seuil. P. 58). Numa abordagem
psicanalítica, Reik dá conta dessa disposição irónica como o
contra-senso entre um ideal inconsciente instantaneamente
revelado num eu secreto e a dissipação do mesmo na decepção
e na desilusão do consciente: «Un événement ou une pensée
ravive pour une fraction de seconde l’ancienne illusion ou les
sentiments de confiance, de considération, de respect, de vénération, d’affection ou d’admiration consciemment dépassés depuis longtemps. Le temps d’un battement de coeur, les anciens
sentiments et la vision ancienne sont renouvelés, et ils émergent
à nouveau des niveaux inconscientes dans lesquels ils ont continue à vivre (…) et sont rejetés (…) le souvenir de la déception
ou de la désillusion revient également et se fait ressentir. La
contradiction et le contraste entre une ancienne et une nouvelle
attitude et les sentiments qui s’y rattachent forment le sol d’où
sort l’ironie» (Théodore Reik (1952) The Secret Self. New York:
Farrar, Strauss and Young. P. 276).
21
Pierre Schoentjes. Op. Cit. P. 111.
22
Claire Colebrook (2004) Irony. London and New York: Routledge. P. 48.
23
Schlegel (1991) Philosophical Fragments. Minneapolis:
University of Minnesota Press. P. 6.
24
Paul Ricoeur (1983) Temps et récit (tomo I). Paris : Éditions du Seuil.
25
Schlegel. Op. Cit. P. 13.
26
Anne K. Mellor (1980) English Romantic Irony. Cambridge,
Massachusetts, and London: Harvard University Press. P. 10.
27
Pierre Schoentjes. Op. Cit. Pp.186-188.
28
Henri Bergson (1991) O Riso. Relógio D’Água: Lisboa.
29
Théodore Reik. Op. Cit.
l’homme avec lui-même» que Ricoeur identifica
com o mal30.
Para suturar a condição dual da existência humana, Junqueiro investe num intelectualismo
como fórmula estetista da alteridade radical
da experiência desiderativa do literário, configuração de um projecto alternativo mediante
a implementação objectivista da especificidade
formal da condição do produto, sob as fórmulas
do estranhamento (ostranenie) e da literariedade
(literaturnost). Através de uma emotividade poética que, conforme relata Coimbra, é «acentuadamente intelectualista»31 o texto emerge como
potência objectivante, concepção segundo a
qual a obra não é o retrato do mundo mas o seu
inverso, numa vocação catártica que a alimenta
e a faz caminhar não sobre o mundo mas no
avesso disso a que chamamos mundo.
Outra solução unificante é a que nos é dada pelo
imanentismo teológico como telicidade de uma
erótica cosmicizada que coloca, segundo palavras de Coimbra, «o Homem em face do destino
procurando Deus»32. Ora o Deus a que Junqueiro apela quando «o homem, face ao Nada, que
parece afogá-lo, grita por socorro»33 é um «Deus
amante, pessoal»34, mediante o que preconiza
uma espiritualidade religioso-metafísica e humanitarista35. A vontade do amor como elemento ligativo/unitivo da transparência do eu a si
mesmo pela forma da alteridade (força comungal própria da simpatia pelos simples) faz jus ao
que Dalila Pereira da Costa designa por processo
antropocósmico de amplidão teleológica36
Defende por isso Junqueiro que «a arte soberana
é a que conjuga a natureza toda» e que o «verbo
infinito e perfeito, o único verbo criador (…)
Paul Ricoeur (1988) Philosophie de la volonté II. Finitude et
culpabilité. Paris: Aubier. P. 21.
31
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
158. Porto. 8-7-1923 In Idem. Op. Cit. P. 15.
32
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
158. Porto. 8-7-1923 In Idem. Op. Cit. P. 16.
33
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
158. Porto. 8-7-1923 In Idem. Op. Cit. P. 16.
34
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
158. Porto. 8-7-1923 In Idem. Op. Cit. P. 16.
35
Henrique Manuel S. Pereira (2005) Guerra Junqueiro.
Percursos e Afinidades. Lisboa: Roma Editora. P. 111.
36
Dalila Pereira da Costa (1998) “Um processo de redenção
universal pelo amor e pela dor”. In AAVV. Guerra Junqueiro e a
Modernidade. Lello Editores: Porto. P. 54.
30
49
é o verbo amar»37. A arte é possível relação sensualizada de todas as coisas como cosmojunção.
Nela, «os orbes fraternizam, os metais amalgamam-se, e as electricidades sexuadas buscam-se
avidamente, para copular!»38 O monismo junqueiriano está assim atravessado pelo desejo da
totalização da individualidade em cumplicidade, através de uma prova ética do amor. O amor
espiritual é, em Junqueiro, a sensualização do
máximo divino no pormenor de toda a relação
sexuada, numa ascensionalidade carnal, porque
agrega a esperança na relação amorosa espiritual
– com o Alto – com a própria sexualidade do
outro – com o Baixo – figura de desejo segundo
concepção freudiana. Constitui-se assim como
uma autêntica metafísica da matéria, como lembra António Cândido Franco39. A sensualização
da expectativa redentora não é propriamente
vestígio de uma nulidade do mundo mas sim
da sua superação pelo transe. Este resulta, fundamentalmente, da sublimação dos aspectos sofríveis do homem em elevação à consciência, tal
como entendida por Unamuno40.
A essa consciência chamaremos, em suma,
amor. Ele é esse estar conhecendo em conjunto
(cons-ciência), no trazer a ele, pelos meios catárticos como a filosofia ou a arte, uma dose de
revelação de um uníssono em que o sofrimento
de um homem se desdobra em comoção universal. O aspecto ruptural da poética junqueiriana,
assente em sarcasmo, instala nele a profunda
possibilidade da Khrisis como eminência esperançosa. Mergulhado nela, sofridamente atacado por todos os lados por um real em que se
morre, ela revela ainda uma hybris. A própria
escrita traduzi-la-á em entendimento – essa consciência dos limites. O primeiro passo para que
uma existência heróica, tal como defendida por
Schopenhauer, possa desafiá-los.
O pensamento de Junqueiro é, assim, um humanismo, através de uma panagogia, do desejo
de, pela sociedade de afectos, antecipar a possibilidade de aperfeiçoamento do todo, pela
via ascética da comunidade de dores vertida
Guerra Junqueiro (1978) Prosas Dispersas. Pp. 132. Doravante utilizaremos a abreviatura PD.
38
Guerra Junqueiro. PD. P. 134
39
António Cândido Franco (2001) O essencial sobre Guerra
Junqueiro. Lisboa: INCM.
40
Miguel de Unamuno (2007) Do sentimento trágico da vida.
Lisboa: Relógio d’Água.
37
50
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
em comunidade de amor. «Morreu a dor, para
nascer o Amor!»41. A sua poética constitui um
percurso de redenção pela dor que revela ao sujeito o amor, isto é, a consciência: «A dor nunca
me abateu. A dor é criadora e fecunda quando
é vivida pelo Amor». Essa consciência não fala
apenas da entrega dos homens à espécie mas
também à própria vida, ou seja à participação na
plenitude cósmica. Esse animismo pampsiquista
transforma a ontologia junqueiriana numa estética da dor, ou numa poética do amor. Nela
se instaura uma via que sacraliza o próprio homem desejante de Deus. Para tal, ele descobre
enfim que o objecto de desejo mais justo é o
do próprio Homem ou do seu excesso. Ele pode,
através da patética aprendizagem imanente de
uma comunidade de sofrimento – a Pátria, para
Junqueiro – promover a ideação da solidária
comoção universal que conduz, por uma ética
dessa prova do estrangeiro, ao sacrifício, à caridade e à abdicação, emblemas da sacralização do
Homem, ou do absoluto da sua humanização.
Nisto renasce o espinosista reconhecimento do
todo necessário a cada um. Mas nasce sobretudo
a Emoção da Imensidade como lhe chama Coimbra, ou seja a convivência fundamental de todos
os seres na divina Substância de que são o próprio sustentáculo. O messianismo egocêntrico
de Junqueiro (que nos fala, portanto, já de um
certo encobertismo à maneira de Bruno) não é,
portanto, egoísta, pois para a revelação do eu a
si ele carece de estabelecer uma relação comunicativa dos seus próprios limites, ou da sua incomunicabilidade, com um Outro que o limite e
aconteça. Nesse sentido, o messianismo egocêntrico está vinculado a um pampsiquismo panteístico42, que nos fala de uma «Alma já feita de
infinitas almas, / Vida gerada de infinitas vidas,
/ Mas presas todas, palpitando unidas / Numa
só alma!»43, recordando que «L’homme devient
un Je au contacto du Tu»44, que «Il n’y a pás
d’éthique sans présence de l’autre»45, porque «au
commencement est la relation»46 e «le rapport à
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 865.
Amorim de Carvalho. Op. Cit. P. 46.
43
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 942.
44
Marin Buber (1982) La Vie en Dialogue. Paris: Aubier Montaigne. P. 25.
45
Jacques Derrida apud Pavel (1988) Le Mirage Linguistique.
Paris: Minuit. Pp. 15-16.
46
Marin Buber. Op. Cit. P. 18.
41
42
para o
Século XXI
l’autre precede l’experience du moi lui-même»47.
O desejo erótico traduz-se assim num desejo de
comunicabilidade, na medida em que a existência individual depende de um dialogismo
fundador. Porque «je me définis par rapport
à l’autre»48, a identidade (a ipseidade), implica
a alteridade: «l’ipseité du soi-même implique
l’altérité à un degré si intime que l’une ne se
laisse pas penser sans l’autre»49. Nesta concepção
especular de fundação do Eu50 emerge a «inclusión del otro como la totalidad de sentido»51,
mapeando um percurso de idealização da relação com a alteridade e dando conta do «movimento universalista, totalizante e cósmico»52 da
obra junqueiriana, segundo Coimbra.
Um optimista transcendente como Junqueiro, conforme terminologia de Coimbra, assumia assim a
possibilidade da superação da disforia irónica por
um evolucionismo panteísta associado à noção de
esforço53, a recordar o platónico enthousiasmous,
dado que «a poesia é a verdade transformada em
sentimento (…) A ciência dá o convencimento,
a certeza; a poesia dá a emoção, o entusiasmo»54.
Porque, segundo Coimbra, a ascensão do Homem é o seu esforço para Deus, Junqueiro concebe um projecto redencional/soteriológico que
configure um sentido para o destino trágico que
enforma a existência55. Tal projecto é agonístico,
porque «a dor é a escada de fogo que nos conduz
à vida-eterna»56, promovendo a necessidade de
uma existência resistiva como presença ética do
homem a si mesmo que o revela, no reconhecimento da comunidade de destino que o liga ao
outro, como possível figura heróica.
Porque a perfeição da existência é «a infinita
passagem do amor através do sofrimento, do
Francis Jacques (1982) Différence et Subjectivité. Paris : Éditions Aubier Montaigne. P. 32).
48
Mikhaïl Bakhtine. Op. Cit. P. 124.
49
Paul Ricoeur (1990) Soi-Même comme un Autre, Paris, Seuil. P. 14.
50
Jacques Lacan (1966) Écrits – I. Paris: Seuil.. Pp. 89-97.
51
Iris M. Zavala (1996) Escuchar a Bajtín. Madrid: Montesinos. P. 98.
52
Leonardo Coimbra (1923) Porto Académico. Ano I, nº 18.
Porto, 16-7-1923. Entrevista com o estudante Couto Nobre.
In Idem Op. Cit. P. 43.
53
Leonardo Coimbra (1923) O Primeiro de Janeiro. Ano 55, nº
159. Porto, 10-7-1923. In Idem Op. Cit. P. 27.
54
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 135.
55
Leonardo Coimbra (1926) O Primeiro de Janeiro. Ano 58, nº
43. Porto, 21-2-1926. In Idem Op. Cit. P. 113.
56
Guerra Junqueiro. PD. P. 132.
47
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
espírito através da dor»57, dá-se uma reversão
axiológica, promovida pela tese proudhoniana da
imanência da justiça e da progressividade à História58, que afirma que «a arte tem e deve ter um
carácter progressivo»59, que promove em Junqueiro um misticismo naturalista60 cujo substracto é
a dor como elo ontológico de todas as criaturas
minerais, vegetais, animais e humanas61. A unidade do ser, assim agonisticamente percebida, revertendo o projecto existencial em calvário, apela à
defesa da mutualidade da dignificação do esforço
do Homem como valor fundamental: «Homem!
/ Quando a alvorada alumie o horizonte, / Ergue-te em pé, ergue essa fonte!»62.
Só assim surgem os grandes homens63, aqueles
que «sobre-humanizam o homem, exaltam a
existência, criam espírito, desvendam mistério,
tocam no âmago do Ser»64. Afirmando que é necessário «rezar e chorar, mas heroicamente, na
acção e na luta, no mundo e para o mundo»65,
Junqueiro retoma o postulado de Sénancour que
tantas vezes serviu de mote à literatura de Miguel de Unamuno, autor com o qual concordava
Coimbra a propósito do valor da obra de Junqueiro e dum poema como Pátria66, e que repetia: «O homem é perecível. Sim. Mas perecemos
resistindo, e se é o nada que nos está reservado,
façamos com que isso seja uma injustiça»67.
Guerra Junqueiro. PD. Pp. 23-24.
«Qual é o tema da arte? o Universo. Qual é o princípio que
o domina? a Justiça. Qual é pois o ideal artístico? a Justiça»
(Guerra Junqueiro. OGJ. P. 320).
59
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 321.
60
António Manuel Caldeira Azevedo (2001) Guerra Junqueiro.
Modernidade e Palinódia. Porto: Lello Editores. P. 50.
61
«Para Guerra Junqueiro, o sofrimento, ou a luta (em pós dum
ideal imanente de fraternização cósmica, que se vai consciencializando), é, pois, o que espiritualiza a vida e o universo, e é nessa espiritualização que é conquistada a Imortalidade» (Amorim
de Carvalho. Op. Cit. P. 44).
62
Guerra Junqueiro. OGJ. P. 938.
63
«Eu chamo grandes homens aos grandes heróis, aos grandes
artistas, aos grandes filósofos» (Guerra Junqueiro. PD. P 88).
64
Guerra Junqueiro. PD. P. 87-88.
65
Guerra Junqueiro. PD. P. 65.
66
Sobre Pátria, Fernando Pessoa afirmou ser «não só a maior obra
dos últimos trinta anos, mas a obra capital do que há até agora na
nossa literatura (…) Posso mesmo acrescentar que, a meu ver, a Pátria forma com o Fausto de Goethe e o Prometeu Liberto de Shelley, a trilogia de grandeza da poesia supralírica moderna» (Obras
em Prosa (1976). Rio de Janeiro: Nova Aguilar. Pp. 343-344).
67
Miguel de Unamuno. Op. Cit. P. 193.
57
58
51
Rasurando cristalizações
dispersas de leituras de
pretensão academista,
Leonardo Coimbra é
o produtor da mais
profunda leitura da
poética e da obra
junqueirianas que até
à data se compôs,
reforçando nas mesmas
a centralidade do
«problema do destino
humano» que conforma
uma experiência
estetista da finitude
hipostasiada em
condições limitantes
(políticas, ideológicas,
religiosas).
52
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
LEONARDO COIMBRA E ORTEGA Y GASSET:
ENTRE A RAZÃO EXPERIMENTAL E A RAZÃO VITAL
Susana Rocha Relvas
“Ser religioso é viver no Todo, é dar-se em acções de ilimitada generosidade. É ser o criador
eterno de eterna beleza moral. Neste sentido
ser religioso é viver no Infinito.”
Leonardo Coimbra1
“Hay en el afán de comprender concentrada
toda una actitud religiosa.”
Ortega y Gasset2
L
eonardo Coimbra estabeleceu com a vizinha
Espanha e a América-Latina frutuoso diálogo por nós já tratado no estudo O Pensamento de
Leonardo Coimbra: Afinidades e Convergências no
Espaço Ibérico e Ibero-Americano (2009). Se com
a Galiza e a Catalunha verificam-se afinidades e
convergências espirituais e identitárias de alcance cultural, filosófico, pedagógico e doutrinário,
com Madrid, estabelece-se proximidade, dadas
as relações políticas em prol de um «afectuoso
entendimento entre Espanha e Portugal»3, com
repercussões nos planos científico e cultural.
Para a dinamização das relações luso-espanholas
da década de vinte do século XX, sobressai, da
intervenção portuguesa, Leonardo Coimbra.
Como embaixador intelectual, o então Director
da Faculdade de Letras do Porto e orientador da
Renascença Portuguesa, o mais sólido e multifacetado movimento cultural português do seu
tempo, tem por missão apresentar à «inteligência» espanhola a sua erudição e divulgar os modernos valores literários e científicos do seu país.
No âmbito desta acção cultural surge o encontro/ diálogo de Ortega e Leonardo em Madrid
que resulta de um outro encontro, o dos seus
sistemas filosóficos convergentes numa visão
metafísica do mundo, regulada por uma teoria
do amor, considerando o valor da Ciência, da
Cultura e da Ética, ajustada a uma pedagogia
ao serviço da acção pátria. Fenómeno que García Morente justifica, tendo em conta que: «Las
distintas filosofías de una misma época, por muy
dispares que al parecer sean, tienen, sin embargo,
un fondo y raíz común. Pertenecen a un mismo
tiempo; son meditaciones de un mismo tema; se
basan en un mismo sentido cósmico»4.
Pertencendo à mesma geração, nascidos no ano
de 1883, quando se conhecem em 1922, Ortega
e Leonardo são os mais altos representantes do
pensamento dos seus respectivos países, filósofos
criadores vocacionados para a missão de reformadores da cultura nacional pela acção moral, estética, política, pedagógica e filosófica em refutada
oposição à mentalidade positivista, liberal e tecnicista de oitocentos. Ortega, o filósofo de Madrid
e Leonardo, o filósofo do Porto. Circunstâncias
geográficas e culturais determinantes e condicionantes da sensibilidade vital dos dois pensadores
ibéricos. Pensadores representativos do Zeitgeist5
a que pertencem: Leonardo, o filósofo do Criacionismo e da Razão Experimental e Ortega, o
filósofo da Circunstância e da Razão Vital.
Manuel García Morente – «”El tema de nuestro tiempo” (Filosofía de la perspectiva)». Revista de Occidente, Madrid, tomo
II, vol V. octubre, noviembre, diciembre 1923, p.209.
5
Conceito que remonta ao romantismo alemão atribuído primeiro a Herder e adoptado por Hegel (1770-1831) na sua Filosofia da História e que traduz o espírito intelectual e cultural
de uma determinada época. In Dictionary of the History of Ideas.
Edited by Philip P. Wiener. Vol. 4. Virginia: University of Virginia Library, 2003, pp.536-537.
4
Leonardo Coimbra – O Criacionismo. Obras Completas I
(1903-1912), Tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 2004, p.366.
2
Ortega y Gasset – Meditaciones del Quijote. Madrid: Editorial
Biblioteca Nueva, 2004, p.164.
3
Hipólito de la Torre Gómez. Do “Perigo Espanhol” à amizade
Peninsular. Portugal-Espanha, 1919-1930. Lisboa: Editorial Estampa, 1985, p.124.
1
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Na História da cultura peninsular dos séculos XIX e XX, marcada por paralelismos e/
ou assincronias políticas, históricas e culturais,
dificilmente encontramos percursos intelectuais
tão semelhantes como os de Ortega e Leonardo. Percursos que se devem a uma conjuntura
político-cultural favorável ao aparecimento, em
Portugal e Espanha, de uma elite pensante que
pela primeira vez legitima uma cultura filosófica
nacional devidamente sistematizada e inserida
no quadro do pensamento europeu e universal.
Do lado português, Teixeira de Pascoaes, António Sérgio, Raul Proença, Fidelino de Figueiredo e Fernando Pessoa6 e do lado espanhol Gregório Marañón, Salvador Madariaga, Américo
Castro, Eugénio D’Ors, Sánchez Albornoz e
Manuel García Morente representam essa geração dedicada ao ensaísmo filosófico centrado
nos problemas nacionais.
São apontadas três fases delimitadoras do percurso intelectual de cada um dos pensadores. A
primeira fase7, de 1907 a 1914 para Ortega e de
História do Pensamento Filosófico Português. Vol. V, O Século
XX, Tomo 1, Direcção de Pedro Calafate. Lisboa: Editorial Caminho, S.A., 2000, pp.25-166. Este compêndio dedica a cada
um dos mencionados autores da 1ª República um espaço privilegiado no pensamento português.
7
Guillermo Diaz-Plaja delimita a primeira fase do percurso
orteguiano com início em 1902 In Historia General de las Literaturas Hispânicas. Dir. Guillermo Díaz-Plaja. Introd.. Ramón
Menéndez Pidal. Vol. V – Pós-Romanticismo y modernismo.
Barcelona: Editorial Barna, S.A., 1958, pp.278-279. Todavia,
consideramos que só a partir de 1907 Ortega inicia a sua actividade intelectual com a colaboração na imprensa espanhola, após o regresso da sua primeira viagem à Alemana. A este
respeito, Villacañas sintetiza as influências e preocupações do
jóvem Ortega na sua primeira fase: «En efecto, en 1907 pudo
conocer Ortega esa elaborada síntesis neokantiana de epistemología, capaz de fundar la ciencia positiva; de moral, capaz
de fundar una subjetividad moderna fuerte y responsable; de
estética, capaz de atender a las necesidades personales y vitales del sentimiento; de religión racional, capaz de canalizar las
pretensiones laicistas de los hombres libres; de política, capaz
de ofrecer un socialismo ético que uniera los intereses de las
clases más conscientes de la burguesía con los anhelos del proletariado, y de pedagogía social, capaz de extender todas estas
claves emancipadoras sobre la sociedad mediante la educación
apropiada», in José Luis Villacañas no seu estudo introdutório
a Meditaciones del Quijote. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva,
2004, p.37. Margarida Isaura Amoedo aponta para o ano de
1907 os «primeiros gestos inequívocos de afirmação original».
In José Ortega y Gasset: A Aventura Filosófica da Educação. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, p.54. Ferrater
Mora, por seu turno, estabeleceu para Ortega uma cronologia bifásica constituída por uma primeira fase perspectivista,
6
53
1905 a 1912 para Leonardo, marca o inequívoco compromisso político com a causa social
alicerçada, na esteira de humanistas como Juan
Luis Vives ou do Padre António Vieira, na formulação de uma filosofia genuinamente nacional que legitime a cultura dos seus respectivos
países. Ao colocar numa perspectiva filosófica o
problema nacional, Ortega e Leonardo concebem hermenêuticas sensíveis à condição e identidade nacionais no contexto das demais nações
e povos. No pensamento de Ortega pesa a cultura germânica, a «terra da verdade»8, como cultura das realidades profundas em detrimento da
cultura latina9, ao passo que no pensamento de
Leonardo é dominante a herança cultural francesa10, na sua formação científica e filosófica.
Comungando de similar formação religiosa na
infância e da leitura dos grandes pensadores de
referência na juventude, cada qual irá sintetizar
as correntes filosóficas vigentes até às primeiras
décadas do século XX, e por influência ou confronto, formular um sistema filosófico e pedagógico próprio. Filósofos paradigmáticos no quadro
do pensamento humanista contemporâneo,
porquanto centrado no valor da vida humana,
de 1910 a 1923 e uma segunda fase ráciovitalista, de 1923 a
1955. Cf. José Ferrater Mora – Diccionario de Filosofía. Tomo
II. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1965, pp. 347-350.
8
Cf. Villacañas Berlanga in Meditaciones del Quijote. Edición
de José Luis Villacañas Berlanga. Madrid: Editorial Biblioteca
Nueva, 2004, p.33.
9
«Existe, efectivamente, una diferencia esencial entre la cultura germánica y la latina: aquélla es la cultura de las realidades
profundas, e ésta la cultura de las superficies». In Meditaciones
del Quijote. Edición de José Luis Villacañas Berlanga. Madrid:
Editorial Biblioteca Nueva, 2004, p.211. Meditando sobre o
conceito de cultura latina, tão discutido no seu tempo por influência de Spengler, Ortega propõe um novo conceito – o de
cultura mediterrânica, p.213.
10
Veja-se a este respeito: «Le genie de la france et son role»
(1916). Dispersos III – Filosofia e Metafísica. Compilação, fixação do texto e notas de Pinharanda Gomes e Paulo Samuel.
Nota preliminar de Francisco da Gama Caeiro. Lisboa: Editorial Verbo, 1988, pp. 258-265. Noutro momento, Leonardo
cita autoridades da ciência francesa como Duhem, Poincaré,
Bouty, Curie, Perrier, Couturat, Boutroux, Hamelin, Bergson,
entre outros. In «A voz da incompetência» (1912). Obras Completas I (1903-1912), tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 2004 p. 386. Todavia, Leonardo reconhece a
importância da pedagogia, da cultura e do pensamento alemão
em Portugal com a influência de Goethe, Schopenhauer, Nietzsche, Wagner, Schiller, Kant, Herbart e Wundt. Cf. «A voz da
incompetência» (1912). Obras Completas I (1903-1912), tomo
II. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p. 386.
54
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
em concreto, no ser pessoal e autêntico11 e nos
diferentes modos de encarar a realidade, Leonardo, marcado essencialmente pelo teologismo,
estabelece uma dialéctica entre o ser individual
e o Ser integral e concebe a Pessoa como consciência livre12, «última realidade da dialéctica
científica», e como consciência cívica e religiosa
que «vive, pensa e trabalha»13. Já Ortega entende o Ser como «realidad primária y primordial»,
centrado no eu e na circunstância em que se
move: «Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la
salvo a ella, no me salvo yo»14. Assim, se para
Leonardo a Filosofia é a máxima Liberdade e
traduz a «reflexão do pensamento concreto real
e vivo das ciências, artes, moral […] procurando
as longínquas raízes da sua identidade, do seu
íntimo parentesco com o real que ele determina
e com o ideal que ele concebe e por via do qual
se acresce sem medida ou limite»15, fundamentada na razão poética e analógica16, para Ortega,
a Filosofia é entendida como «ciencia general
del amor», síntese postulada pela intuição como
forma de conhecimento, alicerçada na razão
narrativa e metafórica.
Partindo da Filosofia, intuitiva e metafísica
Personalismo socialista defensor da Pessoa moral, religiosa e
cósmica em Leonardo e na Pessoa moral e cósmica em Ortega.
12
O Criacionismo, Obras Completas I (1903-1912), tomo II.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.324.
13
Ibidem, p.263. Conceito próximo do de Eugenio D’Ors para
quem o homem vive, trabalha e joga. Cf. La filosofía del hombre
que trabaja y que juega: antología filosófica de Eugenio D’Ors.
Barcelona: Antonio Lopez, 1914.
14
Meditaciones del Quijote. Edición de José Luis Villacañas
Berlanga. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004, p.178.
E, noutro momento, Ortega segue na esteira de Leonardo ao
afirmar: «Socialización de la cultura, comunidad del trabajo,
resurrección de la moral: esto significa mí democracia». In «La
ciencia y la religión como problemas políticos» (1909). Discursos Políticos. Madrid: Alianza Editorial, 1990, p.38.
15
A Razão Experimental. Porto. Renascença Portuguesa, 1923, p.28.
16
Para Leonardo a analogia é entendida como «o mais profundo e
sempre implicado processo de conhecimento». In A Morte. Obras
Completas II (1913-1915). Pref. António Braz Teixeira. Col. Pensamento Português. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 2005, p.82. Sobre este tema vejam-se, ainda, Arnaldo
de Pinho – Leonardo Coimbra. Biografia e Teologia. Porto: Lello
Editores e Universidade Católica Portuguesa Centro Regional do
Porto, 1999, pp.175-181 e Paulo Borges – Pensamento Atlântico.,
pp.256-257. Leonardo Coimbra refere-se à «representação metafórica» como «cousismo poético» dada pelos «animistas» que
desprovêem a vida de «instrumentos de acção». In O Criacionismo, Obras Completas I (1903-1912), tomo II. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.356.
11
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
para a interpretação da vida, Ortega e Leonardo estabelecem um sistema humanista de cultura nos seus aspectos gnoseológico (teoria do
conhecimento), ontológico (centrado no Ser) e
axiológico (sistema de valores) assente em três
categorias: a vontade moral, o pensar e o sentir17. Vontade moral18, heróica e quixotesca,
pensar ou razão como conhecimento científico
e intuitivo, sentir como sentimento estético em
Ortega19 e sentimento poético em Leonardo20.
Pertencentes a uma geração que cultivou o ensaísmo filosófico de cariz literário, poético e
metafísico, as qualidades oratórias dos dois pensadores, criativos da linguagem, regulam um estilo particular que colhe em Ortega a definição
de «maneirista»21, pelo significado filosófico da
metáfora na construção da realidade, entendida
como «médio esencial de intelección»22. Por sua
vez, Leonardo valoriza a analogia o que «implica
uma sintonia do pensamento com a realidade envolvente, a referência última do seu valor de significado é a própria realidade que engloba, situa e
atrai os movimentos da consciência»23. Neste sentido a metáfora orteguiana de Adão no Paraíso e a
analogia leonardina de Prometeu procuram, cada
qual a seu modo, traduzir o problema da vida.
A matriz antropológica do pensamento de ambos centra-se na compatibilidade entre ciência e
religião, entre ideias e crenças24 e no amor como
eixo fulcral da filosofia criacionista e da filosofia
da circunstância que prevê uma «compreensão»25
das mónadas em sociedade. Um socialismo cósmico26 como teoria da realidade que compreende
distintos caminhos. A monadologia criacionista
de Leonardo acolhe o conceito de imortalidade
da alma humana27, situando-se numa onto-
António Braz Teixeira, prefácio a Leonardo Coimbra – Obras
Completas II (1913-1915), p.17. Para Leonardo, a Filosofia,
situada entre a história, obra finita e a Liberdade, actividade
ilimitada traduz o esforço do homem em compreender e viver
a vida em Amor, e o exercício de filosofar socorre-se tanto da
razão como da vontade/ «responsabilidade» e do sentimento.
In «Entrevista: Política e Filosofia» (1923). CCDE. Lisboa:
Fundação Lusíada, 1994, p.148 e A Razão Experimental. (Lógica e Metafísica). Porto: Renascença Portuguesa, 1923, p.29.
Leonardo assume aqui a influência kantiana. Também Ortega
ao referir-se à realidade histórica de cada indivíduo, destaca a
importância de perscrutar a maneira «de pensar, de querer y de
sentir». In «Los problemas nacionales y la juventud». Discursos
Políticos. Nota preliminar de Paulino Garagorri. Madrid: El Libro de Bolsillo, Alianza Editorial, 1990, p.16.
18
Na sua concepção ontológica e ética da vida, Ortega aproxima-se da metafísica do devir na linha de Heraclito e Bergson
porque «solo son auténticamente humanas aquellas formas
personales de autorrealización que caben dentro del orden
moral». Cf. Historia General de las Literaturas Hispánicas. Dir.
Guillermo Díaz-Plaja. Introd.. Ramón Menéndez Pidal. Vol.
V – Pós-Romanticismo y modernismo. Barcelona: Editorial
Barna, S.A., 1958, p. 285.
19
Cf. Antonio Gutiérrez Pozo – «La filosofía de la razón vital como
filosofía estética». Revista de Filosofía, Madrid, 25, 2001, pp.137-158.
20
Manuel Ferreira Patrício – A Pedagogia de Leonardo Coimbra.
Teoria e Prática. Porto: Porto Editora, 1992, pp.219-232 e António Quadros, apud. Arnaldo Cardoso de Pinho – Leonardo
Coimbra. Biografia e Teologia. Porto: Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto e Lello Editores, 1999, p.211
21
Historia General de las Literaturas Hispánicas. Dir. Guillermo
Díaz-Plaja. Introd. Ramón Menéndez Pidal. Vol. V – Pós-Romanticismo y modernismo. Barcelona: Editorial Barna, S.A.,
1958, pp.276-277.
22
Sobre a importância da Estética no discurso filosófico orteguiano e da metáfora que lhe concede expressividade, leiam-se
as palavras de Villacañas: «Sobre el indivíduo podia hacer pie
la historia, la poesia, el arte, la religión, todas aquellas formas
de aproximación que luego Ortega calificará de metafóricas,
porque aspiran a presentar el fondo secreto de las cosas, su yo y
su vida». Salmerón, apud. Villacañas Berlanda, prólogo a Meditaciones del Quijote. Edición de José Luis Villacañas Berlanga.
Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004, p.55.
23
Paulo Borges – «Da Teoria Leonardina do Amor». Pensamento
Atlântico. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p.287.
24
Sobre este tema, especialmente desenvolvido por Ortega, entre as crenças herdadas e as ideias conceptualizadas, no cerne da
razão histórica, veja-se Margarida Isaura Amoedo – José Ortega
y Gasset: A Aventura Filosófica da Educação. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2002, pp.345-350. Em «La ciencia y la religión como problemas políticos», Ortega refere-se à
«convicción religiosa» como «convicción primitiva, torpe, sentimental». Fundamentando a sua posição a partir das teorias
socialistas de Saint-Simon, defensor de um novo poder espiritual assente na ciência e na cultura. In Discursos Políticos. Nota
preliminar de Paulino Garagorri. Madrid: El Libro de Bolsillo,
Alianza Editorial, 1990, pp.35-36.
25
Com Meditaciones del Quijote, Ortega propõe-se apresentar
uma «doctrina del amor», «para que el amor vuelva a administrar el universo», Ibidem, p.153 e p.155. Para o pensador o
exercício «imprescindible» do amor reverte sobre diferentes objectos amados: a mulher, a pátria ou a ciência, à semelhança de
Leonardo que acrescenta, ainda, o «amor intelectual a Deus»,
como garante da imortalidade, cf. «A luta pela imortalidade»
(1913). Obras Completas II (1913-1915). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p.34.
26
«El descontento es la emoción idealista, nos arroja de nuestro
círculo de realidad – ofício, carácter, familia, nación, cultura,
intereses – y nos lleva a buscar otra cosa que no tenemos, que
no palpamos, pero que nos atrae: lo ideal. Merced al idealismo
los hombres viven fundidos en sociedad, es decir, buscándose
el uno al otro, aspiran el uno a ser el otro, haciendo que cada
prójimo sea un momento nuestro aguijón». La deshumanización del arte. 5ª ed.. Madrid: Revista de Occidente y Otros Ensayos Estéticos, 1958, p.94.
27
«A luta pela Imortalidade» (1913), Obras Completas II
17
55
-teologia28, irmanada, como em Unamuno,
por um profundo humanismo cristão29, na sua
concepção do Universo como mónadas livres
em convivência, procurando «cumprir a cósmica lei do amor»30, enquanto a monadologia de
Ortega tende a restringir-se à sua circunstância
individual e à circunstância colectiva espanhola a qual ambiciona aperfeiçoar e transformar
em um novo ethos31 regulado pelo imperativo
moral32. Assim, na linha de Heidegger, ambos
(1913-1915). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
2005, p.34. Neste ensaio, Leonardo afirma que «demonstrado
o pensamento como realidade irredutível, definido o Universo
em mónadas, a realidade em vontades, uma nova garantia de
imortalidade existe; é a eficácia do pensamento, a vontade de
eterno, a luta pela imortalidade», ibidem, p.35.
28
Manuel Ferreira Patrício – A Pedagogia de Leonardo Coimbra.
Teoria e Prática. Porto: Porto Editora, 1992, p.30 e Arnaldo de
Pinho – Leonardo Coimbra. Biografia e Teologia. Porto: Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto e Lello
Editores, 1999, p.149.
29
Leonardo e Unamuno optam por um cristianismo criador
em detrimento do dogma da religião católica. Cf. Leonardo
Coimbra – «Águas Religiosas». Obras Completas I, (19031912), tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
2004, p.379.
30
Leonardo Coimbra - «A Luta pela imortalidade» (1913).
Obras Completas II (1913-1915). Lisboa: Imprensa Nacional
- Casa da Moeda, 2005, p.37.
31
Sobre este tema em Ortega veja-se José Luis Villacañas no
prólogo a Meditaciones del Quijote. Segundo o crítico espanhol,
para Ortega «Vivir es una Tathandlung, una acción originaria,
una operación de la imaginación que da forma a lo informe,
una aventura que asume el dolor de esa información, que se
atreve a mirar lo infinito desde la perspectiva de una mónada
activa», ibidem, pp.107-118. Assim, a monadologia orteguiana, convergente com a de Leonardo, é traduzida pelo pensador
espanhol do seguinte modo: «Alojada en el órgano material
es cada alma una hilandera de ideal, productora de hilos sutilísmos que traspasan otras almas hermanas, como rayos de
sol, y luego otras y otras. Lentamente los hilos se multiplican,
el tejido de la cultura se va haciendo más prieto, más firme,
más extenso, hasta que un día la humanidad entera se halle
tramada y, como con un manto místico, cubra con ella sus lomos desnudos el Gran artífice, el promotor del bien». In «Los
problemas nacionales y la juventud». Discursos Políticos. Nota
preliminar de Paulino Garagorri. Madrid: El Libro de Bolsillo, Alianza Editorial, 1990, pp.23-24.
32
Ortega aproxima-se da metafísica do devir na linha de Heraclito e Bergson porque «solo son auténticamente humanas
aquellas formas personales de autorrealización que caben dentro del orden moral». In Historia General de las Literaturas Hispánicas. Dir. Guillermo Diaz-Plaja.Introd. Ramón Menéndez
Pidal. Vol. V – Pós-Romanticismo y modernismo. Barcelona:
Editorial Barna, S.A., 1958, pp.284-285. «Para mi socialismo y
humanismo son dos voces sinónimas, son dos gritos varios para
una misma y suprema idea, y cuando se pronuncian con vigor
y convicción, el Dios se hace carne habita entre nosotros». In
56
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
possuem uma visão dramática e dinâmica da
vida, entendida como luta, vontade e esforço. Se
para Ortega a Vida, entendida como «realidad
radical», é esforço e intencionalidade, um fazer-se a si mesma continuamente, sintetizadora de
todas as realidades a que estão subordinadas a
filosofia, a ciência, a cultura, a razão, a arte e a
ética33, para Leonardo, a Vida é «convivência»34
onde o conhecimento científico se relaciona dialecticamente com a Filosofia, a Arte e a Religião.
Na concepção de uma teoria da cultura humana
como teoria da vida, os dois pensadores estão
de acordo quanto a uma educação fundamental
na regeneração nacional alicerçada na actividade científica, artística e filosófica35. O problema
monadológico leva-nos ao problema filosófico e
metafísico de Deus que encontra nos dois autores neokantianos distintas perspectivas as quais
não nos compete aqui desenvolver. Diremos,
todavia, que apesar de em ambos ser unânime
uma «existência superlativa de Deus»36 e de se
reflectir nos respectivos discursos generosas referências cristãs, dada a incapacidade da ciência
em resolver todas as questões da vida37, para
Ortega – «La ciencia y la religión como problemas políticos».
Discursos Políticos. Nota preliminar de Paulino Garagorri. Madrid: El Libro de Bolsillo, Alianza Editorial, 1990, pp.30-31.
33
Margarida Isaura Amoedo – José Ortega y Gasset: A Aventura Filosófica da Educação. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2002, p.246.
34
«A Arte e a sua Significação». Dispersos I – Poesia Portuguesa.
Compilação, fixação do texto e notas de Pinharanda Gomes.
Col. «Presenças», nº35. Lisboa: Editorial Verbo, 1984, p.64.
35
Cf. Leonardo Coimbra – «A reforma do ensino secundário»
(1911). Obras Completas I (1903-1912), tomo I. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.242 e Historia General de las Literaturas Hispánicas. Dir. Guillermo Díaz-Plaja.
Introd. Ramón Menéndez Pidal. Vol. V – Pós-Romanticismo
y Modernismo. Barcelona: Editorial Barna, S.A., 1958, p.281.
36
António Lopes Ribeiro – «Ortega y Gasset, Espectador Empenhado». O Primeiro de Janeiro, Porto, 16 de Novembro de 1983.
37
Cf. Domingo Nadal Álvarez – Ortega y la religión: nueva lectura. Universidad de Valladolid. Facultad de Filosofía y Letras.
Departamento de Filosofía, 1987. Para o autor «Ortega introduce en España la filosofía de la religión europea, particularmente la vigente en Marburgo» e Maria Pilar Ramiro de Pano
– Dios y el cristianismo en Ortega y Gasset. Universidad Complutense de Madrid. Facultad de Filosofia, 1997. A autora estuda o
problema de Deus em Ortega limitado pelos conceitos basilares
do seu pensamento: vida, cultura, circunstancia, perspectiva,
mundo, ideia, crença e liberdade. «Dios es la cultura, Dios es la
proyección de lo humano mejor, Dios es perspectiva total o absoluta, ponto de vista omniabarcador, Dios es el plano último
de un mundo en perspectiva; picacho inexpugnable del paisaje
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Leonardo o problema de Deus é central na sua
filosofia, como máxima consciência, garante dos
valores morais e da imortalidade, ao passo que
para Ortega, apesar de assumidamente católico
e convicto da existência divina que sustenta o
ser, o problema de Deus é «marginal», como nos
afirma Guillermo Díaz Plaja38.
A segunda fase, de 1914 a 1923 para Ortega
e de 1912 a 1923 para Leonardo, representa o
questionamento da razão pura de Kant39 e da sua
superação para procurarem, no processo de conhecimento, uma razão em consonância com a
linha de pensamento intuitivo de cada um. Criacionismo e Rácio-vitalismo, sistemas dialécticos
que resultam numa pedagogia da racionalidade
vital, histórica e perspectivista e num ideo-realismo40 criacionista da razão experimental, na
humano interior; fundamento del Universo permanentemente
oculto, nunca dato, pensar a Dios es forzosidad psicológica o
imposición histórica», p.453. É o Deus espanhol imposto pela
herança histórica que não brota, como em Leonardo, da sua
filosofia. Mais adiante a autora acrescenta: «No es que Dios
no pueda quedar justificado desde el pensamiento orteguiano;
opiniones autorizadas estiman la apertura del mismo a Dios.
Pero, por tratarse de un racio-vita-historicismo; Dios no puede
aparecer en él sino como creación histórica; a través de estudios
de los diferentes mundos que el hombre forja, hombre que,
según Ortega, nace y muere con y en estos mundos históricos»,
p.453. Para Pilar de Pano, Ortega recusa a Metafísica na passagem da ciência físico-natural à teologia, facto que o impede de
tratar a questão de Deus do ponto de vista filosófico como faz
Leonardo. No que respeita ao problema de Jesus e ao cristianismo na obra dos dois autores, uma vez mais se distanciam. Se
para Leonardo, na esteira de Haeckel (O Criacionismo, p.276),
Jesus é verdade, beleza e bondade (Jesus, 1923), para Ortega
o cristianismo não é uma crença mas uma interpretação, uma
ideia, uma solução e um refúgio do mundo, p. 300.
38
Historia General de las Literaturas Hispánicas. Dir. Guillermo
Díaz-Plaja. Introd.. Ramón Menéndez Pidal. Vol. V – Pós-Romanticismo y modernismo. Barcelona: Editorial Barna, S.A.,
1958, p.286.
39
Na sua síntese filosófica criacionista de 1912, Leonardo interpela o kantismo considerado pelo pensador como o «maior
avanço do pensamento humano, iconoclasta e livre» apesar dos
«vícios cousistas» que possui. In O Criacionismo, Obras Completas I (1903-1912), tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 2004, pp.294-297.
40
Sobre este tema em Leonardo veja-se Manuel Ferreira Patrício – A Pedagogia de Leonardo Coimbra. Teoria e Prática. Porto:
Porto Editora, 1992, p.217. Também Arnaldo de Pinho comenta o ideo-realismo leonardino do seguinte modo: «A analogia leonardina, mau grado os níveis de conhecimento que
nesta época já admite, permanece, na linha do idealismo ou
do ideo-realismo, que seria o sistema que lhe conviria formular
e poderia chamar-se estética, pois para colher a Revelação e a
graça é necessário que entre esta e o sentimento exista alguma
correspondência». In Leonardo Coimbra. Biografia e Teologia.
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
formação do homem novo41. O método rácio-vitalista contempla uma interpretação histórica
da realidade em que o eu está dependente da circunstância e situado no decorrer da razão temporal42. Neste sentido, se justifica a atenção orteguiana dada ao método biográfico, como ramo
da sua doutrina vitalista, procurando perscrutar
a razão vital do ser humano em harmonia com
as razões histórica e narrativa ressalvando a vocação, a exemplaridade e a fidelidade a si próprio.
Do mesmo modo, Teixeira de Pascoaes cultiva,
a partir de 1934, o género biográfico romanceado, elegendo figuras proeminentes da história
da humanidade43. O sistema criacionista centra-se na experiência como sendo a «interacção do
espírito e da matéria no acto de conhecer»44.
Assumindo o conceito de Verdade de acordo
com a noção de perspectiva e de circunstância,
o pensador espanhol apela à fidelidade de cada
ser com a Verdade, em demanda da razão absoluta ou verdade total. Do mesmo modo, para
Leonardo, a Verdade é o «máximo racional do
sensível estranho, é o esforço da mónada em servir a sociedade universal»45.
Neste momento de capital importância no percurso vital e intelectual dos dois pensadores,
empenhados na pedagogia social difundida na
imprensa e na tribuna, consolidam-se projectos
marcantes como a fundação da revista España
Porto: Lello Editores e Universidade Católica Portuguesa Centro Regional do Porto, 1999, p.178.
41
Cf. Margarida Isaura Amoedo – José Ortega y Gasset: A Aventura Filosófica da Educação. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2002, pp.88-89.
42
Em defesa da conciliação entre «conceito» e «intuição», entre
razão e vida, Ortega afirma a sua teoria estética da sensibilidade
a par da teoria da sensibilidade, aqui evidente: «¡Como si la
razón no fuera una función vital y espontánea del mismo linaje
que el ver o el palpar!». Cf. Meditaciones del Quijote. Edición
de José Luis Villacañas Berlanga. Madrid: Editorial Biblioteca
Nueva, 2004, p.230.
43
Tema que o filósofo espanhol amplamente expõe na análise dos arquétipos Mirabeau o el político (1927), Kant (1930),
Goethe desde dentro (1932), Velázquez (1954), Goya (1958) e
em Vidas españolas del siglo XIX. Teixeira de Pascoaes, por seu
turno, publica São Paulo (1934), São Jerónimo (1936), Napoleão (1940), O Penitente: Camilo Castelo Branco (1942) e Santo
Agostinho (1945).
44
A Razão Experimental. (Lógica e Metafísica). Porto: Renascença Portuguesa, 1923, p.209.
45
Leonardo Coimbra – «O mal e o erro». Obras Completas I
(1903-1912), tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 2004, p.383.
57
(1915) e da Revista de Occidente (1923) para
Ortega e da direcção da revista A Águia e da Revista da Faculdade de Letras para Leonardo nas
quais se difundem as novas correntes nacionais e
europeias de todos os quadrantes do pensamento e da criação. Tal como em A Vida Portuguesa
(1912)46, em El Espectador (1916) definem-se os
sintomas de uma nova época em mutação profunda na sociedade, na ciência e na filosofia. Os
dois pensadores peninsulares constroem uma
teoria da cultura humana que dignifique o povo
pela instrução. Ortega propõe o princípio laico
superior da cultura47, pelo que, no seu entender,
todo o trabalho de cultura – seja arte, ciência ou
política – é «una interpretación – esclarecimiento, explicación o exegesis de la vida»48. Leonardo acredita que pela cultura o homem se poderá
tornar livre para, assim, poder «ser o criador dos
valores morais por que se regula»49. A experiência política de ambos revelar-se-á efémera,
conflituosa e malograda50. Ortega cria em 1914
a Liga de Educación Política, com Américo
Quinzenário de inquérito à vida nacional, atento aos problemas religiosos, pedagógicos, económicos e sociais, é lançado
a 31 de Outubro de 1912 e edita no seu primeiro número os
estatutos da recém criada Renascença Portuguesa e apresenta
os seus propósitos, apostando nas qualidades da nova geração.
47
Meditaciones del Quijote. Edición de José Luis Villacañas Berlanga. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2004, p.239. Entendendo a cultura como tarefa, Ortega reclama, como Leonardo,
o direito à cultura integral humana, isto é, ao «cultivo científico
del entendimiento en cada hombre, de su moralidad, de sus sentimientos» («La ciência y la religión…», ibidem, p.36). Cultura,
cuja dimensão Ortega prevê que venha a «sustituir la idea mitológica de Dios en su función de socializador». Ibidem, p.37.
48
Ibidem, p.237. Veja-se, a respeito, a interpretação de José Ferrater Mora sobre o pensamento de Ortega: «la vida es problema,
quehacer, preocupación consigo misma, programa vital y, en
último término, “naufragio” – un naufragio del que el hombre
aspira a salvarse agarrándose a una tabla de salvación: la cultura».
In «José Ortega y Gasset (1883-1955). Diccionario de Filosofía,
tomo II. Buenos Aires: Editorial Sudamérica, 1965, pp.347-350.
49
«Porque abandonou a directoria do Colégio dos Órfãos de
Braga?». Obras Completas I (1903-1912), tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.408.
50
O trabalho de Leonardo, enquanto Ministro da Instrução, é
notável tanto do ponto de vista legislativo, como do ponto de
vista reformador na consecução de uma verdadeira revitalização do ensino sendo, todavia, interrompida pela instabilidade
governativa e pela incompatibilidade com outros modelos educativos, como o de António Sérgio. Ortega funda com Marañón e Pérez de Ayala a Agrupación al Servicio de la República
(1931), assinando em conjunto o Manifiesto de los intelectuales,
que apoia, com entusiasmo, a II República. Eleito deputado
nas Cortes Constituintes de 1931, Ortega renuncia em 1932.
46
58
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Castro, Salvador Madariaga e Ramón Pérez de
Ayala, cujo programa é apresentado na conferência «Vieja y nueva política» (1914), que viria a ser
determinante para a consolidação das ideias orteguianas sobre Espanha51. Projecto pedagógico
criado em moldes semelhantes ao da Renascença
Portuguesa, assumindo os problemas nacionais
como missão colectiva, investigando e dando resposta às grandes inquietações da vida nacional.
Numa terceira fase, de 1924 a 1955 para Ortega
e de 1924 a 1936 para Leonardo, o pensador espanhol dedica especial reflexão ao sentido histórico da vida52, enquanto o pensador português
aprofunda o sentido trágico, poético e religioso
da vida. Em momentos de delicada mudança
política, verificada tanto em Portugal (1910),
como em Espanha (II República de 1931), ambos prosseguem a sua obra cívica e pedagógica
fiel aos ideais republicanos53.
Entendendo o mundo como acção e o problema
nacional como um dever é, sobretudo, no âmbito da Pedagogia social como programa político e
nas reformas educativas54, centradas no ensino da
Filosofia, que os pedagogos Ortega e Leonardo
Margarida Isaura Amoedo – José Ortega y Gasset: A Aventura
Filosófica da Educação. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 2002, p.70.
52
Vejam-se sobre este tema os ensaios orteguianos: «El sentido
histórico de la teoria de Einstein» (1924). Obras Completas,
tomo III. Madrid: Revista de Occidente, 1946-1983 e «Sobre
la razón histórica» (1944). Obras Completas, tomo XII. Madrid:
Revista de Occidente, 1946-1983. Em Leonardo vejam-se os
ensaios citados no capítulo I e na Bibliografia final.
53
Ortega y Gasset – «Rectificación de la República» (1931).
Discursos Políticos. Nota preliminar de Paulino Garagorri.
Madrid: El Libro de Bolsillo, AlianzaEditorial, 1990, pp.187211. Leonardodemonstrará sempre simpatia pelos partidos
mais progressistas, com o ingresso, em 1914, no Partido
Republicano e, mais tarde, na Esquerda Democrática, onde dará
grande relevo à educação com a apresentação ao Parlamento da
tese O problema da Educação Nacional (1926). Contrariamente
a Leonardo, defensor dos valores democráticos, Ortega, que
se mostra nos primeiros anos aderente ao Partido Socialista,
assume, mais tarde, uma posição conservadora e aristocrática,
admira Salazar e simpatiza com os regimes totalitários europeus
emergentes na Europa, apesar da sua incompatibilidade com
o regime de Franco. In João Medina – Ortega y Gasset no
exílio português (1942-1955). Lisboa: Centro de História da
Universidade de Lisboa, 2004, pp. 40-43.
54
Como Leonardo, Ortega propõe um ideal educativo voltado
para o optimismo. In «La ciencia y la religión…». Discursos
Políticos. Madrid: El Libro de Bolsillo, Alianza Editorial,
1990, p.30. Em Leonardo, todo o ensaio sobre a educação é
elucidativo daquilo que afirmamos.
51
para o
Século XXI
mais se aproximam. Empenhados na revitalização da cultura nacional, a reforma da universidade assume importância basilar, passando por
questões relacionadas com a missão da universidade no progresso cultural dos dois países55 e
na valorização do «saber teorético»56 consentâneo com as «conquistas modernas da Ciência»57.
Defendendo o papel da mitogenia na educação
fundamental, a razão orteguiana e a razão leonardina prevêem uma inovadora exegese idealista inspirada no modelo quixotesco movido
pela vontade de aventura e esforço, pela verdade
e autenticidade58, resgatando a personagem cervantina da loucura trágica.
No campo da organização social, a Razão Experimental leonardina traduz-se na «consciência
social democrática»59, assente numa República
«socializante»60 como forma governativa, e no
Trabalho como «a grande categoria social que
hoje une os homens»; «é para a cooperação no
Trabalho para a organização das forças produtoras dentro da Economia e da Moral que o
nosso pensamento de democratas quer orientar a República»61, «aumentativa de valor social
para os que trabalham, fundada na moral solidarista do trabalho, que é, em esboço, nos artistas,
nos sábios, nos filósofos e no operariado subido
Margarida Isaura Amoedo – José Ortega y Gasset: A Aventura
Filosófica da Educação. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 2002, p.546.
56
«O Problema da Educação Nacional». CCDE. Lisboa:
Fundação Lusíada, 1994, p.229. Leonardo elege o ensino
teórico em detrimento do prático, porque «somente a teoria é a
força da prática», assim como Ortega se distancia da formação
técnica ou profissional para defender a formação de elites
intelectuais. In Leonardo Coimbra – «A reforma do ensino
secundário» (1911). Obras Completas I (1902-1912), tomo I.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.243.
57
«Debate sobre a Questão da Faculdade de Letras do Porto»
(1919). CCDE. Lisboa: Fundação Lusíada, 1994, pp.80-81.
58
Meditaciones del Quijote. Madrid: Editorial Biblioteca
Nueva, 2004, p.273. Sobre a problemática do Quixote em
Ortega Cf., Margarida Isaura Amoedo – José Ortega y Gasset: A
Aventura Filosófica da Educação. Lisboa: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 2002, pp.231-335.
59
«No 2º Aniversário de A Tribuna». CCDE. Lisboa: Fundação
Lusíada, 1994, p.127.
60
Ibidem.
61
«O nosso Caminho». A Águia, Porto, vol. I, 3ª série, 1922,
p.6. Veja-se, de igual modo, «O problema educativo». A Vida
Portuguesa, Porto, nº3, 30 de Novembro de 1912. In Obras
Completas I (1903-1912), tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 2004, pp.394-396.
55
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
à consciência»62. Na mesma linha, no tratado
orteguiano sobre «La pedagogia social como
programa político» (1910) o filósofo defende, de
igual modo, uma cooperação social na qual «la
comunidad del trabajo […] ha de ser comunión de los espíritus, ha de tener un sentido para
cuantos en ella colaboren»63. Ao distinguir em
«Vieja y nueva política» a Espanha oficial da Espanha vital, Ortega deposita nesta todas as suas
esperanças: «España aspirante, germinal, una España vital, tal vez no muy fuerte, pero viviente,
sincera, honrada, la cual estorbada por la outra,
no acierta a entrar de lleno en la historia»64. Mais
tarde, no empenho votado à II República espanhola, Ortega aproxima-se, com mais veemência
e segurança, do discurso leonardino ao referir-se à «consciência pública, la fórmula, el lema de
que era preciso organizar a España en pueblo de
trabajadores»65. Na análise histórica e metafísica
do problema de Espanha, da sua natureza invertebrada por particularismos nacionais e sociais,
Ortega propõe, pela via compreensiva do amor,
o aforismo «A la alegría por el dolor»66 como solução para superar o processo doloroso por que
atravessa Espanha e que para Leonardo é assumido como lema ético-religioso em A Alegria,
a Dor e a Graça, transfigurado, de igual modo,
pelo amor, garante da compreensão da vida terrena e da transição para a imortalidade.
Após esta breve abordagem sintetizadora das linhas gerais que constituem o pensamento dos
dois autores peninsulares, na tentativa de perscrutar mais afinidades do que divergências no
que respeita às suas concepções sobre a vida, a
cultura, a filosofia, o ser, a pedagogia, a estética
e a política, passemos à análise do momento em
que os dois pensadores se encontram, numa fase
que marca a maturidade e a afirmação nacional
e internacional de ambos.
«No 2º Aniversário de A Tribuna». CCDE. Lisboa: Fundação
Lusíada, 1994, pp.127-128.
63
José Ortega y Gasset – Discursos Políticos. Nota preliminar
de Paulino Garagorri. Madrid: El Libro de Bolsillo, Alianza
Editorial, 1990, p.57.
64
Ibidem, p.70.
65
Ortega y Gasset – «Federalismo y autonomismo». Ibidem,
pp.168-169.
66
Ortega y Gasset – «La pedagogia social como programa
político». Ibidem, p.62.
62
59
Recebido na Residência para proferir uma conferência sobre a «Contribuição das modernas
teorias científicas para uma nova concepção do
Universo», Leonardo leva à exigente comunidade
científica que o escuta (Ortega, Eugénio D’Ors,
Carracido)67, uma exposição sintetizadora das
modernas teorias científicas para se situar no sistema filosófico inovador: o criacionismo e a razão experimental. Assim sendo, ocorre-nos uma
pergunta inevitável: a que temas leonardinos teria sido Ortega sensível?68 Nesta conferência que
marca a estreia do pensador no seio da comunidade académica madrilena, Leonardo começa
por traçar uma análise crítica e revisionista da
razão pura de Kant, tema tão familiar a Ortega,
e interpela outros pensadores contemporâneos
como Descartes, Poincaré, Hume, Malebranche,
Berkeley, Newton, Einstein e Bergson (para citar
os maiores), para se situar na sua concepção espiritualista, de máxima liberdade, a Razão Experimental. Leonardo apresenta um elaborado e subtil conceptualismo filosófico, definido e ordenado relativo ao problema do conhecimento que se
aproxima, em larga medida, do pensamento orteguiano quanto à importância dada à consciência
moral em harmonia amorosa com a sociedade
cósmica69. Seguidamente, com profundo conhecimento e rigor científico, Leonardo centra-se na
teoria da relatividade de Einstein, apresentando-a
a um público, por ventura, ainda, desconhecedor
Andrénio (Gómez Baquero) confirma este dado no seu
ensaio sobre Leonardo Coimbra publicado em La Vanguardia,
Barcelona, 1922 reproduzido em português em A Imprensa da
Manhã, Lisboa, 14 de Abril de 1922, p.1.
68
«Leonardo Coimbra. Os intelectuais do país vizinho prestam
ao grande Pensador uma carinhosa Homenagem». A Tribuna,
Porto, nº553, 16 de Fevereiro de 1922, p.1. Sabemos que
Ortega esteve presente na homenagem no Hotel Ritz no dia em
que Leonardo proferiu a primeira conferência na Residencia
de Estudiantes e que teria sido nesta instituição que Morente,
Leonardo e Ortega posam para uma foto conjunta.
69
São estas as palavras de Leonardo: «supomos que todo o conhecimento, sendo, como toda a realidade, a unificação activa
do diverso, um acto de solidariedade, obedece à lei da máxima
racionalização, seja, do máximo de liberdade solidária […]». In
«Contribuição das modernas teorias científicas para uma nova
concepção espiritualista do universo». Dispersos II – Filosofia e
Ciência. Compilação, fixação do texto e notas de Pinharanda
Gomes e Paulo Samuel. Nota preliminar de António Braz Teixeira. Col. «Presenças», nº39. Lisboa: Editorial Verbo, 1987, p.197.
Texto originalmente publicado na Revista da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, Porto, ano I, nº5-6, 1923, pp.351-365.
67
60
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
e apreensivo face às «verdades novas»70 que caracterizam aquela teoria: «Sabeis que estou pensando na teoria da relatividade de Einstein»71 e
assim, Leonardo dá o mote a uma longa exposição sobre as teorias do recém-nomeado prémio
Nobel da Física, debatido com entusiasmo entre
a comunidade científica espanhola e que acaba,
em 1923, a convite de Ortega, por se deslocar a
Espanha72. O pensador português parte da análise do conhecimento científico para chegar a uma
teoria da realidade que compreende a actividade
e a liberdade de pensamento73. Ortega, por sua
Ibidem, p.206.
71
Ibidem, p.200.
72
A Teoria da Relatividade (1905) é pela primeira vez exposta
em Espanha em 1908 no I congresso de AEPC por Esteban
Terradas e Blas Cabrera. Teoria que foi rejeitada pela comunidade científica española fiel à física tradicional de raiz newtoniana como era o caso de Echegaray. Entre 1920 e 1923 é que a
teoria einsteiniana se generaliza e é aceite em Espanha. Leonardo está, por tanto, actualizado e ciente da premência do tema,
ainda polémico no país vizinho. É notável, aliás, que Leonardo
cite em 1912 Hermann Minkovki, (físico lituano cujas teorias
chegam a Espanha depois de 1908), que, seguindo Einstein,
Lorentz e Poincaré, considera Espaço e Tempo como entidades interligadas e não separadas. Cf. O Criacionismo, p.107.
Em Espanha sucedem-se os artigos sobre o tema: Blas Cabrera
– Principio de relatividad (1923) e Ortega y Gasset – El sentido histórico de la teoría de Einstein (1924), como apêndice a
El tema de nuestro tiempo, incluído no Volume III de Obras
completas, enquanto em Portugal Leonardo expõe largamente
o tema durante a década de vinte: a «A Ideia de Tempo. Nota
sobre a ideia de tempo e a física de Einstein» (1921), «A ideia
de tempo e as relações entre a ciência e a filosofia» (1924) e «O
princípio da relatividade restrita» (1927). Segundo Pinharanda
Gomes e Paulo Samuel, Leonardo anuncia em Do Amor e da
Morte o ensaio intitulado Bergson et Einstein. Exposition et Critique, escrito em francês que nunca foi publicado. Cf. Dispersos
II – Filosofia e Ciência. Compilação, fixação do texto e notas de
Pinharanda Gomes e Paulo Samuel. Nota preliminar de António Braz Teixeira. Col. «Presenças», nº39. Lisboa: Editorial
Verbo, 1987, p.330.
73
Do discurso rigoroso da ciência pura, Leonardo transita para
o discurso poético: «O problema do conhecimento está agora
no magnífico acordo entre o agir duma vontade-inteligência
em convivência experimental no Universo e esse mesmo Universo entreabrindo a essa vontade os íntimos arcanos do Ser.
Acordo que é o próprio facto da construção científica da existência da ciência e que revela epistemologicamente um natural
e profundo acordo entre o pensamento e o ser. […] Os últimos
termos do Universo são elementos solidários, formas de vontade e vida, de consciência, numa crescente hierarquia de ritmos
penetrando as linhas de força do Universo físico de novas linhas
de consciência, num vasto e agora infinito campo de Consciência ou Invenção. […] Para a Razão experimental o Universo é
uma relação de actividades e, do elemento atómico de acção às
tendências biológicas, à alma e a Deus, vai o caminho crescente
da liberdade até à pura Invenção do Amor, que é a Relação das
70
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
vez, irá, pouco depois, aprofundar o tema e estabelece uma sintonia entre as teorias einsteinianas
e a sua filosofia perspectivista (1924)74, do mesmo modo que Leonardo, sempre precursor, nelas
se sustenta, desde 1921, para garantir a legitimidade da sua Razão Experimental75.
Foquemos, agora, a nossa atenção na recepção
leonardina de Ortega, «o grande espírito, agudo
e criador da filosofia espanhola»76. Seguido pela
revista da Renascença Portuguesa que procede à
recensão crítica da Revista de Occidente (1923)77,
relações, éter de todos os fogos, coração de todos os estremecimentos». Ibidem, pp.209-210.
74
Ortega y Gasset, que em Março de 1923 recebe Einstein
na Residencia de Estudiantes, dará em «El tema de nuestro
tiempo» (1923) relevo às suas teorias em consonância com a
sua filosofia da perspectiva. Numa resenha crítica ao ensaio de
Ortega, Morente afirma que a teoria einsteiniana relativiza a
condição da razão humana, fundando o perspectivismo: «La
física de Einstein sostiene, no la relatividad del conocimiento,
sino la relatividad, el perspectivismo de las cosas reales. Es bien
extraordinário que nadie lo haya visto com clarividad antes de
Ortega. Lo único real es la realidad de cada perspectiva». In
«“El tema de nuestro tiempo” (Filosofia de la perspectiva)».
Revista de Occidente, tomo II, vol. V, octubre, noviembre, diciembre, 1923, p.211.
75
Enquanto Leonardo prefere uma abordagem à A Física de
Einstein perante a Ciência e a Metafísica – livro que nunca chega
a publicar –, Ortega opta pela abordagem histórica das teorias
einsteinianas com «El sentido histórico de la teoria de Einstein». Na publicação do ensaio «O princípio da relatividade
restrita» (1927), Leonardo afirma que este estudo é um excerto do livro inédito a editar pela Faculdade de Letras do Porto
que nunca chegou a existir. In Dispersos II – Filosofia e Ciência.
Compilação, fixação do texto e notas de Pinharanda Gomes e
Paulo Samuel. Nota preliminar de António Braz Teixeira.
Col. «Presenças», nº39. Lisboa: Editorial Verbo, 1987, p.331.
76
«Entrevista: a viagem do Dr. Leonardo Coimbra». CCDE.
Lisboa: Fundação Lusíada, 1994, p.107.
77
«Revista de Ocidente. [Sic] Dir. José Ortega y Gasset, Madrid». A Águia, Porto, 3ª série, nº 28-30, Outubro-Dezembro
1924, p.172. Atenta às correntes inovadoras do pensamento
e da criação artística e literária, a revista portuense lança um
olhar à sua congénere espanhola notando, com especial interesse, a figura de proa da revista, bem como a importância
dos temas filosóficos tratados e a sua qualidade gráfica. Esta
recensão dirigida a «quem anda a par da literatura espanhola
contemporânea», menciona os colaboradores Díez-Canedo,
Adolfo Bonilla y San Martin, Manuel Morente e Ramón Gomez de la Serna, todos do conhecimento de Leonardo. O autor
de O Criacionismo é, ainda, um leitor atento de estudos publicados pela Revista Occidente como o ensaio de Augusto Messer,
intitulado El Realismo Crítico (1927), vertido para castelhano,
com um capítulo dedicado à liberdade intelectual que interessa particularmente ao filósofo português (Madrid: Revista
de Occidente. Trad. del alemán por Fernando Vela, 1927).
O referido capítulo do livro de Messer, existente na BMLC,
encontra-se profusamente sublinhado. Leonardo foi, de igual
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
o pensamento de «Ortega y Gasset não é desconhecido dos leitores de A Águia pois que tendo acompanhado com verdadeiro interesse o
nosso pensamento, várias vezes nos mostrou o
seu carinho pelo nosso esforço»78. Estas palavras, atribuídas à Redacção, serão, por ventura, de Leonardo, nesta data director da revista,
o qual, no entanto, raras vezes inclinou a sua
análise crítica sobre o pensamento orteguiano.
Ressalva-se, neste particular, a breve mas significativa menção à interpretação orteguiana sobre
as modernas tendências estéticas tratadas em La
Deshumanización del arte (1925)79. Partilhando
afinidade quanto ao conceito dialéctico cultura
– vida80, Ortega e Leonardo analisam as novas
tendências artísticas em efervescente criatividade no começo do século XX. Porém, a posição
de Ortega reverte a favor de uma compreensão
da nova sensibilidade europeia de vanguarda, ao
passo que a orientação de Leonardo tende a uma
modo, um leitor atento da tese do filósofo, teólogo e jurista
seiscentista Francisco Suárez (1748-1617) Sobre el concepto del
Ente. Disputaciones metafísicas. Trad. del Latín por Xavier Zubiri. Madrid: Revista de Occidente, 1935, pp. 9-10. Livro que vai
ao encontro das motivações metafísicas do pensador português,
versando a influência do pensamento escolástico de Suárez na
escola alemã, entre os séculos XVII e XVIII. Este é o primeiro
ensaio que apresenta a metafísica como um corpo de doutrina
filosófica independente e defende que a própria filosofia passa a
elevar-se a disciplina autónoma e sistemática. Ibidem.
78
«Revista do Ocidente [Sic] Dir. José Ortega y Gasset, Madrid». A
Águia, Porto, 3ª série, nº28-30, Outubro – Dezembro, 1924, p.172.
79
Tanto na sua Biblioteca Memorial, como no Fundo Primitivo da Biblioteca Central da Faculdade de Letras do Porto, não
foram localizados quaisquer exemplares da obra de Ortega. O
conhecimento que Leonardo teria do pensamento do filósofo
espanhol viria sobretudo das resenhas e recensões elaboradas
pela imprensa literária portuguesa da época ou pela leitura da
Revista Occidente que em 1923, ano da sua fundação, chega
à redacção de A Águia. Na mesma época, o livro de Ortega
La deshumanización del arte seria objecto da análise crítica de
Vitorino Nemésio (1901-1978) «Ortega y Gasset». Seara Nova,
Lisboa, nº175, 22 de Agosto de 1929, pp.106-107 e de João
Gaspar Simões (1903-1987) que publica, a propósito, «Realidade e humanidade na arte» Presença, nº16, Coimbra, Novembro de 1928, pp.2-4. Quase duas décadas depois, Sant’Anna
Dionísio traduz para a Seara Nova o volume Missão da Universidade (1946), dado que poderá confirmar a influência de
Ortega nos discípulos de Leonardo, trabalho que não nos cabe
aqui desenvolver mas que seria interessante realizar.
80
Também Manuel Ferreira Patrício no Prefácio à Obra Completa III (1916-1918). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, p.10 alude à íntima relação pensamento e vida nos dois
pensadores, dada a «fidelidade» de ambos «à realidade concreta»
no compromisso firmado com os problemas políticos e sociais.
61
franca rejeição e combate. Segundo Ortega, a
Arte Nova carece de um entendimento, tendo
deixado de existir uma «convivência» entre o
espectador e a obra de arte: «con estos jóvenes
cabe hacer una de dos cosas: o fusilarlos o esforzarse en comprenderlos. Yo he optado resueltamente por esta segunda operación. Y pronto
he advertido que germina en ellos un nuevo
sentido del arte, perfectamente claro, coherente y racional»81. O pensador espanhol procura,
então, achar um sentido para a Arte moderna,
até mesmo um sentido sublime na «fuga genial»
à realidade82 na medida em que a nova estética
«se ha propuesto denodadamente deformarla,
romper su aspecto humano, deshumanizarla»83.
São, precisamente, estas tendências da nova arte
que Leonardo aponta num comentário inserido
em «A máquina e a alma» (1929): «A própria
tendência que Ortega y Gasset julga ver na arte
para a deshumanização, resulta em parte da fixação da retina no artista pela libertação caótica de
energias informadas, dominadas por leis»84. De
acordo com o pensador português, a falência do
indivíduo e da sensibilidade, que se traduz no
aniquilamento da representação da forma humana e da natureza, converte a desumanização
da arte numa «visão monstruosa; tudo deformado pelas velocidades inquietantes, pressivas e
destruidoras»85. Já na sua tese criacionista Leonardo anuncia, precocemente, o confronto com
as novas tendências artísticas: «Uma outra escola
artística quer que a arte seja exclusivamente a
função desinteressada da actividade estética»86.
La deshumanización del arte. 5ª ed. Madrid: Revista de Occidente y Otros Ensayos Estéticos, 1958, pp.11-12.
82
Ibidem, p.22. Em Meditaciones del Quijote Ortega seguira
Hermann Cohen, autor de Estética del sentimiento puro, para
defender uma vinculação entre arte e humanismo, ao passo que
em La Deshumanización del arte o pensador procura já compreender o carácter abstracto das novas tendências às quais a
Geração de 27 daria expressividade.
83
La deshumanización del arte. 5ª ed.. Madrid: Revista de Occidente y Otros Ensayos Estéticos, 1958, p.20.
84
O sublinhado é nosso. Cf. Leonardo Coimbra – «A Máquina
e a Alma» (1929). Este estudo só viria a ser publicado em A
Águia, Porto, nº1, XXº ano, Jan.-Fev., 1932, pp.9-14 com ligeiras alterações relativamente à edição que estava prevista para
o nºs 10-11 de Julho-Outubro de 1929, pp.281-286 e que, por
motivos imprevistos, não chegou a ser distribuído.
85
Ibidem.
86
O Criacionismo. Obras Completas I (1903-1912), tomo II.
81
62
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Ao sobrepor o estético ao real, ao valorizar a «estricta fruición estética», a arte nova é, segundo
Ortega, uma arte eminentemente artística ou
«puramente estética», que procura apenas «las
irrealidades, la fantasia, en la medida en que no
intercepten su percepción de las formas y peripécias humanas»87. O pensador espanhol dá-se
conta que o artista se alheou da realidade para
se voltar para o seu mundo interior, deixando de
representar pessoas ou objectos para representar
ideias88, de que são exemplo a poesia de Moreno
Villa e de Mallarmé, a música de Debussy, o teatro de Pirandelo, o romance de Proust, a literatura ultraísta e a arte cubista de Cézanne. Assim
se esboça, de acordo com Ortega, o novo estilo,
dotado de determinadas tendências «sumamente conexas entre sí. Tiende: 1º, a la deshumanización del arte; 2º, a evitar las formas vivas; 3ª,
a hacer que la obra de arte no sea sino obra de
arte; 4º, a considerar el arte como juego, y nada
más; 5º, a una esencial ironía; 6º, a eludir toda
falsedad; y, por tanto, a una escrupulosa realización. En fin, 7º, el arte, según los artistas jóvenes, es una cosa sin transcendencia alguna»89.
Ora, é, precisamente, o carácter transcendente
e cósmico da arte, entendida como «comunicação sensível»90 que Leonardo valoriza: «Eu vejo
as lágrimas do Poeta; névoa desse mar salgado,
e os estremecimentos de todo o seu ser metafísico, batido de remotas ondas originárias, ponto
de convergência de todos os apelos mudos em
viva maré de dramático verbo comunicativo!»91.
De entre estes, Leonardo prefere os artistas religiosos, conservadores da Idealidade92 ou da
«realidade profunda»93, aos quais o pensador
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.303.
87
La deshumanización del arte. 5ª ed.. Madrid: Revista de Occidente y Otros Ensayos Estéticos, 1958, p.8.
88
«El expresionismo, el cubismo, etc., han sido en varia medida
intentos de verificar esta resolución en la dirección radical del
arte. De pintar las cosas se ha pasado a pintar las ideas: el artista
se ha cegado para el mundo exterior y ha vuelto la pupila hacia
los paisajes internos y subjetivos». Ibidem, p.38.
89
Ibidem, pp.12-13.
90
A Luta pela Imortalidade. Obras Completas III (1916-1918).
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, p.316.
91
Ibidem, p.338.
92
«A Simpatia Universal». CCDE. Lisboa: Fundação Lusíada,
1994, p.40.
93
«A Arte e a sua significação» (1922). Dispersos I – Poesia Portuguesa. Compilação, fixação do texto e notas de Pinharanda
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
propunha, em 1911, uma monadologia94. Em
confronto com as tendências de vanguarda, em
que o objecto se sobrepõe ao sujeito, Leonardo
assegura a eternização da Arte, considerando-a
«a alegria da Unidade»95 e, opondo-se à tendência da «arte pela arte», é irredutível quanto à
presença do sentimento na Arte. Para Leonardo
existe uma comunicação dialéctica entre o artista
e o mundo: «A arte é um estranho fenómeno de
osmose entre o artista e o universo, a diferença
de tensão dá o sentido da corrente, ora do artista
para o mundo, ora do mundo para o artista. É
a comunicação contínua, a grande comunhão,
uma transfusão eucarística das vidas»96. Para o
filósofo português, a nova arte deve incidir sobre três princípios: «a irreversibilidade da vida
[…], a liberdade espiritual, ou presença do Infinito criador; e a noção do infinito exterior ou
cósmico»97. Ortega, por sua vez, mostra-nos
como esta forma de entender a arte já não se
adequa às tendências modernas e faz uma análise do significado da arte até ao século XIX:
«Poesía o música eran entonces actividades de
enorme calibre: se esperaba de ellas poco menos
que la salvación de la especie humana sobre la
ruina de las religiones y el relativismo inevitable
de la ciencia. El arte era transcendente en un doble sentido. Lo era por su tema, que solía consistir
en los más graves problemas de la humanidad, y
lo era por sí mismo, como potencia humana que
prestaba justificación y dignidad de la especie. Era
de ver el solemne gesto que ante la masa adoptaba
el gran poeta y el músico genial, gesto de profeta o
fundador de religión, majestuosa apostura de estadista responsable de los destinos universales.»98
Gomes. Col. «Presenças», nº35. Lisboa: Editorial Verbo, 1984, p.58.
94
«Aos poetas portugueses religiosos». Obras Completas I
(1903-1912), tomo I. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 2004, pp.261-265.
95
A Alegria, a Dor e a Graça. Porto: Livraria Tavares Martins,
1956, pp. 80-81. Relativo ao eterno na arte Leonardo dirá
que «é pela arte que a sensibilidade faz as suas reclamações de
eterno, a sua luta pela imortalidade». A Luta pela Imortalidade.
Obras Completas III (1916-1918). Lisboa: Imprensa Nacional
- - Casa da Moeda, 2006, p.316.
96
Leonardo Coimbra – A Luta pela Imortalidade. Obras Completas III (1916-1918). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 2006, p.262.
97
O Criacionismo. Obras Completas I (1903-1912), tomo II.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.300.
98
La deshumanización del arte. 5ª ed.. Madrid: Revista de
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Em Meditaciones del Quijote Ortega pensa a poesia, lírica e épica, nela inquirindo os limites da
idealidade e da materialidade99, sem todavia, enveredar pela interpretação leonardina intuitiva,
transcendente e ontológica do modo lírico. Se
Ortega vê na nova poesia, eminentemente estética, que serve os ismos de vanguarda, somente a
«álgebra superior de las metáforas»100, elegendo
o romance como o género que melhor traduz a
verdade do homem moderno101; em contrapartida, Leonardo, sistematizador da moderna poesia portuguesa102, entende, a propósito da poética de Pascoaes, que só a Arte poética traduz uma
filosofia e representa a «imagem fiel da vida»103.
Ao reiterar a validade e a onticidade do género
lírico, Leonardo coloca a tónica no «representado», a que Ortega denomina de «convívio» ou
«percepción espiritual» da arte, em detrimento do «apresentado», que o pensador espanhol
classifica de «contemplado»104:
Occidente y Otros Ensayos Estéticos, 1958, p.49.
99
Meditaciones del Quijote. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva,
2004, pp.279-289 e os artigos leonardinos dedicados à Poesia,
coligidos em Dispersos I – Poesia Portuguesa. Compilação, fixação do texto e notas de Pinharanda Gomes. Col. «Presenças»,
nº35. Lisboa: Editorial Verbo, 1984, pp.17-68.
100
La deshumanización del arte. 5ª ed.. Madrid: Revista de Occidente y Otros Ensayos Estéticos, 1958, p.32.
101
Segundo Ortega, Quixote situa-se no limbo dessa mudança
de paradigma entre a poesia do passado (o género épico) e a realidade actual (romance realista) que reflecte o problema do indivíduo espartilhado no meio social (positivista e evolucionista).
Veja-se em Meditaciones del Quijote as considerações orteguianas
sobre os géneros literários, pp.250-301. Desde Adán en el paraíso (1910) o romance começa a ser objecto de análise, voltando
Ortega ao tema em Meditaciones del Quijote (1914), no capítulo
subintitulado Breve tratado sobre la novela, em La deshumanización del arte e em Ideas sobre la novela, ambos de 1925.
102
Leonardo privilegia a intuição poética como realidade dialéctica da Arte e contribui, segundo Pinharanda Gomes, na
linha de Fernando Pessoa ou de José Régio, para uma axiologia teológica e filosófica com o seu estudo Sobre a moderna
poesia portuguesa (1922), ao lado de Fernando Pessoa, autor
de A Nova Poesia Portuguesa (1912) e de José Régio, autor de
História da Moderna Poesia Portuguesa (1925). Veja-se, a este
respeito, a nota preliminar de Pinharanda Gomes a Dispersos
I – Poesia Portuguesa. Compilação, fixação do texto e notas de
Pinharanda Gomes. Col. «Presenças», nº35. Lisboa: Editorial Verbo, 1984, pp.7-10.
103
«O poeta Teixeira de Pascoaes». Obras Completas I (1903-1912),
tomo I. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p.135.
104
La deshumanización del arte. 5ª ed.. Madrid: Revista de Occidente y Otros Ensayos Estéticos, 1958, pp.8-9.
63
«As artes em que o movimento atinge o maior
poder revelador são a música e a poesia.
Elas têm desde logo um grande motivo de superioridade de expressão.
As outras artes só implicitamente jogam com o
tempo; a música e a poesia, tendo o tempo implícito nos seus elementos, organizam estes elementos
tanto no espaço como no tempo. Assim o movimento é, nelas, explícito; o seu discurso é vivo,
o drama representado e não apenas apresentado.
Todas as artes lutam contra o transitório, buscam o eterno. A arte eterniza o instante. Sob o
fluxo dos fenómenos, procura a ideia de ser, que
eles traduzem.»105
Em contrapartida, Ortega propõe que o
espectador, uma minoria selecta, possa encontrar
uma nova sensibilidade estética para interpretar
as novas formas de arte:
«Tenemos, pues, que improvisar otra forma de trato por completo distinto del usual vivir las cosas;
hemos de crear a inventar actos inéditos que sean
adecuados a aquellas figuras insólitas. Esta nueva
vida, esta vida inventada previa anulación de la espontánea, es precisamente la comprensión y el goce
artísticos. No faltan en ella sentimientos y pasiones,
pero evidentemente estas pasiones y sentimientos
pertenecen a una flora psíquica muy distinta de la
que cubre los paisajes de nuestra vida primaria y
humana. Son emociones secundarias que en nuestro artista interior provocan esos ultra objetos. Son
sentimientos especificamente estéticos.»106
Parece-nos importante concluir que, acima da
pluralidade dos sistemas filosóficos criados por
Leonardo e Ortega, representativos da melhor
geração humanista depois do século de Ouro,
prevalece a fidelidade à missão a que se propõem
e que o pensador português define como sendo a
missão dos poetas: «…o de lançar hipóteses metafísicas e exaltar a alma à coragem do dever, ao
ardor da beleza e ao amor da verdadeira vida»107.
A Alegria, a Dor e a Graça. Porto: Livraria Tavares Martins,
1956, pp.81-82.
106
La deshumanización del arte. 5ª ed.. Madrid: Revista de Occidente y Otros Ensayos Estéticos, 1958, p. 21.
107
Leonardo Coimbra – «A morte da Águia» (1910). Obras
Completas I (1903-1912), tomo I. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 2004, p.188.
105
64
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Fernando Henrique de Passos
Eduardo Aroso
Renato Epifânio
D AL IL A
D A LIL A P E R E I R A D A C O S TA
DALIL A. DE C O STA A C O STA
Os pés nus de sal no mar que se dissolvem
Cabelos soltos longos de bruma vento e sonho
Dedos que tocam com força e com carinho
Fragmentos de papel à tona d’água
As folhas dos livros as lombadas
A biblioteca que se mistura com as algas
Tem os olhos sibilinos
Onde brilha o tempo
Acendido na saudade.
Seus dedos femininos
Escrevem com acento
Na noite mais antiga,
Labirinto de Ariane.
Ísis das sombras,
Sorriso da aurora!
Os anjos do mistério,
Vigiando os sete selos,
Segredam-lhe livres
Os motivos da demora.
De Costa a Costa
Ninguém tanto viu
Tanto te viu, Portugal
A vestal de búzios entre as mãos
Aguarda a distância o chamamento o horizonte
O aproximar das linhas infinitas
O poeta que um dia surgirá por entre as ondas
E trará já não mensagens mas respostas
Respostas que virão de outros passados
Fitando um só futuro
Ela mergulha (é quase a Hora)
E faz já parte dessas lendas
Que húmidas darão à costa um dia
E nos despertarão
Por Fora e por Dentro
Viste que não existia
Nem Dentro nem Fora
Nem Mar, nem Terra, nem Céu
Nem Sul, nem Norte, nem Sorte
Apenas um Destino por cumprir
65
DALILA PEREIRA DA COSTA
– no ano da sua morte
66
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
BREVE SAUDADE PARA DALILA
J. Pinharanda Gomes
O
falecimento de Dalila Lello Pereira da
Costa (4.3.1918-2.3.2012) não colheu de
surpresa os seus mais próximos amigos e familiares. Ali, na vivenda da Rua 5 de Outubro n.º
444, no Porto, (implantada em jardim isolado,
mas há tempos perturbado o sossego residencial
pela construção de um viaduto rente ao espaço)
Dalila viveu grande parte da sua vida. Teceu-a
na harmonia de um ascetismo monástico, em
solidão apenas mitigada por alguém que lhe cuidava da casa e pelas eventuais visitas de admiradores e de amigos. Iam estes apercebendo-se de
como as suas visitas eram perturbantes para o
ambiente de modéstia, ou de retiro, em que Dalila escolhera viver, por isso que os mais atentos
a resguardavam de insistentes intrusões.
Apesar da existência eremitica, e de uma saúde
fragilizada, não fechara as portas e, sendo-lhe
possível, participava em autos culturais, tanto
no Porto, como em Lisboa e no Estrangeiro (se
convidada), ou visitava localidades onde esperava contemplar sinais da “corografia sagrada” de
Portugal, ou, ainda, dedicando tempos de vilegiatura na Quinta do Salgueiro, no Douro, rio e
região a que dedicou o seu último livro impresso, o álbum intitulado As Margens Sacralizadas
do Rio Douro através de Vários Cultos (2006).
A fragilidade do corpo era compensada por uma
superior fortaleza intelectual e espiritual. A vida
não lhe consentia a felicidade de uma realização
familiar em plenitude, mas julgamos errónea a
tentação de explicar o seu evidente misticismo
como forma compensatória da frustração mundanal. Um dia de Junho de 1988, em visita a alguns
sítios de Berna, acabámos por nos separar do grupo, enquanto ela me conduzia, como se fora a sua
terra, pelos caminhos mais típicos de retorno ao
hotel. Dela ouvi então certa mágoa, oriunda de
longínqua dor, pelo que em jovem passara num
hospital em tratamento de (ineficaz) fertilidade
que a mais longa estada no Brasil não resolvera,
como era ambição do casal Pereira da Costa.
Sofreu, e guardou no segredo do coração o sofrimento, que, a par da idade e de achaques,
como que a imobilizaram nos últimos dois ou
três anos da passagem pela terra, tendo já afirmado e testemunhado a sua biografia como a de
alguém que é património, não apenas da pátria
portuense, mas da pátria portuguesa, – às quais
dedicou o melhor das suas qualidades como poetisa, pensadora e exegeta dos sinais sagrados e
dos segredos do Espírito ocultados pela negligência do tempo e da história.
A evocação da sua pessoa permite recordar também os nomes de outras três senhoras da nossa
cultura e do nosso pensamento, coetâneas, ou
quase (com mínima diferença de anos) de Dalila: uma ribatejana, Natércia Freire (n. 1920),
poeta angélica de um renovado romantismo, e
as demais portuenses, ou da galáxia portuense:
Agustina Bessa Luís (n. Amarante, 1922), e Sophia de Mello Breyner Andersen (n. 1918), da
mesma idade de Dalila, e também poetisa da
imersão religiosa, se bem que diferenciada por
uma vertente de intervenção social que, nos escritos de Dalila, é porventura menos ostensiva.
No silêncio do eleito eremitério, Dalila viveu em
permanente meditação, ou mediação, imersa no
que designaremos por sentimento pensante, traduzido num olhar que procura vislumbrar as analogias das formas materiais com os paradigmas
ideais, ou, de modo mais simples: procurar ver,
na complexa multiplicidade das coisas, a genuína
simplicidade do Ser. Produziu uma considerável
obra escrita, constituída por uma ordem poética
e por uma ordem ensaistica de teor especulativo,
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
ora imergindo no sagrado, ora trazendo o sagrado à face visível do eventualmente profano.
Desconhecida em Portugal, pelo menos até 1971,
era já conhecida e considerada nos meios franceses de cariz espiritualista, o seu primeiro escrito,
de carácter místico, um ensaio intitulado “Três
Meditações sobre o Extâse”, tendo aparecido na
revista francesa, Esprit, ainda com o título Expérience de l’Extase (1970). Só em 1971 se revelou ao
público português, com uma obra que concitou
as mais selectivas atenções, e por isso reeditada, O
Esoterismo de Fernando Pessoa. Depois deste livro
construíu uma obra com notável regularidade.
Um elenco integral, referido à data de 1996, consta do livro de actas do Colóquio que lhe foi dedicado, e participado por significativo número de
pensadores seus admiradores – Dalila Pereira da
Costa e as Raízes Matriciais da Pátria, Colóquio
esse efectuado no Ateneu Comercial do Porto (17
e 18 de Maio de 1996). O livro foi editado (1998,
192 pp.) pela Fundação Lusíada, de cuja administração Dalila em tempo participou. Após essa
data, tivemos conhecimento de mais os seguintes
títulos: Dos Mundos Contíguos (1996), Os Instantes
(1999), Portugal Renascido (2001), Contemplação
dos Painéis (2004) e As Margens Sacralizadas do
Rio Douro através de Vários Cultos (2006).
Entre as suas obras cumpre mencionar ainda a
participação no Seminário de Literatura e de
Filosofia Portuguesas, que decorreu na Universidade da Misericórdia de Friburgo (Suíssa), nos
dias 24 e 25 de Junho de 1988, e em que os
temas debatidos foram propostos por António
Quadros, Orlando Vitorino, André Coyné, Fr.
António Pinto de Oliveira, O. P., Prof. Pedro
Ramirez, Erwin Kerz, e o autor destas linhas.
Dalila apresentou, o tema “Portugal, Arca da
Tradição”. As Actas deste Seminário foram editadas treze anos mais tarde (Fundação Lusíada,
2001). O volume inclui a tese de Dalila (pp.
119-122) a Crónica do Seminário, por nós redigida, constando das páginas 19-36.
Neste Seminário, Dalila de algum modo venceu
o temor que havia algum tempo a perturbava, de
que Portugal fosse insubsistente e acabasse por
dissolver-se na “união europeia”. Racionalizara,
contudo, a dialéctica de valores e, perante um
complexo auditório, expôs a sua ideia de Portugal,
inscrevendo desde logo uma chave hermenêuti-
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ca, a de Portugal, sempre desfazado da Europa
no tempo, constituir, em relação à Europa, um
“anacronismo futurante”, entidade distinta da
Europa, medium entre Ocidente e Oriente. Se,
na medievalidade oclusiva da Europa, Portugal se
adiantou ao tempo europeu mediante os Descobrimentos, também agora lhe cumpre abandonar
o mundo velho e vestir o novo hábito, fruto de
sacrifícios que o levarão do materialismo reinante
para uma pura vivência de espiritualidade.
Uma selecção temática dos escritos de Dalila patenteia o maravilhoso da condição que melhor
admira no nome de Portugal: a angélica, pela
qual professa uma devocional crença, não como
limite desta, mas como móvel de viagem ou de
progresso para o superno valor, só ele digno de
ser contemplado como real milagre. Na poesia
(Elegias da Terra-Mãe, Portugal Renascido, O Novo
Argonauta, só para exemplo) a imagem contemplada e contemplável é a auréola da portugalidade. O que o novo argonauta inventa é “o santo
país das Estrelas”. Toda a reflexão da autora volve
e devolve a celeste imagem ou modelo arquétipo
do real presente de modo histórico no nome de
Portugal, instrumento de união, de comunhão e
de religião. De certo modo, até os oracionais poemas da Hora de Prima se volvem para o conhecimento da terra, segundo a medicina sagrada: “Eu
também compreendo que pela medicina sagrada
e na constância do céu, chegaremos: de branco
vestidos, de anjos assistidos, as culpas largadas às
portas do céu franqueadas”.
Imersão anagógica, embebebência simbológica,
percussão da teoria para além do convite à filosofia, perpassam, como artes mistagógicas, nos escritos da mistica portuense. Conforme a um critério que era do seu agrado, a tábua bibliográfica
costuma repartir os títulos por três géneros: Poesia (Elegias da Terra-Mãe, Hora de Prima e O Novo
Argonauta), Poesia e Ensaio (leiamos: Poesia com
Ensaio), em que se costumam incluir Encontro
na Noite, Os Jardins da Alvorada e D. Sebastião,
El-Rei Ungido e, por fim, o género Ensaio, com
a sua restante bibliografia, desde O Esoterismo de
Fernando Pessoa (o seu primeiro livro editado) ao
último sobre o mistério do Rio Douro.
No que ao segundo grupo inere, entendemos que
melhor seria incluído no primeiro, pois o substante é poético, mesmo quando sob a forma de
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Cultura
prosa de algumas divagações. O Encontro na Noite
e Os Jardins da Alvorada, não são, nem pura poesia, nem pura profecia, nem pura divagação lírica,
nem dianóica especulação. Transitam num mar de
vidências e de vivências, metaforizado em cálculo de ascética transfigurante. A emergente prosa
surge como patamar de um quase descanso no
momento de descida do voo poético: há unidade
textual e formal, se bem que menos aparente.
A restante obra, agrupada no género ensaio, envolve os oráculos do santuário construído por
Dalila: a viagem salvifíca (A Nova Atlântida, A
Nau e o Graal...) a exorcização do mal (Duas
Epopeias das Américas, Entre Desengano e Esperança), a mística e a mariologia (Da Serpente à
Imaculada, A Ladaínha de Setúbal, por exemplo)
e a pesquisa dos arcanos da teoria do conhecimento (Os Sonhos) e a onto-teologia que em
tal rubrica nos parece ter lugar o longo e denso
estudo que dedicou à Saudade, num livro em
que tive a graça e a honra de associar o meu obscuro e desvalido nome – Introdução à Saudade
(1976), que teve uma distinção: ter sido editado
em língua castelhana na Cidade do México.
Julgo não andar longe da exactidão se conjecturar que a fama de Dalila, em termos de leitorado, assentou de modo especial no seu devocionário da saudade e da originalidade da
abordagem ao esoterismo de Fernando Pessoa,
sem prejuízo da sua úbere iniciação na geografia
sacra (além dos títulos já mencionados, e entre
outros, A Ladaínha de Setúbal, e Corografia Sagrada). De passagem, custa omitir o facto de que
a obra intitulada Gil Vicente e a sua Obra (1989)
algo complementar da hermenêutica esotérica
peculiar do pensamento de Dalila, não achou
poiso no Editor habitual, porque alguém do
meio universitário de Coimbra, especialista em
literatura portuguesa do século XVI, entendeu
dar parecer negativo àquela Editora, mas, em
todo o caso, o livro veio a público, por iniciativa
de Francisco Guimarães da Cunha Leão, proprietário da Guimarães Editores, que preferiu
passar ao lado do coimbrão lente.
Toda a obra de Dalila se resume na contemplação, no cerne de um sentimento pensante, transcrito num olhar analógico e aberto ao outro:
“contemplari et contemplata aliis tradere”.
O último livro que Dalila editou, ainda através
da casa de seus primos Lello, retomou o apelativo
para o
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tema da corografia sacra, misto de simbologia e
de teurgia, foi intitulado como já vimos As Margens Sacralizadas do Rio Douro através de vários
Cultos. Constitui uma obra de arte, análoga de
outras do seu elenco bibliográfico, e guia o leitor
através dos sítios típicos e tópicos do Rio de Ouro,
em cujas margens a autora vislumbrou sinais, uns
visíveis e nítidos (pedras, ermidas, toponímicos),
outros porventura menos óbvios, solicitando
olhos ledores interrogando o significado dos
sinais, que se apuseram e sobrepuseram, quais
estratos, através das civilizações e culturas cujos
povos existiram na dependência, mediata ou
imediata, do rio que a história hispano-lusitana
olha como arquétipo de uma raia (o Norte que se
oculta atrás dos montes, ou separou, quando não
havia boas pontes, a mátria vimara-baracarense e
portuense, separadas dos territórios adquiridos,
do espaço portucalense a sul desse rio.
Acerca de vários outros lugares que a obra de
Dalila contempla, julgamos possível conjecturar
que, saindo pouco do seu eremitério, na escrita
revia as recebidas e memorizadas imagens, como
quem sai de casa para viajar. Quanto ao Douro, foi sítio que frequentava em agumas épocas
do ano, dado possuir uma quinta em uma das
margens. O livro, tem formato álbum, (aliás, na
sobrecapa em papel couché, impresso em quadrocromia, passou uma desagradável gralha, sacralisazas, em vez de sacralizadas).
Sendo embora o último livro editado, vale como
uma pedra a mais na parede do templo que a
autora dedicou à alma portuguesa através dos
patrimónios natural e construído, mas não é o livro-clave, predicado que inere a outro título. Registemos, de passagem, por simples curiosidade,
que uns poucos meses antes de falecer, entregara
ao Dr. Abel de Lacerda (Presidente da Fundação
Lusíada) um extenso original (dactilografado à
sua maneira, em máquina de escrever que seria já
antiga, tão antiga como a ortografia do texto, perturbada, ou por dactilográficos defeitos, ou por
típicas maneiras de ortografar certas palavras).
O original constitui uma intensa introspecção,
com forte peso de uma vida onirica, em que o
real íntimo, mítico, imaginal ou onírico, prevalece sobre o evidente, o comum e o óbvio, num
percurso sempre orientado (ou não) na pesquisa
de algunm bem perdido e de saudosas memórias.
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Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Este livro ficou inédito, e encontrar-se-á no espólio existente na sua casa, e doado à Universidade Católica (Centro Regional do Porto), juntamente com outros bens.
Este um tanto longo excurso, justifica o nosso
propósito de propor que o último livro de Dalila, ou que encerra a vida que o seu espírito comunicou ao público, seja o texto-chave que se
intitula Os Instantes nas Estações da Vida (1999),
publicado numa colecção designada “Espirituais
Portugueses”, (em que também foram editados
textos modelares de Leonardo, Junqueiro, Pascoaes, Teresa de Saldanha, Silvia Cardoso, etc).
A obra de Dalila nem sempre foi olhada como ortodoxa por alguns leitores de formação católica.
Sentiam estes a evidência de uma forte religiosidade, mas o pensamento discursivo de Dalila,
tão recorrente às alegorias, às metáforas, às parábolas, às aproximações (talvez mesmo identificações analógicas) entre o maravilhoso pagão e
o maravilhoso cristão, deixava-os na dúvida. Por
outro lado, alguma teologia ficou surpresa com
o teor do escrito de nítido cariz mistíco, inicialmente publicado em francês, (1970) sob o título “Expérience de l’Extase”. Dalila incluíu este
escrito, de inusitado teor vivencial (mais do que
ensaistico, ou especulativo), no segundo livro
que publicou em português – A Força do Mundo (1972) com o título “Três Meditações sobre
o Êxtase”. A publicação em língua portuguesa
advertiu quem fosse mais atento que o escrito
constituia um testemunho espíritual vivido, algo
de profundamente autobiográfico.
O professor e teólogo portuense Ângelo Alves
propôs a Dalila um questionário a que ela acedeu responder em liberdade e em verdade. Deste
modo, Os Instantes, em 13 capítulos, oferecem
uma autobiografia, de tipo confessional, na linha das narrativas misticas próprias dos Espirituais, em que revela os passos da sua vida como
poeta, hermeneuta, escritora e também, por vocação e sensibilidade, imersa na união noética
da poesia, da mistica e da praxis. Todo o livro
é de ler e de re-meditar, sendo de particular altitude os capítulos relativos às três experiências
extáticas ou mistico-contemplativas, e à sua teologia – conhecimento experiencial do divino,
mistica do Deus uno e trino, e a mistica para
o corrente milénio. Terminada a redacção em
30 de Julho de 1999, o testemunho encerra em
auto de abertura escatológica – “o último despojamento do Mal”, último e supremo instante,
– a conciliação da razão e do espírito, da fé e da
razão, na beatitude do reino divino.
Nos demais livros, sempre e de muitos modos,
Dalila nos propõe vias de acesso à sua alma, mas
é neste Os Instantes, que o essencial de quanto
pensou, visionou e sofreu, enfim, viveu, nos é
revelado, sem hipóteses de catáfica hermenêutica. Usando um modo marinheiro, diremos que
n’ Os Instantes, Dalila, mais do que abordou o
veleiro rival: tomou-o, e dele deveio dona.
ANEXO 1
(Nota prévia a Contemplação dos Painéis)
Uma dezena de orações rezada perante os “Painéis”
ditos das Janelas Verdes ou de Nuno Gonçalves,
outrora de S. Vicente de Fora de Lisboa, eis quanto
nos foi dado apurar como cerne ou essência deste
livro que Dalila Pereira da Costa criou, ou inventou, sob o título Contemplação dos Painéis.
Os “Painéis” foram, são, e decerto hão-de ser, um
enigma. Para deixarem de ser enigma, seria necessário
encontrar os documentos positivos, diplomáticos, se possível de autorizada Chancelaria, noticiando o seu vero autor, o vero encomendador
da obra, e a natureza e significado do conteúdo.
Distinguimos os conceitos de enigma e de mistério. Enigma concerne ao íntimo significado,
oculto mas revelável, da obra humana; mistério
atina ao significado da obra divina, que se mostra, mas permanece inexplicável, e que, embora
passível de um discurso ao racional, só o dom da
fé a ele acede em verdade. O enigma pode ser demonstrável; o mistério mostra-se, não carecendo
de demonstração. No quadro deste raciocínio,
aduzimos que um enigma que se mantém enigma
para sempre, é como se fosse mistério. Na verdade, tal juízo é aduzível, mas com a limitação do se.
É como se fosse, embora não seja.
Antes de publicar o álbum Contemplação dos Painéis, ainda
sem este título, Dalila achou por bem solicitar uma opinião, a
qual lhe foi transmitida por carta, com muito prazer, a título
particular. No entanto, Dalila fez a surpresa de inserir essa carta
com o título de “Nota Prévia”. Aqui se reproduz, com os devidos respeitos ao Editor, Sr. José Manuel Lello.
1
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Cultura
“A obra de arte não é só para ver: é também
para ler” (Álvaro Ribeiro, As Portas do Conhecimento, 1987, p. 360). Os “Painéis” têm sido
muito mais alvo de ver, do que de acto de ler,
pese embora o grandioso elenco de estudos ou
de reflexões que eles hão suscitado no decurso
dos tempos da história e dos instantes da vida.
O elenco interpretativo abrange exegeses e estudos de natureza pictográfica, tecnológica, fisionómica, simbológica, alegórica, cronológica,
hagiográfica, etc., etc., num rol comparativo do
valor daquelas figuras, cujo silêncio tão alto nos
fala, sem que, nem escutando, consigamos entender o que elas nos dizem.
Os exercícios inferenciais, corporizados em aulas histórico-tecnológicas, quais as devidas a José
Saraiva, A. Belard da Fonseca, Jaime Cortesão...
houveram sempre de concluir por dúvida provisória, deixando o enigma vivo, residente, e disponível para abordagens outras, essas de cunho
hierático-simbológico, quais as subscritas por autores da qualidade especulativa de José Luís Conceição Silva, Rafael Monteiro, Afonso Botelho,
Lima de Freitas e, sem dúvida, Almada Negreiros
que, à sua perspectiva estético-arquitectural ousou apor a leitura mítico-alegórica, pois, além de
ser um plástico, foi também um especulativo de
multiforme iniciação simbológica.
Todavia, os “Painéis” incentivam cada um de
nós, não tanto à visão mecânica, quanto à contemplação que decorre da visão interna, dos
olhos da alma espiritual. Assim se realiza a leitura dos “Painéis”, que se dirigem, no silêncio,
a cada um de nós, essa leitura resultando tanto
mais rica quanto mais in-formação nós formos
capazes de pôr no diálogo entre a alma dos
“Painéis” e a nossa alma. Já nestas breves linhas
fica estabelecido o itinerário em que se move
a dezena de meditações ou de contemplações
proposta por Dalila Pereira da Costa, em nova
ascese, orientada para o irrevelado mas cognoscível, embora oculto, ascese esta análoga de outras que nos tem ofertado em obras – painéis de
uma única obra magna – de que apenas citamos,
por analogia, O Esoterismo de Fernando Pessoa
(1971), A Nau e o Graal (1978), Da Serpente à
Imaculada (1984) e Portugal Renascido (2001).
Obra apoiada em abundante e criteriosa informação, esta é decerto o menos importante neste
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
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livro, revelando de ocasional acidência. O categórico reside no método de contemplação, pois
exercício de contemplação é o presente texto. É
óbvio que o enigma não fica desde já solvido,
ou esclarecido. Parece-nos, até, que ele devém,
se possível, mais enigmatizado, numa ascensão
que o eleva ao patamar de um quase mistério.
Cada décima da dezena parte de um suposto organizado na díade cultura/religião, e enceta um
caminhar que se destina muito mais a penetrar
(in-trare) do que a viajar ao de cima, queremos
dizer: um caminho chamado hermenêutica, cujo
propósito é o de encher o tema, e não o de o esvaziar, como frequentemente acontece com a exegese, a qual, em vez de introduzir, procura extrair.
Cabe, neste caso, agora e aqui, escrever o adjectivo esotérico, na sua qualidade de adjectivo comparativo: o mais interior do interior, por oposição
ao exotérico, que é o mais exterior do exterior.
Temos destes adjectivos imagens na arquitectura
dos Santuários: ao exotérico equivale o átrio ou
adro, que está fora, ao esotérico equivale a capela-mor, que fica no cimo do interior, ou santos dos
santos, lugar privilegiado do Sacrário, onde se
guarda o corpo de El-Rei do Mundo.
Esoterismo dos “Painéis”? Sim, contemplados
não segundo a arte das coisas, mesmo belas,
mas segundo a arte dos espíritos, por isso que
achamos adequado o nome de mistagogia para
definir o texto e o contexto desta pérola acrescentada ao rosário de flores que Dalila tem vindo a confeccionar nos instantes beatíficos da sua
vida. Não fica identificado o Santo, mas torna-se claro que o Espírito Santo, sendo absolutamente irrepreensível (diversamente do Pai e do
Filho a quem damos rostos humanos!), a pontos
de a simbólica imaginária recorrer à coroa ou
à pomba, não pode estar ali com humano rosto. Mas está. Todo o Painel respira, com efeito
pneumatológico, os dons do Divino; e nele, na
multitude de rostos, se vê a luz pelo Divino refractada nos rostos e nas prosternações.
Em resumo: – que me dizem, a mim, os “Painéis”? Dalila responde sem limitar o direito de
resposta a cada um de nós. Ela propõe nos, em
vez da decifração, a contemplação deste sagrado
ícone que, nascido em Portugal, projecta o Homem universal. (Solenidade do Rosário, 2003).
71
DALILA E O SEU TEMPO DA SAUDADE
– ENTRE A NARRATIVA DO MITO E A EXPERIÊNCIA MÍSTICA
1
Carlos H. do C. Silva
In memoriam de Dalila L. Pereira da Costa,
preclara visionária da Mátria lusa...
Preâmbulo
Houve alturas em que a nossa razão polemizou
com esta intérprete do esoterismo de Pessoa e
pensadora da Saudade e do Mito português.2
Porém, numa outra lectio colhida antes ao sabor
feminino da inteligência cordial de outras obras
de Dalila P. da Costa, acertou-se com aquela lucidez derivada e declinante como em hora crepuscular ou auroral de uma diversa e silenciosa
concordância.3 Sim, a escuta da voz, como se da
sibila ou da profetiza, cujo oráculo não é para
argumentar, ou sequer sondar em crípticas hermenêuticas, talvez apenas para ouvir na obediência de um leve enlevo poético.4
Por opção do Autor manteve-se a ortografia tradicional. Cumpre-nos, ainda inicialmente, agradecer o convite da Revista
Nova Águia para integrar esta homenagem a Dalila Lello Pereira
da Costa e aproveitamos este ensejo para homenagear também
o P. Joaquim da Silva Teixeira, O.C.D., (actual Padre Provincial dos Carmelitas Descalços), enquanto estudioso da «mística
ecuménica» de Dalila L. Pereira da Costa.
2
Cf. Carlos H. do C. SILVA, Recensão de «Dalila Pereira da
COSTA, O Esoterismo de F. Pessoa, Porto, Lello 1971», in: Clássica, nº 4, Dez. (1978), pp. 97-101; Id., Recensão de «Dalila
Pereira da COSTA, Duas Epopeias das Américas, Moby Dick e
Grande Sertão: Veredas (ou o Problema do Mal), Porto, Lello
& Ir., 1974», in: Didaskalia, vol. IX, 1 (1979), pp. 237-239;
e Id., Recensão de «Dalila Pereira da COSTA e Pinharanda
GOMES, Introdução à Saudade (Antologia), Porto, Lello & Ir.,
1976», in: Didaskalia, vol. IX, 1 (1979), pp. 239-241.
3
Vide Carlos H. do C. SILVA, “Filosofia e Mística na Escola
Portuense ou Destino mítico de uma Literatura pensante?”, in:
Actas do Congresso Internacional Pensadores Portuenses Contemporâneos, 1850-1950, Lisboa, IN-CM, 2002, vol. I, pp. 291322; ter também presente Id., “Espírito rebatido ou Inteligência
exaltada? – Filosofia e Pneumatologia nos séculos XIX e XX (no
Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro)”, in: Várs. Auts., O Pensamento Luso-Galaico-Português (1850-2000) – «Actas do I Congresso Internacional», Lisboa, IN-CM, 2009, t. I, pp. 157-197.
4
Tenha-se presente, por exemplo: Dalila Pereira da COSTA,
Hora de Prima, Lisboa, Fundação Lusíada, 1993…
1
Rara a sua vivência perpassada assim em símbolos e mitemas, mas que se deixa também entrever
em indicativos vivos de um testemunho pessoal,
de uma mística experiência que acaba por segredar. De facto, quando se indague de outros testemunhos publicados dessa vivência não apenas
de interioridade, mas de experiência mística em
que se atesta um «estado alterado de consciência», um êxtase de fogo e luz remetendo a inspirada ou transcendente fonte, não se encontra,
nem nas páginas mais intimistas e doloridas de
Leonardo Coimbra,5 nem no aflorar da intuição fulgurante da visão de José Marinho,6 nem
sequer nas emotivas páginas de outros pensadores e poetas da saudade, algo de similar ao que
em Dalila se pode reconhecer.
O testemunho é, como se sabe, martírio e traduz-se também na paixão velada de um percurso
pensante que resguarda aquilo mesmo que assim
observa. Um olhar que pode ter de descer aos
infernos, ou de subir aos Céus, porém nesse pudor e salvação de só ser de soslaio, deixando um
sinal daquilo que não pode já ser falado, mas
apenas ser assim indirectamente dito. É nesta
“escola” da saudade como um acertar o olhar
madrugante, seja de Pascoaes, seja de Sant’Anna
Dionísio,7 entre outros, que Dalila encarna a
Como as de A Alegria, a Dor e a Graça…, in: Obras de Leonardo Coimbra, ed. Sant’Anna Dionísio, Porto, Lello, 1983, vol.
I, pp. 399 e segs.
6
Vide, por exemplo: José MARINHO, Teoria do Ser e da
Verdade, Lisboa, Guimarães Ed., 1961, por exemplo, pp. 53
e segs.: «Da interrogação fundamental»… e pp. 149 e segs.:
«Compreensão Una e Omnímoda».
7
Cf. Sant’Anna DIONÍSIO, «Introdução» a Obras de Leonardo
Coimbra, ed. cit., vol. I, pp. V e segs.: «Aparição de uma Filosofia Madrugante»; vide também Teixeira de PASCOAES, – que
deixou dito: «O futuro é o passado que amanhece…» – Cf. «As
Horas», em O Bailado, (1921), Lisboa, Assírio & Alvim, 1987,
pp. 81 e segs. Vide também outras referências em nosso estudo:
5
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
voz do Portugal esquecido, porém sempre lembrado em tal esquecimento no choro de poetas
e profetas.8 Voz que vem do antes de nós e que
nos constitui como corpo e nau deste estarmos
embarcadiços desta vida e havermos aqui de
gritar sempre para algum Mostrengo o nosso
sinal determinado.9
Porém, como se sabe em mar, paradoxal determinação essa, que a mulher e poeta bem sente ser indeterminação do vago, do matricial de
uma terra lunar, de uma matriz portuguesa que
acorda para o mundo de sombras e de sonhos
que constitui este nosso oceano de dissemelhança.10 Seria este formular o seu caminho um apagar vestígios de qualquer “método” que fosse,
apenas salientando o já lá se estar, a palavra de
Dalila encarnando os deuses antigos da pré-história lusa, ou colhendo o orvalho druídico
de qual visco dourado declinado dos Céus.11
Sempre, pois, a sua palavra flutuante, líquida e
emotiva como que a velar tais abismos de percursos irrecuperáveis de métodos ou mediações
inúteis. A poetisa abrevia em imediatez, em
Hora de Prima…
Carlos H. do C. SILVA, “Da regressão intemporal ou do Bailado
poético-místico no Saudosismo de Teixeira de Pascoaes”, (Comun. ao «Colóquio sobre Teixeira de Pascoaes», org. Fac. de Teologia do Centr. Reg. do Porto da U.C.P., 6-8 Jan. 1995), in: Nova
Renascença, XVII, nº 64-66, Inv.-Verão (1997), pp. 151-183.
8
Cf. Dalila L. Pereira da COSTA, Místicos Portugueses do Século
XVI, Porto, Livr. Chardron de Lello & Irmão, 1986.
9
A linguagem (qual comunicação) assim regredida à voz primordial (comungante) das coisas… num percurso que lembra
M. HEIDEGGER, “Das Wesen der Sprache”, in: Id., Unterwegs zur Sprache, Pfullingen, G. Neske, 19714, pp. 157 e segs.,
mas também a herança camoniana e pessoana que ressoa do
nosso verbo escuro, como ainda diria Teixeira de PASCOAES,
Verbo escuro,/ A Beira (num relâmpago), Paris/ Lisboa, Aillaud &
Bertrand, s.d., pp. 30 e segs.: «O Mar e a Noite»…
10
Mais do que a tradicional regio dissimilitudinis, com raízes
neoplatónicas e medievais, toma-se aqui a «noite antiquíssima»
(na fórmula pessoana de Ricardo Reis), como eco ainda “romântico” de uma compreensão lunar, pela sombra, pelo difuso… em Dalila, cf. Da Serpente à Imaculada, Porto, Livraria
Chardron de Lello & Irmão, 1984, II – «Entre Tagus e Minius», pp. 131 e segs.: «A serra da Lua, ‘Tholoi’ e grutas iniciáticas». Vide infra ns. 53, 81 e 134.
11
Remeter ainda e sempre para os ecos de Dalila L. Pereira da
COSTA, Da Serpente à Imaculada, ed. cit., pp. 309 e segs.: «As
duas saídas do tempo na cultura portuguesa…»; e Ibid., pp.
334 e segs.: «As duas Escatologias Astrais Portuguesas: Lunar e
solar» (citando a leitura cabalista de António Telmo)…
para o
Século XXI
Da palavra mítica (lógos)
ao verbo (poiético) da saudade…
Fica essencialmente e em comum, na comunicação, com os pensadores sobretudo portuenses, também da filosofia portuguesa e mais
largamente de toda a poética da língua pátria
em seu mito máximo, a sua maré de palavra.12
E dizemos maré, podendo-se desenvolver todo
o seu simbolismo do mar, pelo ritmo da onda,
da continuidade constitutiva da saudade que lhe
timbra o ser. Não um estar saudoso, mas o ser
dessa saudade que é a vida: “como supra-essência
de cadeia no tempo”.13
Donde o ‘andamento’ ainda leonardino desta
sua durée, como “passagem, como processo em
vias de se fazer, em incessante perfectibilidade, do
tempo à eternidade”,14 porém sempre abreviando-o (e justamente por esta visão sinóptica e
relação a tal processo) em fim. A saudade, sendo assim esta tensão para um fim, e nem sequer
em termos teleológicos de uma moral de conseguimento, antes de uma escatológica esperança, mas por exaustão. “A saudade só morre na
morte (porque aí, realizando-se de todo, se anula,
por consumação)…”15
Mas, ao mesmo tempo que Dalila indica este
fim, que é apenas o termo da saudade, potencia-a por esta mesma antecipada morte – diríamos
esta mortificatio da mesma –, pois aponta nela
para uma metamorfose, um renascimento místico do próprio eu saudoso.16 Pois, de facto, que
Como defendemos em Carlos H. do C. SILVA, “Filosofia e
Mística na Escola Portuense ou Destino mítico de uma Literatura pensante?”, in: Actas do Congresso Internacional Pensadores
Portuenses Contemporâneos, 1850-1950, Lisboa, IN-CM, 2002,
vol. I, pp. 291-322.
13
Cf. a reflexão de Dalila L. Pereira da COSTA, “Saudade, unidade perdida, unidade reencontrada», in: Dalila L. Pereira da
COSTA e Pinharanda GOMES, Introdução à Saudade (Antologia Teórica e Aproximação Crítica), Porto, Lello & Irmão, 1976,
pp. 77-155, que aqui abreviaremos por Saudade, seguida de
página, no caso, p. 79.
14
Saudade, p. 79.
15
Ibid.
16
Donde não apenas a «unidade perdida», «unidade reencontrada»,
mas toda uma metamorfose espiritual… Cf. nossa reflexão: Carlos
H. do C. SILVA, “Saudade e Experiência Mística” (Comun. ao
«Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade», Inst. Luso-Brasileiro
de Filosofia, Viana do Castelo/ Santiago de Compostela, 2 Junho
1995), in: Actas do I Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade, Viana
do Castelo, Câmara Municipal, 1996, pp. 117-143.
12
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
será daqueles que não estiverem mortos quando
a morte chegar?... Não será esse o cerne também cristão da advertência para um estar vigilante e um haver assim de morrer, já que não há
ressurreição sem morte?17
Potenciação de estado em que saudade, como
se fase equivalente à da putrefactio alquímica
permite que o mim aparente se trasmude num
eu permanente: “quando as camadas terrestres do
fruto forem destruídas pela força total consumidora do Espírito, até ao cerne, à semente eterna
do ser…”18 Claro que há aqui uma convicção,
qual olhar já cúmplice de angélica verdade, a
de que exista esse cerne, ou de que, mesmo que
não exista, essencialmente tudo se passe como se.19
Uma indução mental que recusa a instantaneidade pluriforme e multímoda da via fragmentária e fragmentante de Pessoa, como do que
Dalila refere como o Oriente budista…20
Eis, então, assim a saudade como se história e
tempo integrado, narrável menos na razão científica de uma historiografia do que, justamente,
no contar estórias no dar ao tempo a narrativa
de um poetar concreto, encarnado, na mitologia
de “alguém”, como Dalila salientará a propósito
da geografia mítica e da tradição simbólica existencialmente consubstanciada num povo, numa
terra, num destino…21
Cf. Mt 24, 42: “Vigilate ergo, quia nescitis qua hora Dominus
vester venturus sit.”; 25, 13: “Vigilate itaque, quia nescitis diem,
neque horam”… (apud Vulgata).
18
Saudade, p. 79. Vide nosso estudo, supracitado: Carlos H.
do C. SILVA, “Saudade e Experiência Mística” in: Actas do I
Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 1996, pp. 117-143, sobretudo pp. 123 e segs.
19
Vide a importância heurística e a «evidência» antecipada assim, tal como colhe na própria epistemologia: Hans
VAIHINGER, The Philosophy of ‘As if ’, A System of the Theoretical, Practical and Religious Fictions of Mankind, London,
Routledge, 1924 e reed.; e cf. também Georges KOMAR,
Tout se passe comme si, Bagnolet, Éd. Ivoire-Clair, 2001, pp.
71 e segs.: «Le symbolisme»…
20
Pluralidade plural, tal se pode documentar em António
MORA, «O Regresso dos Deuses», in: F. PESSOA, Obras em
Prosa, ed. Cleonice Berardinelli, Rio de Janeiro, Nova Aguilar
Ed., 1972, p. 175: “(…) A realidade, para nós, surge-nos directamente plural. O facto de referirmos todas as nossas sensações à nossa
consciência individual é que impõe uma unificação falsa (…) à
pluralidade com que as cousas nos aparecem.”
21
Cf., por exemplo, Dalila L. Pereira da COSTA, A Nova
Atlântida, Porto, Lello, 1977…; ; Id., Da Serpente à Imaculada,
ed. cit., pp. 129 e segs.: «Entre Tagus e Minius»…
17
73
Trata-se, pois de um pensamento que se entusiasma nesta visão declinada do suposto eterno
em tempo. Sem essa correspondência assim em
visão deslumbrada, diz Dalila que o modo português e cíclico de assumir, ou não, o tempo
nessa perspectiva de abertura, entrará em decadência: constituirá como que a baixa-mar onde,
em dormição, se esquece o essencial… – como
nos nossos dias… (e também tal Dalila o viveu
nessa mesma crítica consciência).22
Porém, se esta infidelidade quase bíblica e judaica do Povo escolhido para esta bênção de
saudade e que trai ciclicamente o destino de tão
transcendente aliança ou divino desígnio – de
um Quinto Império, como Dalila refere – aponta para um certo decadentismo também por causa
da saudade (do saudosismo, como melhor se diria), por outro lado, remete para um horizonte
oriental, materno e mortal do ritmo de uma outra sua compreensão.23 Não serão esses períodos
de latência, como os pralayas de Brahman, em
contraste com o “dia claro” do desenho de todas as ilusões dos dias desse Senhor (manvantaras)? Não será essa saudade um desejo da morte,
morte da ilusão, ou mesmo que de uma ilusão
de morte, como diz Pessoa, daquele que jaz “na
falsa morte”? 24
Não, pois, uma simples e maniqueia moral que
contraponha o “bem” da “via da saudade assumida por todo um povo” com o “desinteresse existencial, como afastamento, descolamento do real…
Tivemos oportunidades, embora breves, de privar pessoalmente com a Autora e de reconhecer esta convergência crítica
quanto à urgência da hora presente e que assim atinge esta ‘dolorosa’ expiação pátria… Dormição, dormência ou ocultação,
serão ainda fórmulas por demais benévolas para esta espécie
de «regresso das tribos» e de decadência geral do Ocidente…
23
É a descoberta matricial e «oriental» da feminina potência por
via saudosa. Cf. Da Serpente à Imaculada, ed. cit., p. 30: “Veremos assim que todo um vasto mitologema, de natureza aquática,
integrará em si um complexo de realidades primordiais, que se poderão resumir na crença única: é na água e da água, que reside ou vem
toda a força de vida, de criação, regeneração e sapiência para os homens. Mas, se este mitologema, aquático, ctónico, lunar e feminino,
se mostrará como o primigénio no transcurso do ser português, outro,
de essência ígneo, celeste, solar e masculino, estará também presente
no sistema antropo-cósmico de toda a sua mitologia.”
24
Cf. F. PESSOA, «No Túmulo de Christian Rosencreutz», III:
“… Calmo na falsa morte a nós exposto, / O Livro ocluso contra o
peito posto, / Nosso Pai Rosaeacruz conhece e cala.” (in: Obra Poética, ed. M.ª Aliete Galhoz, Rio de Janeiro, Aguilar, 1962, p. 191)
22
74
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
a que chamamos decadência.”25 A própria Dalila
complementa essa via saudosa pela “via da mística e da poesia” como modos transversos que,
afinal, para aquela visão do eterno, no e pelo
tempo, têm de descer ao esquecimento, ao abissal das trevas de um não-saber, e, complementarmente, sublimarem todo o discurso numa espécie de eterno Sanctus paradoxalmente inefável.26
A verdade da visão de Dalila P. da Costa situa-se,
porém e preferentemente, no ‘poetável’ e dizível
do entre Terra e Céu, como se numa obliquidade do espaço vertical convertido em extensão,
– qual próximo e distante como referiu Eudoro
de Sousa – e extensão de uma linha de horizonte de Oriente a Ocidente.27 Diálogo de linhas
entremeadas de mar numa conjugação para se
apurar neste mapa flutuante de Portugal e da sua
língua e identidade o lugar da transmutação por
excelência. E sejam as Ihas Afortunadas, as Hespérides, a Finisterra…, ou simplesmente essa
Terra de Santa Maria que ecoa dos poemas dum
Frei Agostinho da Cruz, a Arrábida ou outra
qualquer matriz desta lusa arte de ser, como um
assim estar, é isso que toca – que tange fundo na
sensibilidade da pensadora e poeta.28
Saudade, p. 80.
“Conhecimento como aquele que se opera de forma imediata,
por via não-racional, por intuição e via experimental de união
com o Absoluto. (…) Usando mais o coração do que o intelecto no acto de conhecer.” (Dalila L. Pereira da COSTA, Místicos
Portugueses do Século XVI, Lello & Irmão, 1986, p. 34). Será
sempre a lição da Cloud of Unknowing e de outros paradigmas
apofáticos da compreensão espiritual. Cf., entre outros, Michael
A. SELLS, Mystical Languages of Unsaying, Chicago/ London,
Univ. of Chicago Pr., 1984.
27
Cf. Eudoro de SOUSA, História e Mito, I: «Lonjura e Outrora», § 7: “O horizonte é o lugar onde outrora e lonjura se abraçam,
no enlace simbólico que os deixa indistintos, ou antes, distintos mas
inseparados. (…)” (in: Id., Mitologia, História e Mito, Lisboa,
IN-CM, 2004, p. 227). Repercute-se o poema «Horizonte» da
Mensagem de F. Pessoa…: “O sonho é ver as formas invisíveis/ Da
distância imprecisa, e, com sensíveis/ Movimentos da esprança e da
vontade, / Buscar na linha fria do horizonte/ A árvore, a praia, a
flor, a ave, a fonte/ Os beijos merecidos da Verdade.” (in: Id., Obra
Poética, ed. cit., p. 78)
28
Cf. Saudade, pp. 80-81. Cf. outras referências em nossos estudos: Carlos H. do C. SILVA, “Intermédio da Pátria ou do
periclitante tempo nacional”, (elaborado para o 1º número
da Revista Nova Águia subordinada ao tema: «A Pátria ainda
existe? – Actualidade da ideia de Pátria» em Nov. de 2007),
in: Nova Águia, Revista de Cultura para o Século XXI, nº 2, 2º
sem. (2008), pp. 100-118 ; Id., “Vocação eremítica e diálogo
intercultural – do único e sua diferenciação”, in: Revista Entre,
nº 1 (2010), pp. 35-48.
25
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
“Só aqui na Terra, nesta orla atlântica da Península, a alma do homem teria assumido integralmente,
e amoravelmente, o tempo – para o ultrapassar.”29
Sublinhe-se a nota amorosa, indispensável nesta
sinergia a que a «mentira» habitual da «mente»
tem de ser sujeita, para que se dê a cristalização
dessa “pedra de toque” que é o filosofal de tal
«sub specie aeternitatis»…30 Por outro lado, além
desta notícia amorosa como diria ainda S. Juan
de la Cruz, há esta “dialéctica” sui generis que já
em Leonardo, como no pensamento português
em geral, não tem a índole ideal e germânica da
síntese hegeliana, porém de uma não-exclusão,
“não o negando [ao tempo], mas abraçando-o”,
numa total positividade.31
Ao drama, senão tragédia mesma do ser (e do
não-ser), responde a paciência deste estar na orla
atlântica, na fronteira entre o ‘cá’ e o ‘lá’, numa
arte de fazer tempo, lembrando, sem dúvida, até
os medos assim “psicanalisados” mas, sobretudo, ‘adiando um futuro’ por demais no incerto
da fatalidade.32 Um entre-meio saudoso em que
o corpo tem espaço para se descobrir no sacrum
de ser “templo do Espírito” e em que esse “vento
que sopra onde ou quando quer” arrepia sempre
de nova esperança e antecipado toque de imortalidade a beleza espiritual desse intermédio…33
26
Saudade, p. 80.
Como se se reconhecesse que o espinozismo corresponderia
ao «destino» mental do Ocidente… Cf., entre outros, Chantal
JAQUET, Sub specie aeternitatis, Étude des concepts de temps,
durée et éternité chez Spinoza, Paris, Kimé, 1997, e vide nosso
estudo: Carlos H. do C. SILVA, “A Gnose espinoziana – Destino racionalista de uma tradição sábia”, in: Didaskalia, VII
(1977), pp.259-308.
31
Saudade, p. 80. Sobre aquela «notícia amorosa», cf. San
JUAN DE LA CRUZ, Subida del Monte Carmelo, II, c. 13, §
4: “… si el alma gusta de estarse a solas con atención amorosa a
Dios”… Trata-se de estado inspirado similar ao da consciência
saudosa, “porque a los principios suele ser esta noticia amorosa
muy sutil y delicada y casi insensible.” (Ibid., § 7). É sinal do
passo do psicológico para o espiritual, diversamente abrangente
nesse re-conhecimento cordial…
32
Sobre tal arte de ‘fazer tempo’ cf. referências em nossos estudos: Carlos H. do C. SILVA, “Da invenção do tempo ou do
tummo pre-liminar, a pretexto do Yoga de Naropa” (Comun. ao
«Colóquio Internacional: Cultura tibetana: Um novo Paradigma?», orgº. Carlos João Correia e Paulo Borges, na Fac. de Letras de Lisboa, em 28 de Abril de 2005) (a publicar); e Id., “O
‘Nada te turbe… Todo se passa…’ teresiano – Uma poética da
paciência perante o devir”, in: Revista de Espiritualidade, XIX,
nº 78, Abril/ Junho (2012), pp. 85-114.
33
Fazer ponte (pontifex na sua etimologia) entre o espírito “sem29
30
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
A tentação de Pascoaes foi a de dar ‘corpo religioso’ ao que nunca seria tal: a Saudade; ou,
então, a de lhe emprestar um ‘espírito divino’,
quando ela é como o éros platónico do âmbito
dos semi-deuses, do transitório ou simplesmente viático, quase quase ao modo estóico dos tão-só incorporais.34 Ora, Dalila, atenta à voz das
‘sereias não do irracional’,35 mas deste enlevo marítimo, e tão telúrico também da saudade assim
maternal, não deixa de dar corpo e divina expressão a uma Saudade soteriológica.36
Não se pretende apontar qual panteísmo naturalista, esquecidos que, então, estaríamos da sensibilidade expressionista e tão franciscana de outro louvor de Deus em todas as criaturas, como
cantou o Poverello e tão bem lembra Leonardo
Coimbra,37 não deixando de estar presente em
pre pronto” e a astenia da “carne”, porém por via do corpo de
alma… uma vida saudosa de um e outro lados. Traço de união
da sabedoria evangélica e paulina, quando equaciona Jo 3, 8:
‘tò pneuma hópou thélei pneî…’ e também Jo 2, 21 – o corpo
Templo… Cf. 1Cor 6, 19: ‘tò sôma hymôn naòs toû en hymîn
hagíou pneumatos estin…’
34
Qual dimensão purgatória entre a ascética e a mística de todo
um percurso espiritual que, de facto, se poderia analogar com
os asómata, cf. Émile BRÈHIER, La théorie des incorporels dans
l’ancien stoïcisme, Paris, Vrin, 19704… Vide também: Martha
C. NUSSBAUM, The Therapy of Desire – Theory and Practice
in Hellenistic Ethics, Princeton, Univ. Pr., 1994, pp. 359 e segs.
35
Cf. Dominique TERRÉ-FORNACCIARI, As Sereias do Irracional, trad. do franc., Lisboa, Piaget, 1993; vide também a
perspectiva derivada de Paul FEYERABEND, Farewell to Reason, trad. port., Lisboa, Ed. 70, 1991.
36
Saudade salvífica?... como noutra perspectiva Paulo BORGES, em Da Saudade como via de libertação, Lisboa, QuidNovi, 2008, sobretudo, pp. 87 e segs., salienta em termos mais
«budistas» de libertação? Mas estará o nexo saudoso mais do
lado do desenlace, que do enredo de memórias ainda não purgadas? Pareceria até poder ver-se na mitificação da saudade o
equivalente psico-nosológico de uma Sehnsucht que prenda de
forma doentia… Cf. Jacques J. ROZENBERG, Philosophie et
folie – Fondements psychopathologiques de la métaphysique, Paris, L’Harmattan, 1994, pp. 87 e segs. : «Topologie optique du
délire et structure du sujet». Vide ainda Paulo BORGES, ibid.,
p. 94: “É assim que, movidos pela saudade esquecida, distraída e
desorientada do seu real intuito, procuram na dualidade e na parcialidade das experiências e das soluções o que só podem descobrir
no todo e no infinito (…).”
37
Cf. Leonardo COIMBRA, S. Francisco de Assis – Visão franciscana da Vida, in: Obras de L. C., ed. cit., vol. Ii, pp. 871 e segs.,
sobretudo pp. 906 e segs. Vide nosso estudo: Carlos H. do C.
SILVA, “Da religião cósmica ao espaço místico – reflexão sobre
o sentido universal do franciscanismo”, in: Várs. Auts., Poiética
do Mundo – Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Lisboa, Colibri/ Depart. Filosofia – Centro de Filosofia da Univ. de
Lisboa, Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, 2001, pp. 117-142.
75
Dalila essa compreensão espectral do Sol eterno
assim reflectido em cada átomo. Também não se
vislumbra o autómato de uma soteriologia por
crença cega, mas o reconhecimento como diz a
nossa Autora de “a saudade… uma via de salvação pelo conhecimento e ascese. A um tempo por
despojamento e amor.” 38
Fala, neste sentido, de uma impregnação em que
essa “gnose” e trabalho concreto, qual síntese de
um jñana-yoga e de um karma-yoga, – ou mais
ocidental e cristãmente da complementaridade
das vias da contemplação e da acção, de Maria
e de Marta segundo o simbolismo evangélico,
– têm a sua união recíproca.39 Maneira de impedir, em seu entender, o duplo niilismo budista e do existencialismo (também da “era do
vazio”…), porém, assim, como uma espécie de
fecundidade prenhe por este menor denominador comum.40 Onde o carácter puramente
afirmativo e não apenas o jogo saudoso desta
“lógica” de dupla negação, como se equivalente
a uma forçosa afirmação? Onde, por exemplo,
ao menos o paralelo com o mistério da união
hipostática celebrada em Jesus Cristo sem imperativa interpretação cósmica?
De facto, há – contrariamente a uma teologia da
saudade como registo de tal “via de salvação” –,
uma diluência poética e de sensibilidade holística: “na impregnação da terra pelo céu e do tempo
pela eternidade – como união recíproca, na final
identidade”.41 O registo é, outrossim, arqueológico
Saudade, p. 81.
O labor quase se diria da síntese beneditina que reflecte a integração harmónica de acção e contemplação, embora tanto a lição da Bhagavâd-Gîtâ (III, 3, 1 e segs.), como a da mística cristã
(sobretudo desde Eckhart, também de St.º Inácio de Loyola e
de St.ª Teresa de Jesus…), seja a do primado da «acção», porém
como acção contemplativa, ou «trabalho consciente». Cf. referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Do valor
espiritual do trabalho em S. Bento de Núrcia”, (Conferência,
XV Centenário de S. Bento, Guimarães, 19/6/81), in: Revista
de Guimarães, XCI, Jan./Dez. (1981), pp.284-339.
40
Dalila lê o budismo através da tradição ocidental do pessimismo (alemão), podendo inserir-se nas hermenêuticas viciadas
referidas em Roger-Pol DROIT, Le culte du néant – Les philosophes et le Bouddha, Paris, Seuil, 1997, sobretudo pp. 213 e segs.:
«Le temps du pessimisme». Tal carência de sentido reconhecida
pela Autora portuguesa, ultrapassa o que pudesse constituir um
registo sociológico, tal o de Gilles LIPOVETSKY, L’ère du vide,
Essais sur l’individualisme contemporain, Paris, Gallimard, 1989,
aspirando saudosamente a uma plenitude de Ser.
41
Saudade, pp. 84 e segs.
38
39
76
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
num lema bíblico do Génesis e dos ‘dois fundidos numa só carne’, nessa fusão integrativa ou
nessa busca de Absoluto que Dalila atribui ao
andamento do próprio “caminho” (afinal viagem parada…) de F. Pessoa.42
Mas contrasta o apreço da via da saudade em
Dalila, na sua surpreendente interpretação da
mesma como movimento em ordem a tal desposar de contrários, tal “reintegração de todos
os seres”, como lera também em Martines de
Pasqually, com o estar o ficar “saudoso”, a senda apassivante ou até regressiva até à Origem,
que, por outro lado, a sua feminina intuição
não deixa de ressoar.43 De facto, talvez Dalila
tenha sido levada a pensar como movimento o
que seria apenas, melhor dito, como trânsito e
recurso em que não há propriamente uma “mediação”, mas uma consciência do que aí falta e
se almeja… – por isso, em saudade.44 E, nem sequer seria a lição de Marinho ou, no fundo, a
de Teixeira de Pascoaes, mas a de uma história
que assim constitua a ambígua narrativa saudosa como saudade de uma narrativa.45 Um povo
Vide o «drama extático» em F. PESSOA, O Marinheiro, in:
Obra Poética, ed. cit., pp. 441 e segs. A união mística, assim
intemporal, identifica-se como unidade, ou seja, numa leitura
absolutizante inclusive daquele paradigma binário bíblico: Gn
2, 24: “…e os dois serão uma só carne.”
43
Repercute-se o nexo «bíblico» desde o Começo atá ao Fim,
no ciclo que a gnose, seja neoplatónica, seja judaica e messiânica, propõe no passo do Uno ao Uno através do diverso. Em Jacob Böhme, como em Swedenborg, ou também em Franz Von
Baader, reflecte-se essa visão integradora de tudo no Todo (Pan-sophia), tal como na tradição martinista encetada pelo português Martinés de PASQUALLY, Traité de la réintégration des
êtres…, Paris, Éd. Traditionnelles, 1974 reed. Vide, a propósito,
Franz Von BAADER, Les enseignements secrets de Martinès de
Pasqually, trad. do alem., Paris, B. Charcognac, 1900… Dalila
reconhece-se nesta traditio em diálogo com António Telmo…
44
Cf. José MARINHO, Teoria do Ser e da Verdade, ed. cit., pp.
35 e segs.: «Trânsito e recurso», em que o filósofo português
esclarece o ser dúplice do enigma, integrando em si a dimensão
do «outro» e fazendo pensar na estrutura espacial, dir-se-ia do
labrys (ou machado de duplo cortante), como, por outra parte,
salienta como arquétipo Almada NEGREIROS, Ver, ed. Lima
de Freitas, Lisboa, Arcádia, 1982, pp. 47 e segs. No plano de
referência temporal, poder-se-ia ainda lembrar o pensador judaico, Émmanuel LÉVINAS, Le temps et l’autre, Paris, PUF,
1983 reed., sobretudo pp. 47 e segs.
45
Volta-se à constatação deste duplicado da saudade que ao
dizer-se assim se efabula, perdendo o indicativo performativo inicial e tornando-se uma significação retórica, um discurso
justamente saudoso… Cf. ainda nosso estudo : Carlos H. do
C. SILVA, “Filosofia e Mística na Escola portuense ou Destino
mítico de uma literatura pensante?” Filosofia e Mística na Escola
42
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
que, do fundo do subconsciente, se lembra em
rede de palavras e intentos, mas que também é a
teia de Penélope de um desfazer de sonhos assim
tão só desejados…
Em Dalila até na sua sensível poética está presente este desejado em glosas várias que entrecruzam a ânsia pelo Amado do Cântico, até ao
sebástico Messias de uma parousía final…:
“…
Ainda agora nasceu
E tão cedo, vai morrer.
…
Maria o criou
No seio o fechou
Do seio o enviou
Em dom amantíssimo.
O precioso, o radioso, o prometido
Do fundo dos séculos ouvido
E ao martírio votado.
…” 46
Além desta genesíaca expectativa, ‘pessoanamente’ saudosa de si mesma (abortando o nascimento em precoce morte, em qual menino
de sua mãe…), o Dom aqui promissor tece em
imanente continuidade o desejo tão humano com
a saudosa aspiração divina; faz ponte entre a terra
e o céu sem suspeitar, por ora, da geometria iniciática e mais complexa de um haver de ‘descer
aos infernos’ para aí encontrar a escada que desce do Alto e permite nascer segunda vez.47
Portuense ou Destino mítico de uma Literatura pensante?”, in:
Actas do Congresso Internacional Pensadores Portuenses Contemporâneos, 1850-1950, Lisboa, IN-CM, 2002, vol. I, pp. 291-322.
46
Dalila Pereira da COSTA, Hora de Prima, Lisboa, Fundação
Lusíada, 1993, p. 24: «O Prometido». São muitos os exemplos
desta expectativa que se diria de saudades do Futuro em Dalila,
tal como também menciona António QUADROS, Memórias
das Origens, Saudades do Futuro – Valores, Mitos, Arquétipos,
Ideias, Mem-Martins, Europa-América, 1992, pp. 57 e segs.
47
Cf. Jo 3, 3 e segs. Em contraste com o continuísmo do enlevo
também criacionista (tal criticámos em Leonardo Coimbra: cf.
Carlos H. do C. SILVA, “O tempo e a «visão ginástica» em Leonardo Coimbra – Ambiguidades do continuísmo criacionista”
(Comun. ao «Colóquio Leonardo Coimbra (no cinquentenário da sua morte)», org. Soc. Cient. da U.C.P., Lisboa, 21/22,
Nov., 1986), in: Várs. Auts., O pensamento filosófico de Leonardo
Coimbra, Lisboa, ed. Didaskalia, 1989, pp. 129-143) chama-se a atenção para a clivagem de tal “descenso aos infernos”,
roçando a desconstrução, tal como na inspirada experiência do
Monge Silvano, do Monte Athos: «Tiens ton esprit en enfer et
ne désespère pas»… Cf. Jean-Claude LARCHET, Saint Silouane
de l’Athos, Paris, Cerf, 2004, pp. 43 e segs. : «Tiens ton esprit
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Do mito da eternidade
(qual “eterna gnose”) à matriz
de uma momentânea lucidez…
Dalila prefere um «conhecimento situado» e o
bordão da história conhecida, ainda quando
imaginada, já que é, de facto, “pelo sonho que
vamos”. “A saudade como a história é o acto dum
povo de assumir integralmente o tempo – esgotando-o. E de o revelar.”48 Como se este conhecimento, não na acepção meramente epistémica, mas
na bíblica semântica de um «estar prenhe de», ou
ainda de um re-conhecimento (em tal co-naissance
como melhor se veria em francês), não implicasse
uma espécie de inversão do tempo movediço, do
‘antes’ ao ‘depois’, justamente neste enlevo que
paralisa, que “cristaliza” o que foi e o que será
nesse estar reconhecidamente saudoso.49
“O conhecimento da verdade nasce duma experiência espiritual” – diz Dalila, lembrando desde o
Leal Conselheiro e a referência a um “sentido do
coração”, até ao que poderíamos ainda retomar
em Miguel de Molinos ou até em Pascal… 50
E é essa experiência que, assumida ou temida,
e até angustiada, há-de levar a nossa Autora a
discernir – quase no exercício inaciano das “duas
bandeiras”51 – entre a saudade gloriosa (da progressão e crescimento do homem) e a possessão
saudosa “da negatividade, propriamente demoníaca, da angústia como princípio…”.52
Reservando, então, por este conhecimento intuitivo, por esta cordial sensibilidade ou tal esen enfer…» ; vide ainda Archimandrite SOPHRONY, Starets
Silouane, Moine du Mont-Athos, Vie, Doctrine, Écrits, Sisteron,
Éd. Présence, 1973, pp. 201 e segs.
48
Saudade, p. 86.
49
De facto, o conhecimento parece, em sua última dimensão,
incompatível com o estado saudoso que tanto o reduz a «memórias», como transpõe do reconhecimento para um sentido de
“cuidado”, como ainda refere M. HEIDEGGER, em Was heisst
Denken?, Tübingen, Max Niemeyer, 1971, pp. 92 e segs.
50
Cf. Saudade, p. 87.
51
Cf. St.º IGNACIO DE LOYOLA, Ejercicios Espirituales, 2ª
semana, §§ 136 segs.: «Meditación de dos banderas». Trata-se sobretudo do aóratos pólemos ou «combate invisível» que já
provém da tradição monástica. Cf. outras referências em nossos
estudos: Carlos H. do C. SILVA, “A ascese na espiritualidade
de S. Bento de Núrcia – Do valor rítmico da vida monástica
segundo a Regula”, in: Didaskalia, X, (1980), pp.363-372; e
Id., “Da diferença pensada ao discernimento vivido”, in: Rev.
Port. Filos., 50 (1994), pp.411-441.
52
Saudade, p. 87.
77
piritual inteligência, a saudade apenas como expressão positiva e progressiva – “força demonstradora e reveladora da eternidade”53 – deve Dalila
P. da Costa apontar as leis dessa construção do
sentido da história, e dessa “história da eternidade” como diria Jorge Luis Borges.54
Dizia-se que o «conhecimento situado» permitia o entretanto desta mesma tomada de consciência que Dalila exerce, quase perante a Esfinge
que radicalmente interpela, já não o caminho,
mas a encruzilhada: ‘donde vimos, para onde
vamos, o que somos’…? Mas, menos do que no
helénico e solar posterior brilho da razão ocidental, a poética deste pensar, deste lugar de sol
poente a Ocidente, inspira o recurso a outra lucidez – menos dramática, porventura, mas por
demais saudosa…55
Os parâmetros deste outro labirinto da saudade
revelam leis diferentes de um outro mundo de
compreensão:
“…Essas leis, e a verdade a que elas se suspendem,
ou que elas rodeiam, estão para além do alcance da
razão discursiva e da lógica tal como é vista e usada neste mundo quotidiano e científico nos tempos
modernos e ocidentais.”56 – começa a “explicar”
Dalila, em fórmulas que permitiriam perscrutar as órbitas rotundas (sefiróticas) dessa espécie
de Árvore da Vida de uma cabala revelacional
(como ainda dialogada com António Telmo)57
Saudade, p. 88.
Idealismo maior, tal o de P. Teilhard de Chardin (como intuiu desde o exergo, António QUADROS, Memória das Origens, Saudades do Futuro, ed. cit.) ainda que sob a «sombra»
saudosa… Vide também em Jorge Luis BORGES, Historia de
la Eternidad, Madrid/ Buenos Aires, Alianza Ed./ Emecé Ed.,
1953, reed. 1975, pp. 15 e segs.
55
Em vez da métrica helénica e europeia de um quase-ser, de um
tal ser aparente, etc., na substantividade aristotélica, a declinação
da lucidez e do verbo da estética do pensar portuguesa tornam
idiossincrásico (até como intuiu Eduardo LOURENÇO, O labirinto da Saudade, reed. Lisboa, Gradiva, 2001…) o estado da
própria transição, como na tradição islâmica e sufi… Vide, por
exemplo, Henry CORBIN, L’imagination créatrice dans le soufisne d’Ibn’Arabi, Paris, Flammarion, 1958 e reed., pp. 209 e segs.
(sobre a «visão»), também em notas e comentário, sobretudo de
um autor místico como Sohrawardi: Id., (ed. e trad.), Shihâboddîn Yahyâ SOHRAVARDI, L’Archange empourpré – Quinze traités et récits mystiques, Paris, Fayard, 1976 e vide, sobretudo : S. Y.
SOHRAVARDI, Le Livre de la Sagesse Orientale (Kitâb Hikmat
al-Ishrâq), Lagrasse, Verdier, 1986, pp. 199 e segs.
56
Saudade, p. 90.
57
Cf. António TELMO, Filosofia e Kabbalah, Lisboa,
Guimarães, 1989, pp. 39 et passim. Recorde-se o sentido
53
54
78
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
e evocar também a tese de René Guénon sobre
a “crise do mundo moderno”… Mas, prossegue
Dalila ainda no mesmo e importante passo: “E
para além do poder de verificação, tal como é aí
testado: porque no campo do espírito, as experiências não são susceptíveis de serem repetíveis: o espírito, no seu sopro, ou vinda, agindo para além
da vontade (ou decisão ou espera) do homem; e do
determinismo da natureza: no alado reino da liberdade. A que aí chamamos gratuidade.”58
São, pois, as leis espirituais o inverso das determinações necessárias, apontando-se este “reino
dos Céus” ou da graça como o da espontaneidade criativa, não apenas naquele eco de João (3,
8), mas como uma “filosofia” da vontade além
de todo o desejo condicionado.59 Uma volição
“saudosa” do Übermensch, porém não no herói
desencarnado de uma visão delirante, antes da
possibilidade paciente e humilde (no etimológico
ainda neoplatónico dessa rotação angélica (em DIONÍSIO, O
PSEUDO-AREOPAGITA, Div. Nom., IV, 8-10…), quando se
refere aos “coros” angélicos; cf. ainda James MILLER, Measures
of Wisdom – The Cosmic Dance in Classical and Christian
Antiquity, Toronto/ Buffalo/ London, Univ. of Toronto Pr.,
1986, pp. 483 e segs.) implícito nos «centros» sephiróticos e
nesse parmenídeo caminho (kéleuthos: cf. Lynne BALLEW,
Straight and Circular – A Study of Imagery in Greek Philosophy,
Assen, Van Gorcum, 1979, pp. 45 e segs.) cíclico ou rítmico
(como ainda se sublinharia, no pensamento português, a
partir da oportuna reflexão sobre a rítmica, de Rodrigo Sobral
CUNHA, Filosofia do Ritmo Portuguesa, Sintra, Zéfiro, 2010).
Vide nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “A geometria do
pensar simbólico em Eudoro de Sousa e diferentes sinuosidades
míticas», (Comunicação ao Colóquio «A Obra e o Pensamento
de Eudoro de Sousa», org.º pelo Instituto de Filosofia
Luso-Brasileira, em 23 de Março de 2011, no Palácio da
Independência, em Lisboa; a publicar).
58
Saudade, p. 90. O eco de René GUÉNON, A Crise do Mundo
Moderno, trad. port., Lisboa, Veja, 1977, ( e sobretudo em Id.,
Le règne de la quantité et les signes des temps, Paris, Gallimard,
1945 e reed.) não é linear… como se a lição do P. António
VIEIRA, (vide Livro Anteprimeiro da Hisória do Futuro, Lisboa,
Biblioteca Nacional, 1983) e a própria plenificação da História
(cf. Paulo Alexandre Esteves BORGES, A Plenificação da História em Padre António Vieira – Estudo sobre a ideia de Quinto
Império na Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício, Lisboa,
IN-CM, 1995) antecipasse não uma mentalidade cega e decadentista, outrossim transformante… de Leonardo COIMBRA,
em A Alegria, a Dor e a Graça…
59
Bem vistas as coisas, o domínio do gratuito (dito sobrenatural) não se identifica com o do espontâneo (outrossim o do
natural…), por isso apenas, podendo ser dito tal… como um
«sopro», cf. Jo 3, 8: ‘Ho pneûma hópou thélei pnéei…’ Cf., entretanto, Henri de LUBAC, Le mystère du surnaturel, (reed. in:
«Œuvres complètes»), Paris, Cerf, 2000, pp. 79 e segs. : «Pour
une gratuité réelle».
para o
Século XXI
sentido do húmus e deste inclinar-se sobre a
“terra-Mãe”…) de uma transmutação do homem, pela sua metamorfose no Espírito.60
É em ordem a esta sensibilidade de um conhecimento vivido, e assim de teor pentecostal ou
paraclético (para se usar estas fórmulas de Agostinho da Silva), que se aponta em Dalila para
a orientação do seu verbo saudoso no que seria
análogo à «História do Futuro» de Vieira.61 Trata-se de, seguindo o desígnio conhecido daquelas leis da novidade e espiritual renovação, procurar nos caminhos lembrados, e até nas falsas vias
do passado, o que sejam primícias do advento e
até dos momentos análogos que os vários ciclos
permitem observar.
O esquema é profético, até joaquimita, embora
evocado a partir de Dante. Diz Dalila: “Todo um
povo e nele cada uma sua alma saudosa – quais
mónadas espirituais que Leonardo referia – perfazer em si, uma descida, seguida duma lenta subida, desde o Inferno pelo Purgatório até ao Céu
– tal como Dante no seu poema.”62 E a economia
desta gnose é ainda, como a de Santo Ireneu, a
da recapitulação de tudo neste “agora total”:
“Será essa recapitulação, através duma recuperação e utilização de zonas comummente ignoradas
e não utilizadas, para superação e libertação do
humano que a perfaz, o que a saudade revelará
ao Ocidente.” 63
Quereríamos ver em tal revelação por via da
saudade as margens desse tudo (universal) que
não se deixa dizer de todo e como um todo
(hólos, totum). Tange-se aqui o arrepio de estranheza que acorda o pensamento de Dalila
P. da Costa para a equação aparentemente impossível do universal concreto, ou do individual
Eis o lado feminino da força (dýnamis) como coadjuvante
da enérgeia mavórtica e, assim, operante dessa transformação
no íntimo da matéria. Cf. P. TEILHARD DE CHARDIN, Le
Milieu divin, Essai de vie intérieure, Paris, Seuil, 1957, pp. 121
e segs. : «La puissance spirituelle de la matière» e vide H. de
LUBAC, «L’éternel féminin», précédé du texte de Teilhard de
Chardin, Paris, Aubier, 1983.
61
Cf. supra n. 57.
62
Saudade, p. 93.
63
Saudade, p. 93. Quanto a St.º IRENEU, lembre-se a anakephalaíosis, ou recapitulatio, em Cristo: cf. Adv. Haer., III, 18, 1 e
segs. Cf. A. ORBE, Antropología de San Ireneo, Madrid, B.A.C.,
1969, pp. 107 e segs.
60
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
e irrepetível, colidindo com a absolvição (ou
absolutização) de tudo.64
Trata-se de uma consciência momentânea (mente instantanea, paradoxal ainda em Descartes…)
que vive essa gnose saudosa, porém sem a poder
transferir (trasladar dialecticamente) como Dalila lembra de Joaquim de Carvalho.65 A singularidade de «alguém» sujeito de tal cognoscibilidade
saudosa remete a uma interioridade já não simbolizável (senão pelo exterior e aparente), embora relacional e ontologicamente referida. E é aí
nesse oculto ser que se realiza o que poderia constituir mera retórica pensante ou residual mito da
saudade, numa saudosa presença existencialmente
assumida: detendo em si, “ambivalente e unidamente, essas zonas e colorações, de singularidade e
universalidade, ou efemeridade e eternidade.”66
O modo como Dalila situa este passo ontológico
da consciência pareceria conduzir a uma mística
de fusão, de uma unio, mais em termos de unidade (ao modo oriental de atman-Brahman…
da escola advaíta) do que como “dialogal” união
(à maneira do Ich und Du de Martin Buber) típica da mística cristã.67 Escutêmo-la:
“Assim nele [nesse conhecimento saudoso de índole
realizante] também, quanto maior for a capacidade do sujeito de fundir seu ser com o Ser, ou o
seu ser individual com o ser absoluto, encontrar na
sua mais funda subjectividade, a mais funda e longínqua e próxima objectividade, como presença, e
mais, união, identidade do seu ser com esse ser dos
seres, aquele que nele sente e por ele se exprime,
Aporética bem conhecida, até no existencialismo de Jean-Paul
SARTRE, «L’universel singulier» (1972), in: Id., Situations philosophiques, Paris, Gallimard, 1990, pp. 295 e segs., a propósito
justamente de tal “universal concreto”, que leva sempre a não
consentir resolver na lógica da «parte» e do «todo», o que diferentemente aponta para o infinito. Horizonte do arcaico ápeiron
ainda familiar a Dalila P. da Costa… vide nota seguinte.
65
Cf. Saudade, pp. 100 e segs.
66
Saudade, p. 101.
67
Cf., entre outros, Moshe IDEL e Bernard McGINN, (eds.),
Mystical Union in Judaism, Christianity and Islam – An Ecumenical Dialogue, N.Y., Continuum, 1999; e Alain DIERKENS e
Benoît Beyer De RYKE, (eds.), Mystique: la passion de l’Un, de
l’Antiquité à nos jours, («Problèmes d’Histoire des Religions»,
t. XV), Bruxelles, Éd. de l’Univ., 2005. Vide também M. BUBER, Ich und Du,Leipzig, Insel, 1923 e reed.; e cf. outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “A Mística
não fala de Deus – Visão paradoxal da experiência mística”, in:
Maria Leonor L. O. XAVIER, (coord.), A Questão de Deus –
Ensaios Filosóficos, Sintra, Zéfiro, 2010.
64
79
manifesta, – maior, mais fiel será o conhecimento
que a saudade atinge e transmite.”68
Nesta frase, quase a lembrar o estilo do autor da
Teoria do Ser e da Verdade,69 aflora a indistinção sobre a união entendida espinozianamente
como identidade e defendendo-se nessa visão
‘omnímoda e una’ uma real fusão ontológica. E,
ainda que tal «panteísmo» possa ser mais da inevitável dificuldade de dizer o que, como ser, está
além de todas essas distinções pensantes e pensadas…, facto é que a experiência mística vem
aqui caracterizada nos antípodas da vivência e
até da gnose cristã.70
Se se tomasse St.ª Teresa de Ávila como exemplo da experiência mística, nesse diálogo entre
a alma e Deus, até na sua encarnacional experiência da relação de intimidade espiritual com
a Santa Humanidade de Jesus, reconhecer-se-ia
que em Dalila P. da Costa se conjuga inversamente o paradigma desse êxtase unitivo.71 Não
será tal o disse St.ª Teresa como ‘uma mesma
chama de amor de duas velas unidas’, porém
cada uma delas ontologicamente distintas,
porque incomensuráveis a criatura e o Criador
(postos que unidos num mesmo Amor, numa
mesma participação do mistério trinitário…),
mas uma confusão ontológica, mantendo-se,
porventura, uma consciência residual e saudosa (não unida).72
Saudade, p. 101. Explicitava, em A Força do Mundo, Porto,
Lello, 1972, p. 33: “Uma transmutação do homem, e com ele, do
mundo, pela via mística. E também porventura pela poesia o que
será uma outra via análoga: um conhecimento por um ser integral
e transmutado, dado pela união com o Ser divino.”
69
Cf. nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Artesanato da
frase filosófica na «Teoria do Ser e da Verdade» de José Marinho”, (Comun. ao Colóquio sobre Estética, imagem e palavra:
José Marinho e a linguagem, orgº. Departs. de Literatura e de
Pedagogia e Educação da Univ. de Évora, em 16 de Março de
2005) (ainda inédito).
70
Parece aqui esta visão padecer de um vislumbre ainda de errada
hermenêutica de F. Pessoa e do seu esoterismo… Cf. Dalila L. Pereira da COSTA, O Esoterismo de Fernando Pessoa, Porto, Lello &
Irmão, 1971, pp. 65 e segs.: «A procura do Absoluto», sobretudo
quando insiste no seu «panteísmo transcendentalista». Cf. infra
n. 111 e 124. Vide nossa recensão: Carlos H, do C. SILVA, Rec.
de Dalila Pereira da COSTA, O Esoterismo de F. Pessoa, Porto,
Lello 1971, in: Clássica, nº4, Dez. (1978), pp. 97-101.
71
Desenvolvemos essa interpretação da experiência teresiana em:
Carlos H. do C. SILVA, Experiência orante em Santa Teresa de
Jesus, Lisboa, Didaskalia, 1986, pp. 98 et passim. Vide n. seguinte.
72
Viver o mesmo (e quem o saberá?), porém sem uma mesma consciência amorosa; donde a fissura de uma consciência
68
80
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
A perspectiva daquela mística cristã é a de um
dom tangencial, um sopro frágil como a vida,
sem garantia de ser… numa visão, aliás, muito
próxima da vacuidade e, sobretudo, da instantaneidade do dharma budista.73 Mais uma teologia apofática e o reconhecimento do carácter
ilusório, porventura de mera generosidade, ou
de puro amor de haver uma tal união mística,
sabendo-se embora que tudo isso é nada e só na
vera ascese de todos esses desejados ou saudosos
consolos se encontrará a evidência maior. Tão
maravilhoso é o gozo do êxtase cristão quão lúdico e ilusório o próprio nirvana – satori…
Ora, garantir que o enlevo saudoso se radica
num Absoluto, lá nesse próximo e distante, supõe antes a transposição de todo o jogo de significações para o campo intermédio do «sentir»,
do dizer e da própria narrativa que vai cerzindo o estatuto mítico deste caminho.74 Se bem
que Dalila tenha a consciência de algo que fica
em falta, qual carta fora do baralho, e que exige menos a retórica de tudo pretender explicar
num ser total, do que praticar a ascese de mais
pura saudade. Saudade de si mesma? – como no
Amor do amor, e con-fusão de amante e Amado
no mesmo Amor?...
“Como via de ascese e salvação, esse conhecimento
dado pela saudade, será tanto mais perfeito, puro,
decantado, verdadeiro, quanto mais perfeita essa
ascese for no sujeito em que ela se deu: como meio
de manifestação divina.” 75
Todavia esta ascese não deixa de ser histórica,
quer pelos “recortes” da narrativa e sua orientação, quer pela apocalíptica confiança num
(infeliz) saudosa… Não a realização espiritual que “comanda”
a matéria, mas uma materialidade-maternidade que pode (ou
não) florescer espiritualmente; donde o resíduo de ansiedade
sui generis da saudade.
73
Independentemente de outros estudos sobre o puro dom,
puro Amor na mística teresiana, importa oportunamente comparar o caminho de St.ª Teresa com o da tradição do budismo
tibetano: cf. Marianne KOHLER, Méditation – Thérèse d’Avila
à la reencontre des Tibétains, Paris, Dervy, 2006; e vide nosso
estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Aporética do Camino de Perfección de St.ª Teresa de Ávila – Para uma diferente compreensão
do andamento da vida espiritual” (a publicar).
74
Como se se dissesse que «eu» sei o que é a saudade, se e apenas
enquanto a explico, pois a sua vivência torna-se, outrossim, a
adjectiva referência de algo indizível…
75
Saudade, p. 101.
para o
Século XXI
“subjectivismo transcendental” (que Dalila relê
em Raymond Abellio)76 e que apontaria para a
confluência harmónica nesse ponto ómega antecipado pela privilegiada perspectiva lusíada no
“matrimónio” de Amor e Ausência.77 O que fica
pedido por essa ascese como socrática ironia sui
generis, é que a saudade deixe de ser do hic et
nunc para ganhar asas de uma saudade do Absoluto e que assim a absolva.
Um corpo saudoso de sentir e, aquém
do mais, a hora mística…
É neste trânsito especulativo, também sensível
e poético, tão fecundo de imagens no simbolismo mítico das Origens da pátria e deste lugar
mistérico de iniciação ao advento do Espírito,
que Dalila P. da Costa reflecte sobre a real acção do tempo, não já como conhecimento ou
lembrança saudosa, porém numa transformação
da alma.78 É o tempo da saudade que situa animicamente como catalisador de corpo e espírito
num mais além assim entrevisto:
“Porque onde a saudade age é no tempo da alma, aí
levando o corpo, ou mais subida, sublimadamente,
no do espírito, numa realidade transfísica, onde a
progressão não será linear, mas circular, tanto na
dimensão do tempo como na do espaço.”79 O que
à primeira vista poderia traduzir-se, porventura,
de saudade em memória remetendo ao que deixou dito H. Bergson quanto à durée psíquica e
aos ritmos de outra melódica intuição da vida.80
Além disso, parece ali discutível que o cerne da
Cf. Saudade, p. 102, referindo Raymond ABELLIO, La Fin
de l’ésotérisme, Paris, Flammarion, 1973…
77
Tal como cita a partir D. Francisco Manuel de Mello, in:
Saudade, p. 108.
78
Dir-se-ia ao modo junguiano (cf. C. G. JUNG, (ed.), The
Man and His Symbols, London, Aldus B., 1964; vide também
Id., Les racines de la conscience – Études sur l’archétype, trad. do
alem., Paris, Buchet/ Chastel, 1971…), como um itinerário
simbólico, também expresso na linguagem dos “sacramentos”
do ciclo histórico na gnose de Raymond ABELLIO, La Structure absolue, ed. cit., pp. 315 e segs. e vide Id., Assomption de
l’Europe, ed. cit., pp. 13 e segs.: «Ontogenèse des civilisations:
La recurrence paroxistique des sacrements»…
79
Saudade, p. 104.
80
Cf. Henri BERGSON, Matière et mémoire – Essai sur la relation du corps à l’esprit, (1896), in : Œuvres ed. du Centenaire, Paris, PUF, 19632, pp. 161 e segs., sobretudo, pp. 229 e segs. Vide
Gilles DELEUZE, Le bergsonisme, Paris, PUF, 1966 e reed., pp.
45 e segs. : «La mémoire comme coexistence virtuelle».
76
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
diferenciação saudosa se dirija prioritariamente à
«alma», como se óbvia fosse a individuação pela
forma e psíquica especificidade.
De facto, se a tradição aristotélica forçava a reconhecer uma generalidade mais comum pelo lado
do corpo ‘animal’, do que pelo lado da dita diferença específica, e isto é óbvio de acordo com
a lógica mental, uma outra inteligência mais arguta e resvés à vida parece especular exactamente uma inversa simetria: é no corpo, sobretudo
nessa “santa potência” de qual materia signata,
que se descobrem abismos de lonjura e distância
(onde todos pareciam modos do mesmo monismo espinoziano)81, e é na alma, dita aqui como
o sonho que ‘o corpo também faz para dentro’,
que se encontraria um modelo comum, comunitário (sociedade de mónadas como dirá Leonardo), e comunicante em que a linguagem e o
ritmo é ‘de todos e de ninguém’.82
Os povos não se distinguem realmente por esta
alma alargada e “cultural”, mas pelos indivíduos diversos que na pluralidade plural, momentaneamente os possa identificar… em língua,
como bem viu, F. Pessoa.83 Mais até, será no
corpo e pela lei de complexidade e diferenciação pressentida no único de cada um (como
no hinduísmo se reflectiu na noção de asmita,
isto é, de um “mim” que se traduz por exemplo
numa diferença sanguínea, numa sua incompatibilidade ontológica, ou na irrepetibilidade
de uma genética extraordinariamente complexa e variada…) – que se teria de enraizar
o desenho sempre mutante dessa depois dita
saudade além ser.84
Cf. supra n. 29.
A expressão ‘a alma é a sombra que o corpo emite para dentro’ pertence a Teixeira de PASCOAES, do «Prólogo» a O Bailado, (1921), Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, p. 13. Mudámos
ali «sombra» por «sonho» no contexto da poética de PÍNDARO, Pyth. VIII, v. 136: ‘skiâs ónar ánthropos’. Sobre a “sociedade (ou melhor dizendo comunidade) de mónadas, cf. Leonardo
COIMBRA, Criacionismo – Síntese filosófica, in: ed. cit., vol. I,
pp. 393 e segs.; e vide supra ns. 36, 46…
83
Conhecida fórmula : «A minha pátria é a língua portuguesa»… Sobre a pluralidade em Pessoa, cf. referências em nossa
reflexão: Carlos H. do C. SILVA, “Pessoa pluralidade possível
– Encenação de uma leitura temporã e de permeio”, in: Cultura
Entre Culturas, (em publicação).
84
Sobre o «identitativo» pessoal, cf. entre outros : Michel HULIN, Le principe de l’ego dans la pensée indienne classique – La
notion d’ahamkâra, Paris, Collège de France, 1978.
81
81
Os povos terão tido esta tremenda intuição de
uma diversidade e transcendência pelo aparentemente basilar e telúrico de um reino dito de corpos, mas que tão diversos se manifestam, inclusive em graus de exercício consciente e presença,
que depressa houve a tentação, porventura sábia, de hierarquizar em raças, castas ou classes,
o que utopicamente se poderia pensar como o
genérico do humano.85 De facto, pode haver
uma mesma “alma”, o propósito de uma só moral universal como, mesmo criticamente, Kant
formulou na Kritik der praktischen Vernunft, um
consenso de Bem,86 mas esta fábula mística (na
expressão de Michel de Certeau) não esconde o
incomparável da experiência aquém e além dessa
alma saudosa.87
Importa, no entanto, voltar ainda a sublinhar
na última menção a Dalila a referência ao movimento circular, feminino, conciliador de tudo
nesse mesmo círculo espiritual em que se resolvem as tensões do corpo de sentir e uma alma de
pensar, não só a lembrar a figura dos coros angélicos segundo Dionísio, o Pseudo-Areopagita,
e o visionarismo celestial dessa transposição do
labirinto para a perfeita órbita, mas ainda que,
mesmo como força encarnada e evolando-se o
espírito da saudade, é sempre uma saudade já
espiritual.88 O que não nos parece garantido
senão numa visão contínua, ainda quando graduada em hierarquias humanas…
A confiança, ainda que por tal via de conciliação poética e mística, cifra-se num conhecimento, numa lucidez saudosa e assim revista a
partir do humano: “E ele [esse estado interiorizado] será… poder gnoseológico no homem, tanto maior quanto usando o humano, ele possa ser
82
Cf. Louis DUMONT, Homo hierarchicus – Le système des
castes et ses implications, Paris, Gallimard, 1966.
86
Cf. I. KANT, Kritik der praktischen Vernunft, Ak. T. V, pp.
288 e seg.; cf. Também Victor DELBOS, La philosophie pratique de Kant, Paris, PUF, 1969, pp. 382 e segs., sobre a doutrina
do soberano Bem…
87
Cf. Michel de CERTEAU, La Fable mystique, ed. cit., pp.
216 e segs.
88
Vide a estética do conciliatório pela rotundidade (cf. O.
J. BRENDEL, Symbolism of the sphere. A contribution to the
history of earlier Greek philosophy, Leiden, E. J. Brill, 1977),
como no bailado… Cf. José GIL, Movimento total – O Corpo
e a Dança, Lisboa, Relógio d’Água, 2001 reed.; vide ainda Id.,
Metamorfoses do Corpo, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980, pp. 55
e segs. Cf. supra n. 56.
85
82
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
ultrapassado, transmutado. Quanto mais, na sua
natureza tripartida, em corpo, alma e espírito, os
dois primeiros forem usados e depois desapossuídos,
consumidos pela força transumana do terceiro.”89
Esta perspectiva que se afasta do humanismo de
Álvaro Ribeiro e mesmo de Leonardo, aponta
para um “mundo de anjos” ou uma absorção
desejada, uma saudade operante pela reminiscente certeza de tal absolvição espiritual. Não
fica explícito que o espírito seja ‘como fermento na massa’, que haja uma real metamorfose da
própria matéria, segundo a arte alquímica, mas
remete-se antes para a moral do bem-agir e da
necessária ascese em relação a um karma como
longevo condicionamento adquirido.90
Entre este peso material, e até do negativo, e a leveza da graça (como exprimiria Simone Weil),91
Dalila orienta a barca da saudade em sentimento de ser em trânsito finito que aspira a esse infindo, que lhe falta.92 Viagem para isso que se
haja de ser além de “mim”, além de nós… nessa
atraente, quiçá luciferina atracção de tal “anjo
de luz”.93 Apontando-se assim um retomar, porventura paradoxal para a lusa saudade, em termos hegelianos uma Vermittlung que transforma
a tragédia de um “eterno retorno do mesmo” na
esperança de uma espiral infinda aberta ao mais.94
Saudade, p. 105.
Cf. Saudade, pp. 106-107: “Aqui haverá uma visão axiológica
da existência humana que ultrapassa o âmbito moral, mesmo e
especialmente o teológico-cristão, do pecado e da contrição (…),
para se atingir uma outra, puramente antropo-cosmológica da existência que, ela, se aproximará mais da visão oriental do karma.
(…) É o tipo de acção que postula sempre uma outra acção. Há
assim uma força em que o homem está inserido e que o conduz
inexoravelmente na vida e o molda incessantemente através das
suas múltiplas reencarnações.” Sobre tal «filosofia» alquímica, cf.,
entre outros, síntese de Françoise BONARDEL, Philosophie de
l’alchimie, Paris, PUF, 1993.
91
Cf. Simone WEIL, La pesanteur et la grâce, Paris, Plon, 1948,
pp. 31 e segs. : «Désirer sans objet»…
92
Cf. Saudade, pp. 107-108: “Sentimento de ser em trânsito finito, que pela saudade aspira e realiza a união com o Ser, como
o Outro, que o completará, que lhe dará a plenitude verdadeira.”
93
Cf. 2Cor 11, 14.
94
Vide Henri NIEL, De la médiation dans la philosophie de Hegel, Paris, Aubier, 1945, pp. 111 e segs. Cf. também die ewige
Wiederkehr des Gleichen em Nietzsche e vide comentário aplicado ao «niilismo europeu» por M. HEIDEGGER, »Die ewige
Wiederkehr des Gleichen und der Wille zur Macht«, in: Id., Nietzsche, Pfullingen, G. Neske, 1961, t. II, pp. 7 e segs.
89
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
“O que a saudade, tal como as mais elevadas e
genuínas experiências espirituais mostrará, como
a mística ou a poesia, é essa união indivisível
de tempo-espaço. Então aqui, contra o que ela
luta, é contra o devir, a irrecuperável fuga dos
acontecimentos, no tempo unido ao espaço, ou
consigo arrastando o espaço, a corrente heraclitiana irreversível – fechando-a reversivelmente
no círculo do eterno retorno, mas da espiral. E
transportando-nos para dentro dele, fazendo-nos
viver e conhecer, não num espaço euclidiano, mas
num espaço curvo.” 95
Seja num espaço euclidiano, ou não, certo é se
procura mitigar uma saudade em última análise de si mesma, em que, ao estilo do uroboros,
tal tempo se produz e devora repetidamente,96
por essas asas de uma elevação tão crédula do
céu platónico que pode não haver consciência
da moral outra do voo de Ícaro.97 O ‘retorno à
evidência’, se se quiser ao húmus de uma telúrica radicalidade, não se permite tantos enlevos e
sonhos, inclusive como diz Dalila quase na perspectiva do augúrio da ave de Minerva98:
“E então o tempo na saudade, visto com os olhos
de quem vive na eternidade, ele perderá a forma
– como seu aspecto aparente – de sucesso linear,
tomando a forma circular e onde o passado será
futuro e futuro passado, como eternidade.” 99
Perdoe-se-nos, mas consideramos de suma banalidade esta consumação assim expressa, como
90
Saudade, pp. 109-110.
Cf. ainda Bernard SALIGNON, Les déclinaisons du réel, Paris, Cerf, 2006, pp. 193 e segs. : «L’éternel retour et le réel» e,
entre nós, vide Raul PROENÇA, O Eterno Retorno, ed. António Reis, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1987, 2 vols.
97
“Sempre na saudade, como na mística, poesia, filosofia, como
vias de conhecimento, a um tempo de manifestação do eterno e
participação e assunção ao eterno, a cisão será o necessário estado
que permite a união. (…) A saudade, tal como essas vias, é no
homem, a filha da Queda, e como elas visa e alcança o Regresso ao
Paraíso.” (cf. Saudade, p. 111). A queda também na «evidência», mais humilde, como deixava indicado, no seu manual de
peregrino, Lanza del VASTO, Principes et préceptes du retour à
l’évidence, Paris, Denoël/ Gonthier, 1945.
98
Como ainda em HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts (1820), »Vorrede« :„...die Eule der Minerva beginnt erst mit der
einbrechenden Dämmerung ihren Flug.“, in: ed. Frankfurt-a.-M.,
Suhrkamp V., 1970, p. 28.)... Um tal saber crepuscular, como diversamente, refere Teixeira de PASCOAES, O Homem Universal,
e outros escritos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993, pp. 68 e segs.
99
Saudade, p. 112.
95
96
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
se não houvesse o único de cada acontecimento,
como se o tempo não pudesse ‘florescer às avessas’,
como se diz em «A Múmia» de Pessoa,100 como
se esta vidência mayávica não refluísse na magna
quaestio de porquê poder haver ilusão…101 De
facto, a “razão” ou a saudade da própria ilusão,
como veste transposta, pura possibilidade… –
sobreposição ou adhyasa, numa surréalité sui generis, não deixa de retorcer a espiral mítica de
Dalila num outro caduceu mais complexo.102
É que, mesmo para a moldura nacional, essa
“estrutura absoluta”103 parece por demais convencionada num conformismo histórico: “Foi
essa essência do tempo, incessantemente ultrapassando-se a si mesmo (para seu último estatismo
como eternidade), que a alma portuguesa intuiu
e transmutou, ou uniu, às suas formas específicas
cognitivas e vivenciais.”104 Numa história que
assim ganha a relevância narrativa dialéctica
fazendo oscilar a nação entre a poesia, considerada pólo de subjectividade ou interiorismo, e
o histórico na objectivação extrema “Como expansão na terra até aos seus limites totais…”105 E,
assim, esta hora da saudade portuguesa aparece
como o ciclo pulsátil em que transcendência e
imanência se juntam.106 Um yoga do humano
100
Cf. F. PESSOA, «A Múmia», in: Obra Poética, ed. M.ª Aliete
Galhoz, Rio de Janeiro, Aguilar Ed., 1962, p. 131: “Andei léguas de sombra/ Dentro em meu pensamento./ Floresceu às avessas/
Meu ócio com sem-nexo, / E apagaram-se as lâmpadas/ Na alcova
cambaleante. (…)// Esquece-me de súbito/ Como é o espaço, e o
tempo/ Em vez de horizontal/ É vertical.”…
101
Tal se interroga na tradição advaíta segundo o Brahmasûtra,
I, 1, 1… Vide Michel HULIN, Qu’est-ce que l’ignorance métaphysique (dans la pensée hindoue) ? – ‘Sankara, Paris, Vrin, 1994,
pp. 7 e segs. ; e vide n. seguinte.
102
Cf. a teoria de adhyasa ou de «sobreimposição” enganosa,
tal é resumida por Michel HULIN, ‘Sankara et la non-dualité,
Paris, Bayard, 2001, pp. 87 e segs.: «Illusion et délivrance».
103
Cf. o paradigma proposto por Raymond ABELLIO, La
Structure absolue – Essai de phénoménologie génétique, Paris,
Gallimard, 1965, pp. 126 e segs. e vide «aplicação» em Id., Assomption de l’Europe, Paris, Flammarion, 1978, pp. 17 et passim.
104
Saudade, p. 112.
105
Ibid., p. 113.
106
“A saudade, tal como todos os núcleos formadores da espiritualidade portuguesa, será só verdadeiramente apreensível na totalidade
das suas partes, como complementaridade: e na sua mais alta expressão, como junção da imanência e da transcendência.” (cf. Saudade, p. 113). Como se poderia, ainda, confrontar, a propósito
dos paradigmas metafísicos, com Claude TRESMONTANT,
Les métaphysiques principales – Essai de typologie, Paris, François-Xavier de Guibert, 1995, pp. 213 e segs.
83
assim suposto preclaro à consciência sensibilíssima pátria em que o infindo e o mortal se encontram desencontrando…
Donde toda a «mensagem» pátria feita de exílios
e retornos, de substituições e refontalizações,
seja antecipada desde a gesta Babilónica e Bíblica, passando pelo ex oriente lux da tradição clássica desde as raízes pré-socráticas,107 até às sínteses de Camões e de Vieira, ainda de Pessoa e soit
disant do seu «panteísmo transcendentalista».108
Mas, embora esta busca de raízes para a mensagem saudosa já tivesse sido prosseguida por Teixeira de Pascoaes quando exige o timbre judaico
da esperança em síntese com a herança helénica e
ariana do desejo,109 Dalila indica a ‘cultura nova’
em que o novo Homem será, outrossim, “unidamente pagão e cristão na sua mais concreta e irredutível essência: na saudade, a sua pessoa, como
entidade única não repetitiva, vivida numa única
vida terrestre, limitada por um nascimento e por
uma morte, e nessa vida única terrestre e limitada
preparando-se para a outra, eterna, na abolição do
tempo, ou saída para fora do tempo, irrevocável,
na usufruição da eternidade – sofrerá no mundo
da saudade, uma multiplicação infinita para lá
desses limites duma vida única vivida por uma
única pessoa.”110
E, embora face a tão espantosa evidência,
numa lucidez que ilumina, dir-se-ia, o ‘milagre
da multiplicação’, a nossa Autora volta aos
apoios de um lógos mítico em figuras de forçada
geografia simbólica, como por exemplo,
quando afirma: “Tudo levará sempre a crer que
é em Portugal que mais forte e fundamente a um
tempo explícita e secretamente, se deu a junção do
mundo mediterrâneo e do mundo hiperbóreo, e do
107
Não propriamente a História mítica ou da legenda arquetípica de um povo, mas o próprio Mito em forma histórica como
desenvolvimento típico de uma ideia… Donde a diversa valorização de arkhé, não na cosmologia do logos grego, mas na
literatura e psicologia de uma Tradição exemplar… Sobre tal ex
oriente lux, cf. René GUÉNON, Symboles fondamentaux de la
Science sacrée, Paris, Gallimard, 1962, pp. 209 e segs., etc. ; cf.
Id., A Crise do Mundo Moderno, trad. port., Lisboa, Ed. Vega,
1977, pp. 53 e segs. : «A Oposição entre Oriente e Ocidente»; e vide também, em contraste, Gilles FARCET, L’Homme
se lève à l’Ouest, Les nouveaux sages de l’Occident, Paris, Albin
Michel,1992… 108
Cf. Saudade, pp. 112-114…
109
Cf. Teixeira de PASCOAES,
110
Saudade, pp. 118-119.
84
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
cristianismo e do paganismo – como centro da cruz
do espaço e do tempo, da terra e do homem.”111 –
não se pode elidir já ali uma experiência que
transcende pela «graça» do heteronímico.112
De facto, se uma “História secreta de Portugal”
poderá sempre convir como ponto de apoio,
quanto mais não seja para uma arte de horóscopo, num pensar destinado como o de António
Telmo,113 certo é que no enigma que, por outra parte, Marinho sondou,114 haverá um portal
português para outra dimensão, uma espécie de
condição marginal assim sonhada…115
Deixando de parte este mundo onírico – vero
alinhamento de outros âmbitos de realidade –
e seus desenvolvimentos continuados ao longo
das obras de Dalila P. da Costa, quer quando
sonda origens pré-históricas, quer quando poeta
um futuro (como por exemplo, em Da Serpente à Imaculada…)116, importa antes salientar a
transgressão que o seu tempo vivido, a sua simbólica Hora de Prima interiorizada em mística
experiência,117 deixa entrever.
Diríamos com Dalila: “Daí também toda a heterodoxia da saudade. Mas daí também toda a sua possibilidade de abertura, poder de aceitação infinito.”118
É neste tocante em que a figura sensível de Dalila se reveste de justificada pensadora, até das
heranças orientais de tal mística possibilidade,
que melhor se compreende quanto tal itinerário interior, mesmo assim se deixando recordar
em mapa, se vela num pudor que quase sempre
reservou a narrativa autobiográfica.119 Território
que, outrossim, se tornou tópos comum desde a
modernidade cristã,120 e talvez périplo bem mais
lusíada e de torna-viagem por esse outro ‘mundo de mundos’, esse dar a entender um no sé qué
de “ilhas tão estranhas”, como significaríamos
com San Juan de la Cruz.121
Ao evocar as paragens do extremo-oriente do taoísmo, do zen, ainda do hinduísmo, do yoga e
do tantrismo… o que está em causa é “uma força de vida contactada, possuída directamente, que
rebentará os limites e capacidade do puro intelecto,
como única e parcial forma cognitiva usada pelo
homem ocidental”.122 Dalila P. da Costa encarna
esta consciência, afinal subitista sob a forma de
uma iluminação interior, de uma imediata saudade que assim “mortifica” esse mesmo pensar
narrativo ou do conto mítico.123
Ibid., p. 119.
112
De facto, Dalila P. da Costa entende em O esoterismo de
Fernando Pessoa, o heteronímico como uma gratuita criatividade
embora em ordem à integração do ser próprio. Cf. Ibid., pp.
137 e segs.. Vide infra n. 124.
113
Cf. António TELMO, História Secreta de Portugal, Lisboa,
Ed. Vega, 1977, e vide Id., O Horóscopo de Portugal, Lisboa,
Guimarães Ed., 1997.
114
Vide José MARINHO, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, Porto, Lello & Irmão, 1976,
pp. 223 e segs.: «Filosofia da Saudade e Filosofia Profética».
115
Como bem vem pensando Paulo BORGES, por exemplo, em
Da Saudade como via de libertação, Lisboa, QuidNovi, 2008, pp.
15 e segs.: «Visão»… Também ter presente as referências em Id.,
Uma visão armilar do mundo – A vocação universal de Portugal em
Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, Lisboa, Babel/ Verbo, 2010.
116
Cf. Da Serpente à Imaculada, ed. cit., pp. 25 et passim.
117
A questão da experiência mística, ainda que por indução
poética, está patente não apenas na obra de Dalila, mas como
expressão da sua vivência particular. Cf. Hora de Prima, ed. cit.,
pp. 28 e segs.: «O Espírito», «O Guia»… Vide o interessante
estudo de Joaquim da Silva TEIXEIRA, “Dalila Lello Pereira
da Costa, uma mística ecuménica”, (excerto da Tese de Mestrado à Fac. de Teologia do Centro Regional do Porto da Univ.
Católica Portuguesa), in: Revista de Espiritualidade, VIII, nº 30,
Abril/ Junho (2000), pp. 85-112, salientando sobretudo o diálogo da experiência espiritual de Dalila com as várias tradições
religiosas e o universalismo português.
118
Saudade, p. 119.
Só em “Três meditações sobre o êxtase”, in: A Força do Mundo, Porto, Lello, 1972, também antes em tradução franc.,
«L’Expérience de l’Extase», in: Esprit, nº 11 (nov. 1970), Dalila
deixa entrever várias das suas experiências mais interiores…,
como reconhece António QUADROS, em Memórias das Origens, Saudades do Futuro, ed. cit., pp. 57 e segs.: «Mística e
hermenêutica – A obra singular de Dalila Pereira da Costa»,
sobretudo pp. 61 e segs.: «A experiência do êxtase».
120
Um lugar retórico assim… Cf. Michel de CERTEAU, La Fable
mystique, Paris, Gallimard, 1982, pp. 103 e segs. : «Une topique».
121
De facto, seja uma história trágico-marítima de «diluências»
de mundos aparentes, seja a consciência de tal sob a forma
dessa estranheza, como se de um além no aquém. Dizível pela
expressão adoptada por S. JUAN DE LA CRUZ, Cant. Espiritual, (B) c. 7, 8-9: «Y déjame muriendo/ un no sé qué que quedan
balbuciendo»… ignorância complementarmente expressa pelo
Deus das ínsulas extrañas (Cánt, (B), c. 14-15, 8: “Y así, por
las grandes y admirables novidades y noticias extrañas alejadas
del conocimiento común que el alma ve en Dios, le llama ínsulas
extrañas.”; o que corresponde, aliás, a uma estratégia de docta
ignorantia, típica desde o Renascimento. Cf. Richard SCHOLAR, The Je-Ne-Sais-Quoi in Early Modern Europe – Encounters with a Certain Something, Oxford, Univ. Pr., 2005.
122
Saudade, p. 131.
123
O que constitui um “apartar de águas” entre a corrente de
um ir gradual, de uma pedagogia (ou “andragogia”, como diria
Manuel Patrício) e a via rápida da súbita iluminação num ressalto de consciência, tal se pressente no fundo místico da vida
espiritual de Dalila P. da Costa. Cf. nosso estudo, Carlos H. do
C. SILVA, A «via rápida» de auto-realização numa óptica trans-
111
119
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Traduz-se na questão – para Dalila, anti-búdica
– do Eu permanente a descobrir pela saudade,
não por uma via negationis e pessimista, porém
pela iluminação que relê no Camões de «Sôbolos rios que vão».124 Afinal o que fica acessível e,
porventura, sempre a fazer, na mística experiência, do diferente “em mim”…125
Porém, a lectio de uma filosofia, ainda que órfica e iniciática, bem assim de uma traditio em
que acordam e adormecem vários rostos da
humanidade,126 não substituem em tal drama
‘encenado’ no palco da cultura o que, mesmo
em Shakespeare, são os fantasmas de outras personalidades possíveis e, sobretudo, de permeio
à possessiva multidão, a descoberta do único.127
Por isso, em contraste com este andamento
messiânico e esta simbólica cultural, ainda que
dum País mais sonhado do que já real, importa
retomar o que em outra ocasião salientámos no
testemunho místico da experiência visionária
de Dalila.128
Bastará ter presente as suas meditações sobre o êxtase (de A Força do Mundo), por certo recortadas
pessoal – Exemplo da experiência mística de Teresa de Lisieux”,
(Comun. ao “Semin. Internac. «A Vivência do Sagrado», Fac.
de Psicologia e Ciências da Educação, Lisboa, 6-8 Nov. 1996),
in: Várs. Auts., A vivência do Sagrado, Coord. Núcleo de Psicol.
Transpessoal, Fac. Psicologia, Univ. Lisboa, Lisboa, Huguin,
1998, pp. 65-99.
124
Cf. Saudade, pp. 113 e segs.: «O Hino da Sabedoria Nacional», citando as redondilhas Sôbolos rios que vão»…
125
O que poderia constituir convite ao heteronímico que, entretanto, acha diversa “solução” em Dalila P. da Costa, quando
em O Esoterismo de Fernando Pessoa, cf. supra n. 81. Tenha-se
presente a hermenêutica de alteridade na experiência mística
segundo a análise de Michel de CERTEAU, Le lieu de l’autre
– Histoire religieuse et mystique, Paris, Gallimard/ Seuil, 2005 e
Id., L’Étranger ou l’union dans la différence, Paris, Seuil, 2005,
pp. 171 e segs.
126
Vide a tradição de Orfeu… Tenha-se presente F. Pessoa, Almada…; vide referências em nosso estudo: Carlos H. do C.
SILVA, “O Pitagorismo de Almada – Interpretação simbólica
ou mítica filosofia órfica?”, in: Várs. Auts., Almada Negreiros. A
Descoberta como Necessidade, «Actas do Colóquio Internacional,
(Porto, 12-14 Dezembro, 1996), Celina Silva (coord.), Porto,
Ed. Fundação Engº. António de Almeida, 1998, pp. 473-489.
127
Como se reflecte, a partir de Dostoievski, e muito a propósito,
em Michel ELTCHANINOFF, Dostoïevski – Roman et philosophie, Paris, PUF, 1998, pp. 67 e segs.: «Une poétique de l’altérité».
128
Cf. nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Filosofia
e Mística na Escola Portuense ou Destino mítico de uma
Literatura pensante?”, in: Actas do Congresso Internacional
Pensadores Portuenses Contemporâneos, 1850-1950, Lisboa, INCM, 2002, vol. I, pp. 291-322.
85
da experiência quase-xamânica que ia sendo carreada daquele fundo da matriz e Terra-Mãe de
todas as coisas.129
“Aí onde penetrei, era uma esfera de cristal, onde
tudo era luz e silêncio – tudo isso que subitamente
veio e me envolveu.”130 – conta Dalila nesta significativa primeira pessoa, caracterizando essa
abertura do envolvente como um quebrar-se do
“ovo” do mundo: “Esfera feita duma substância
poderosamente dura e frágil. Irradiante e geometricamente definida. Fremente e calma: a verdadeira
vida nesse lugar desvendada.”131
Nesse cristal que revela o íntimo de todas as coisas por essa iniciação em mim, isto é, por tal penetração de tal força, Dalila confessa: “Impondo-se
por uma potência irresistível, uma autoridade incontestável; mas vulnerável, susceptível de ser posta
em fuga à mínima falta da minha parte. Vinda
expressamente para mim, mas fugaz. Impossível de
aprisionar porque indizivelmente livre…”132
129
Por certo importante a aproximação ao que se encontra no
caminho de realização do yaqui D. Juan, transmitido nas obras
de Carlos CASTAÑEDA, The Eagle’s Gift, London/ Auckland/
Sydney…, Hodder & Stoughton, 1981, etc., em especial, Tales
of Power, N.Y., Simon & Schuster, 1974…. Quando se refere
a força do mundo… (cf. A Força do Mundo, eds. cit., pp. 15 et
passim). Por outro lado, a pesquisa histórico-mítica de Dalila
P. da Costa (por exemplo, em A Nova Atlântida, Porto, Lello,
1977…, etc.) permite recordar uma via tântrica em que o pulsional e dionisíaco advém como elemento matricial indeclinável… Cf. Alain DANIÉLOU, Shîva et Dionysos La religion de
la Nature et de l’Eros – De la préhistoire à l’avenir, Paris, Fayard,
1979, sobretudo pp. 255 e segs.
130
Cf. A Força do Mundo, ed. cit., p. 9. António QUADROS,
que cita este passo, em Memórias das Origens, Saudades do Futuro, «Mística e hermenêutica – A obra singular de Dalila Pereira
da Costa», p. 62, não deixa de procurar paralelo na mística de
St.ª TERESA DE JESUS, no Libro de la Vida, 28, numa idêntica experiência diorática. «Não é um resplendor que deslumbra,
mas uma brancura suave e resplendor infuso, que deleita grandemente a vista e não a causa, nem a claridade que se vê para ver
esta formusura tão divina. É uma luz tão diferente da de cá (…).”
(apud trad. de A. Quadros, ibid., p. 63).
131
Cf. A Força do Mundo, ed. cit., p. 9. Não deixará de estar
implícita uma espécie de cosmogonia órfica, quiçá em paralelo
à cosmofania de Eudoro de SOUSA, “Sobre o conteúdo original da teogonia e da escatologia órficas”, in: Id., Dioniso em
Creta e outros ensaios, Lisboa, IN-CM, 2004, pp. 233 e segs.;
cf. também Id., “Mitologia como cosmofania”, in: Id., Mitologia, História e Mito, Lisboa, IN-CM, 2004, pp. 179 e segs.
Vide nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Cosmofania ou
Mitopoiese? – A interpretação do Mito em Eudoro de Sousa”,
(Comum. ao V Colóquio Tobias Barreto, Braga, 1998; entregue
para publicação).
132
A Força do Mundo, p. 9.
86
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
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Cultura
E nesta graça assim transformante e pessoalíssima, tanto quanto frágil e na kénosis de qualquer
identificação,133 parece ficar o registo, afinal
infra-linguístico, de uma tal máxima intensidade
em que esse ‘eu’, assim derramado, se acha catapultado sobre si mesmo.134
“Que analogia tomar no nosso mundo, aquele
onde vivemos todos os dias, para tentar elucidar
esta presença, esta realidade? Procuro-a, mas não a
encontro em parte alguma. (…)”135 – e já neste registo tardo da mesma experiência faz-se o espaço
para a glosa desta outra “perda do Amado”, da
busca em vão do que se possui mas em saudade
se perde, quiçá para outra futura intensidade de
reencontro.136 Donde a súplica de Dalila pelo
êxtase de poetas como Rimbaud, ou mesmo de
Dante, na demanda dessa “força, esse centro de
vida, seu coração ardente, onde se penetra.”137
Contrariamente à dinâmica da fé cuja densidade “rochosa”,
e ‘capaz de mover montanhas’, o patético da experiência saudosa
no seu apassivado místico descrê toda a força de identificar, delindo os traços da máscara e nunca se podendo, enquanto tal,
reconhecer como fez em metanóia S. Paulo: “Já não sou eu que
vivo, mas Cristo que vive em mim.» Na pneumatológica saudade não há ícone e quem advenha faz-se força impessoal, embora
personalizante de quem sente e se ressinta. É quase como se um
mágico “mundo” a vibrar-me de sentido… Cf. ainda o «idealismo
mágico» pessoano em «A Múmia», V, in: Obra Poética, ed. M.ª
Aliete Galhoz, Rio de Janeiro, Aguilar Ed., 1962, p. 133: “… há
sempre coisas atrás de mim. /Sinto a sua ausência de olhos fitar-me,
e estremeço./ Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido. (…).”
134
Como se este Self se manifestasse pela presença ausente –
ausência presente no “binário” da pulsação saudosa… Cf., por
exemplo, Richard SORABJI, Self – Ancient and Modern Insights about Individuality, Life, and Death, Oxford, Clarendon
Pr., 2008, pp. 201 e segs.
135
A Força do Mundo, p. 9. Vide paralelo temático em nosso
estudo sobre S. João da Cruz: Carlos H. do C. SILVA, “«Esconde-Te, ó Amado» (C (B) 19, 3) – Do conhecimento místico
pela sombra, em S. João da Cruz”, in: Rev. de Espiritualidade,
XV, nº 60, Out.-Dez. (2007), pp. 245-316.
136
Cf. o simbolismo do Cântico dos Cânticos tão universalmente retomado desde a tradição cisterciense até à poética da
saudade… Vide, na tradição portuguesa, a Antologia: Afonso
BOTELHO e António Braz TEIXEIRA, Filosofia da Saudade,
Lisboa, IN-CM, 1986; e remeta-se ainda para o nosso estudo:
Carlos H. do C. SILVA, “Saudade e experiência mística”, in:
Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, Actas do I Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade, Viana do Castelo, Câmara Municipal,
1996, pp. 117-133.
137
Seria ocasião para remeter a vários artigos sobre a poética e
a experiência mística: cf. De la poésie comme exercice spirituel,
(Revue Fontaine, 1942) reed. Paris, Le Cherche Midi éd., 1978;
vide também Jacques et Raïssa MARITAIN, «L’intuition créatrice et la connaissance poétique», in: Œuvres complètes, vol. X,
Fribourg/ Paris, Ed. Univ./ Ed. Saint-Paul, 1985, pp. 233-296;
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Experiência ainda diorática que talvez se possa
aproximar da imaginatio activa da tradição sufi
iraniana num equivalente ‘sol interior’ (qual sol
niger…) ou na experiência incoativa do corpo de
luz,138 e se acha figurada por Lima de Freitas em
mitolusismos desse brilho fontal das Hespérides e
da Fons vitae…139
Prossegue ainda a descrição de Dalila: “Aí nessa
estrutura, forma e cores são abolidas, para subsistir
unicamente uma luz deslumbrante. Dá-se como
uma superação (ou transmutação) das imagens
da terra (ou do seu ser?). Como se houvesse, não
talvez uma destruição de imagens, mas um seu
despojamento.”140 Tal o Entbilden e a Abgeschiedenheit de Eckhart,141 ou a imersão num oceano de Luz na nirvânica extinção de todas as
destrinças,142 esta iluminação extática apenas é
referida por uma série de espasmos interrogativos e numa suspensão143:
133
e cf. outra meditação em nosso artigo: Carlos H. do C. SILVA,
“Poesia e experiência espiritual”, (Comun. Univ. Évora, Depart. de Línguas e Literatura, 3 Junho 1998) in: Itinerarium,
XLV, nº 163, Jan.-Abr. (1999), pp. 29-44.
138
Cf. Henry CORBIN, L’homme de lumière dans le soufisme
iranien, Saint-Vincent-sur-Jabron, Sisteron, Éd. Présence,
1971, sobretudo pp. 109 e segs.: «Lumière noire»… ; vide
também Natalie DEPRAZ, Le corps glorieux – Phénoménologie
pratique de la philocalie des Pères du désert et des Pères de l’Église,
Louvain/ Paris/ Dudley, Éd. de l’Institut Sup. de Philosophie
Louvain-la-Neuve, 2008. Vide n. seguinte.
139
Vide Lima de FREITAS e Gilbert DURAND, Mitolusismos
de Lima de Freitas, texte de Gilbert Durand, Guimarães, Galerie
Gilde, 1987, pp. 135, 137…
140
Cf. Força do Mundo, pp. 10 e seg. E vide Ibid., p. 123: “Não é
na mística que se pode ver a confirmação de muitos pontos que por
eles mesmos constituíram a revolução dos últimos anos de ciência?
No instante supremo da iluminação, não se sentirão os místicos em
face de qualquer coisa como esse “grão de energia”, esse quanta de
uma medida insuspeita?”
141
Cf., por exemplo: Emilie Zum BRUNN, «Un homme qui
pâtit Dieu», in : Emilie Zum BRUNN, (ed.), Voici Maître
Eckhart, Grenoble, Jérôme Millon, 1994, pp. 269-284…; vide
também Wolfgang WACKERNAGEL, Ymagine denudari –
Éthique de l’image et métaphysique de l’abstraction chez Maître
Eckhart, Paris, Vrin, 1991, pp. 79 e segs.: «Les sources de l’idée
d’Entbildung»…
142
Cf. George S. ARUNDALE, Nirvana – A Study in Synthetic Consciousness, Adyar (Madras), Taheos. Publ. House, 1927;
também o clássico estudo de Louis de la VALLÉE POUSSIN,
Nirvâna, reed. Paris, Ed. Dharma, 2001; e vide os estudos reunidos em François CHENET, (dir.), Nirvâna, («Cahiers de
l’Herne», Paris, Éd. de l’Herne, 1993.
143
Não a mera epokhé fenomenológica, porém até o carácter
rogativo da «interrogação» (como fragen, um “pedido”), afinal
numa súplica que se faz o puro louvor do que assim excede em
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
“…O que atingimos? Em que esfera de ser penetramos? [ou, como num espelho: “somos iniciados”]
É este penetrar, um último penetrar, inultrapassável? A primeira e a última no Ser – a Divindade?
[aqui como Gottheit, não o Deus revelado…] E
esta anulação das imagens, o seu ultrapassamento,
uma transcendência?”144
Porém, trata-se de uma experiência sobretudo
espiritual, quiçá dando razão a George Bataille
na recusa de a adjectivar como mística,145 já que
há, antes do mais, a pura visão sem “objecto”
que não seja essa luz de um puro ver em treva,
como talvez também subscrevesse Afonso Botelho.146 O risco de uma transcendência pura ressentida neste corpo de sentir,147 porém segundo
a palavra neste seu também êxtase interrogativo
como o puro resíduo saudoso dessa misteriosa
última aurora.148
resposta viva tudo o que houvesse a perguntar. Um “cântico
novo”… Cf. Ap 13, 2-3… um Sanctus eterno, como glosa a
mística Bt.ª ISABEL DA TRINDADE, Último Retiro, § 17…
144
Cf. A Força do Mundo, ed. cit., p. 10. Vide ainda Wolfgang
WACKERNAGEL, Ymagine denudari – Éthique de l’image et
métaphysique de l’abstraction chez Maître Eckhart, ed. cit., pp.
146 e segs. : «Vers au-delà de l’image»…
145
Cf. Georges BATAILLE, «L’expérience intérieure» (1953),
in : Œuvres complètes, V – La Somme Athéologique, t. I, Paris,
Gallimard, 1973, p. 15 : «Critique de la servitude dogmatique
(et du mysticisme)» ; «J’entends par expérience intérieure ce que
d’habitude on nomme expérience mystique : les états d’extase, de
ravissement, au moins d’émotion méditée. Mais je songe moins à
l’expérience confessionnelle, à laquelle on a dû se tenir jusqu’ici,
qu’à une expérience nue, libre d’attaches, même d’origine, à quelque
confession que ce soit. C’est pourquoi je n’aime pas le mot mystique.»
146
Vide Afonso BOTELHO, «Ecce Homo», in: Id., Ensaios de
Estética Portuguesa, Ecce Homo/ Painéis/ Tomar, Lisboa, Ed.
Verbo, 1989, pp. 27 e segs.: «A Palavra Perdida – A Luz…»;
vide nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Ver o invisível – O
pensar estético de Afonso Botelho”, in: Instituto de Filosofia
Luso-Brasileira, O Pensamento e a Obra de Afonso Botelho, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005, pp. 159-182; e também Almada
NEGREIROS, Ver, ed. Lima de Freitas, Lisboa, Arcádia, 1982,
pp. 41 e segs.: «O mundo sensível»…
147
Sim, que o êxtase é indeclinavelmente um arrepio de física
presença e tal lugar do sentir… Vide Louis MASSIGNON,
«Discussion sur le péché» (1945) e ed. in : Id., Écrits mémorables,
I, Paris, Robert Laffont, 2009, p. 175 : «L’extase pourtant n’est
pas une chose de l’âme. C’est une chose purement physique, dans
les signes que l’on en trouve.» ; e também Georges BATAILLE,
«L’expérience intérieure, ed. cit., pp. 45 et passim.
148
“…Porque um mundo novo tem de ser sempre criado dentro
de cada um, um a um; criado de dentro para fora.” – e, como
se num somatório de “mins”, acrescenta Dalila: “Ele será criado
pela soma dos múltiplos paraísos internos atingidos um a um.” (cf.
Os Jardins da Alvorada, Porto, Lello, 1981, p. 12). O que significa já o equivalente da ‘rumorosa floresta de mónadas’ referida
por Leonardo (cf. Criacionismo (Síntese Filosófica), in: Obras de
87
E nessa lucidez já não discursiva, nem de propósitos sequer simbólicos, reabsorve-se em ‘eterna’
memória o que é pura evanescência de tão frágil, súbita experiência149 infindamente saudosa:
Um tempo ‘fora’ do tempo150, qual mau-jeito de
quem não acerta na hora de dizer, mas se acolhe
assim por tal resíduo de sentir.151 Aclarou-se.152
L. C., ed cit., vol. I, pp. 364 e segs.: «Deus e as Mónadas»…),
mas sem responder à multiplicidade propriamente dita na sua
potência heteronímica e tanto de “um em todos” como de tudo
em tudo do antigo pensamento de Anaxágoras sobre a infinitude
plural ou sem “jardim murado” de qualquer Paraíso sonhado…
Revolução interior como concordaria J. KRISHNAMURTI
(The Only Revolution, London, Victor Gollancz, 1973 e vide Id.,
Exploration into Insight, London, Victor Gollancz, 1979, pp. 41
et passim), mas, entretanto, a advertência de uma epistemologia
já não de “somatório” de “quantidades finitas”, outrossim o que
apontou Alexandre KOYRÉ, From the Closed World to the Infinite Universe, Baltimore, John Hopkins Pr., 1957…
149
De facto, reconhece-se ex exaíphnes, como faz ontológica hipótese Platão (Parm., 156 d e segs.) o que nem chega a ser (um
quase-não-ser… cf. Vladimir JANKÉLÉVITCH, Le Je-ne-sais-quoi et le Presque-rien, t. I: la manière et l’occasion, Paris, Seuil,
1980, pp. 13 e segs.: «Le charme du Temps»…) mas se revela
pela retirada em si, como no prototípico gesto da Kabbalah de
Isaac de LURIA, como tikkun… (cf. Eliahu KLEIN, (trad.),
Kabbalah of Creation, Issac Luria’s Earlier Mysticism, Lanham/
Boulder/ N.Y…., Rowman & Littlefield Publ., 2004, pp. 42 e
segs.). Qual anicca ou “impermanência” búdica é ainda uma luz
(hebr. aur) devorada em espírito (ruach ou puro pneuma…),
a kénosis perfeita do divino ocultamento no mais ínfimo, assim sensibilíssimo… Cf., vários estudos em Marie-Madeleine
DAVY, Armand ABÉCASSIS, Mohammad MOKRI, Jean-Pierre RENNETEAU, Le thème de la lumière dans le Judaïsme,
le Christianisme et l’Islam, Paris, Berg, 1976.
150
E que será tal, ainda que na perplexa experiência de não haver tempo para o tempo, senão uma paciência (cf. nosso estudo:
Carlos H. do C. SILVA, “O ‘Nada te turbe… todo se passa…’
teresiano – Uma poética da paciência perante o devir”, in: Revista de Espiritualidade, XIX, nº 78, Abril/ Junho (2012), pp. 85114), um «sofrimento» de tal ‘alquímica’ transmutação duma
hora qualquer nesse alongamento da espera em esperança (cf.
Pedro LAÍN ENTRALGO, La Espera y la Esperanza, Historia y
Teoría del Esperar Humano, Madrid, Rev. de Occidente, 1962,
pp. 539 e segs.), nesse adiar o relógio do mundo com a força
inversa da morte?… E, se não numa amorosa notícia do instante lúcido, ao menos deste trânsito purgatório em que se repete,
tempo extra tempo como saudosa reminiscência… Uma subtil
declinação de ser… Cf., a propósito, Bernard SALIGNON, Les
déclinaisons du réel, Paris, Cerf, 2006, pp. 9 e segs. e vide pp.
193 e segs.: «L’éternel retour et le réel»…
151
Num paralelo “místico” com S. JUAN DE LA CRUZ, Cánt.
(B), c. 7, 9-10: “porque es en alguna manera al modo de los que
le ven en el cielo, donde los más le conocen entienden más distintamente lo infinito que les queda por entender (…). Pero el alma
que lo experimenta, como ve que se le queda por entender aquello
de que altamente siente, llámalo un no sé qué; porque así como no
se entiende, así tampoco se sabe decir, aunque (…) se sabe sentir.”
152
Dir-se-ia no eco reverberado da Autora também de Os Jardins da Alvorada… e aí «Uma brilhante noite de sol»…
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
88
de
Cultura
para o
Século XXI
UM FIO DE MEADA
Carminda Proença
À Dalila Pereira da Costa,
na saudade que O não É…
N
um colóquio sobre Sincronicidade e Carl
Jung na Faculdade de Letras em Lisboa,
organizado pela ALUBRAT (Associação Luso
Brasileira de Transpessoal) encontrei-me na
mesa dos palestrantes entre Dalila Pereira da
Costa e Carlos H. C. Silva. Ambos me tocaram
pela presença e pelas palavras, também as que
me dirigiram pela minha intervenção, encorajadoras que foram na confirmação do caminho.
A leitura de obras da Dalila P. da Costa foi para
mim muito inspiradora, em especial pela forma
como transmite a abertura e o deslumbre na
união com o Amor Maior.
Mais tarde, no meu encontro com a Filosofia
Portuguesa que se deu em Sesimbra através do
grupo de amigos de Agostinho da Silva, conheci
Paulo Borges, António Telmo e foi então que
retomei o contacto com Dalila. Dos três recebi
inspiração, encorajamento e apreciação quando
me aventurei no Reino da Consciolândia para escrever As Aventuras de Ego de Todos Nós.
Com profundo respeito e gratidão dedico a Dalila Pereira da Costa, Mulher fecunda em Graças, na saudade de uma partida que O não É, o
poema Mulher Mátria e um Sonho Luz tido na
madrugada da Lua Cheia das águas de Neptuno
e, bem a propósito, também Dia internacional
da Mulher deste ano de 2012, no qual a Lua, a
Mãe Terra e Todos Nós recebemos as vibrações
de explosões pouco usuais no Sol fecundador.
Mulher Mátria
Teu corpo sangra.
E nessa morte
renasces
eternamente,
num redondo
sem princípio
nem fim.
És.
Fecunda, sempre.
Forte na partida
no prazer da diáspora,
cumprida.
Doce no regresso
aberta
consentindo em ti
outras vidas.
Sem mais dor
de (te) prenderes
no desejo vazio
que já não és.
Corpo terra,
mar sangue.
Mulher vida.
Mãe.
Pátria.
Amada amiga.
Toda vazia
só podes receber.
Potência de ser.
Consagração amorosa
do poder de criar.
Corpo
sacrário ardente
teu fogo resplandece.
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Emoção interior
união semente
lua autogerando
no ventre
O que recebes
de um sol...
Rende-te.
Incendiada
aberta que foste
pela chave do sagrado
para sempre...
Sonho Luz
Todos sabemos como a reciclagem e a não poluição
são críticas para a sobrevivência do planeta Terra e
de todas as espécies que nele vivem. Sabemos também como é urgente encontrar novas formas de
lidar com o aumento das necessidades energéticas.
Sabemos ainda que a vida no Universo é feita de
vibração e partículas a que chamamos energia,
desde a radiação cósmica primordial até à maior
densidade da matéria que se vai formando ao
longo da sua expansão. Aprendemos que diferentes estados de manifestação correspondem a
diferentes frequências de vibração.
Sabemos que não podemos percecionar ou compreender e muito menos podemos controlar todo esse
Universo vibratório e suas múltiplas manifestações.
Podemos nós de algum modo influenciá-las? Até
que ponto?
Poderemos realmente diminuir a poluição e
tornar mais limpa a Terra que habitamos? É a
poluição unicamente uma condição do que chamamos matéria ou poderá também ser um estado mental ou emocional? Ou até mesmo um
estado espiritual…?
O Planeta Terra parece ser capaz de reciclar, transformar e recriar a maior parte das formas de vida
que nele existem. E nós, humanos, até que ponto
somos capazes de compreender como podemos
reciclar, transformar e recriar não só a matéria
que manipulamos e seus detritos mas também
os nossos corpos, pensamentos, emoções, cooperando consciente e responsavelmente na obra de
criação que todo o Universo parece ser?
Algo de importante e crucial falta ao nosso entendimento para que possamos “ver” como re-
89
alizar esse desígnio, sabendo nós que matéria e
energia, em nós humanos e em toda a criação,
são parte de uma mesma realidade vibratória.
Esta consciência parece ser vital para que, como
humanidade, alcancemos o que pode permitir
à nossa espécie sobreviver e desempenhar o seu
papel na harmonia da própria vida.
As necessidades de produzirmos mais e mais
energia para alimentar aquilo a que chamamos
ilusoriamente melhor qualidade de vida, levam-nos a transformar materiais que a Terra nos
oferece em outros que ela parece incapaz de reciclar: lixos radioativos, derivados do petróleo e
toda a espécie de poluição.
A luta pela posse das fontes de energia inunda-nos de poluição emocional que explode em violência destruidora.
No nosso tempo parece urgente e crucial para
a sobrevivência que encontremos novas formas
“limpas” e pacificas de obter a energia suficiente
para a saúde e harmonia básicas de Todos Nós.
O que pode tornar esta nossa época especial
nessa busca?
Está agora a chegar à Terra radiação do exato
momento da criação universal e alguns cientistas
esperam assim conseguir obter informação que
possibilite novas soluções para este problema.
Talvez novas maneiras de entender a realidade
e novas experiências vibratórias possam ser abertas na nossa mente e sentidas nos nossos corpos
capacitando-nos para nos tornarmos conscientes de novos estados de ser, de novas formas de
produzir e utilizar energia…
Alguns afirmam que esta caixa de Pandora está prestes a abrir-se ao mesmo tempo que a ciência fala da
Partícula de Deus e afirma que em breve poderá
conseguir demonstrar a sua existência. Partícula de
Deus é a alcunha usada para referir o bosão Higgs
pela sua enorme importância na confirmação da
atual teoria sobre a existência do Universo.
Esta nova vibração, esta nova luz está certamente
também a atingir a nossa Consciência. Existirá
sincronicidade entre os cientistas que trabalham
para desenvolver o conhecimento necessário
à tecnologia de utilização da reação nuclear de
baixa energia – abundante e não poluente, também chamada fusão a frio, que pode originar
grandes mudanças geoeconómicas e minorar
90
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
as tão nefastas alterações climáticas – e os praticantes da espiritualidade interior, cada vez mais
numerosos e cuja intuição e sentir vem revelando
a existência de uma luz acessível à visão interna,
uma faísca brilhante irradiante, que na sua consciência e no seu corpo se revela como uma miraculosa Presença de harmonia, de amor e cura?
Seja qual for o nome que chamemos a essa Presença Viva que nos habita – Origem, Fonte,
Presença, Mestre, Eu superior, Deus, Espirito
– qualquer um de nós que a ela se abra na sua
busca espiritual, que nela acredite e confie, mais
cedo ou mais tarde senti-la-á e com ela se encontrará no mais profundo e íntimo do seu ser.
A alma (re)conhecerá essa luz. Arde como um
fogo mas não queima. É uma luz que não faz
sombras antes dilui toda a separação, como o ar.
É uma água de luz cristalina que não molha mas
lava todos os medos…
para o
Século XXI
Uma fonte primordial de Vida, presente em todos
os seres, em todos os humanos, em toda a Criação.
Ao procurarmos e focarmos essa Luz interna
descobrimo-nos antenas que a transmitem tal
como a recebem. E nessa partilha todos saberemos também o que cada um tem a fazer para
prover as suas necessidades e as de todos os seres,
em total paz e harmonia.
O Poder desta Luz que transforma e transmuta
o nosso ser, que transcende os limites da separação e nos capacita a sentirmo-nos Um, totalmente imersos nesse Amoroso e doce alimento
não têm limites. Acabarão as ilusões, os próprios
conceitos de “evolução”, de “espaço, “de tempo”, de “realidade” se transformarão.
Assim é a Luz do Cristo Ressuscitado, a Ascensão até à Origem onde as nossas raízes se ancoram firmes e seguras. O regresso a Casa de onde
nunca verdadeiramente saímos e onde nos conheceremos na verdade do Ser.
O CANTO E A ESCUTA
Cynthia Guimarães Taveira
Escrevo este texto à beira de uma tese. Daquelas teses
de Universidade. Daquelas que se querem muito depuradas, explicadas, argumentadas, arguidas perante
júris. Mas o verdadeiro júri não é esse. O verdadeiro
júri será a preservação da memória de Dalila.
E
screvo este texto à beira das Lágrimas. Que
és, Dalila? O que foste para mim? O que
resta de ti senão esses textos de uma contenção
explosiva, de um amor louco pelo céu? De um
amor louco pela terra? Que me fica senão reler-te, e reler-te uma vez mais? Que me fica senão
o desespero de nunca te conhecer plenamente?
Teu Verbo é a Luz que espalhaste pelo mundo. Por
um mundo que ainda não te conhece, como preço a
pagar de teres conhecido tão bem o Outro Mundo.
Que efeitos tem a memória em nós e que efeitos têm os teus textos na nossa memória e que
efeitos tem a tua Experiência na experiência
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
dos outros? Como é possível transformar, como
transformaste, as letras em experiências? Acaso o
misticismo se pega como uma doença? Colar-se-á
ele a nós à medida que as tuas palavras ecoam no
espaço silencioso do nosso Ser?
Só é possível ler-te no silêncio que vive dentro
do silêncio. Um silêncio duplo.
Almada Negreiros disse que toda a arte é uma
estratégia para a Poesia, mas tu, Dalila, foste ainda mais longe nessas voltas espiraladas da criação. Porque nasceste já em Poesia, porque vivias
em Poesia, porque já eras Poesia simplesmente
por existires, só te sobrava ir mais além e, como
o disseste. “Viver na caça ao sobrenatural”1.
Que se passou contigo que já não vias simplesmente com os olhos mas vias com todo o corpo?
Pereira da Costa, Dalila, Os Jardins da Alvorada, Lello & Irmão Editores, 1981, pág. 40.
Que diálogos ousaste com os anjos? Com que
cores te era desvendado o mundo?
Não, não há teses a fazer sobre ti, apenas cores
novas acabadas de nascer a cada página virada.
A tua obra é a revelação da revelação.
Sim, poderia falar dos teus ensaios e da graça
com que num golpe de asa aniquilaste o
tradicional Ensaio. O ensaio histórico, literário,
antropológico não mais foram os mesmos depois
de ti. Ousaste recusar o pragmatismo do Verbo
enquanto percorrias esses temas, pousando os
olhos da alma na História, na Literatura, na
Antropologia. O Ensaio, contigo, deixou de ser
um discurso para se tornar numa experiência.
Que outra coisa poderia ser se as palavras para ti
eram chamas vivas? Portugal deixou de ser objecto,
objectivo na análise, distância segura e controlada
para irromper por nós adentro. Para se tornar parte
do nosso Ser. Portugal passou a ser Amor.
Escrevo este texto à beira da Alegria, afinal.
Como o resultado da tua obra é a Alegria vivida na liberdade da vida. Falo em ousadia quando
falo de ti. Mas é uma ousadia antiga, uma ousadia
que vem do fundo dos tempos, uma ousadia que é
toda escuta. Uma ousadia que caminha pelas ruas
das cidade e a transmuta livremente em algo mais.
Mas essa transmutação não mais era do que um
Regresso: “E todo o acto de conhecimento poético,
sua transmissão, é um acto paradisíaco repetido”22.
Não há o isolamento místico in extremis. Não há
carmelitas descalças, nem montes Athos, nem
Cartuxos. Não há um muro entre ti o mundo.
Há um abraço fundo nele. Não há desvios nem
elevadores de renúncia numa qualquer auto-estrada rápida para o céu. Há os passos que se dão
na terra, as viagens por ela, a contemplação dela,
o silêncio que nela reside. Não há mosteiros de
retiro de pedra a cal, há um Templo interior
que se ergue como espelho da tua alma. Há um
Templo que abarca a terra toda. Há uma volta diferente no fim da cornucópia desta abundância de totalidade. Há um retirar o excesso
do mundo e devolvê-lo intacto, no seu centro
numa bandeja de ouro vivo.
Há dádiva mais do que desejo. Há desejo mais
do que exigência. Há exigência mais do que
missão. Há missão mais do que função. Há
1
2
Op. Cit. pág. 78.
91
entrega mais do que renúncia. Há renúncia
mais do que desejo.
Sim, viajaria assim indefinidamente por estes
paradoxos excessivos só para te tentar definir.
Há uma sombra que se adivinha e que remetes
para o território do mal. E insistes que o mal
é uma ilusão. Os espinhos não fazem a rosa.
Apenas as suas pétalas são a razão do seu perfume. E o que fica é o perfume da manhã fresca
que foi a tua vida.
A tua obra tem o encantamento vibratório da
música. Só que ainda mais potente. Como se a
tua vida tivesse o dom de ecoar nas vidas dos leitores que te escutam. Ler-te é escutar e nessa escuta intuir, num primeiro tempo, os vários mundos, num segundo tempo, descobri-los, num terceiro tempo, deixar que eles se manifestem como
campainhas coloridas ecoando nos momentos
de pausa que são sempre recordações das tuas
palavras. Essas campainhas ecoam num jardim
quando uma ave pousa, e é mais do que uma ave,
é um movimento esvoaçado do cosmos; ecoam
num olhar de uma criança que esconde e revela
a presença de um anjo; ecoam à entrada de uma
Igreja que é afinal o portal para a fusão com o
sagrado. Essas campainhas, almas-fadas das tuas
letras, são sempre experiências, tão seguras, tão
verdadeiras como um mergulho nas águas quentes que percorrem o corpo. Têm uma presença
tão real como o sabor de um fruto e, por isso,
transcendem a música no que esta tem de etéreo.
O teu misticismo é carnal devido ao excesso de
presença do Outro Mundo. Ele torna-se manifestação mais do que transcendência. Farias Platão pensar, repensar de novo… o teu platonismo
não é platónico pois possuí a força da terra e o
trovejar do sagrado.
A fluidez das tuas palavras é igual ao rigor com
que as escolhes. E lamentas que não haja palavras que digam o Absoluto que viveste.
“Não forçar nem intervir. Esperar e escutar. O
melhor é não fazermos nada por nós: abandonarmos tudo a essa força, deixarmo-nos trabalhar
por ela.
Estar só atentamente.
E quando ela nos atira o peixe, quando ele salta
ao ar das águas matinais do mar, das águas então
92
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
acordadas, cintilantes à primeira luz do sol, rápido, lançar-lhe o arpão.” 1
Sim, entre a quietude e a acção total, arrebatada,
entre a poesia e a razão, percorrendo a trave que
segura os pratos da balança, assim se nos podemos
situar se quisermos compreender-te. Porque renunciando não renuncias e aprisionando não aprisionas, só assim é possível “investigar o absoluto”2.
3
2
Op. cit. pág. 95.
Op. cit. pág. 90.
para o
Século XXI
Escrevo à beira do Amor, como se estivesse sempre à beira de te encontrar, numa espécie de
angústia serena que adivinha a profunda paz. À
beira deste mar imenso que é o mistério da vida.
Escrevo para que te lembrem. Para que te leiam.
Para que te escutem. Para que te experimentem
numa chamada de atenção urgente. Neste momento sou um pássaro que te canta, nos outros
tempos um pássaro que te tenta escutar. Cantar-te é sagrar-te, conseguir escutar-te é já Ser.
CLAVIS CYPRIANUS
José Leitão
P
oucos terão, como Dalila Pereira da Costa,
perscrutado com tamanha clareza e certeza
de olhar, em simultâneo intuitivo e erudito, as
remotas raízes humanas do espaço a que se veio
a chamar Portugal em busca do pulsar vivo do
espírito da cultura3. E é desta forma igualmente impressionante, com o mesmo conforto com
que lia e interpretava os autores clássicos, nossos e do mundo, em busca desse veio espiritual
esquivo mas perturbadoramente presente, que
esta mesma autora veio a ler e interpretar, segura
entre os fantasmas do Medo e do Ridículo, o
Livro de São Cipriano.
Este nome é sonante e poderoso, sibilante como
as serpentes e forte como os trovões. Poderoso o
suficiente para, só de o lerem, muitos tremerem,
em corpo e espírito. Este é um livro que agita e
perturba. Daí que este mero exercício de leitura
por esta autora se torna uma lufada de ar fresco
e acto de amor a este tão essencial livro, inexplicavelmente relegado ao desprezo até pelos (e
se calhar principalmente pelos) mais espirituais
de nós. Acontece que por vezes nos perdemos,
buscando à lupa as linhas esquivas da espiritualidade nas finas fendas entre as palavras que nos
Espírito não no sentido figurativo, mas bem literal. O génio,
o anjo da cultura.
3
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
esquecemos do óbvio, vivente e omnipresente
herói mágico Cipriano, o primeiro dos feiticeiros, o Salomão Ibérico.
Analisando o grande Grimório Ibero-Americano na sua obra «Corografia Sagrada», em especial a fundamental secção de «Desencanto de
Tesouros», Dalila Pereira da Costa, inserindo-o
na linha condutora da sua impressionantemente coerente obra (com a qual por vezes podemos
discordar), veio a descobrir (no sentido de destapar), creio eu, uma das chaves mestras deste
grande livro de mistérios. Esta chave é esquiva,
mas óbvia e omnipresente quando se a vislumbra, e analisando a restante obra da autora, será
de questionar se ela própria terá reparado na
sua descoberta.
O desencantamento de tesouros não é em si próprio nada de único ou notável. Trata-se inclusive
de um dos temas mais vulgares e usuais da literatura mágica Mundial. Mas o complexo mítico
e mágico Ibérico é que não é vulgar e usual. O
«encanto» e o «encantado» são conceitos multifacetados e de múltiplas camadas na mente
arcaica Portuguesa, o derradeiro super-natural.
O Encantado está fora do mundo, para além da
vida e da morte, nem humanos, nem espíritos,
nem deuses, simplesmente encantados.
93
Este conceito, com as suas raízes na Ibéria, estende-se e expande-se até ao Brasil e aos seus
cultos vivos de Pajelança, Terecô, Jarê, Jurema e
Encantaria, onde o derradeiro encantado, o Rei
Dom Sebastião, ainda vive, governa e comunica com os seus devotos iniciados. É do encanto
que trata esta secção do Livro de São Cipriano
mencionada acima, dos encantados «escondidos
com os seus tesouros nas profundezas da terra,
persistindo, através dos séculos e milénios, nem
mortos nem vivos»4.
No entanto, à subsequente interpretação da autora ao Livro de São Cipriano, embora mais que
sã, terá talvez faltado o salto lógico da associação, de nada complicada, destes mesmos Encantados descritos do Livro ao largo corpus mítico
dos derradeiros encantados Ibéricos: os Mouros.
Esta aparente omissão na obra citada é realmente estranha, observando a própria que estes
Encantados surgem junto de fontes, nascentes,
rios, ervas, plantas várias e árvores5, locais de
cultos pré-cristão e consequentemente os locais
de habitação dos mais variados espíritos, quer
Ninfas quer Nereidas, que na mente popular serão sempre Mouras.
Destas mesmas Mouras e dos seus tesouros faz
esta autora uma análise mais que adequada e
certeira. Os Mouros surgem como os ecos de
antigos povos, aglomerados numa única figura,
o derradeiro e estranho Outro, representante
da força e poder da arcaica e mais remota humanidade. O seu ouro, no sentido esotérico,
será a antiga e secreta ciência6, o conhecimento
dos homens ancestrais. Estes ganham um carácter e profundidade muito mais complexa
que a larga maioria dos espíritos guardiões de
riqueza que populam os muitos livros de magia
Mundiais. Estes são os remotíssimos antepassados, fora do tempo e do espaço, guardando
os seus tesouros para o homem de virtude e
coragem que lhes quebre o encanto, que traga
este conhecimento do limbo da memória para
o mundo corrente e imediato.
Transportando esta análise para os Encantados
do Livro de São Cipriano, este livro revela-se
de súbito como um verdadeiro livro de conhecimentos ocultos, bem para além daqueles que
se mostram escritos na superfície das suas páginas. O tesouro enterrado e encantado é o conhecimento oculto, o Encantado o seu espírito
tutelar, o Livro de São Cipriano a chave para o
seu desencantamento. Mostra-se assim o Livro
como um método genuinamente Ibérico (em
contraponto mas nunca em contraste com os
métodos Brasileiros) de estabelecer comercio
com os Encantados. Pois «as Mouras, Sereias,
Nereidas e ninfas, representarão a mais abissal
descida ao nosso extracto primeiro anímico e
histórico»7. O desencantamento de tesouros
é nesta perspectiva o ressurgimento atavístico,
saudoso8, das regiões subterrâneas da psique, do
inconsciente colectivo e seus subterrâneos escuros e líquidos9, dos saberes ancestrais mais remotos, desde a alquimia à licantropia e à transcendência da dualidade entre o Nós e o Mouro, o
eterno Outro.
Embora não explicitamente descrita por esta
autora, mas nem por isso deixando de ter sido
descortinada por ela, esta é a grande chave que
se pode encontrar no seu trabalho que abre e
coroa o Livro de São Cipriano aos nossos olhos
Podemos então, nesta perspectiva, reabilitar o
Livro de São Cipriano para além das, já ultrapassadas, e desde sempre ridículas, categorias de
Alta ou Baixa Magia. Ele mostra-se como fonte
de uma gnose rara e sombria, cujos modernos
expoentes se poderão encontrar nos escritos de
ocultistas como Kenneth Grant e Andrew D.
Chumbley, já aqui presente há várias centenas
de anos entre nós.
Quer gostem quer não, tanto de um lado como
do outro, o ocultista Ibero-Americano estará em
dívida para com Dalila Pereira da Costa.
Dalila L. Pereira da Costa: Corografia Sagrada, Lello & Irmão
Editores, Porto, 1993, p. 268.
5
Ibidem, p. 269.
6
Idem: Da Serpente à Imaculada, Lello & Irmão Editores, Porto, 1984, p. 192.
7
4
Ibidem, p.255.
A palavra “Saudade” terá feito muita falta a Austin Osman
Spare e Austin Osman Spare terá feito muita falta à palavra
“Saudade”.
9
Ibidem, p. 195.
8
94
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
A SABIÁ DO PORTO
A SÁBIA DE OPHIUSA
Lúcia Helena Alves de Sá
N
o Nordeste brasileiro, há uma ave chamada “a sabiá” que emite um som melodioso
muito agradável ao ouvido do homem e, por
isso, muito facilmente dele se aproxima. A sabiá,
avezinha delicada e de hábitos simples, gosta de
estar entre o sol e a sombra; na primavera, é o
seu canto que se ouve antes mesmo de clarear o
dia, mas não existem duas sabiás que cantem a
mesma música. Eis a sua originalidade.
Deixo-me influenciar por estes aspectos da pequena ave-símbolo que se tornou cantiga em
versos do poeta Vinícius de Moraes e pela palavra-imagem de “a sabiá” nordestina, precisamente lusófona por ser brasileira, para que possa memorar a voz harmoniosa, ritmada, presa às
intensidades que a demanda requereu, de uma
sabiá do Porto: Dalila Pereira da Costa.
Feminina como a sabiá e profundamente dotada
de canto decifrador da predestinação teleológica
ecumênica dos poetas e pensadores da Renascença
Portuguesa, Dalila embalou-se nas redes histórico-filosóficas de Joaquim de Carvalho, de Damião
Peres e de Torquato de Sousa Soares. Foi exímia
estudiosa da cultura portuguesa e pôde adentrar
com destreza de pensamento a filosofia de um Teixeira de Pascoaes ou de um Leonardo Coimbra.
Detentora de uma inteligência lúcida entoou com
lúdica justeza os píncaros da sobre-humanização
ou divinização do homem. Ritmou a mística da
grei lusitana cuja missão vai além de Fé e Império
como projetou o Agostinho humanista, poeta e
pedagogo, e compassou atenta o universalismo
real que há de vir a guiar a barca humana.
Em sábia lusíada vocação, Dalila deixou vasta
e importante obra sobre a perspectiva transcendente do homem, a visão salvítica do gênero
humano, a crença muito firme senão realmente
real no sebastianismo.
Dalila — ela mesma repleta de espiritualidade
que é oração do divino — sobrevoou os feixes
de uma futura modalidade de existência em que,
naturalmente, ouvir-se-á candente a cadência
das tradições espirituais da humanidade a melodiar na Terra pax in excelsis.
Sinto-me tentada a confessar que me parece que
foi o Ser de Dalila tecido por certas forças do
mundo, de tez feminina, que raras vezes os céus,
quiçá o próprio Deus, nos presenteiam.
Isto porque, talvez, tivessem receio de que dissesse
ela a nós do esoterismo do Fernando Pessoa, dos
Mundos Contíguos, da Serpente à Imaculada. E
nos fizesse esquecer o bom cafezinho à praça do
Porto, dos amigos à luz da Paulista e da graça linha humana. Todavia, a existência de Dalila fez-se bem servida de toda hora prima a planear a
Nau e o Graal, a planejar a nova Atlântida.
A escritora, sem olvidar de Orpheu, Portugal e
o homem do futuro, ensaiou em jardins da alvorada as elegias da terra-mãe. Ofertou às ideias a
franquia de idear uma introdução à saudade das
mensagens do Anjo da Aurora. Para além disso,
ordenou sonhos: porta de conhecimento.
De toda nova ideação que se propunha lançar, é
a do encontro na noite com D. Sebastião, El-Rei
ungido — Rei eleito — que fez Dalila jazer Portugal Renascido. Em real realidade, são a cidade
e o rio, Gil Vicente e sua época os instantes nas
estações de sua vida dobrada à Pátria de Bandarra, Camões e de Vieira.
A Dalila ensaísta sagrou liras aos espirituais portugueses, entoou duas epopéias das Américas e
contou a ladainha de Setúbal. Entre desengano e
esperança, visou o novo argonauta em alvorada
às margens sacralizadas do Douro. Ao tempo e
através de vários cultos, vislumbrou messiânica
a mensagem dos monges cavaleiros.
Deu-se a Hora e a comunhão. Voou a outros
mundos a sabiá do Porto. Bem sabia que a contemplação dos Painéis a levaria ao Encoberto: fez
graça Dalila à Graça d’O Rei coroado Menino.
Como a sabiá que foi elevada ao mesmo nível
de importância nacional da bandeira, do hino,
do brasão de armas e do selo brasileiros, Dalila Pereira da Costa imortaliza-se no cenário do
pensamento poetizante português.
95
Maria José Leal
A
ndava eu no encalço do Espírito Santo, não só
na perspectiva da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, mas procurando outros olhares pela
via de outras culturas, acerca da chispa que tudo vivifica, Ruah o vento criativo de Deus dos Hebreus,
Pneuma dos Gregos, Fohat a força de interação
entre a Ideação Cósmica e a Substância Cósmica,
Daiviprakriti a luz do Logos…e por aí adiante.
Catando bibliografia caiu-me nas mãos o texto:
Os Impérios do Espírito Santo na Simbólica do
Império / II Colóquio Internacional de Simbologia ocorrido em Angra do Heroísmo de 13-19
de Junho de 1984. Perpassando os vários textos,
uns mais interessantes do que outros, como é
habitual, deparo-me com um texto em francês
La Barque et le Saint Esprit cujo autor era nem
mais nem menos do que Lima de Freitas!
Como era possível? Tinha feito deambulações
pela hermenêutica e pela simbólica mas Lima de
Freitas, que vastamente conhecia como pintor,
ilustrador, surgia-me com a sua espantosa obra
literária, que pela minha ignorância, só postumamente estava a descobrir.
Vasculhei quase tudo o que dele estava publicado e nas tertúlias de Manuel Gandra partilhei com os circunstantes o infortúnio do meu
descuro sobre as maravilhas do Labirinto ou do
Pintar o Sete.
A propósito das jóias literárias de autores pouco
divulgados falou-se de Dalila Pereira da Costa
e da publicação da Fundação Lusíada de 1998,
sobre o Colóquio ocorrido em Maio de 1996
no Ateneu Comercial do Porto Dalila Pereira da
Costa e as Raízes Matriciais da Pátria, por ocasião
das Bodas de Prata da sua actividade de escritora.
Depois de lidas as comunicações do Colóquio,
passei à leitura das obras da homenageada, comecei por Da Serpente à Imaculada, A Nau e o
Graal, e aí por diante, num descobrir progressivo pelo ensaio ou pela poesia da sua espiritualidade, da sua perspectiva teleológica duma Pátria
mística e transcendente, caminhando até ao
arquétipo mais antigo deste pedaço ocidental,
Ophiusa terra dos ophi que cultuavam as Serpentes detentoras da Sabedoria.
Eu que pela minha ignorância não tinha aproveitado a contemporaneidade consciente de
Lima de Freitas escritor, falecido em 1998, nove
anos mais novo que a autora de A Força do Mundo, não iria deixar perder a minha contemporaneidade com Dalila.
Dalila tinha nascido em 1918, estávamos no início de 2002, tinha mais de oitenta anos, urgia
agir lesta. Através da Editora Lello fiz-lhe chegar
às mãos uma missiva em que lhe manifestava
a grande vontade de a conhecer pessoalmente
e como cartão de apresentação enviei-lhe um
exemplar de A Casa de Endovélico o livro de Poesia que tinha acabado de publicar e a que não
são alheios muitos dos temas a que Dalila magistralmente tinha dedicado muita investigação
e muita reflexão.
Foi com enorme satisfação que recebi a sua amável resposta; encontrámo-nos no Porto, próximo
da Igreja de Santo Ildefonso, no café Magestic
numa tarde luminosa, Dalila com o seu chignon
no occiput, qual remate a coroar a sua maravilhosa caixa mágica, o seu ar grácil e frágil com cerca
de cinquenta ou menos quilos; bebericando chá
encetámos uma amizade que me espanto como
aconteceu entre uma profissional de esquartejos
e disseques, remendona corte-ponteja, algo demiurga de mal acabados ou de estropiados, e uma
autora mística que comparo a Teresa de Ávila ou
Hildegarda de Bingen, de que só um pequeno
círculo de privilegiados tem conhecimento.
96
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Bendigo o Espírito Santo, Lima de Freitas e o
Congresso de Angra do Heroísmo, as tertúlias do
Gandra, a editora Lello, a grande generosidade e
abertura de Dalila, todos foram caminho para este
encontro entre a Sábia de Ophiusa e a singela praticante do caduceu; está bem claro foi a sabedoria
da Serpente que proporcionou este encontro.
Dalila tornou-se para mim a mestra viva, de
anima deslumbrante mas ao mesmo tempo insegura na sua difícil relação com o corpo que
teimava já em lhe trazer dissabores. São inenarráveis as nossas deambulações pelas temáticas
mais diversas enquanto percorríamos as veredas
do quintal da sua casa, aspirando o odor das
cameleiras perfumadas, perscrutando a enorme
variedade de plantas da estufa que pessoalmente
cuidava, com o Titó saltando e latindo naquela
alegria energética que Dalila tanto apreciava. Os
retratos de Agostinho da Silva, António Quadros eram memórias de partilha de pensamento,
Lima de Freitas estava vivo nos quadros de estilo
tão próprio que decoravam as paredes do hall
de entrada, centrado pela lindíssima escalfeta
de latão ao estilo árabe, e que dedicara à minha
Mestra Dalila.
Por motivo de Congressos ou Reuniões profissionais no Porto ou pelo motivo único de visitar
Dalila para carregar baterias, era ocasião para nos
sentarmos no pequeno gabinete do primeiro andar com varanda virada a Sul, gozando o Sol que
iluminava a sua velha máquina; para assegurar
muitos quilómetros de escrita a dedicada Cecília
Ildefonso, sua cuidadora incansável, tinha comprado nas papelarias do Porto um número infindável de carretos de fita, Dalila não se deixara
tentar pela inovação do computador.
No rés-do-chão aonde não se abriam janelas,
percorríamos as estantes da sua biblioteca e mostrava-me as últimas obras que lhe tinham sido
enviadas pelos autores. Eram Aqueles que, por
certo, fariam permanecer incólume a paideia da
Terra de Ophiusa, apesar dos ventos dissipadores
que em crescendo a assolam e quiçá a destruam.
– O que será deste país? Era uma pergunta sofrida que punha com frequência. Puxando pelas estratégias da prática do caduceu, recordava-lhe o
princípio inevitável da morte e do transmutado
renascer aplicado a tudo o que é vivo, inclusive
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
os povos e os países e enunciava uma série de
guardiães, Aqueles que ela bem conhecia e que se
exercitam na prática de manter viva a Sabedoria
em que ela ocupou toda a vida.
Foram Aqueles que em Maio de 2008 estiveram
presentes para celebrar da forma mais assertiva
os noventa anos de Dalila realizando o III Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade, uma homenagem à Sábia de Ophiusa.
Almoçávamos no Restaurante do Molhe, na Foz,
olhando a falésia onde na sua infância se sentava
sob os olhares atentos do pai; olhando, ouvindo
e cheirando o mar, esse mar que banha A Nova
Atlântida e onde O Novo Argonauta tem seus trilhos. No Inverno ou nos tempos que se seguiram
à convalescença da fractura do colo do fémur ficávamos pela Rua 5 de Outubro, no Restaurante
quase fronteiriço ao 444, era só atravessar a rua e
andar menos de um quarteirão.
Aquele acidente, Titó na sua alegria esfusiante
enrolara-se-lhe nas pernas, era Sábado, estava sozinha em casa, ficara caída, fracturada no
quintal, incomunicável. Mas o Anjo Rafael passou pelo lado de fora do portão, falando romeno
e talvez sem documentos, ouviu e atentou os gemidos, algaraviando português macarrónico deu
o alerta e Dalila foi socorrida, como nas Mensagens do Anjo da Aurora.
Foram esgotados esforços para localizar o bom
samaritano, em vão; O Anjo Rafael estava no
percurso Da Serpente à Imaculada, um percurso
interior, secreto e anónimo.
Acentuaram-se as limitações do corpo com o
qual não vivia em perfeita harmonia, deixou
algumas tarefas, nomeadamente a jardinagem,
mas atento lá estava com a sua energia telúrica o
cuidador Joaquim Pereira que sabe na prática do
princípio inevitável da morte e do transmutado
renascer aplicado a tudo o que é vivo.
Com ou sem outros motivos ia ao Porto visitar
Dalila para carregar baterias, as falas, os silêncios, a empatia, a companhia eram percursos
Entre Desengano e Esperança, deambulações por
Os Sonhos Porta do Conhecimento, viagens por A
Cidade e o Rio, excursões por As Margens Sacralizadas do Douro, e tantas outras visitas interiores,
num manancial de conhecimento experimentado, um atravessar de esfera em esfera.
Setembro passado, o fluido da vida encalhou
em pequenas veredas meio obstruídas dentro
da sua caixa mágica, foi Cecília sempre atenta
que a encontrou meio inanimada no quarto que
ocupara na sua meninice e a que há muito regressara, depois de gorado o juramento sagrado
do matrimónio que proferiu e que julgara ser
para toda a vida.
O fluido da vida mais ou menos encalhado nas
pequenas veredas meio obstruídas dentro da sua
caixa mágica, foi vencendo ou recuando obstáculos da sua rede viária.
Com grande limitação motora teve períodos de
lucidez razoável.
– Como vai o seu trabalho? Como estão o seu
marido e os seus filhos? Perguntava deitada na
sua cama de menina luminosa e certamente mimada, presente no retrato de moldura oval pendurado acima do espaldar da cabeceira.
Tinham sido longas conversas escalpelizando à
minudência as alegrias e os infortúnios da maternidade que nunca nela fisicamente se realizou. As dores, os incidentes que as nossas entranhas sofreram, como perpassaram, os sinais que
deixaram, mas também o desempenho que tiveram no percurso e no desenvolvimento pessoal.
97
Na progressão espiritual, iniciática ou mística,
não pode haver repouso, um parar ou desistência, é
uma constante vigilância, um estar sempre acordado. Atitude sempre mantida e assim expressa em
O Esoterismo de Fernando Pessoa relativamente à
aventura espiritual do poeta.
A rede viária da caixa mágica foi progredindo
em obstruções e o consequente princípio inevitável da morte e do transmutado renascer
aplicado a tudo o que é vivo aconteceu, a caixa
mágica de Dalila liquefez-se pouco a pouco em
poalha, pó de estrela, as sinapses e as cadeias das
suas circunvoluções mudaram a sua matriz organizacional. Foi a 2 de Março de 2012 dois antes
de completar noventa e quatro anos.
Discernem as escolas filosóficas sobre a permanência da identidade ou sobre a anulação da individualidade, Dalila nas suas meditações sobre
o êxtase experimenta essa anulação e identificação com o Uno criador e dela deixou testemunho em A Força do Mundo ou na Hora de Prima.
E agora? Ficaram as suas obras e uma plêiade
de guardiães, Aqueles que Dalila – a Sábia de
Ophiusa bem conhecia e que se exercitam na
prática de manter viva a Sabedoria em que ela
ocupou toda a vida.
DALILA PEREIRA DA COSTA, A FLOR DO VERBO
Maurícia Teles da Silva
P
ercorremos caminhos, inverosímeis lugares,
na senda de um rasto interior, ténue memória que a cada momento se desoculta...
Desde 1991, trocáramos livros e correspondência, no lugar onde eu vivia, o mesmo da Ladainha de Setúbal, que muito grata recebi e aprendi,
também, com Os Sonhos, Porta de Conhecimento, de Dalila Pereira da Costa.
Um dia, prenúncio da Primavera em 1993,
aproximou-se o Norte a Além-tejo, foi o encontro poético no Divor, contemplando a serenidade das águas, o lançamento do livro de Dalila
Pereira da Costa, Pascoaes: d’ as Sombras à Senhora da Noite, da Átrio com o editor, poeta e amigo José Manuel Capelo. Aberto o convívio entre
autores presentes, o António Cândido Franco,
o António Telmo, o Paulo Borges, o Francisco
Soares, entre outros. Na mesa redonda, ao jantar, cordial conversa com a escritora Dalila, cuja
obra eu muito admirava, foi encontro inesquecível que firmou entre nós uma sincera amizade.
Verdadeiramente todos os seus livros abriam a
porta para a compreensão do ser, das origens da
cultura portuguesa, coadjuvando-se à obra de
98
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
António Quadros, que ambas admirávamos. No
dia seguinte, o escritor e amigo, de inesperado,
saudosamente partiu...
Acaso ou destino, voltámos a encontrar-nos.
Sentimentos unem pessoas.
Um ano depois, 4 de Abril de 1994, desde os
Jerónimos nos deslocámos, lado a lado, no meu
carro, acompanhando Agostinho da Silva àquele
lugar Alto de S. João, mas não de última morada
(alto, porque da profecia, do Evangelho da Luz).
Ecoam-me as palavras de Dalila pronunciadas
em tom sentido e profundo:
“Páscoa significa passagem... Temos que aceitar...
Convivemos na comunhão entre vivos e mortos!”
Ciclo cósmico, perpétua espiral. Ficámos num
silêncio de saudade.
Depois continuei meditativa, a olhar o seu rosto, acenando, na janela do comboio para regresso ao Porto.
Na Pascoela chegou-me às mãos a bênção do
livro Hora de Prima de Dalila Pereira da Costa:
“Agora reuni em vós toda a força do símbolo e
da profecia; uma vez por outra escutai, outras
interpretai, verso e anverso no mesmo português.
A santificação pelas águas depois virá. Por que
pelas águas portuguesas todos os demais têm de
passar, disse o Anjo.” (in Hora de Prima, Fundação Lusíada, p.52).
A amizade com Dalila fortaleceu-se e o contacto tornou-se frequente ao telefone ou por
carta, e sempre pelo Natal, no seu aniversário
(em 4 de Março) e por altura de Pentecostes.
As suas mensagens plenas de força anímica têm
sido uma constante imprescindível no encontro, em domingo de Pentecostes – Festa do Espírito Santo, que se tem realizado anualmente
no Convento da Arrábida (desde 1991 até ao
ano corrente), lembrando a tradição portuguesa
de coroação da Criança, no Culto do Espírito
Santo implementado pela Rainha Santa Isabel
e os Franciscanos Espirituais, no reinado de D.
Dinis, em união reiterada pelo Pensamento de
Agostinho da Silva e António Quadros.
Recordamos o “III Colóquio Luso – Galaico
sobre a Saudade”, a 19 e 20 de Maio de 2008,
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
no Porto e em Viana do Castelo (Actas publicadas na colecção Nova Águia, Zéfiro), merecida
homenagem feita a Dalila Pereira da Costa. O
seu olhar transparecia luz, mas sempre com a
modéstia de carácter e a felicidade no rosto ao
ver e ouvir os amigos reunidos. Na sua nonagésima Primavera subiu autónoma e firme, a
escadaria até ao miraDouro, restaurante panorâmico da Universidade Católica, abarcando a
beleza do Porto no olhar.
Pela tarde, recebeu-nos afavelmente em sua casa
entre memórias e camélias do idílico jardim.
Louvemos em Dalila Lello Pereira da Costa o
ensinamento da sua vida e obra, onde palpita
a grande alma lusíada iluminando caminhos de
um povo da finisterra alcançando o horizonte,
reminiscente na Nova Atlântida, entre A Nau e
o Graal “segredo como vera essência do Ser”, do
saber da tellus mater à transcensão na Imaculada,
percurso em ascese e estudo dos Místicos Portugueses do Século XVI, mas também a viagem mística por si-mesma vivenciada como atesta a sua
Autobiografia Espiritual.
Pensadora veiculando a intuição e o sentir como
gnose, hermeneuta da cultura e história portuguesas, Dalila gravou a vida em áureas palavras
no conhecimento de ancestrais raízes nacionais,
desocultando a memória num profundo entender a génese ontológica do arquétipo português.
A tradição como fons vitae, na visão do futuro
anunciado pelo Anjo de Portugal, ascensão na
Casa do Espírito.
De bom Porto voou a Pomba sobre os caminhos
da palavra de terra e céu, da palavra guardiã, verdadeira e querida amiga, rosto sereno, mãos de
paz em asas, escuto ainda a sua voz, eco que não
se esvai, como habitualmente a perguntar-me:
“Como vai a música, e as crianças?...”
A 3 de Março de 2012, na Igreja do Santíssimo
Sacramento, estamos juntas na Capela do Encontro, ainda em corpo, mas Dalila Pereira da
Costa é nome que contém a flor etérea, a árvore,
diáfana Alma liberta ao encontro da Beatitude.
“Ouvir, subir e transfigurar”, conforme a Sagrada Escritura, devota foi humano exemplo,
na Ordem da Trindade, o Evo paira insondável,
indelével...
99
DALILA, MESTRE ECLÉTICA
Paulo Ferreira da Cunha
I. Memória
Há pessoas que, como Camões, parece morrerem com a Pátria. Mas apenas morrem com uma
das suas modalidades. Dalila Lello Pereira da
Costa deixou-nos no passado 2 de março, dois
dias antes do seu aniversário, num tempo que só
não é sentido como apocalíptico porque Portugal anda certamente anestesiado para não sofrer
tanto. Até que possa ressurgir.
Numa época (aliás generalizada, e não só nacional) de total descrença e abatimento moral
e filosófico, de um lado, e de pretensas verdades
absolutas e inevitabilidades por outro (até políticas: como se a política não fosse um reino de
enorme liberdade da ação humana), o perspetivismo, de uma banda, e o ecletismo, de outra,
parece serem bens a acarinhar no mundo das
ideias e da ação.
Ignoro se alguém já o terá observado o que aqui
digo em teoria, mas, como fiz para este artigo o
compromisso para mim mesmo de falar apenas
de uma Dalila oral, nas minhas memórias dela,
não ficaria também correto vir vasculhar e convocar bibliografias segundas. Nem as obras escritas da autora revisitei, para a empresa de hoje.
Apenas fiado na memória, relembro a Mestre.
Julgo aliás que Mestre não tem forma masculina nem feminina neste alto sentido: até por que
há no / na Mestre uma necessária androginia
ou, pelo menos, uma confluência de ternura e
vigor, como desenvolveu, por exemplo, um Leonardo Boff.
Ora a memória da oralidade imperará: é interessante como os Mestres o têm sempre de ser do
ensino oral, e mais ainda que oral, do ensino pelo
exemplo, e ainda mais, até pela simples Presença.
Dalila era Mestre, desenvolveu um ensino oral,
que nela fluía, como é comum nos grandes
mestres, de forma natural e sem o aborrecido
e intimidatório didatismo de alguns, que são
pseudomestres de pose e profissão. Na realidade, são apenas professores, e maus. Apesar de o
presente desnorte pedagógico-didático os elevar
e entronizar, enquanto torna a vida do mestre
professor totalmente desesperante – ou seja,
sem esperança. E isso mata o Mestre.
No futuro, certamente, os Mestres não serão
professores. E Dalila, não sendo professora,
era Mestre. Frequentemente se espantava com
o enorme (e improfícuo, supérfluo e até nocivo) trabalho que os amigos dela docentes iam
tendo que sofrer. Se os visse hoje agora, se nos
visse hoje agora... Esperemos que veja, e ore por
nós... Só um Deus nos pode salvar...
Além disso, Dalila era Mestre como o Mestre
deve ser, semeando a todo o vento preciosidades, que caem em terrenos diversos, e em cada
um, segundo a sua qualidade, dão (ou não)
correspondente fruto.
Mais ainda, Dalila não tinha um sistema, essa
rigidez de pensamento que busca o nexus veritatum, implicando a limpidez inatacável de uma
dedução necessária, como apontava Christian
Wolff, na sua Filosofia Moral e Ética, já em 1750
(embora o sistematicismo possa ser datado do
século anterior). Isso significa que não doutrinava, não impunha, não pregava, não aspirava por
seguidores e convertidos. Isso faz toda a diferença entre o Mestre e o Cappo di scuola.
Perguntamo-nos mesmo se teria um método. E
a sua linha é de um fluir a nosso ver criativa e
criadoramente ecletica. Não de um ecletismo de
“caldo de pedra”, em que tudo cabe. Mas daquele que Van de Velde aconselhou, como bom
pintor (além de arquiteto e designer), ou seja,
harmonizador de cores contrastantes: colhendo
sempre o bom, onde quer que se encontre.
100
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
É o movimento inverso ao semear como o Larousse, a todo o vento: é colher de todo o campo, ou o beber em todas as boas nascentes. Porque há escondidas e ignotas águas castálicas à
espera de serem bebidas.
Apesar das distinções de Foucault, em Les mots
et les choses, entre sistema e método, o que está
em causa é a razão analítico-instrumental contra
a dialéctica e sapiencial. Sem prejuízo do uso necessário da primeira como arrimo básico de entendimento, é sobretudo a segunda (e também
uma dimensão onírica) a de Dalila.
Mas não nos embrenhemos por essas questões,
que tenho a tentação de ir buscar um livro (e
não queria fazê-lo), que seria a Introduction à
la méthode de Leonard de Vinci, de Paul Valery.
Isso me iluminaria sobre o método, mas me faria perder o foco da questão. Não o fui buscar.
Sei de cor que a data é 1919, e mais não digo,
porque não me lembro a editora.
Este ecletismo,
contudo, não era um
irenismo tranquilo.
Por certas coisas era
devota incondicional.
Tinha, antes de mais,
uma espécie de
religião da Pátria.
II. Diálogos
Falar da obra oral de Dalila Pereira da Costa não
pode ser empreendido aqui. Seria preciso que alguém tivesse seguido, como sombra, a luminosa
pensadora, e diuturnamente houvesse registado
o que ia deixando cair, ao sabor da ocasião. O
que posso e creio que devo antes de mais fazer
é apenas dar um ilustrativo e sintético testemunho. Selecionando no que a minha memória
consente alguns momentos mais interessantes e
significativos de um convívio de anos. Também
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
não saberia datar quantos... Porque há encontros retroativos, que nos fazem suprir a lacuna
do anterior não-encontro. Quem não teve novos
amigos de infância não o entende.
Dalila não é entre nós um nome muito comum.
Evoca imediatamente uma figura bíblica não
muito simpática (no episódio de Sansão, em
Juízes, XVI, 4 ss.). Ocorre porém, para completamente atenuar qualquer preconceito bíblico,
que minha Mãe assim se chama, e que desde
cedo me fascinei com a obra da Autora, que eu
fazia uma fada inacessível morando num castelo
tão encantado como a da Princesa Aurora.
As portas desse castelo, que aliás era uma bela
casa sempre muito próxima das três últimas em
que tenho vivido, no Porto (sempre à distância
de dez minutos a pé), viriam a ser-me abertas
não sei já eu como. Recordo que, muito antes
disso, uma Colega de curso e depois efemeramente também da Academia, viria a ser apresentada à sábia Senhora, tendo (também não
sei bem porquê) vindo contar-me, fascinada,
os chás filosóficos que foram tendo. Como no
colesterol há, na inveja, da boa e da má. Nesse
sentido, posso dizer que tive boa inveja por não
ter sido eu a entrar no castelo.
Eu próprio viria – tempo há para tudo – a degustar esses chás sapientes, anos depois...
Não importa muito como, houve um tempo –
alguns anos – em que tive mais convivência com
Dalila. Sempre que lhe enviava um livro, por
exemplo, ela me telefonava e agudamente o comentava, apesar de muitos serem de matéria que
não era da sua especialidade: o Direito. Por vezes,
escrevia. Mas mais raramente. Preferia falar, trocar ideias, ver interdisciplinarmente o que certo
movimento ou tendência jurídica afinal teria a
ver com a mais profunda respiração da cultura
e do Espírito, que, como o vento (το πνευμα),
sopra mesmo onde lhe apraz (Jo. III, 8).
É neste contexto e também no da participação
de ambos em alguns colóquios que posso relatar
um par de momentos de breves mas significativos pontos de ecletismo.
Do ponto de vista metafísico e religioso, devo
confessar que Dalila foi a primeira pessoa que
me abriu as portas da Cabala, embora da forma mais subtil possível, falando-me apenas, de
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
forma breve e como se coisa natural fosse, da
Árvore dos Sefirotes. Não eram tempos como
os de hoje, em que essas coisas mais esotéricas
estão exotericamente escancaradas na Internet
(nem existia ela) e profanizadas como “auto-ajuda”... Obviamente que quando um Mestre
alude ao que quer que seja, não sabemos se o
fez propositadamente, como o fito de que o discípulo curioso procure a pista, ou se o terá dito
sem qualquer intenção, gratuitamente. Estamos
porém em crer que na missão dos mestres, como
na dos heróis, não há simples concidências...
Obviamente que me não tornei cabalista, nem
nada que se parecesse, mas foi um setor do conhecimento e uma linguagem que até então
me era totalmente desconhecida que a partir
daquele chá se me foi abrindo. Note-se: pela
procura pessoal, não pela imposição de um trabalho para casa...
Não nos apressemos a qualificar a nossa filósofa.
Um dia, à saída de um colóquio – não me lembro
qual – vai dar-se um episódio que revela mais uma
vez o ecletismo de Dalila, mas até certo ponto.
Falava ela com um cavalheiro, então de meia
idade (quem seria?) e comigo, a propósito do
desencantamento do Mundo (mas não era
Afonso Botelho, sobre quem falei também desta temática) e mesmo sobre a crescente falta de
espiritualidade e de fé. Eu acompanhava-os, discípulo, ouvindo.
A certo momento, não sei se pela distenção de
fim de congresso se por meia provocação, se por
convicção íntima, disse o ponderado doutor
(presumo que o fosse) algo como isto:
“As coisas neste terreno estão catastróficas. Não
tenho dúvida de que, no futuro, a breve trecho
mesmo, a fé será apenas representada pelo Islão, e
tudo o mais desaparecerá ou será reduzido a uma
expressão ínfima.”
Era algo de chocante, para mais proferido ainda
à sombra da Universidade Católica.
Mas Dalila, visivelmente desperta pela heterodoxa tese, não a contestou sequer (era de uma
extrema delicadeza genuína, sem salamaleques,
mas preocupada com não ferir os outros, sem
deixar de os esclarecer), antes disparou com sinceridade à flor da pele o que a preocuparia mais,
se tal ocorresse:
101
“E então o que seria da Nossa Senhora?”
Acho que a conversa ficou por ali.
Num outro dia ainda, no jardim de sua casa, aludiria às suas raízes romanas, talvez algum “Lello” soldado romano que por cá tivesse ficado, e creio que
falou com algum respeito de aras pagãs em cuja
descoberta teria estado de algum modo envolvida
(quiçá achadas nas sua próprias propriedades?).
Este ecletismo, contudo, não era um irenismo
tranquilo. Por certas coisas era devota incondicional. Tinha, antes de mais, uma espécie de
religião da Pátria.
Preocupava-a sobremaneira o destino de Portugal, que via perigosamente traçado no horóscopo
feito por Fernando Pessoa, qualquer que fosse
o significado real que lhe atribuía. E não considerava que fôssemos todos, Portugueses, da
mesma nação (disse-mo umas tantas vezes). Indagara das raízes, e – sintetizando – não tinha
os Galécios e os Lusitanos como sendo o mesmo povo... Talvez fosse interessante investigar
cientificamente mais sobre estas componentes
da Pátria, para compreender, quiçá, uma diversidade de ethos e de habitus nacionais que o mito
da unidade, aliás tão propalado ideologicamente
contra a regionalização, tem obnubilado. A este
propósito, lembro Sebastião da Gama quando
cita uma conversa com Pascoaes, em que este lhe
terá dito ser a Arrábida e não o Marão o altar de
Portugal. Não poderá haver mais que um altar?
Nunca lhe vi fanatismo político, nem ódio de
estimação pessoal. Sempre um frágil ar de perplexa inteligência (sinal de antenas críticas sempre alerta) e um savoir faire delicioso em sociedade, como quando deu uma (aliás sapiente e
magnânima) “lição de moral” velada mas à vista
de todos: só duas ou três pessoas puderam entender, de entre as muitas presentes...
Imagino-a ainda na salinha em que se sentava
a escrever na máquina antiga, companheira de
longas horas. Creio que lá ainda poderá estar,
nos intervalos de mais altos colóquios com os
anjos, seus irmãos.
Tenho Dalila por um dos meus Mestres. Mas,
como sou acerrimamente eclético também, tenho muitos Mestres, e só por acaso concordes
entres si... Decerto também os anjos não cantam
em uníssono a mesma melodia.
102
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
DALILA: UMA CAPELA INCRUSTADA NUMA ANTA
(EXCERTOS DE UM OPÚSCULO)
Pedro Sinde
Treize faucons hors
de la cage volaient
dans mon âme.
Treize faucons.
Os Jardins da Alvorada
U
m menir com uma cruz em cima ou, antes, uma anta com uma capela incrustada,
como um diamante num anel, assim Dalila: o
cristianismo prolongando todas as vivências sagradas anteriores, como uma forma renovada do
sagrado. Não como ‘mais uma’, pois que cada
uma é insubstituível no papel único que desempenha no tempo e no espaço que lhe cabe e para
uma certa variedade tipológica de almas.
Uma capela incrustada numa anta ou uma cruz
no cimo de um menir não é uma ‘apropriação’,
mas antes um acto de renovação, de recriação,
de recuperação do sagrado, de nova dádiva ao
mundo da força que habita esse lugar: uma nova
flor da mesma planta numa outra Primavera.
E assim Dalila, ela mesma: praticando o catolicismo, renova ritualmente a sua alma – a capela
–, mas Dalila não era apenas ‘capela’, era também
‘anta’ e, assim, a sua religião interior abrange todas as religiões do mundo, que se estendem até
ao que intitulou genericamente de ‘paganismo’
(abarcando, na verdade, com este termo, todas
as religiões ditas ‘cósmicas’). A capela e a anta
estão tão bem casadas na sua alma que os seus
leitores a julgavam apenas anta e, pelo contrário, quantos a viam na missa a julgavam apenas
capela. Na verdade, ambas formam em si um
único templo, sem nenhum tipo de sincretismo.
O catolicismo é a forma presente, neste tempo
e neste espaço, para esta alma, mas ela mesma,
em si, contém e aceita outras formas religiosas.
Por outras palavras, o sagrado actualiza-se em si
agora, nesta vida, através do catolicismo, no entanto, o passado desta alma, em múltiplas vidas,
conheceu outras formas religiosas. Se não há nenhum tipo de sincretismo, porque a sua prática
sempre foi exclusivamente católica, também não
há nenhuma forma de relativismo, porque, aceitando que há múltiplas formas ortodoxas de que
o sagrado se reveste, também sabe que cada uma
tem um ‘lugar’ e um ‘tempo’ reservados.
O leitor que não conheça a sua autobiografia espiritual – Instantes nas Estações da Vida –, pensará
que exagero. Mas não, não exagero, pois todas as
experiências místicas de Dalila têm como referência a “escatologia e a teologia católicas”; ela assim
o diz explicitamente, como veremos já de seguida.
A capela
Dalila concebe as religiões todas como renovações,
novos rebentos de um mesmo tronco. Assim, o seu
‘paganismo’ é a sua dupla consciência de que, por
um lado, há uma matriz arcaica, uma religião primordial – a religião das religiões, por assim dizer, a
Verdade, o Real, onde cada religião vai beber – e,
por outro lado, de que o catolicismo não pode senão ser a renovação dessa ‘mesma’ religião primordial. Para se compreender Dalila é preciso situá-la
no catolicismo, inequivocamente, seguindo assim
as suas próprias palavras na autobiografia espiritual: “Por agora, somente será possível afirmar que
todos os cenários e figuras intervenientes numa
imagística sagrada ou simples frases ouvidas ou diálogos mantidos (tudo acontecendo na falha abísmica ontológica entre noite e dia, sono e vigília,
na madrugada), foram vistos e ouvidos como em
referência e pertença da teologia e escatologia católica” (Instantes, pp. 69-70). E, depois desta clara afirmação, segue-se, para não ficarem dúvidas,
103
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
a rejeição do ‘salvacionismo gnóstico’, quer dizer,
da busca da salvação apenas pelo conhecimento especulativo e, por isso, sem amor, sem experiência,
sem operatividade, como diria o António Telmo:
“Assim, o salvacionismo gnóstico, desde logo surgindo como caminho errado” (p. 70).
Note-se que Dalila não situa as suas experiências
num vago ‘cristianismo’, pelo contrário, tem o
cuidado de explicitar ‘teologia e escatologia católica’. Esta passagem mostra nitidamente a sua
preocupação de deixar claro a ortodoxia das suas
visões e da sua prática, porque Dalila, veremos,
atribuía uma importância vital à prática de uma
religião ortodoxa.
Da necessidade da ortodoxia
na experiência mística:
ortodoxias, dogmas, ritos
Não há mística verdadeira sem religião, afirma
Dalila na sua autobiografia. A mística autêntica
requer a prática de uma religião ortodoxa:
Toda a experiência mística autêntica, de todos os
lugares e tempos da terra, virá espontaneamente
inserida no húmus fecundo duma crença específica
religiosa, a de seu recebedor e transmissor; criada
e desenvolvida através de séculos e milénios no seu
território natal. E que por ela, desde logo a defenderá
de desvios e quedas em precipícios deformadores.
Porque todas as religiões, antes de Cristo, e para os
que O não conhecem, são caminho para Deus e para
a plenitude da revelação de Deus em Cristo. (p. 65)
Daí que todos os relatos místicos, através de todos os milénios e diversas raças e países da terra, transmitam unanimemente essa realidade ou
verdade última e única: sua diversidade advindo
somente das modalidades de ortodoxia em que se
criaram. (p. 66)
Dalila diz, pois, que a prática de uma ortodoxia
é uma bênção para a alma dos místicos,
porque a defendem de “desvios e quedas em
precipícios deformadores”; esta ideia ligase com a sua concepção de dogma religioso,
como veremos abaixo.
Depois de se ter uma profunda experiência directa
do Real, deixa de haver medo de se cair na heterodoxia, porque se sabe que tudo, desde então, “está
certo, sem desvio ou traição possível à verdade” (p.
67). A experiência directa de Deus dá uma segurança e uma certeza que advém ‘de cima’, isto é, da
fonte mesma das ortodoxias – da Verdade.
*
Dalila, com um lúcido poder de discernimento, sabe que “os dogmas dessa própria religião
seriam sentidos como fixações necessárias de
formulações dum conhecimento revelado; de
acontecimento real, vindo dessa matriz original,
o Mistério; e que, para sua sobrevivência e não
dissolução, degradação por invasão e manipulação alheia, exterior e individualista arbitrária,
– por si próprios segregarão à sua volta uma
concha, camada exterior de defesa dum corpo
vivo, tesouro de essência viva a perseverar [sic,
preservar?] no seu ser.” Assim, aqueles que se
queixam da rigidez dos dogmas religiosos, não
entenderam que a firmeza de uma casa depende
desde logo da firmeza dos pilares.
*
Também em relação aos ritos, há quem os julgue coisas arcaicas, passadas, mostrando assim,
segundo Dalila, uma incompreensão sobre a natureza profunda dos ritos em geral e dos ritos
religiosos em particular.
A força em causa na experiência mística é tão
poderosa que o receptor corre o risco de ver o
vaso quebrar: os ritos e a prática religiosa, bem
como os sacramentos, são como uma graça protectora, moldando a forma da alma, de acordo
com o modelo ou arquétipo que corresponde ao
seu fundador, num gradual esforço de aperfeiçoamento por imitação que leva a uma superior
liberdade (porque o ser se liberta do que em si
é obstáculo); é como se em cada religião o molde que modela a forma da alma fosse o mesmo,
mas cada substância fosse diferente, pois cada
alma tem a sua, única, irrepetível. Noutras palavras, os ritos da uma dada prática religiosa moldam, por um lado, a alma, no sentido de lhe dar
um modelo primordial de aperfeiçoamento – o
modelo do fundador –; e, por outro lado, dão-lhe uma prática que a protege e ajuda a manter numa certa ambiência desde já paradisíaca,
104
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
como uma manifestação cíclica do paraíso na
terra através da explosão do sagrado que caracteriza as religiões: na sua beleza, na sua força e na
verdade das palavras reveladas, ou na arte sacra,
nos lugares sagrados e nos rituais. Quem teve já
a felicidade de assistir ou participar na celebração do cristianismo ortodoxo ou do catolicismo
com a liturgia em latim não deixará de sentir
como aí se dá momentaneamente uma abertura
do paraíso – naquele momento, os participantes
estão, de facto, no paraíso. O mesmo se passando, naturalmente, com as outras religiões, como
a oração muçulmana, com os orantes prostrados
perante o Altíssimo como os anjos em volta do
trono de Deus; ou o judeu em família, orando
ao Criador em gratidão por todos os dons recebidos e levando e elevando a vida familiar à
dimensão celestial, fazendo da sua casa o templo
que perdeu em Jerusalém. Isto para falar apenas
das religiões que nos são mais próximas.
Revertendo. Ainda sobre os ritos religiosos (no
caso, o cristianismo), diz Dalila:
Será este novo e vero conhecimento que permitirá
também atingir através dos ritos uma potência e
dela participar: poder ver nestes a actualização
e captação dessa potência, e não formas interceptantes, ou vazias de conteúdo, para além das
quais, ou nas quais, não se consegue, acaso, sentir,
realizar, nenhuma imediataneidade. Mas então
participar deles, será usufruir essa potência neles contida, aceitá-los como formas de captação e
presentificação dessa potência: exactamente como
uma sua manifestação, uma força.
Assim, mais do que nunca, será necessário ao cristianismo a não-liquidação dos seus mistérios e ritos.
E dos seus mitos, os eternos, como aquelas formas do
ser mundial que nele tomaram nova manifestação.
Porque eles serão a forma visível (em todo o aspecto exterior e morto com que nos possam agora
surgir) do seu esoterismo: do centro escondido que
o formou e o justificará. E será a redescoberta e revalorização desta sua mensagem escondida, guardada em linguagem secreta, o que possibilitará a
renovação do cristianismo. Ela trará sua próxima
epifania. (A Força do Mundo, pp. 140-141)
Este texto é de 1971, depois do Concílio Vaticano II, e mostra bem a sua preocupação em
relação às alterações introduzidas pelo Concílio.
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Mostra também a importância que atribuía aos
ritos no catolicismo, embora os seus comentários sejam tão doutrinais que valem, naturalmente, para qualquer religião. O caminho
apontado por Dalila é o de aprofundar os ritos
– tal como diz, de resto, sobre os dogmas – indo
até à sua medula durante a prática, procurando
entendê-los a partir de dentro, do seu centro,
não se ficando pelo exterior; vê-los como “a forma visível do seu esoterismo”.
Para quem vê de fora, um rito é uma casca incompreensível; para quem o pratica, pode ser, se
o souber ver de dentro, uma fonte de separação
em relação ao mundo profano, de purificação da
alma e de iluminação pelo espírito:
A sua renovação (do cristianismo) não se fará por
uma anulação do seu mistério, um esvaziamento
do seu cerne: mas pela sua total afirmação. Ser-lhe-á preciso viver, a partir de agora, no seu interior, e não no seu exterior: será numa mudança
de movimento em que consistirá a sua reconversão. Viver o outro lado, o outro mundo, que está
contido no cerne do cristianismo, como sua verdade, sua essência.
O que será o oposto duma sua mundanização
– mas a afirmação do seu transcendental – na
imanência.
Porque o que mais do que nunca será necessário,
é a sua sacralização. (p. 141)
Os tempos próximos futuros poderão ser os do
período oposto deste actual, como o dum movimento cíclico. Depois de se ter atingido o fundo
da onda da mundanização na actualidade, ele
será como a inversão dum processo. (idem)
Dalila entendia, pois que se tinha atingido ou estava a atingir o ‘fundo da onda da mundanização’
no que toca ao cristianismo, como consequência
do Vaticano II. Este movimento de queda tinha
começado, identifica Dalila, ‘lentamente já ao
longo do século XIII’; para tal, diz Dalila, basta
olhar a decadência da arte sacra ocidental.
Da importância da Metafísica:
a metafísica experiencial
Dalila, sendo primordialmente uma visionária,
não deixa de ser uma filósofa por necessidade intrínseca às suas experiências. O seu livro A Força
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
do Mundo é uma extraordinária reflexão e tentativa de comunicação de uma experiência poderosíssima, incomunicável no essencial; ou só
passível de comunicação por ‘simpatia’. A filosofia a que se refere Dalila é sempre a expressão de
uma vivência directa, é, por isso, uma filosofia
operativa ou uma metafísica experiencial:
Então, de futuro, a metafísica estará necessariamente incluída nesse movimento envolvente: e não
mais surgirá como construção fictícia, porque aí ela
não será atingida por um processo dedutivo, não
será elemento de discurso, mas elemento de experiência. Atingida no fulgor da evidência. (p. 134)
Contrastando. Sobre as filosofias existencialistas
ou fenomenológicas, por exemplo, diz que se
não se abrirem ao transcendente serão sempre
“como um caminhar ou processo frustrado, ou
interrompido, que será a negação de si mesmo”
(A Força do Mundo, p. 133) e, com uma lucidez espantosa e sem fazer nenhum tipo de concessão: “Só a referência a um incondicionado, a
um absoluto, colocado para além da esfera do
humano, poderá, como ponto de apoio, de força exterior, dar o dinamismo necessário a esse
processo de conhecimento, que aí é desejado
como ultrapassamento do homem: movimento
que o leve para além de si mesmo” (p. 133). E
ainda: “O estabelecimento da transcendência de
referência sagrada será como a súbita demolição
de muralhas, de condicionalismos na existência
espiritual do homem; aí, onde só poderá reinar
essa liberdade e amor: como as faces da verdade”
(p. 135). Dalila vê aqui o casamento da filosofia
com a mística. Como lembra António Telmo, a
propósito de Ibn ‘Arabî: a filosofia sem experiência mística é letra morta.
Na perspectiva de Dalila, a filosofia cumpre ainda o papel de ajudar a esclarecer a experiência
mística: “terá a necessidade duma participação
reflexiva pela razão, que só a técnica filosófica
poderá conceder” (p. 45). Tudo se realiza “entre
intuição e razão: entre receber, recriar e dar.”
(Instantes, p. 46). Neste contexto, a intuição é,
para Dalila, análoga à ‘revelação’, isto é, a ‘receber’; já a razão é o acto de ‘dar’, para que o
outro perceba.
105
Abertura
Abertura. Eis como devemos deixar Dalila.
Roubar-lhe o seu catolicismo é tão desleal como
querer aprisioná-la nele.
Para que possamos bem entender Dalila, creio
que devemos fazer dentro de nós este duplo movimento: por um lado, situá-la no catolicismo,
mas, por outro, não a encerrar aí, quer dizer, não
limitar de todo a sua experiência como mística e
pensadora a uma religião. Se é verdade que uma
experiência deste tipo acontece dentro da forma
de uma religião, no entanto, a experiência em si
mesma – como resulta nítido do seu primeiro
êxtase – é supra-confessional, isto é, está ligada a
uma revelação directa de Deus.
Estes dois aspectos que acabo de referir não se
opõem, mas ligam-se um ao outro: a experiência
directa do divino, supra-formal, implica, dado o
poder dessa experiência, que haja o apoio numa
forma sagrada, de outro modo, o recipiente poderia ‘quebrar’. Assim, o supra-formal exige o
formal; mas não só o formal, exige ainda que
esse formal seja ‘perfeito’, por assim dizer, como
uma figura geométrica: e essa forma deve ser
bela, forte e verdadeira: deve ser, no fundo, um
espelho. A religião, com tudo o que traz, é justamente o modo de polir a alma, para a tornar um
espelho. Se houver mácula na alma, essa explosão do sagrado pode ‘queimá-la’...
Não devemos reduzir Dalila ao catolicismo estreito, dizia, mas não podemos também ignorar as suas próprias palavras. Em suma, por um
lado, a sua experiência mística fundacional, o
primeiro êxtase, está num plano supra-religioso,
porque se dá num plano supra-formal; por outro lado, essa mesma experiência e todas as que
se lhe seguiram assentam numa forma ritual,
sacramental e imagética, que lhe é dada, neste
caso, pelo catolicismo. Assim como uma capela se incrusta numa anta ou um diamante num
anel. Assim Dalila.
Recapitulação dos ritos da humanidade
Entre os anos quarenta e os anos sessenta, Dalila, sempre em sonhos, vai recebendo visões de
rituais arcaicos da humanidade, como se em si
se desse uma
106
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
“recapitulação da religião da humanidade” [é
notável a utilização do singular aqui, quando se
esperaria o plural das ‘religiões da humanidade’;
vemos assim que aqui se refere àquela religião
que não passa, àquela ‘unidade transcendente das
religiões’], daquelas religiões que não conheceram
Cristo (p. 65).
“a essa rápida apercepção do inteligível, houve de
noite a vinda de deuses, cenários e ritos pertenças
dum ignoto e remoto tempo pagão irrompendo
como secretas visitas de noite, através de milénios
ainda presentes e vivos.” (Instantes, p. 56)
“Assim, essas vindas se processaram nas décadas de
quarenta a sessenta. Como recapitulação da religião
da humanidade, até à vinda do cristianismo, por
parte da reflexão da memória da terra sobre a memória duma alma individual.” (Instantes, p. 56)
Como se de noite a sua alma visse o que se tinha
celebrado na anta e de dia a sua alma fosse celebrar na capela. Em complementaridade entre
passado e presente, em integração.
Citar: Os sonhos: portas..., p. 15, p. 7, p. 46.
Leituras: ‘místicos do Ocidente e do Oriente’:
’aclareamento possível na “selva escura” ’ (p. 62)
(Foram trinta anos de leituras, entre o primeiro
êxtase e o primeiro livro: 1938 e 1968)
i. “a leitura dos místicos e supremamente a dos
santos” (p. 57):
Santo Agostinho (a ‘perfeita confissão através
duma interioridade via ao divino”
São Paulo (‘a escatologia e teologia cristológica’)
São João Evangelista (‘este abrindo as portas da
profecia e poesia e ainda a via visionaria’)
ii. noutro plano, a leitura dos ‘místicos’:
Ruysbroek, S. João da Cruz, Santa Teresa de Jesus,
Santa Catarina de Sena, Santa Catarina de Génova,
Ângela de Foligno, R. Rolle, dama Julian de Norwick, The Cloud of Unknowing, Ângelus Silésius.
iii. depois, ‘os poetas’:
Gil Vicente (em especial, o Auto da Alma e D.
Duardos)
Dante (Divina Comédia e Vita Nuova)
Shakespeare (The Tempest)
Hölderlin, Nerval, Rolke, George Russel
Homero, Odisseia (vale a pena citar toda a referência, dada a intensidade: “E num deslumbramento como em nenhum outro, Homero,
na sua Odisseia; lida sem poder parar durante
uma semana; deslumbramento nunca conhecido semelhante, nessa sua força visionária,
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
presentificação viva de deuses vivos ainda, num
mundo ainda jovem, impregnado de sagrado e
intocado em toda a sua beleza e pureza.” (p. 58)
Henry Corbin “sobre a mística do sufismo” (em
especial o livro L’Imagination créatrice dans le
soufisme d’Ibn ‘Arabî): “Os mestres do sufismo
me confirmariam no conhecimento dos mundos
múltiplos, como planos múltiplos do Ser; e me
confirmariam assim também na sensação sentida
de liberdade, como sempre o procurado acima
de tudo. Este ensino seria capital para o desenvolvimento e estruturação dos trabalhos então
a realizar.” (p. 58) Aqui se vê a importância do
sufismo na sua vida e também na sua obra.
iv. ‘os filósofos’:
‘Os de corrente platónica, neoplatónica e agostiniana’ (e não ‘os de corrente aristotélica, tomista’)
Duns Scot Erígena, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Platónicos de Florença, Espinosa,
Pascal, Bergson, Jaspers, Scheler
v. Historiadores das religiões:
Mircea Eliade, Kerényi, Van de Leeuw, G. Dumézil
C.G. Jung (‘para esta zona da alma’, i.e., o
mundo onírico)
Abert Béguin (L’Âme Romantique et le Rêve)
Soltos:
o Camões das Redondilhas
‘sempre e supremamente, a gratidão irá para o
mestrado dos Padres do Deserto ‘com aqueles
que realizaram a única e maior revolução para
o Ocidente; os grandes mestres da alma e do
espírito, (...), p. 61.
1º momento – o centro do espaço (o centro)
2º momento – o eterno no tempo (o presente)
3º momento – o divino no humano
ou
1º momento – o divino
2º momento – o humano
3º momento –divino e humano
ou
1º momento – descida do transcendente ao
imanente
2º momento – subida do imanente ao transcendente
3º momento – encontro entre o transcendente
e o imanente
Três aparições da Virgem
O nosso ‘corpo’ (a nossa alma), como a pedra
da anta ou do menir, necessita também de um
ritual que o consagre, que o sacralize.
107
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
No caso de Dalila, pode-se dizer que tal como
toda a sua vida espiritual está no primeiro êxtase, assim também todos os seus livros estão n’
A Força do Mundo. E podemos dizer ainda que
esse livro está todo no primeiro capítulo.
a. Êxtase (1938): deposição semente (é como
uma iniciação desde o Alto)
b. ‘Selva escura’ (1938-1971): regar a terra (leituras, outros êxtases e sonhos, recapitulação da
religião da humanidade)
c. Missão de escritora e amor à pátria (19712012): a semente desabrocha, depois de trinta
anos na escuridão.
Como se uma semente tivesse sido depositada
no primeiro êxtase e essa semente, com os anos
de leitura, as sucessivas revelações em sonho, a
reflexão sobre o êxtases – a purificação do corpo (morte e renascimento) –, e, então, com este
alimento se fosse desenvolvendo, eclodindo
quando recebe a missão de escritora: “a subida
à luz, o nascer e vingar, crescendo em árvore,
multiplicando-se em múltiplos ramos, duma semente luminosa, centelha de fogo, que um dia
foi lançada pelas mãos de Deus, num súbito e
fugidio momento sobre a terra – através do homem.” (A força do mundo, p. 62)
E o amor à Pátria, curiosamente, é tardio, só nasce
no final do processo, mais como uma missão dada,
do que um apego do ‘eu’ ou ainda como um prolongamento do ‘eu’ pessoal ao ‘eu’ da Pátria.
Dalila: uma mística situada (em Portugal, no Catolicismo, nos rituais e nos sacramentos) – estes não
são limites para si, mas antes pontos de partida.
Como dizia Pessoa: só podemos partir de um porto.
Três êxtases:
a) “dom de Cristo” 1938 (20 anos), Primavera, cerca do meio-dia, em Coimbra, no Lar de
Sagrado Coração de Maria – “depois se saberia
como a promessa e dom supremo concedido
por Cristo” (Instantes, p. 31). Estas palavras de
Dalila têm um peso grande, porque são proferidas em 1999, quer dizer, sessenta anos depois
desse primeiro êxtase.
Essa abertura deu-lhe um “conhecimento em
certeza absoluta, irrefutável, da existência de outro mundo e vida possível, em separação total
deste; sem tempo, de antes e depois, sem espaço de aqui e além: como o centro do mundo e
da vida: eixo imóvel, dum mundo e vida que à
volta rodam incessantes.” (p. 31) Dalila recorre
frequentemente à terminologia da metafísica
hindu para descrever a experiência: a abertura
do mundo de atma e a separação com o mundo
de maya, cujo carácter ilusório transparece agora. Esta abertura momentânea do mundo Real,
do mundo Verdadeiro, foi um dom de Cristo,
no sentido de dar à nossa visionária a medida
ou de restaurar esta alma no centro, os mistérios
menores, numa iniciação pelo alto.
[1949 (31 anos): em A Força do Mundo, p. 7,
17 e 19, ficamos a saber que onze anos depois
houve uma ‘réplica’ deste primeiro êxtase]
b) “hora de morte” ou “o Salvador”: 1947 (29
anos), 1 de Setembro, fim de tarde, no Porto,
consultório médico, mesa de operações.
c) “rosto de Cristo”: 1968 (50 anos), 30 de Janeiro de 1968, fim de tarde, Charleroi, na Bélgica.
[13 de Março de 1969, regeneração do corpo,
p. 37 – ‘sonho’]
[alguns dias depois: o anjo à porta do quarto,
saudando, p. 39]
[outros dias depois: um pequeno ‘jinn’ exultando de alegria
[17.7.1968: música no carro]
*
Dalila tem três grandes êxtases e, paralelamente,
três grandes visões da Virgem. Desde o primeiro
êxtase, há como que uma encarnação: do Deus
transcendente que aparece como pura luz, ao
Deus que aparece para a salvar da morte, dando-lhe um antegosto da imortalidade, até ao Deus
vivo e humano, Cristo, aparecido fora de si. Há
nos êxtases como que uma gradual exteriorização ou objectivação do divino.
Nas aparições da Virgem, pelo contrário, o movimento é de interiorização: desde a primeira aparição, a Imaculada saindo do meio dos montes (p.
51 de A Força do Mundo); depois, num duplo
abraço, em que Dalila é como que uma custódia;
e, finalmente, na terceira vinda, a união plena.
Assim, se nos três êxtases se dá um movimento
de exteriorização, tendo o Logos, vindo do Alto,
“atravessado” Dalila desde o interior, para aparecer, encarnado, no exterior. Já no caso das vindas
da Virgem dá-se um movimento de interiorização desde a aparição nas montanhas até à união
plena ou, simbolicamente, a ascensão.
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
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UMA ALMA BEM PORTUGUESA
Pedro Teixeira da Mota
D
alila Pereira da Costa (1918-2012) foi sobretudo uma poetisa, uma escritora, uma
mística, uma exegeta de mitos e mitificadora,
uma portuense e duriense, dotada da capacidade de sentir e antever o sagrado, o profundo,
sobretudo da alma portuguesa, manifestando
esse dom empenhada e amorosamente durante
mais de 50 anos, com cerca de 30 obras, no seu
estilo muito próprio de pensar ou escrever, ora
de forma racional e dedutiva, ora de modo poético, projectivo ou intuitivo os mitos e tradições
espirituais dos povos e de Portugal. Obras nas
quais, de modo original e intenso, se abriu ora
aos lados atávicos ou ocultos das memórias e reminiscências do passado ora às profecias e visões
de um futuro melhor, unido tudo no mesmo
círculo de Saudade e de Amor à Divindade e a
um Portugal sagrado e harmonioso.
Sem ter sido mãe fisicamente, podemos dizer
que ela se tornou uma mãe de Portugal e, assustada e pessimista com o estado geral do país nas
últimas décadas (o que já tinha causas mais antigas), procurou metodicamente pela sua obra
sensibilizar as pessoas para as nossas raízes mais
profundas e valiosas, seja para que elas pudessem dar sustento e inspiração, seja para que, ao
serem aprofundadas e investigadas, suscitassem
mais perfeição e harmonia.
O seu magistério discreto, pois sempre esteve
afastada dos grandes meios de comunicação, foi
sendo aceite pelos leitores das suas obras editadas pela Lello e por um grupo de seres identificados com a Tradição da Filosofia Portuguesa e
a Renascença Portuguesa que, nos princípios do
séc. XX, eclodiu no Porto, graças a pensadores e
poetas como Leonardo Coimbra, Teixeira Pascoaes, Jaime Cortesão, Sampaio Bruno, Teixeira
Rego e que flui, ainda que afunilando um pouco
por vezes, em discípulos como Sant’anna Dionísio Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro, José
Marinho, Delfim Santos, Afonso Botelho e António Quadros, na qual a Dalila se insere.
Ainda que muito devota ou admiradora de
Antero, de Leonardo e de Pascoaes, foi depois
dando-se mais, ainda que com alguns sobretudo epistolarmente, com o Agostinho da Silva,
Sant’anna Dionísio, Afonso Botelho, António
Quadros, Pinharanda Gomes, etc. A sua alma
ligava-se ainda com os mestres mais antigos de
Portugal, de Gil Vicente e Camões a Frei Agostinho da Cruz e Fernando Pessoa ou ainda com
os mitos e símbolos que o povo criador da arte
pre-histórica ou do românico traçou, ou com as
entidades intuídas e cultuadas imemorialmente
nas águas e natureza, como os deuses e anjos…
Dalila (nascida no signo dos Peixes) era uma visionária (sobretudo em sonhos, ou nas súbitas
erupções nocturnas de mensagens, mas também
na iniciática experiência iluminativa aos 20 anos
e na intensificação da hermenêutica imaginal
dos mitos, sentidos e níveis do Portugal sacro),
uma sibila nas suas presciências, profecias ou
antevisões (certamente por vezes condicionadas
pelas sua visão providencialista) e seja nas suas
terras e quintas durienses, seja na sua tebaida
portuense à Av. 5 de Outubro, foi apurando o
seu conhecimento e a sua escrita, em missões
de acabar uma ou outra obra, de redigir artigos
que lhe pediam ou de intuir mais arcanos. Mas,
no fim da vida, confessava-me que já tinha dito
tudo, e que cabia agora a outros tal tarefa.
Na verdade, Dalila, imbuída do sentido de missão individual e nacional que cumpria metódica
e sagradamente, foi sempre uma estimuladora
das vocações e dos trabalhos dos seus amigos,
interrogando como iam pois tanta falta faziam
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
ao ambiente anímico português, para ela visto
como numa fase última de decadência ou mesmo podridão, donde se estaria a renascer ou
mesmo a despertar unificantemente. Era pois,
Dalila, uma mulher ou uma mãe muito estimuladora dos veios próprios de cada um e sempre
norteada pelo seu amor à Pátria e ao Divino, em
especial manifestado em Maria, a Nossa Senhora, como usualmente chamava, a Padroeira de
Portugal e, no fundo, a encarnação e assunção
redentora do Princípio Feminino, da Grande
Deusa antiga, para o Ocidente católico ou culto.
Não irei neste breve testemunho desenvolver os
aspectos mais essenciais da sua vasta obra, em
que tantos núcleos de sacralidade portuguesa foram por ela bem aprofundados, com toda a sua
poesia ou esperança, mas não podemos deixar de
nomear o culto do Arcanjo Custódio de Portugal
e do anjo inspirador ou génio de cada um, bem
como os de Jesus Cristo, fundador de Portugal
em Ourique, e de Maria, sua mãe, em Fátima refundando a Pátria, e sempre vista como epifania
de Deusa-Mãe, e por ela profundamente sentida
e venerada, valorizando os múltiplos aspectos e
sinais da permanência do Feminino sagrado no
espaço português, reflectidos em quase todos os
seus livros, neles destacando-se o “Da Serpente à
Imaculada” ou “A Ladainha de Setúbal”.
O seu entendimento e visão do Divino não estava pois limitado pelo catolicismo romano e era
verdadeiramente universal e perene, o da revelação em todos os tempos e povos, sob diferentes nomes e formas, e tal concretizando-se mais
especificamente no seu desabrochar alquímico
ou iniciático dentro de nós, realizando-se pelas
mais diversas vias, das quais realçava a poética, a
heróica, a da santidade, a mística, a sacrificial, a
dos mistérios da morte e do renascimento.
Daí a sua arqueologia do sagrado em Portugal,
para trazer ao de cima as linhas de forças do inconsciente colectivo, do mundo imaginal e da
sua história, que os portugueses deveriam reconhecer, e logo admirar ou seguir, e tanto os santos e heróis como os amantes, profetas e poetas,
tal como Afonso Henriques, a Rainha S. Isabel
e D. Diniz, Pedro e Inês, Nuno Álvares Pereira e
Vasco da Gama, Camões e o P. António Vieira,
ou como, mais para trás ainda, as deidades e divinizações indígenas e lusitanas que foram ver-
109
dadeiras teofanias de montanhas ou fontes, pedras ou árvores, no fundo, da natureza fecunda
e espiritualmente habitada, a Mãe Terra sagrada
e que Dalila, como duriense por ascendência,
bem sabia apreciar como comprovei várias vezes
em peregrinações ou passeios.
Convivi bastante com Dalila, desde os 25 anos,
tendo chegado a ela via Agostinho da Silva,
quando vivi em Guimarães. E quando dei aulas
de yoga e meditação no Porto, com regularidade
estava com ela, bem como com Sant’anna Dionísio, com este em longos diálogos, por vezes tácitos ao modo pitágorico, e ainda Mário Pinto,
um esoterista.
A nossa relação foi ainda intensificada pela
particularidade de me ter cedido durante anos
a possibilidade de passar uma a duas semanas,
em Agosto, quando eu fazia anos, no Douro,
nas suas quintas. Lembro-me bem como, nas
faldas do Marão sagrado, me estabeleci pela 1ª
vez numa casa antiga pequena sem água, nem
electricidade, sem cama ou chave e onde até passavam raposas e doninhas. Foi o 1º ano, talvez
em teste iniciático, pois no 2º ano já me cedeu
uma casinha mais alta ou perto do Marão, com
chave e cama, mas sem electricidade e ainda a
púcaros de água, pois a fonte, junto a uma frondosa nogueira não era longe. De tais lugares
aproveitava para mergulhar interiormente em
meditações que antecediam o renascimento do
ciclo anual ou para subir a serra do Marão até
ao cimo, onde celebrava as minhas litanias por
ela apreciadas pois era também uma cultora das
montanhas sagradas e sobretudo do seu Marão.
Por fim, cheguei a ficar na sua bela casa de Fontes, uma das vezes com Sant’anna Dionísio e ela,
para uma peregrinação às igrejas românicas do
rio Douro, levados na carrinha do caseiro e onde
fomos, por exemplo, a Cárquere, a S. João da
Pesqueira, a S. Pedro de Balsemão.
Dalila sabia aliar à sua grande sensibilidade humana, poética e religiosa, e ao seu amor pela
Pátria e pelo Divino, um sentido do dever de
“pater-mater” família não só de generosa e cuidadosa hospitalidade como de pragmática administração das suas quintas e do seu vinho, com
o seu caseiro, o sr. Acácio, mulher e filhos e que,
tratando de tudo, exigiam contudo de quando
em quando a sua presença e capacidade decisora.
110
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Também a sua pequena tebaida ou tapada urbana portuense tinha nela uma autêntica fada,
muito empenhada nas flores, arbustos e árvores
que rodeavam a sua casa (que frequentemente
era a primeira parte da visita) e maximé na sua
pequena estufa onde apurava, certamente com
a ajuda de gnomos e fadas, belos espécimes de
plantas, com que me ia presenteando os ouvidos
e alma nomeando-as, ou levando-me a acariciá-las e admirá-las: “ora veja, ora veja”.
Nesta casa apalaçada do final do séc. XIX, princípios do XX, que bem merecia tornar-se um
núcleo museológico ou uma fundação na qual o
seu legado fosse aprofundado e divulgado, Dalila tinha ao seu dispor numerosas salas marcadas pela tradição portuguesa, tendo no rés de
chão, à direita de quem entrava, a vasta sala da
biblioteca que era onde recebia os visitantes (em
geral com um cãozinho, com quem sempre vivia
carinhosamente, a reclamar festas ou atenção) e
onde cerca de 3 mil livros guarneciam o corpo
de estantes instalado em duas paredes, enquanto
que nas outras duas alternavam as janelas e cortinados brancos, que davam para o jardim frondoso, com as imagens e gravuras de família ou
de predilecção. Em alguns móveis iam-se depositando seja as fotografias dos amigos principais,
seja os objectos sagrados que lhe oferecíamos.
Uma grande mesa ao centro continha os livros
que recebera nos últimos tempos, ou que andava a ler, e outra mais pequena continha obras de
referência, como as de Henry Corbin, Mircea
Eliade, Massignon, R.Otto, etc. Era aqui que se
travavam os diálogos maiores e por vezes mesmo meditações silenciosas que eu, numa linha
de prática mais yoguica, propunha, algumas vezes anuindo, outras sugerindo ela antes alguma
colação, onde sempre se esmerava em oferecer
ainda fruta para eu levar.
Mas era no 1º andar que a Dalila tinha o seu
pequeno escritório (que partilhava com mais
reserva) e onde numa máquina de escrever antiga ia redigindo e corrigindo os seus livros, fiel
à sua missão e inspiração, enriquecendo assim a
tradição cultural, mítica e espiritual portuguesa,
da qual é certamente no séc. XX uma das mais
valiosas cultoras. Escritório pequenino num dos
quatro cantos da casa mas verdadeiramente uma
torre de vigília, um altar da sua vocação onde ia
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
tecendo a teia magnífica da sua obra amorosa.
Dos nossos diálogos, ora nestas duas salas, ora na
salinha de jantar ou na varanda para as traseiras
da casa, ou passeando no jardim, fica a sua suavidade e subtileza e uma grata amizade, que perdura no mundo espiritual, e apontamentos nos
diários, ou cartas, cartõezinhos e dedicatórias,
além de algumas poucas fotografias e vídeos (a
que ela era algo avessa na sua enorme discrição),
mas é certamente nos seus livros que podemos ir
buscar mais as deduções, intuições e esperanças
e assim comungar com ela e o seu ensinamento.
Ligada ou discípula do movimento da Renascença Portuguesa, leitora dos grandes mestres
espirituais, desde os místicos cristãos e iranianos
(Sorawardi) aos mestres do séc. XX, tal como
Ramana Maharishi, Aurobindo, Jung, Henry
Corbin, Massigon, René Guenon, Jean Herbert, Mircea Eliade, Dalila foi sobretudo mais
original na verbalização artística, poética e densa
da sua visitação da tradição portuguesa, desde
a arte à arqueologia, às lendas, aos movimentos
literários, às ordens religiosas, aos místicos e espirituais, e fê-lo com grande coerência, intensidade e unidade, muito tingida pelo seu amor ao
Princípio Feminino e à missão espiritual de Portugal, que sonhava ou intuía, e pela qual muito
sofria, orava e ansiava.
Dalila tinha uma visão clara de que o essencial
era o nosso aperfeiçoamento anímico e a ligação
a Deus, ou a união em cada um de nós da transcendência e da imanência, do céu e da terra, da reminiscência e da presciência, e acreditava mesmo
que os portugueses, mais do que outros povos, por
várias razões de confluência de forças e correntes
e pela sua capacidade de aceitação do outro e de
harmonização dos três estados ou funções e das
várias religiões, tinham e têm essa missão reintegradora e comunicadora, fraterna e ecumenicamente, como já o tinham debuxado a certo nível,
e segundo as linhas franciscanas, templárias e da
Ordem de Cristo, na época dos Descobrimentos.
Para isto tinhamos, ou temos, que reconquistar
forças primordiais e despertar mesmo poderes
ocultos, tal como o 3º olho, a que chama mesmo o da sabedoria ou da visão arcaica, ou ainda o despertar da shakti (energia) interna, pelo
que parte do seu labor de escritora foi dirigido
para tal poder, forças e capacidades no que ela
compreendia ou intuía nas tradições portuguesas, nas raízes primordiais da alma portuguesa,
na Tradição perene em Portugal, embora por vezes talvez exagerando na exegese das capacidades
clarividentes dos antigos ou no providencialismo Divino sobre Portugal.
Mas, curiosamente, apesar do seu muito amor
a Portugal, ao Catolicismo e à Nossa Senhora,
Dalila estava bem ciente do lado excessivamente masculino, patriarcal, ou mesmo machista do
judeo-cristianismo e que, aliado à “peçonha” da
“cobiça e ambição sem freio”, fez falhar em parte a missão portuguesa (e ainda hoje a impede
dedesabrochar…), pelo que valorizava muito o
renascimento do extracto anímico feminino, já
vivenciado tão sagradamente pelas civilizações
pré-indo-europeia e pré-cristãs e que deixaram
fundas raízes na alma portuguesa, acessíveis seja
em sonhos e visões, seja na apreciação e contemplação das formas artísticas pré-históricas, como
as mamoas, os vasos campaniformes, os ídolos
placas, as espirais, seja no culto das serpente, dos
berrões ou porcas, das águas e da fecundidade.
Ou ainda vivenciado pelos celtas, as druidas e
sibilas e pelos galaicos-portugueses (cuja separação, para Dalila como para Agostinho da Silva,
foi trágica), de cuja poesia se apurou muito do
111
Amor-Conhecimento pleno e reintegrador, tanto
da Natureza e da mulher como de Deus e da humanidade, que nos caracteriza no nosso melhor.
É então a hora de continuarmos as suas pisadas
e vôos, aprofundar alguns destes veios e virtudes, aperfeiçoar as purificações e práticas espirituais (tais as que ela praticou muito devotadamente: oração, escuta silenciosa e anamnese
ou reminiscência) e tentarmos realizar mais a
iniciação, a subida da shakti kundalini, a abertura do olho espiritual, a formação do corpo
glorioso, para ela, o verdadeiro meio de transmissão interior e exterior.
Despertemos e vivamos assim cada vez mais na
harmonia do céu e da terra, da transcendência
e da imanência, na complementariedade harmoniosa dos contrários, na união com o Anjo e
na ligação à Divindade, fluindo mais dinamicamente na vivência do Espírito Santo e na grande Alma Portuguesa, à qual a Dalila constantemente se deu, cultivou ou aspirava e onde agora
se encontra, cremos ou intuímos, mais supra-consciente e inspiradoramente, ajudando-nos,
por exemplo, a ver mais claro, por entre a letra
da sua obra ou a dispersão mundana, o Espírito
que é vida, verdade e liberdade…
DALILA PEREIRA DA COSTA
E O RITMO EXTÁTICO EM “A FORÇA DO MUNDO”
Rodrigo Sobral Cunha
A
noção de ritmo extático, na acepção metafísica em que a tomaremos como ritmo excelso, remete para a experiência do êxtase, embora
dela se diferencie ao apontar para a sobreduradoura síntese viva das polaridades extremes que
tradicionalmente a caracterizam1. Actividade
consideravelmente sublime, é-lhe alusiva também a consagrada expressão poética ritmo heróico. Pelo ritmo excelso oferece-se a plenitude da
experiência da harmonia do Universo.
“Pois é sempre próprio do excessivo e não ritmado amor da
verdade, ir de extremo a extremo” (José Marinho).
1
Na obra em epígrafe, designada inicialmente
A Experiência do Êxtase2, encontram-se alguns
pontos preformadores da experiência do ritmo
neste singular sentido, na proximidade do que
Dalila Pereira da Costa denomina simples e rigorosamente “Um ritmo de Vida”. É com a liberdade dos prelúdios que recolhemos aí, como luzidias pérolas, tais pontos de partida, procurando
Dalila L. Pereira da Costa publicou “L’Expérience de l’Extase
na revista Esprit (nº 11, Novembro de 1970), texto correspondente às “Três Meditações sobre o Êxtase”, o primeiro capítulo
de A Força do Mundo, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1972.
2
112
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
arrimar metodologicamente este breve apontamento ao preceito de Ricardo Reis: “Uma ideia
perfeitamente concebida é ritmo em si mesma”.
Uma reiterada ressalva óbvia, porém indispensável: o tipo de conhecimento a que nos referimos (comummente dito “extático” e “místico”),
intuitivo em alto grau, ultrapassa de longe o
horizonte cognitivo simplesmente explicativo
e analítico, característico da experiência científico-racional típica da era moderna; posto que
um tal tipo de conhecimento implica, outrossim,
um superior empenho de todo o nosso ser. Sem
isto, nada feito. “Pois nosso quase sempre cindido pensar carece de ritmo próprio”, escreveu
José Marinho, apontando para “o concreto ritmo
e secreto pulsar íntimo de todo o imenso ser”3.
É o mister da ciência subtil da alterosa circunstância que convoca Dalila Pereira da Costa:
“Pois que o êxtase é uma coisa viva: Quando
estamos em contacto com ele, é com a verdadeira vida que estamos em contacto directo, é nela
que entramos, como no seu centro ardente, seu
coração secreto”4. A experiência do êxtase, “a
mais preciosa e subida modalidade do conhecimento”, requer mesmo uma metamorfose5.
De acordo com Dalila Pereira da Costa, pelo
êxtase tem a revelação da verdade acontecido
ao longo de todas as idades, manifestando-se
Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Editores, 1961,
pp. 72, 108, 126. Recordará o filósofo amigo de Álvaro Ribeiro,
a propósito da dualidade portuguesa dramaticamente cindida
entre o empirismo pragmático e a espiritualidade transcendente e messiânica, que Aristóteles “é um dos mais conscientes e
poderosos pensadores da mediação entre extremos”, acrescentando que a “Analogia é o modo de mediação, ou tensão rítmica, entre a univocidade insensível e a multiplicidade sensível”
(Filosofia – ensino ou iniciação?, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 172, pp. 84-85). O filósofo da “móvel relação
em trânsito e recurso” afirmará assim o seu princípio ritmognósico: “o mesmo que une cinde, o mesmo que cinde une,
eternamente (Teoria, pp. 30, 76, 88). Vale acrescentar que na
mesma passagem que atrás citamos, anuncia José Marinho que
“os portugueses – mas não só eles – estão hoje em condições de
se compreenderem e compreenderem o homem através da sua
humanidade cindida para extremos” (Filosofia, ob. cit., p. 85).
4
A Força do Mundo, ob. cit., p. 35.
5
Ibid., pp. 35-39, 56, 126-131. Ao êxtase chama a mistagoga
“o mais precioso numa vida humana” (ibid., p. 49) e “o seu
mais profundo dom” a metamorfose (ibid., p. 35). Poderá referir, a esse propósito, “Uma vida sem cessar criando-se a si
própria na diversidade” (p. 37).
3
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
privilegiadamente na “experiência mística, ou
poética, ou na da morte”, traduzindo “o que seria para o homem arcaico o sagrado”6. As multímodas tradições referem-se a este saber, com
efeito, como salvador, iluminativo ou de reintegração enquanto superador de toda a dualidade,
conhecimento da origem, firmamento de liberdade e alegria luminosas, Fons Vitae7. Característica deste conhecimento, religador, é a conciliação dinâmica dos opostos: dentro e fora, tempo
e eternidade, mesmo e outro, sujeito e objecto,
tudo e nada, ser e conhecimento, unidade e
multiplicidade, imanente e transcendente, morte
e vida, terrestre e celeste, alma e corpo, espiritual e fisiológico, alegria e dor, desejo e medo,
eu individual e eu absoluto, humano e divino,
natural e sobrenatural. “No êxtase, conhecemos
de maneira global e unitiva, porventura como
conhecia a humanidade primitiva”8.
Ibid., pp. 10, 48, 51, 59, 99-100.
Ibid., p. 20.
8
Ibid., p. 32. Como reparou a propósito José Marinho, “até
nós chegaram, por diferentes vias, as luzes nocturnas e as vozes
múrmuras do mundo mítico”; que “todo o mito nos fala de
relações do homem a uma Natureza misteriosa e secreta ou à
vida divina de profundidade insondável”. E se “o mito está antes do tempo e além do tempo”, também “os mitos assinalam,
entre brumas, três idades: a divina, a cósmica, a simplesmente
humana” (Estudos sobre o pensamento português contemporâneo,
Lisboa, Biblioteca Nacional, 1981, pp. 38-41). Referindo-se à
primeira dessas idades, cuja linguagem era poesia, Teófilo Braga alude à Natureza, esse “canto universal, e cada nota desse
concerto misterioso foi uma palavra da linguagem primitiva.
É por isso que nas línguas primevas não se encontra o metro
artificial, são todas ritmo, todas harmonia” (Poesia do Direito,
Porto, 1865, p. 14). Não será demais recordar aqui uma palavra
da psicologia de Plutarco: “Os teólogos dos séculos passados,
que são os mais antigos dos filósofos, puseram instrumentos
nas mãos das estátuas dos seus deuses; não que vissem como
exercício próprio dos deuses tocar lira ou flauta; mas acreditavam nada ser mais análogo à sua natureza que o acordo e a
harmonia”. Considerando os mistérios do alvor helénico, sinala
Eudoro de Sousa que “o nascimento da mitologia é o trânsito do drama ao poema, do mito sob forma ritual ao mito sob
forma verbal.” Exemplo da metamorfose espiritual geratriz da
mitologia é a original dança, muito anterior à artificiosa, “a nativa, espontânea e graciosa euritmia, na qual, indiferentemente,
a música é emotiva e o movimento é musical. Neste sentido,
a dança é fenómeno cósmico. Neste sentido, talvez, os Antigos falavam de ‘música das esferas’. “Imaginemos, então, esse
bailado humano, parcela do bailado cósmico, em que o ritmo
corporal prolonga o ritmo natural; em que o corpo humano
renova – não repete –, a mesma renovação rítmica da Natureza.
Imaginemos, por instantes, que o próprio movimento se tornou
6
7
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Numa palavra, nesse instante intemporal abre-se uma “passagem”. “Qualquer coisa como uma
parede que, sendo invisível, seria duramente
impenetrável. E da qual a travessia, o acto de
a furar, seria como o acesso a um mundo novo,
o outro mundo”9. Nesta súbita transformação,
aquele que sobrevive a esta prova descobre então
um segredo maravilhoso, “como coisa perdida
há muito e aqui, de novo encontrada”, enfim,
acha-se “como verdadeiramente se tivesse passado o rio do esquecimento”10. “Aí a essência
gloriosa do mundo se revela”11. Visitando “o
centro de energia eterna: o verdadeiro lugar da
vida”, conhece-se o “poder de eterna juventude, de eterna metamorfose”12. Pela envoltura
da “força primordial” e a transmutação da potência da energia do ser em nós, pelo fogo da
graça operante, altera-se todo o acto existencial
até ao fundo, a vida desvela-se, emerge a “ternura secreta”, as árvores são vistas na sua essência
energética flamejante, outra-se a simples acção
de caminhar, “como se uma pessoa fosse andando no ar, um pouco acima do chão”13.
Na paz suprema da estabilização do êxtase prolongado in medio mundi, de acordo com Dalila
Pereira da Costa, “o que está no fundo desse
movimento psico-cósmico, o que o regerá, o
que será a sua essência, é o ritmo”14. “E o que
audível, sem auxílio de instrumentos musicais: – eis o mito em
sua forma dramática. Imaginemos, depois, que o movimento
cessa de súbito, mas que a música e o canto, a compasso, prolongam, ou recordam, o ritmo do bailado: – eis a metamorfose
[...]. “Se, em verdade, a expressão verbal prolonga a muda acção ritual, não há que estranhar a articulação rítmica da frase
[poética], porquanto, ritmicamente articulada é, por natureza,
toda a actividade humana e toda a efectividade cósmica”; pois
que o ritmo “estrutura as formas e qualifica as metamorfoses de
tudo quanto vive” (“Origem da poesia e da mitologia no drama
ritual”, Rumo, I, 2-4, Lisboa, 1946; Dionísio em Creta, Lisboa,
IN-CM, 2004, p. 106).
9
Ibid., pp. 8-11.
10
Ibid., pp. 12, 15, 61.
11
Ibid., pp. 31.
12
Ibid., pp. 37, 61.
13
Ibid., pp. 67, 71, 72, 75, 85-93.
14
Ibid., p. 97. “No êxtase, o que se sentirá como constituindo
o mais específico e precioso desse instante, será um certo ritmo, outro e desconhecido, onde de súbito nos sentimos cair,
coincidir”. “Um ritmo de Vida”. “Será a este ritmo, delicioso,
supremo, de limites insuspeitos, que é a própria plenitude, a
que se quererá referir Pitágoras, ao falar da música das esferas?”
113
sente todo aquele que entra em contacto com
o coração do mundo, que coincide com o centro, conhece um estado extático, é um ritmo de
vida, até então desconhecido, como um pulsar,
poderoso e quão doce, que é sentido como a
suspensão de um movimento, ou o atingir do
seu ponto estático, mas donde partem, como
dum germe, concentricamente, sucessivas ondas de ritmo que se prolongam ao mundo todo
– sucessiva e infinitamente. “E a eternidade é
sentida como este estar, estável, no meio do
mundo, esta identidade, sincronização com o
ritmo central e primeiro”15.
Em conclusão, notemos que a sobrevivência do
ritmo excelso, ou a soberana vivência da rítmica
excelsitude, repousa bem na intuição operativa
dos extremos ritmados. Os extremos tangem-se,
como a luz e a treva, não havendo um sem outro, um pelo outro sendo, nesse ritmo extremoso do ser. Levado pelo vero amor a pairar sobre o
vivo mundo terreal, o espírito ditoso contempla
a flor da vida universal. Para esse que sabe enfim
que a terra é do céu como o céu da terra, cada
passo é novo ao caminhar pelo reino dos céus.
Os extremos
tangem-se, como a
luz e a treva, não
havendo um sem
outro, um pelo outro
sendo, nesse ritmo
extremoso do ser.
(ibid., pp. 95-96). No culto da música do século XVIII escutará Dalila a manifestação do sagrado dessa idade do homem
(ibid., pp. 111-116). Os Concertos Brandeburgueses de Bach,
por exemplo, celebram o contacto com o centro do mundo
“em todo seu dinamismo, dum incessante movimento criacional, de pura alegria, em formas a si mesmo se multiplicando e
sucedendo”; “cultuando a matemática, como ciência sagrada” e
sempre “visando a mística teologia” (Dalila L. Pereira da Costa,
Dos Mundos Contíguos, Porto, Lello Editores, pp. 97-106).
15
Ibid., pp. 97-98. É diante deste horizonte que Dalila Pereira
da Costa lê a História de Portugal.
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
A RESPEITO DE “A NAU E O GRAAL”
Rui Martins
Uma das obras mais importantes da filósofa
Dalila Pereira da Costa é “A Nau e o Graal”1.
Texto indispensável para compreender Portugal
e a visão que a filósofa portuense tinha do nosso
destino e missão coletivas, a “Nau e o Graal”
é crucial para compreendermos o que somos e,
sobretudo, para onde vamos, num momento de
grave crise financeira e social.
1. Perda de Vitalidade
“Além duma real perda de vitalidade houve, por
exaustão, após seu portentoso acto ou missão, ou
pelo facto de completa realização desse ato ou
missão, como revelação terrestre a eles supremamente incumbida na história universal – ter-se-ia dado, a partir do século XVII, uma não-sincronização ou partilha, entre eles e o resto da
Europa, duma certa eleição, forma e estrutura de
pensamento e conhecimento.”
Na visão de Dalila Pereira da Costa, Portugal
teria entrado em plena Idade Moderna e – depois – na Pré Industrial, sem ânimo, objetivos
de longo prazo ou desígnios nacionais que lhe
permitissem alimentar o mesmo grau de intensidade de presença no mundo e de influência
planetária dos finais da Idade Média. Depois do
grande desaire de Alcácer Quibir, o país porta-se como se lhe tivessem quebrado a espinha
dorsal, como se estivesse sem outro destino que
não fosse o de sobreviver e de deixar passar dia
a dia como se nada fosse realmente importante ou merecesse a pena. Desde a perda do Rei,
Portugal age como se estivesse em depressão
coletiva, um sentimento intercalado apenas por
breves momento de euforia ou de alienação de
1
Todas as citações que faremos serão dessa obra.
massas. Neste contexto, a construção do Brasil
assume-se como o último grande fôlego de uma
aventura que perdeu em finais do século XVI o
seu maior fulgor e energia. Esse esgotamento explicaria a desincronia de desenvolvimento económico e social que Portugal experimenta desde
meados do século XVII e que é especialmente
evidente depois do século XX com a industrialização do continente europeu que não alcançaria
nunca o país.
Depois da escala extraordinária das suas realizações
no período dos Descobrimentos e da Expansão,
Portugal está desincrónico com a Europa. É um
facto, mas poderá estar nesta situação porque
na sua mais profunda essência Portugal não será
realmente um “país europeu”? Na sua História
já milenar, raramente o país esteve inserido no
contexto político e diplomático europeu. Quase sempre pautou as suas políticas e desígnios
nacionais muito mais pelo Atlântico e por aquilo que havia para além dele (o “além mar”) do
que pelo que se passava no continente europeu.
Portugal pode estar assim desincrónico apenas
porque... Essa é a sua natureza: atlântica e global
e não continental e regional. Assim, o “defeito”
seria de facto, uma caraterística de um dado
ponto – intermédio – do desenvolvimento e da
vida coletiva do país e que seria apenas a antecâmara para um novo estádio da vida coletiva de
uma nação que ainda não cumpriu plenamente
o seu verdadeiro destino.
2. O Regresso de Portugal do Brasil
“Como nova emersão, subida do seio materno, da
semente fecundada, para nova vida duma civilização, ela será a segunda vinda da ilha do Encoberto. A Ilha da Promissão dos Santos, que São
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Brandão procurou durante sete anos, ou Ilha das
Sete Cidades, ambas foram e estiveram no apelo
e realização da aventura para oeste, que por ela,
culminaria na viagem de 1500, que os mareantes
de Álvares Cabral, por certo levando uma rota estabelecida, memorizaram pelas palavras de Pêro
Vaz de Caminha: “e assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo.
Uma manhã, o monge São Brandão e os seus 14
companheiros, partiram navegando para ocidente em busca “duma certa ilha que o homem de
Deus Bariunto lhe tinha falado e que era terra
espaçosa e verde e muito frutífera.”
Noutros pontos desta importante obra Dalila
Pereira da Costa já deixara bem claro que acreditava que Dom Sebastião haveria de regressar
numa manhã de nevoeiro (simbólica) vindo da
Ilha das Sete Cidades sendo que a filósofa do
Porto explica o que seria exatamente essa “ilha”:
a mesma que estivera na base do apelo atlântico
que impulsionara Portugal à extraordinária gesta dos Bandeirantes e à construção heróica da
maior nação da América do Sul: o Brasil.
A “terra espaçosa e muito verde” de São Brandão, a Ilha do Encoberto, a Ilha das Sete Cidades (refúgio dos cristãos visigóticos) e a Terra de
Vera Cruz são assim uma e só uma realidade:
O Brasil. Interpretando Dalila concluímos assim
que a Salvação de Portugal das trevas em que
anda imerso desde Alcácer Quibir virá dessa mítica “terra espaçosa e verde”,que a filósofa associa à Terra de Vera Cruz, o Brasil, e que assim,
será essa “Ilha Encoberta” de onde virá o Rei do
Tempo Futuro que abre assim a era do Quinto
Império. Será o Brasil o futuro de Portugal? Virá
do Brasil a figura salvífica prevista pelos profetas? Ou... Será simplesmente essa salvação realizada através da materialização do conceito de
uma União ou Comunidade Lusófona?
3. Portugal e a Rússia
“Na Europa, só um outro seu país, e justamente na sua outra extremidade, a oriental – assim,
como criados em pólos opostos de simetria equilibrada – a Rússia, deterá tal vontade e poder de
messianismo. E de valorização última, sagrada,
da história: como justificadora e salvadora.”
115
A Europa não o sabe. Mas ela é de facto uma
entidade oscilante que cintila entre um equilíbrio tripolar: Rússia, Portugal e Grécia. Ao contrário do que crêem os eurocratas de Bruxelas
ou os Neoimperialistas de Berlim o “centro” da
Europa não reside nem em Berlim, nem em Paris nem (muito menos) na parasitária e ridícula
Bruxelas. O “centro” da Europa são os seus tripolos. É deles que emana a energia que dinamizou o continente que deu ao mundo realizações
tão notáveis como a democracia, a ciência ou os
direitos humanos.
O centro europeu oscila ora na direção de Portugal sendo então a Europa mundialista e aberta
ao mundo. Quando o centro oscila na direção
da Grécia, a Europa é racional, criativa e democrática. Quando oscila para a Rússia, é imperial,
“romana”, continental, sonhadora e ambiciosa.
A Europa não é o seu centro. É a sua periferia,
é ela que a define enquanto matriz civilizacional
e cultural.
4. Paralelismos entre
os mitos arturiano e sebástico
“Dom Sebastião continuará o mito do Rei Artur, como modelo exemplar da soberania; do rei
que, como oficiante e vítima, se oferta e Imola
no sacrifício ritual pelo seu reino, dele seu representante, a ele identificado transcendentemente;
e o que, após longa dormição, o virá salvar. E
assim como os Cavaleiros da Távola Redonda foram exterminados na batalha de Camlan, assim
também o foram os cavaleiros da nobreza do reino lusíada na batalha de Alcácer Quibir: mas
também depois da sua morte, seu longo período
de pausa e ocultamento, o rei salvador voltará
ressuscitado, purificado e iniciado, para redimir
e ressuscitar o seu povo. E entretanto, como Artur
ficou permanecendo na Ilha de Avalon, centro do
mundo, assim também Dom Sebastião ficou permanecendo na sua Ilha Encoberta, como outro
centro do mundo.”
Os paralelismos entre o mito arturiano do “rei
perdido, mas que regressará” e o sebastianismo
português, são, como aponta esta grande teórica
do movimento lusófono, evidentes. Sebastião
é o Artur dos portugueses e Artur o Sebastião
116
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
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Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
dos ingleses. Um e outro pertencem ao mesmo
quadro mítico-simbólico de fundo celta, cruzado
de elementos messiânicos judaicos. Um e outro
mito fundador buscam numa misteriosa e oculta
ilha atlântica o refúgio desse Rei perdido. Um e
outro construíram um projeto nacional em torno
das navegações atlânticas e um e outro ergueram
impérios transatlânticos absolutamente ímpares.
Os ingleses de hoje não sentem muitos traços
de união com estes seus parentes celtizados,
atlânticos e ultraperiféricos, mas a mesma matriz civilizacional continua lá. E o mesmo sucede
com Portugal, país que sempre foi muito mais
atlântico, que “europeu” (no sentido restrito),
muito mais marítimo que continental e muito
mais aventureiro do que laborador (no sentido
germânico do termo).
elas as de Henrique, ontem, ou da Lusofonia ou
do Espaço, amanhã.
5. O Graal é Portugal
A renovação da Europa virá de Portugal. Portugal não deverá assim “europeizar”, mas pelo
contrário deve – como também dizia Agostinho da Silva – tudo fazer para preservar o seu
carácter livre e independente e por contaminar
com este caráter o continente europeu.
Portugal pode curar a Europa do mal de que esta
hoje padece. Fazer com que deixe de ser uma
criatura que padece de “solipsismo, abstração,
inteletualismo e racionalismo, estremes e estéreis; e negação última de possibilidade de vida”
negando a natureza humana das sociedades,
dando primazia radical e absoluta ao individualismo e ao egoísmo contra a comunidade e a
integração com a natureza e o meio e rendendo
– sobretudo – o cívico e o político ao económico
e financeiro.
A Europa tm que se recentrar no Homem. Retomar a ligação do Homem com a Vida e sem
pudores ou receios admitir que a existência plena do humano no mundo não se faz sem a admissão e inclusão de um plano espiritual.
“Nas diferentes versões da Demanda, o graal será,
na mais antiga, a de Chretien de Troyes (século
XII), uma escudela; na de Wolfram Von Echenbach, uma pedra; na de Peredur, do País de Gales, e de autor desconhecido, um prato com uma
cabeça; e na Demanda do Santo Graal, atribuída a Robert Boron, o vaso onde Cristo celebrou
a última ceia e onde José de Arimateia recolheu
no Calvário o santo sangue. Será esta versão, do
século XIII, difundida pela Ordem de Cister, a
mais lida no Portugal de então. À qual ainda, no
mesmo complexo, se juntará, o Livro de José de
Arimateia, atribuído ao mesmo autor, e a Crónica do Imperador Vespasiano, como ligados ao
mesmo circulo.”
Assim, a visão do Graal adotada em Portugal por
inspiração de Cister e propagada pelos monges-guerreiros do Templo seria precisamente a do
Graal enquanto Vaso ou recetor do Sangue de
Cristo. O Graal é em Portugal, o Vaso Sagrado
e Portugal assume ele próprio, logo desde a sua
fundação (precisamente cumprindo um plano de
Cister executado pelos Templários) a essência do
próprio Graal que está incluso na sua própria designação “porto-do-graal” e testemunhada no selo
de Afonso Henriques e no Mosteiro da Batalha.
Portugal é o Vaso do Graal. O Porto de onde
partiram e tornarão a partir as Caravelas sejam
6. O Mundo do Futuro
“(...) essa semente aqui fossilizada, mas intacta
na sua potência germinativa, o que urgirá ofertar
ao Ocidente. (...) e não sabendo, ele, que aqui
existe preservada numa cultura sua, ocidental
atlântica, neste seu extremo, sua Península. (...)
Essa semente, consigo trará o fim dum mundo em
si obstruído, morto, nas suas formas ou forças de
conhecimento e vida, do qual as aparências, nós por
vezes as podemos apontar, como: distanciação do
real, impossibilidade de aderência a ele, solipsismo,
abstração, inteletualismo e racionalismo, estremes e
estéreis; e negação última de possibilidade de vida,
como niilismo, ou loucura.”
7. Os tempos do Nigredo
“Este povo, logo após Alcácer Quibir, teria começado, recomeçado por sua vez, na historia individual e coletiva, para merecer o ressurgimento e
possessão do bem supremo – e em gesto solidário
ao do seu rei – a perfazer em si uma longa prova,
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
tal outra demanda e navegação: como sacrifício
ritual. Para futura regeneração. E que seria ao
mesmo tempo de ocultação e prova. Ou em termos
de alquimia e hermética o tempo de Nigredo.”
O Nigredo Português é assim a fase do desenvolvimento nacional em que ainda hoje vivemos.
Parte de um Processo maior, significa que Portugal tem que passar por ela para poder evoluir até
ao Albedo e daqui para a sua realização mais plena e completa, o alquímico Rubedo ou “Pedra
ao Rubro”. Em Alcácer Quibir não morre (se
morre) apenas um Rei de um país independente
e soberano, cobiçado por Espanha/Castela. Acabe com ele toda uma nação que a partir daí se
limita a existir perdendo todo o norte e energia,
vagueando ao sabor das circunstâncias, sem projeto nacional ou energia bastante para recentrar
uma existência que deixou de ser possível nos
mesmos termos em que se desenvolvia depois do
sacrifício do rei nas areias do norte de África.
Portugal tem que passar, como passou o seu Rei,
pela Morte ritual, para poder renascer. Tem que
cruzar o Nigredo para chegar ao Albedo. Tem
que morrer para poder renascer.
9. O Regresso do Encoberto
“Na Ilha do Encoberto, se dará a morte ritual
(ou segunda morte), dum rei e do seu reino, como
anulação ou suspensão da sua história. (...) Assim,
o Desejado repetirá no Atlântico, o que desde
tempos imemoriais desde o paganismo e através
do cristianismo, o homem dessa pátria sempre realizou na água, ou Santo Vaso. Dom Sebastião
emergirá do mar, na manhã da sua epifania, regenerado como dum Batismo.”
O Rei Encoberto só regressará depois de morrer
na sua Ilha atlântica onde se encontra hoje refugiado... Essa morte ritual será na água, como um
batismo e será sucedida por um renascimento
que o fará renascer do lado de cá do Atlântico.
O Graal – veiculo da regeneração do Rei, assim
como também o foi da sua imortalidade – é nesta
leitura – o Vaso que cura o Rei é o Mar... O Mar
onde está a Ilha do Encoberto é assim o vetor
de Portugal e do seu Renascimento deste pantanal infecto e paralisante onde vegeta desde
o desvio do projeto nacional conduzido pelo
117
ultracatolicismo, pela Inquisição e pela adesão
ao espírito do Lucro e do Império em desfavor
do Espírito criador, das liberdades cívicas e do
universalismo fraterno que prometia a primeira
fase dos Descobrimentos.
Portugal será reconstruído pelo Mar, por Aquele
que dele e por ele virá e o Graal mítico que buscamos e precisamos será simultâneamente esse
Rei Redentor e o Mar, eixo fundamental de uma
reconstrução que só pode ser feita olhando para
e para além do Atlântico.
10. Um dos Centros Espirituais
do Ocidente
“Vejamos Portugal, no seu período de vero esplendor, como sua plena manifestação, o período de
início da Idade Moderna, como tendo sido então
um dos centros espirituais do Ocidente. De que
a sua posterior decadência, nada mais seria que
a ocultação, como movimento ou processo natural
das leis cíclicas da manifestação, que se segue à revelação; e que a posterior face de comércio, de simples ganância e luxo mundano, em que neste reino
decaiu a aventura da descoberta da terra, nada
mais seria que um sinal concomitante e revelador
dessa degenerescência, como sua queda duma primeira função e missão arcada no seu vero plano,
num outro puramente material e humano.”
Portugal foi grande apenas enquanto assumiu
de forma plena e realizada a sua espiritualidade.
Fomos grandes enquanto realizámos o Reino do
Espírito Santo e o tornámos universal, levando-o aos Açores e, mais além, até ao Brasil. O comércio, a ganância e o luxo levaram à decadência e esta à morte ritual de Portugal em Alcácer
Quibir. O renascimento, patrocinado por esse
Rei Encoberto que há de surgir do Vaso do Graal que é o Mar Oceano passará pela recusa ao
luxo e à ganância como formas de vida e pelo regresso a um estilo de vida regrado e contido, mas
generoso e sonhador que caraterizava o “reino
de ouro” de Dom Dinis e dos alvores da Gesta
dos Descobrimentos. Austero e moderado, mas
ambicioso e universal, esse será o Portugal dos
tempos futuros que hoje já é possível antever
por entre as brumas da grave crise social, financeira e de mentalidades que hoje atravessamos.
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
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Nº 10 – 2º Semestre 2012
A PROPÓSITO DE
“ORPHEU, PORTUGAL E O HOMEM DO FUTURO”
Teresa Bernardino
«Num sentimento de febre
de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa,
“Para Além Doutro Oceano” (poema), 1917
T
errível superação e bendita, a de ser Pessoa
o escolhido para abrir o caminho novo da
pátria exausta, e, com ela, de todas as pátrias
moribundas! Todas as pátrias a serem, no cume
da montanha do tempo, uma só pátria a escrever-se na Europa apagada ainda por um mundo
vil e degenerescente.
Num mar de oceanos múltiplos, cresceram os
povos de tradições tão várias, a mudar com
os séculos e os milénios, e, ao mesmo tempo,
ensinando aos vivos identidades do presente
e desvios da memória do passado. Cada um,
a ditar o cérebro sem amarras do homem-super, sem diferenças de rumos ou desigualdades insuperáveis.
Aqui, num sempre Portugal a respirar Pessoa,
nasce o imenso futuro da ideia nova que é capaz da ousadia, mesmo da temeridade de um
oceano longínquo e imortal, podendo transformar povos inteiros num povo redimido por essa
Europa a transbordar de espírito e de emoção,
numa colheita imensa de sementes sábias.
Rumo à Europa dos novos descobridores de um
mundo inteiro a dar-lhe a largueza dos mundos
que o grego criou na Odisseia e na Ilíada mediterrâneas e que o português recriou nas navegações das Américas e do Índico e do Pacífico, essas
geografias alheadas de si e sem saberem nada de
quem chegava, urgente e inquieto.
Na oratória do Pessoa do Ultimatum (ass. pelo
heterónimo Álvaro de Campos na revista Portugal Futurista, nº1 e único), datado de 1917, e
do poema “Para Além Doutro Oceano” (revista
Orpheu, nº 3, curiosamente também de 1917),
Dalila Pereira da Costa vê o espectáculo pessoano das ondas, atravessadas com o lápis da cruz
e da vitória, a inscrever-se no Velho continente
das sabedorias e a elevar-se até à superação humana de Língua Portuguesa. Dalila vê a frota
dos navegantes, como Pessoa, desde o estuário
do Tejo até às margens do Danúbio.
Em Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro,
Dalila aborda a profecia do Ultimatum e de
Para Além de Outro Oceano. Quando escreveu
este opúsculo, no ano de 1977, viu uma Europa mundializada sob a égide da civilização
luso-atlântica.
Hoje, numa perspectiva idêntica, vemo-la,
contudo, diferente. Vemo-la agora Nova Civilização a renascer em novas literaturas sem papel, desenrolando-se em todo o papel invisível
a circular, intenso e livre entre mares incomensuráveis. Agora, vislumbramos abismados os
novos mundo da internética geração, dispersa e mesmo assim inteira, numa globalidade
exaltante e, ao mesmo tempo, promissora via
de espaços de muitos sentidos insuspeitáveis e
cheios de novidade.
Uma Nova Civilização europeia começa, hoje,
na tinta impressa nos ecrãs dos computadores e
no olhar dos atlantes a sobreviverem num Portugal imerso em nevoeiro. E todos os navegadores da cabeça da Europa que é Portugal, essa
janela aberta para as terras do longe atlântico,
essa vontade de poder ainda a perecer, ressurgem
das águas das salgadas marés, a espraiarem-se na
voz emudecida e viva dos náufragos esgotados
de sede e de ardor.
Com o Ultimatum nas mãos, Pessoa segue um
rumo certo e intemerato entre linhas geométricas e astrolábios, junto a terras novas e secretas,
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
pejado com todas as filosofias do conhecimento
humano. Entre quadros negros de cálculos audazes de infinito a germinar na escola futurista
de Sagres, os nautas do mar salgado de Quatrocentos unem-se hoje aos internautas dos espaços
computacionais do futuro.
Num percurso de novíssimas máquinas, com a
inteligência a transcender-se para vencer toda a
mística de um universo a ser decifrado pelos novíssimos mares augurados na Mensagem (1934), forjam-se altos desígnios a contornar todos os tempos
abismados com o emergir do tempo novo do super-homem. E foi Pessoa quem, em 1917, recriou
um Super-Homem perplexo com a complexidade,
com o saber completo e a arte da harmonia.
Como profeta da Europa decadente e a renascer, Pessoa pré-anunciava o Super-Homem no
Ultimatum, com a audácia da Raça dos Descobridores e a lucidez da loucura mais funda que
os abismos marítimos. Em Orpheu, Portugal,
e o Homem do Futuro, Dalila Pereira da Costa
descobria e tocava o Pessoa ávido da força dos
heróis e intérprete da história oculta a não iniciados da sua Pátria dispersa pelo mundo. Vendo nela todas as pátrias, vendo tudo com todos
os olhares e com todas as almas, Pessoa ascende
ao topo da totalidade do Super-Homem teorizado pelo filósofo alemão Nietzsche em Assim
Falava Zaratustra, escrito entre 1883-85. Um
Super-Homem todo a espargir os seus limites,
superados enfim.
Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, escrito
em 1977, é um pequeno ensaio em que Dalila Pereira da Costa, a filósofa mística do Porto,
faz renascer a “pequena pátria lusitana” com as
tintas da exaltação mística desse Pessoa transfigurado no espantoso Ultimatum do ano de
1917. A esse expectante homem novo, prestes
a eclodir numa Europa à procura de um Caminho para o realizar, em liberdade e na partilha fraternal, a Nova Civilização salta do seu
visionarismo futurista, a alargar os braços até
abraçar o mundo todo.
Ao lembrar este opúsculo da autora de O Exoterismo de Fernando Pessoa, alguns meses após a
sua morte, sem ser morte verdadeira, pois Dalila aqui está viva na nossa lembrança, recordamos
aquilo a que ela chamou a «suprema ascese de
Pessoa visando a criação de um homem novo
119
ou mundo novo (a partir da sua verdadeira Pátria, o mundo de Língua Portuguesa)». Como
Dalila bem salienta também, Pessoa continuou
a profética oratória do Padre António Vieira
que, no século XVII, previa uma espantosa
“História do Futuro” neste país herdeiro da mítica Atlântida, nesta escarpada costa marítima
do Ocidente da Europa.
Escrevendo a pensar na gente lusa dos Descobrimentos para o mundo, o Ultimatum pré-anunciava, dezassete anos antes, o livro de poemas
Mensagem publicado em 1934, apenas um ano
antes da morte do “Super-Camões”. Os portugueses, como Dalila Pereira da Costa, ainda esperam pela realização dos vaticínios do Ultimatum.
Esperam por um magnífico monarca, qual rei D.
Sebastião, O Desejado, a arribar ao Tejo talvez n’
A Última Nau, poema profético dessa enigmática
e imortal “hora”, que Pessoa nos anunciou numa
hora incerta que não vamos esquecer.
Na verdade, Dalila Pereira da Costa também
nunca a conseguiu esquecer, porque a “hora”
para o mundo, precisamente de Língua Portuguesa virá, ainda que silenciosa, mas para ser no
mundo uma «Gaia Ciência» a guiar os povos,
cada um e todos a envolverem-se no magnífico Futuro da humanidade que se superou e
construiu uma Civilização «realizada pela alma
atlântica». Uma «Civilização universal vivificada pela seiva duma cultura cosmopolita», como
acentuaria Dalila nas últimas páginas do opúsculo que recordámos neste ensejo.
A saudosa Dalila Pereira da Costa que se dedicou
afanosamente ao mistério da portugalidade que
Pessoa tanto escalpelizou. Na senda do Poeta
dos heterónimos, Dalila viu Portugal a perecer
e edificou a esperança. Fê-lo renascer na “hora”!
A “hora” vaticinada pelo autor de Ultimatum a
contemplar o Tejo no cais da partida «para além
doutro Oceano».
Na senda do Poeta dos
heterónimos, Dalila viu
Portugal a perecer e
edificou a esperança.
120
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Abé Barreto Soares
Maria Leonor Xavier
Avelino de Sousa
FL O RIN DO ETERN AME NTE
A QUE D A D A L U A
DO IS P O EMAS
Tudo será esmagado
Tudo será quebrado
Tudo se tornará poeira
Caiu do céu
um pedaço de lua
e apagou-se no chão
qual pedra da rua
Depois rolou
do inverno ao verão
molhou-se na chuva
e encontrou becos
sem fuga
Dormiu entre dedos
de erva fria
e pisou a terra seca do meio-dia
Rolou na estrada deserta
e à beira da rua
qual pedra vadia
Depois caiu de roldão
e desfez-se a lua
na minha mão.
A infância é limpa, como a tarde,
Cedo os sons ouve e apura
como se num búzio guardasse
As ondas que o mar, nítido, rola.
Novos rebentos surgirão, florindo a terra plana
Nós rezaremos
Nós cantaremos as canções ancestrais
Nós dançaremos tebe
Nós dançaremos bidu
Circundando as pedras da casa sagrada
Uma grande esteira será estendida
Todos nos sentaremos
Os nossos corações estarão serenos
As nossas mentes estarão tranquilas
Dizendo a verdade
Recontando os males feitos
A felicidade do amor surgirá
A beleza da paz será verde
Florindo e florindo
Florindo eternamente
(Tradução de António José Borges)
A altos píncaros, estreme,
a infância é uma subida
e um coração que sempre bate
como se fosse a própria vida.
…
Manso marulhar do rio coalescente
acesas já as luzes da cidade, nas margens.
Os olhos lentamente desfocados de imagens
desaprendendo a olhar o evidente.
121
MANUEL LARANJEIRA
– nos 100 anos do seu falecimento
122
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
ESBOÇO BIOBIBLIOGRÁFICO DE MANUEL LARANJEIRA
José Lança-Coelho
D
e seu nome completo, Manuel Fernandes
Laranjeira, nasceu a 17 de Agosto de 1877,
no lugar de Vergada, freguesia de São Martinho
de Moselos, concelho de Vila da Feira, no seio
de uma modesta família, cujo pai, Domingos
Fernandes da Silva era pedreiro e a mãe, Maria Francisca Laranjeira era doméstica, e, faleceu
a 22 de Fevereiro de 1912, em Espinho, fazem
agora cem anos.
Em 1884, inicia os estudos primários na antiga
residência paroquial de São Martinho de Argoncilhe, tendo por professor o republicano João
Carlos Pereira de Amorim.
Entre 1889 e 1890, morre o tio «brasileiro», o
boticário António Alves Ferreira, cuja vultuosa
fortuna é repartida. Será graças a esta repartição
que, de regresso a Portugal, o genro, Salvador
Fernandes Camelo, apoiará o retomar dos estudos de seu irmão Manuel Laranjeira, que, no
ano seguinte, aprende o ofício de carpinteiro.
Em 1895, inicia os estudos secundários.
No biénio 1897-1898, escreve o soneto «Tenho inveja ao Cristo» e a comédia inacabada
«O Filósofo».
A sua obra virá a abarcar cinco géneros literários,
a saber, diarística, epistolografia, ensaio, dramaturgia, e, poesia, que, expressam a procura de
um ser que pretende a todo o custo encontrar
o tom da sua própria verdade que, em última
análise, está ligada à solidão.
Em 1899, Laranjeira matricula-se na Escola
Médico-Cirúrgica do Porto, ao mesmo tempo
que inicia a colaboração em revistas e jornais.
Vai residir com a família para Espinho, enquanto a tabes (sífilis medular) lhe começa a afetar os
membros inferiores.
No ano seguinte, Laranjeira começa a sentir
grande interesse pela obra dramática de Ibsen,
escrevendo o artigo «Henrik Ibsen e Max Nordau» na revista portuense A Arte e publicando
artigos sobre peças daquele dramaturgo no jornal republicano do Porto, O Norte. Colabora
também no número comemorativo do centenário do jornal O Campeão, escrevendo o artigo
«Almeida Garrett», onde revela toda a sua frontalidade de espírito.
Em 1901, continua a publicar artigos sobre arte
e literatura, nomeadamente, o ensaio «Augusto
Santos» saído na lisboeta Revista Nova, onde
aborda a perspetiva genética que designa por
“estudo psico-estético”.
Em 1902, escreve os sonetos «No sono das coisas…» e «Talvez tu chores». Publica, também, a
peça Amanhã que subintitula Prólogo dramático,
e que antecipa o movimento do Teatro Livre,
que apenas no final deste ano ganha a imagem
pública, com a conferência «Teatro Livre &
Arte Social» pronunciada por Ernesto da Silva, a que se seguirão outras de Teófilo Braga e
Heliodoro Salgado. Continua a publicação de
artigos sobre diversas temáticas como, reflexões
sobre os nexos entre o herói e a coletividade –
«O Infante D. Henrique em face da arte moderna» no Jornal de Notícias, e sobre a génese,
a natureza e as funções da arte – «A forma em
Arte», «Arte e Moral», e «Arte Monista» na Revista Musical. Ainda neste ano, nasce o seu primeiro filho Flávio, filho natural da ligação que
mantém com a serviçal residente em Espinho,
Maria Rosa de Jesus Neves.
No ano seguinte, publica diversos ensaios sobre
o tema dramatúrgico: “Teatro contemporâneo
(Carta ao Sr. João Chagas)” e outros artigos
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
no jornal A Voz Pública. Escreve artigos sobre a
problemática do teatro, nomeadamente, dramaturgos –«Ernesto da Silva» na Revista Musical –,
peças – «As fogueiras de S. João de Sudermann»
n’A Voz Pública –, e, atores – «Lucília Simões» n’
A Voz Pública. Remodela e republica, n’A Revista
do Porto, o estudo «Augusto Santos». Polemiza
com Mayer Garção; escreve a João de Barros, e
já conhece Guerra Junqueiro. Desloca-se a Madrid, onde visita o Museu do Prado. Envia diversas cartas ao amigo Manuel Luís de Almeida,
onde se notam desgostos da vida circundante,
períodos de profunda tristeza e crises de tédio.
Em 1904, termina o curso de Medicina e abandona um negócio de farmácia. É representada
pela primeira vez, embora parcialmente (cenas
2ª, 3ª e 4ª) a peça Amanhã, no teatro do Príncipe Real em Lisboa, na estreia da companhia do
movimento português do Teatro Livre. Questionário sobre Antero de Quental e visita a Teófilo Braga.
Início de um intenso labor epistolográfico, de
onde se destacam as cartas a: João de Barros a
propósito da neurastenia; a Teixeira de Pascoaes acerca do naturalismo de Amanhã, poesia e
conceções divergentes da Vida e do Universo;
a Manuel Luís de Almeida onde enfatiza os estados mórbidos (sífilis e histeria) e as crises de
depressão moral e apatia; a Luís Pinto Ribeiro
onde refere a angústia suicidária que o assalta à
chegada da noite.
No biénio 1905-1906, publica em Porto Médico um longo estudo acerca do ‘Nirvana’, decisivo para a dilucidação dos princípios filosóficos
e metodológicos por que se rege a atividade
intelectual do escritor, e onde se insere uma
análise arguta da crise pessimista que domina
o país. Contemplando o cientismo biologista,
escreve o estudo psicopatológico sobre o padre
Bartolomeu de Quental, antepassado do poeta
Antero, e profere importantes conferências de
divulgação sobre a temática da ‘Vida’ que têm
lugar na Universidade Livre do Porto. Publica
nos Serões de Lisboa, o artigo ‘António Carneiro’, exemplo da crítica psicologista aplicada às
artes plásticas.
No campo da dramaturgia, este biénio fica
123
assinalado com a escrita repentista da peça Às
Feras, levada à cena pela companhia da Sociedade do Teatro Livre. Na poesia escreve ‘No
retrato duma romântica’ e ‘Cantigas’.
Por esta época, as suas relações sociais ficam
marcadas pelo relacionamento com o pintor
Amadeu de Souza-Cardoso, com a zanga com o
escultor Augusto Santos, e com a indecisão de ir
viver para Paris como o primeiro.
Falece de tuberculose a irmã Zulmira, cuja lenta
agonia o deixa muito abalado dos nervos. Por a
mesma altura, morre Maria Rosa de Jesus Navarro, a serviçal de Espinho, mãe de Flávio, primeiro filho de Laranjeira.
Continua a torrente epistolográfica, de onde se
destacam cartas a João de Barros, Amadeu de
Souza-Cardoso e António Carneiro, onde se refere ao tédio, à abulia, à ansiedade suicida de
esquecimento e repouso, à reação voluntariosa
e a vida madrasta, o pendor dissertivo das artes
plásticas, os conceitos sobre arte e crítica.
Numa carta de Fevereiro de 1905, para António
Patrício, escreve que atravessa uma crise amorosa
provocada por uma ‘Vénus varina’ e, no ano seguinte, conhece a florista espinhense Belmira Augusta de Sousa Reis, que será sua amante durante
um período de três anos. É nesta altura que inicia
a escrita do seu primeiro diário íntimo, que destruirá, pelo que restam poucos passos copiados
em cartões postais para uma terceira mulher.
O «donjuanismo», a procura infinita da Mulher,
sempre falhada, é uma consequência da necessidade que Manuel Laranjeira tem de vencer a solidão. Realce-se que este falhanço é proveniente
de uma ausência em Laranjeira de uma atitude
romântica, onde o feminino é visto numa perspetiva ideal, que serviria para compensar a tragédia trazida pelo real.
Esta atitude de Laranjeira é proveniente do
«decadentismo» característico do final do século XIX, onde uma profunda consciência até às
últimas consequências, o impossibilita de ultrapassar o citado falhanço, tornando-o vítima do
que inventa para explicar o drama da sua existência, antecipando assim o Existencialismo,
onde o Homem é um ser condenado ao inferno
de si próprio.
124
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
No Diário Íntimo, publicado postumamente em
1957, Laranjeira cita inúmeras vezes episódios da
sua vida, como se de um espetáculo se tratasse,
onde ele, e a amante, não são donos das suas
vontades. Deste modo, a relação de Laranjeira
com a florista de Espinho, Belmira Augusta de
Sousa Reis, entre 1906 e 1909, anos de escrita
do Diário, os diálogos são autênticas cenas de
teatro, e o final leva à conclusão de que «a comédia sentimental e piegas atinge o seu interesse
supremo. Hora de lance, da cena de efeito – até
cairmos extenuados».
Ainda relativamente ao Diário, deverá afirmar-se que é nos instantes em que ele se apercebe
do sofrimento dos outros, que surge a autocompaixão. Deste modo, o sentimento surge
de uma experiência que Laranjeira vive inicialmente como espectador e só posteriormente
como participante.
Esta perspetiva egoísta levou Jorge de Sena a criticar Laranjeira, afirmando que este se suicidara
de indigestão do seu Eu, porém, ela integra-se
em duas características da época, como a misoginia que se revela em Strindberg, e a utopia do
super-homem de Nietzsche.
Em 1907, confessa a Amadeu de Souza-Cardoso
que desiste de ir para Paris, ao mesmo tempo
que lhe diz que trabalha febrilmente. Porém, a
António Carneiro afirma que está a perder a fé
em tudo e em todos.
Defende com êxito, na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a tese sobre A Doença da Santidade. Ensaio psicopatológico sobre o misticismo
de forma religiosa, editada pelo Porto Médico.
Publica em O Norte, a apologia de ‘A obra de
João de Deus na civilização portuguesa’ fundamentada no reconhecimento do valor da
intuição emocional.
Em Manuel Laranjeira existe uma presença
obsessiva de uma consciência crítica que não
hesita em passar à ação, a que não é estranho os
seus constantes autodiagnósticos provenientes
da sua formação médica e ao seu interesse de
estudioso ao problema de santidade, que considera como uma doença.
Laranjeira parece identificar-se com a santidade,
o que é visível, de um modo paradigmático, na
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
sua postura de sacrifício no caso do concurso à
Escola Médica do Porto, em que é preterido e se
apresenta no papel de vítima expiatória.
Provavelmente, desta atitude, releva a sua postura
suicidária, não havendo um destinatário divino
para a sua entrega a um êxtase, ele consome-se a
si mesmo até ao ponto final da morte.
Entre 1907 e 1908, Manuel Laranjeira escreve
uma série de quatro artigos, que publica n’O
Norte, onde fez a análise do pessimismo nacional, através de um lúcido diagnóstico do atraso
de Portugal, que tinha na sua origem o divórcio
entre os intelectuais e o país real.
Deste modo, escreve: «essa minoria privilegiada
não soube ou não pôde impor-se à maioria da Nação e arrastá-la consigo nesse avanço progressivo;
precisamente desse desnivelamento é que deriva
essa crise sobreaguda do pessimismo em que se
está debatendo o povo português.»
Em 1908, Laranjeira que falava muito bem
castelhano, relaciona-se com os escritores
Martinez Sierra, Rodriguez Pinilla e Miguel
de Unamuno. Este último será um importante correspondente do médico português. Na
epistolografia deste ano destacam-se as seguintes cartas: a António Carneiro onde afirma ter nascido místico e que estava votado
a satisfazer a sede do ideal (entretanto lê Las
Moradas de Santa Teresa de Ávila); a Martinez Sierra onde reafirma as suas convicções
deterministas; e, a Unamuno onde considera
que o suicídio pode ser um nobre recurso de
redenção moral.
Aceita integrar a Liga da Educação Nacional.
Eleito para a Comissão Municipal de Espinho
do Partido Republicano e escolhido para candidato às eleições autárquicas. Preside a uma
sessão no Teatro Aliança de Espinho, onde o
publicista republicano Pádua Correia profere
uma conferência. Amigos instam-no a candidatar-se à docência na Escola Médico-Cirúrgica
do Porto.
A 1 de Maio de 1908, Laranjeira inicia o segundo Diário Íntimo, que será preservado. Escreve
cartas a Unamuno acerca da problemática do
pessimismo português, da mentira vital, e da
cultura prometeica.
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Para além dos artigos que continua a publicar
no Porto Médico, Laranjeira escreve novos textos assinaláveis de crítica literária (na Ilustração
Transmontana, por exemplo, sobre Junqueiro
e Camilo) e de intervenção político-social n’O
Norte, com relevo para «Os homens superiores
na seleção social», onde retoma o darwinismo
social do malogrado estudo psicopatológico de
1904-05 sobre o Padre Bartolomeu de Quental,
e para o preito de homenagem «Zola no Panteão». Segunda representação das cenas 2ª, 3ª e
4ª de Amanhã, no Teatro Águia d’Ouro, do Porto, a que Laranjeira se recusa a assistir.
Em 1909, acentuam-se os sintomas de tuberculose, doença de que lhe morre mais um irmão. Impetuosa campanha n’A Voz Pública
contra os lentes da Escola Médico-Cirúrgica
portuense. Laranjeira suspende a redação do
Diário Íntimo.
Nova campanha de intervenção cívica, a favor
dos métodos pedagógicos de João de Deus, e
das Escolas Móveis e dos Jardins-Escolas nele
inspirados. Depois de uma crítica empática de
A Escola e o Futuro de João de Barros e outros
artigos, Laranjeira participa no 2º Congresso
Pedagógico em Lisboa e publica A Cartilha
Maternal e a fisiologia. Ensaio médico-biológico
sobre o valor educativo do Método de João de
Deus (ed. Porto Médico); um ano depois escreverá «A obra de João de Deus e a Educação
primária» no jornal A Pátria.
Continua a escrever artigos sobre os mais diversos assuntos como, o ético-social («Palavras a um
benfeitor»), a crítica literária («Terra Florida por
João de Barros n’A Voz Pública), e a crítica artística («O pianista Pedro Blanco» na Ilustração Popular). Envia poemas seus a João de Barros e a António Carneiro; e cartas a este último, a Unamuno
e a Amadeu de Souza-Cardoso sobre diversas
temáticas como, cultura luciferina, pessimismo,
génese e destinação dos versos de Comigo.
Entre 1909-1910, nasce o filho Manuel. Laranjeira escreve uma longa série de artigos sobre a
atriz italiana Mimi Aguglia na crónica teatral de
A Pátria; num desses artigos, «Mimi Aguglia em
La figlia di Iorio», lúcida captação do essencial
na arte literária de D’Annunzio.
125
Em 1910, Laranjeira escreve o drama Almas Românticas, cujo 4º ato ficará inacabado. Projeta
publicar Ás Feras. Envia cartas descoroçoadas a
Amadeu de Souza-Cardoso e a João de Barros.
Entretanto, A Águia republica o artigo «Os homens superiores na seleção social».
Em 1911, Laranjeira faz uma conferência no
Teatro Aliança de Espinho, acerca da proteção
da localidade contra as investidas do mar. Acaba a escrita da farsa em 1 ato Naquele engano
d’alma, que é representada de imediato pelo
Grémio dos Imparciais, de Espinho. Ainda na
dramaturgia, o Almanaque dos Palcos e Salas publica as três primeiras cenas de Amanhã. Depois
de em Abril se ver eleito para a Comissão de
Propaganda do Centro Democrático de Espinho, ao longo do mês de Agosto será nomeado
Administrador do Concelho e terá de renunciar
por motivos de saúde.
Após apresentar melhoras, agrava-se o estado de
saúde de Laranjeira, que se encontra acamado
desde o Outono de 1911, sofre das complicações sobrevenientes à congénita sífilis nervosa,
incluindo talvez a tuberculose.
Em 1912, sai a primeira edição de Comigo, Versos dum solitário, e verifica-se a segunda representação de Naquele engano d’alma, em récita
de homenagem a Laranjeira no Teatro Aliança
de Espinho.
Neste ano, a 22 de Fevereiro, Manuel Laranjeira suicida-se com um tiro na cabeça. No mês
seguinte, amigos e homens de letras realizam
uma homenagem junto do túmulo. A Gazeta
de Espinho publica um número in memoriam
de Manuel Laranjeira com textos entre outros
de, Teófilo Braga, Miguel Unamuno, Guerra
Junqueiro, João de Barros, Teixeira de Pascoaes,
Júlio Brandão, e Antero de Figueiredo.
Relativamente ao suicídio de Manuel Laranjeira, afirme-se que ele impressionou consideravelmente o escritor espanhol Miguel de Unamuno
com quem privou.
Neste ano de 2012, passa o primeiro centenário
do falecimento deste grande escritor português
que, como tantos, caiu num esquecimento fatal
a tantos homens das Letras lusíadas.
126
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
ACTUALIDADE DE MANUEL LARANJEIRA
Miguel Real
P
ublicado pela primeira vez em 1908, desdobrado em quatro artigos, no jornal republicano do Porto O Norte, O Pessimismo Nacional,
de Manuel Laranjeira, tem merecido alguma
atenção dos leitores, perfazendo actualmente
quatro edições. Mais do que uma análise histórica, que também o é, O Pessimismo Nacional
constitui-se como um texto violentíssimo sobre
a situação política e civilizacional portuguesa à
entrada do século XX.
Com efeito, O Pessimismo Nacional refulge hoje
com uma actualidade inusitada. Sob a diferença da conjuntura, vibra hoje, estruturalmente,
um século após a sua publicação, o mesmo Portugal que Manuel Laranjeira conheceu entre a
última década do século XIX e a primeira do
século XX: instituições bloqueadas ou ineficazes
(Justiça, Educação, Saúde), uma classe política
genericamente medíocre – refugo, em todos os
partidos, das notáveis direcções refundadoras da
democracia –, uma Assembleia da República de
funcionários, em que mais sobeja o interesse do
que o pensamento, um empresariado especulativo, assente no betão e no comércio de curto
prazo, elites jogando com a sorte, visando a
fama sem o suor do estudo e do trabalho, um
povo bárbaro rastejando em Fátima ou ululando
em estádios de futebol, de olhos grudados numa
televisão vocacionada para mentes imbecis, frequentando os delirantemente maiores centros
comerciais da Europa.
Sabemos hoje que a República, que o autor
acolhera com alegria em 1910, para de imediato perceber que apenas a elite condutora
do Estado mudara (não as condições sociais
e económicas da população), não foi solução,
desembocando na mais longa ditadura europeia do século XX, fazendo-nos regredir a uma
mentalidade eclesiástica fundada no analfabetismo, na miséria e na superstição: Fátima tornou-se o altar do mundo e Portugal o último país da
Europa. Em 1986, tornámo-nos europeus com
50 anos de atraso, constatando posteriormente, todos os dias, que o sonho pombalino que
havia 250 anos perseguíamos se ia esboroando
no interior de uma Europa decadente e fragilizada, como maximamente teorizou Eduardo
Lourenço. Consciencializamos, hoje mais do
que nunca, que a Europa também não é solução, e que a solução, estando nós já na Europa,
não pode agora senão estar em nós – um país
pequeno, medíocre, que medíocre permanecerá até meados deste século, conduzido por elites cegas, parasitárias e autofágicas, totalmente
desprovidas de consciência histórica, cujo único
objectivo assenta na macaqueação de modelos
estrangeiros, amiúde específicos a uma realidade
histórica, as mesmas elites que forçaram Manuel
Laranjeira, desolado com a situação social de
Portugal, a confessar ser um acrata. Com efeito,
face ao Portugal tal como o autor o via, só se
pode desejar, não que se lute pela monarquia ou
pela república, mas que se remedeie casa e pão
para todos, que os nossos governos actuais, dirigidos por engenheiros e economistas, totalmente
desprovidos de espírito histórico, moldados por
uma mesma mentalidade contabilista, criados
sob a sombra paternalista do Estado, movidos
por um afã liberal num povo envelhecido e secularmente carecido de riqueza e protecção, continuam a achar desprezível, contribuindo para
tornar mais pobres as populações pobres. A tais
seres, espectros permanentes da política portuguesa desde o século XIX –, responde hoje o povo
como respondia no tempo de Manuel Laranjeira,
emigrando: 90 a 100 mil portugueses abandonam
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
o país por ano. É, sem dúvida, a melhor resposta
que se pode dar, emigrar, abandonar Portugal
aos fâmulos fantasmáticos da economia a todo
o custo. Como no tempo de Manuel Laranjeira,
substitui-se a pessoa pelo orçamento. Em Portugal, país habitado por dois milhões de pobres,
menos Estado significa mais miséria, menos protecção, menos hospitais, menos escolas, menos
transportes públicos e mais lucros individuais,
bafejando não uma classe média sólida – futura
e exclusiva salvação de Portugal – mas uma minoritária classe financeira especulativa e um minoritário empresariado ostensivo, com evidente
mentalidade de patrão. Ler hoje O Pessimismo
Nacional constitui um bálsamo para suportar
a farsa, por vezes trágica, por vezes jocosa, em
que Portugal se tornou desde a década de 1980,
quando a direcção política dos pais fundadores
da democracia foi substituída por “jovens turcos” crescidos e enformados no interior dos partidos, possuindo destes uma visão instrumental
de acesso ao poder e de nobilitação individual e
não de nobilitação das populações. Concentremos a nossa esperança nas elites futuras e não
esperemos nada de redentor das presentes, senão
aquilo a que um resto de pudor cristão, bom
senso e a legislação europeia as obriguem a fazer.
Da sua cabeça própria, esperemos apenas ignorância, sobranceria e estupidez.
Entretanto, leiamos Manuel Laranjeira, sublimando o facto de termos nascido em Portugal
em época de profunda mediocridade geral,
onde, à semelhança do final da Monarquia, de
novo impera, avassaladoramente – como Eça
desmascarou – a democracia sem valor nem
mérito, a omnipotência do dinheiro, o império de uma educação sem alma, inspirada por
sociólogos de olhos numéricos e mente vazia, e
o esboroamento dos antigos valores humanistas europeus da generosidade, da honestidade
e da espiritualidade.
Segundo Manuel Laranjeira, o português não
é um povo constitutivamente pessimista – é-o
por condição acidental, que a permanente decadência em que é forçado a viver pelas suas elites
medíocres transformou numa segunda pele. O
pessimismo nasce da tensão social e ideológica
entre o desejo de prosperidade da população
127
e a asfixia organizacional a que as elites ignorantes e incultas a condenam, seguindo modelos serôdios estrangeiros. Muito “optimista” é
o português, arrancando de si a desolação e a
passividade, abafando a pobreza e a angústia, e
partindo para outros ventos, onde outras elites
mais maduras, mais bem organizadas, oferecem
condições de trabalho que lhe permitem olhar o
futuro com esperança. O pessimismo é, assim, a
consciência da ausência de futuro que não seja o
futuro do mesmo, isto é, de ausência de futuro,
não porque não se trabalhe para ele, mas porque
quem comanda a sociedade portuguesa lhe extorquirá, por impostos, por taxas, por aumentos
periódicos dos serviços públicos, toda a possível
poupança do trabalho, condenando-o a uma
permanente pobreza, que Nossa Senhora de Fátima consolará, o futebol ao domingo distrairá e
a televisão embrutecerá.
De um modo brutal mas verdadeiro para o seu
tempo como para o ano de 2012, Manuel de
Laranjeira escreve: “não compensar o trabalho é
aniquilar o estímulo de trabalhar”.
Com efeito, as elites portuguesas não governam
tendo em conta o bem comum, sim o bem delas próprias, uma espécie de burguesia paroquial
iletrada e inculta como não existia em Portugal
desde os governos do “Rotativismo”, submetendo a população a um apertado controlo burocrático que não permite, senão pela especulação,
pelo arranjismo, pelo chico-espertismo, pelo
oportunismo, pela fraude, pelo clubismo político, pela cunha, que o futuro seja mais afortunado que o presente. No tempo de Manuel
Laranjeira, no nosso tempo, à entrada do século
XXI. Hoje, verdadeiramente, as elites não abandonam as populações à sua sorte porque as estatísticas europeias, identificando Portugal com
um país do terceiro-mundo, as envergonham,
as subalternizam e as inferiorizam sempre que
se sentam à mesa comunitária. Sentem que os
ingleses, os alemães, os franceses os olham, não
como líderes de um país, mas como chefes de
uma tropa fandanga, cujo mérito superior reside
na capacidade de enganar o Estado. Mas como
não desejar enganar o Estado português se este
engana o povo todos os dias, frustrando-lhe as
expectativas de melhoria de vida e extorquindo-lhe o fruto do trabalho até ao último cêntimo.
128
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
*
Há cem anos, Manuel Laranjeira escreveu no
ensaio ora editado estas lúcidas palavras: “Não
nos iludamos. Ou nos salvamos nós, ou ninguém nos salva”. Com efeito trinta e cinco anos
depois da entrada de Portugal na Comunidade
Europeia em 1986, os portugueses sentem o fracasso de não conseguirem “ser europeus” como
os outros o são, sentem um vazio ontológico,
um cogito negro que lhes morde a consciência
de impotência, um fogo e um gelo que lhes queima as entranhas, limitando-os, não percebem o
que correu mal, votaram em políticos que lhes
prometeram consumo e betão, obras públicas
faraónicas, auto-estradas com fartura, estádios
de futebol monumentais, centros comerciais
gigantescos, raramente os políticos falavam em
produção e formação. Hoje, sentem-se impotentes e desgraçados e culpam-se a si próprios
(não quem – mal – os governa há 25 anos) de
não serem o que tanto ambicionaram ser.
A mentalidade europeia encontrou fracas resistências para se impor em Portugal nos últimos
trinta anos, tal era o desejo popular de superar
a pobreza e o analfabetismo a que Portugal parecia historicamente condenado. A Europa era
vista, não como o armazém de secos e molhados, segundo Agostinho da Silva, mas como um
hipermercado de luxo, riqueza, abundância, individualismo, liberdade e ostentação.
Com uma guerra de 13 anos às costas, um Império anacrónico e uma política autoritária ao
longo de cinquenta anos, sentíamo-nos mal
com o nosso próprio corpo. A Europa constituiu a materialização do sonho adolescente de
Portugal. Virámos as costas ao Império e oferecemo-nos a uma jovem democracia, acreditando
na riqueza material como panaceia da felicidade.
Povo rural e comerciante, quisemo-nos, mais do
que industrializados, informatizados; povo pré-moderno, quisemo-nos pós-moderno; povo
comunitário, acolhemos sorridentes o individualismo, o narcisismo e o egoísmo como fins de
vida; povo solidário, vimos instalar-se entre nós
uma abissal diferença entre pobres e ricos; povo
que era conhecido na Europa pelos bigodes das
concièrges parisienses, passámos a ser conhecidos, emblematicamente, pelo povo de origem
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
de um miúdo da Madeira de pés tão cheios de
malabarismo quando de mente vazia e de um
treinador que a si próprio se intitula “Special
One” – indícios de barbaridade: vencíamos pela
arte dos pés o que nos faltava em arte da mente
Trinta anos demorámos a perceber que o sonho
da Europa não passa disso mesmo, um sonho
que estava em nós e não na Europa. Nós “víamos” a Europa que sonhávamos para Portugal.
A Europa da riqueza, a Terra sem Mal, a Terra
do Rio de Amêndoas e Mel esfuma-se todos os
dias na farsa bailada entre políticos janotas que
da organização do viver colectivo possuem apenas um senso económico.
Hoje, já percebemos que o sonho europeu foi
um falso sonho:
– Em 25 de Abril de 1974, éramos o país menos industrializado da Europa, hoje continuamos a sê-lo;
– Éramos um dos países mais iletrados da Europa, hoje continuamos a sê-lo – menor índice
de frequência de espectáculos, de consumo de
jornais, de compra de livros…
– Em contrapartida, éramos dos países com maiores estádios da Europa, hoje continuamos a sê-lo;
– Éramos dos países mais pobres da Europa,
hoje continuamos a sê-lo;
– Éramos dos países com maior nível diferencial
de salários, hoje continuamos a sê-lo;
– Etc, etc.
Não há dúvida – a culpa não é da Europa, que
nos forçou a sermos democratas e a aceitarmos a
tolerância e os direitos humanos como vectores
éticos e existenciais de vida. Culpadas são, sem
dúvida, as elites portuguesas, que nos últimos
trinta anos promoveram uma autêntica razia dos
valores tradicionais portugueses: a solidariedade
substituída pelo individualismo; a cooperação
pela competição como valor económico absoluto; os valores da honestidade, da amizade, da
lealdade, substituídos pela omnipotência do dinheiro; os valores espirituais substituídos pelos
valores económicos; a pessoa humana igualada à
peça de uma máquina.
*
Comparando a divulgação da obra de Manuel
Laranjeira com as de Antero de Quental, Oliveira
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Martins, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro ou
Teixeira de Pascoaes, seus contemporâneos, um
manto de esquecimento parece ter-se abatido
sobre o pensamento originalíssimo daquele autor. A sua obra pode ser analisada sob diversos
ângulos. Porém, talvez o ângulo mais interessante resida no paralelo entre o afundamento dos
sonhos revolucionários da “Geração de 70”, a
decadência da Monarquia e a crescente acentuação do decadentismo na obra de Manuel Laranjeira, até à consumação final com o seu suicídio.
De facto, a náusea da banalidade da existência,
tão própria do pensamento finissecular, o cepticismo na aceitação de qualquer teoria política ou filosófica salvadora e a incredulidade face
às formas sociais de vida e trabalho como que
constituem as três traves-mestras do pensamento de Manuel Laranjeira. Acresce a este pendor
“nihilista” do autor, a inserção do seu pensamento num movimento de profunda descrença nas
capacidades racionais do homem, como aquele
que, em Portugal, forjou o pensamento do grupo
dos “Vencidos da Vida”, coincidente com a crise
política do “Ultimatum” (1890), prenúncio do
arrastamento moral e da queda política da Monarquia em 1910. Manuel Laranjeira é um dos
pensadores portugueses da época mais fortemente influenciados pela filosofia de Nietzsche, que
então começava a ser divulgada por toda a Europa. É uma filosofia da decadência civilizacional e
da decadência da razão, substituída pela crença
romântica num vitalismo de raiz biológica, sintetizado no conceito de “força” (ou “pulsão”) como
fundamento da existência: força cósmica a regular o universo, força vital criadora da existência de
vida como “vontade de poder” e força instintual
tornada consciente de si própria via razão humana. Reduzido o homem à dimensão de uma dupla pulsão (física e biológica), fica este despido
de outros horizontes éticos senão o da imposição
da sua força tomada socialmente como vontade.
Que sentido fará viver, trabalhar, sofrer, ser feliz
ou infeliz ficando o homem reduzido à condição
de um mero equilíbrio de forças? Deus, em Manuel Laranjeira, como em Nietzsche, simboliza
apenas o Nada do Nada, é um Deus-Aranha que
socialmente tudo vê e tudo pode, controlando rebeldias e heresias por via da afirmação da vontade
129
dos seus crentes (a Igreja), eterna consolação da
fraqueza dos povos. Nesta filosofia céptica, composta de fatalidade e irracionalidade, só a Morte
se pode apresentar com a sua face redentora de
desesperada/serena solução final.
Porém, não atribuamos culpas do suicídio de
Manuel Laranjeira a qualquer visão filosófica
pessimista, já que o catastrófico fim do século
XIX português, de tão atravessado por contínuos suicídios (Júlio César Machado, Silva Porto,
Camilo Castelo Branco, Antero de Quental,
Soares dos Reis, Mouzinho de Albuquerque...),
encontra a sua causa comum no apodrecimento
civilizacional de uma nação que fizera da Igreja e da Monarquia as duas colunas essenciais da
sua existência e para os quais, desde o Marquês
de Pombal e das guerras civis do Constitucionalismo liberal, não lhes encontrara substituto.
Se algo sugou a vida de Manuel Laranjeira, de
certeza que não foi a Filosofia, mas, como nos
ensinam António José Saraiva e Eduardo Lourenço, o velocíssimo tufão histórico por que a
ideia de Europa envolveu Portugal ao longo do
século XIX, sem que o país possuísse estruturas
e maturidade que suportassem tais ventos, originando assim um estado de flutuação ou de vazio
histórico, no qual as novas gerações, possuindo
visões utópicas sobre o futuro (o Socialismo, o
Mutualismo, o Anarquismo, a República), não
se reconhecem nos antigos costumes, daqui nascendo as polémicas do “Bom Senso e do Bom
Gosto”, entre Antero e Castilho, e as “Conferências do Casino”, estado de espírito agravado pela
humilhação inglesa do “Ultimatum”. Ou seja, se
algum mal atravessou a vida de Manuel de Laranjeiro não foi o “mal da existência”, segundo
a schopenhaueriana e budista equação de viver
= sofrer, mas o Mal da História de Portugal, sugador de gerações que se têm auto-projectado
idealmente no futuro, não conseguindo suportar
nem o presente rotineiro feito de passado, nem
o presente advindo após o fracasso do ideal de
futuro almejado. Manuel Laranjeiro viveu desencontrado do Portugal do seu tempo. Inquieto
e inquietado, deixou-nos a solução para a cura de
Portugal nos últimos parágrafos do livro: começar tudo de novo, desde o princípio. Ah, houvesse
sabedoria para isso da parte das nossas elites!
130
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
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MANUEL LARANJEIRA – UM TÉDIO DE MORTE
António Carlos Carvalho
L
embro-me como se fosse hoje: uma manhã,
pelos meus 16 ou 17 anos, o telefone da
casa dos meus pais tocou para me dar a terrível
notícia – a D. estava internada no hospital, depois de ter tentado matar-se com uma dose de
comprimidos. Foi talvez o meu primeiro murro
no estômago: como era possível? O que a teria
levado a fazer tal coisa? Claro que já estava livre
de perigo, mas a minha perplexidade manteve-se. E também a minha revolta…
Costumávamos encontrar-nos, a D., a irmã dela,
eu e o Vítor, numa pastelaria da Avenida da
Roma, passávamos longas tardes a falar de poesia e de teatro; a D. era amiga da Maria Aliete
Galhoz e por isso o Fernando Pessoa era sempre
tema das nossas conversas de jovens mais interessados em coisas da cultura do que em confusões de namoros. Nessa altura, eu andava por aí
com o Camus e o Sartre debaixo do braço, considerava-me, pomposamente, «existencialista», e
até por isso este suicídio, ainda que falhado, me
chocou ainda mais. E se ela voltasse a tentar…?
Que coisa terrível a teria levado a um gesto tão
desesperado…? Para ser sincero, creio que fiquei
sobretudo muito zangado com a D. repetia para
mim mesmo, magoado e revoltado: ela não tinha
o direito… Mesmo nessa minha fase de agnosticismo, eu acreditava que a vida não nos pertence, podia chamar-lhe «minha» mas realmente
não podia dispor dela como se fosse um simples
objecto. Parecia-me então que o suicídio, mesmo
quando falhado, era uma demonstração de egoísmo, puro e simples. E isso irritava-me.
Vinte anos depois, um jovem desesperado veio
falar comigo para me anunciar que estava farto da vida, já tinha experimentado tudo e nada
mais o entusiasmava, por isso estava a pensar
em pôr termo à vida. De repente, o fantasma do
suicídio vinha ter outra vez comigo para me assombrar. Lembrei-me então de perguntar a esse
jovem: «Tem a certeza de que já viveu realmente
tudo…? Já viveu um grande amor?» Ele calou-se
e continuou a viver.
… Tudo isto me vem agora à memória, quando se trata de evocar o centenário da morte de
Manuel Laranjeira. Porque foi o caso da D. que
me levou então a interessar-me pelo suicídio de
Manuel Laranjeira e pela sua biografia – e daí a
outras histórias de suicidas portugueses célebres:
José Fontana, Camilo, Antero, Soares dos Reis,
Silva Porto, Mouzinho de Albuquerque, Trindade Coelho, Mário de Sá-Carneiro, Florbela
Espanca, Bernardo Marques…
O Camus dos meus livros de cabeceira juvenil
sublinhava que o suicídio era (ou devia ser) a
questão filosófica mais importante: qual era o
sentido de viver? Valerá a pena estar vivo? Na
Bíblia, Deus, na sua revelação a Moisés, coloca-nos perante o dilema, escolher a vida ou a morte, para logo nos incitar a escolher a vida. Mas
quantos sentem essa evidência? Certamente não
a sentiram os suicidas acima citados; e Manuel
Laranjeira também não, que se matou com um
tiro de pistola às 23 horas do dia 22 de Fevereiro
de 1912, aos 35 anos.
Sei que corro o risco de ser algo injusto ao lembrar, ou realçar, apenas o «suicida Manuel Laranjeira», como se nele não houvesse também
o poeta, o ensaísta, o polemista, o militante de
causas nobres (como a defesa do método de João
de Deus), aquele que se bateu por ideias políticas (contra a ditadura de João Franco, a favor da
República), pela cultura, ao serviço da arte (sobretudo o teatro, a favor de uma crítica teatral
apoiada na ética e na estética), pelo reconhecimento de pintores (António Carneiro, Amadeo
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
de Souza Cardozo, Goya) e de músicos, mas
também o amigo fiel e o autor de cartas exemplares, assim como alguém que amava profundamente o seu país – apesar de tudo…
Essas outras facetas aparecem excelentemente
documentadas naquela que me parece ser a melhor abordagem até hoje feita: «Manuel Laranjeira
et son temps (1877-1912)», de Bernard Martocq, 720 páginas, edição do Centro Cultural de
Paris da Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
Mas, para mim, é o homem a contas com a sua
dor (ou melhor, as suas dores, as físicas, da doença, e as da alma) que me toca mais, porque foi
essa dor de existir no Portugal do seu tempo que
o levou a acabar com tudo tão cedo, tão novo.
Ele e tantos outros que, por serem bem maiores,
não cabiam no Portugal pequenino e mesquinho,
invejoso e em perda do sentido do seu destino.
Há uma palavra terrível que atravessa todos os
seus escritos: «tédio». «Por cá, é um tédio de
morte, como dizia a Hedda Gabler», «o meu tédio, este desolamento de morte, este desânimo,
este cansaço prematuro – em face dos homens,
das coisas e da vida», «esta quietude nostálgica a
que os Budas chamam tédio doloroso», «tédio
que me arrasa continuadamente», «eu sou um
filho deste século, deste século de tristeza, de
ansiedade impossíveis de satisfazer – de tédio,
em suma», «a tristeza de viver, ou pior, o tédio
de viver», «do mesmo tédio mortal, que me dá
esta impressão penosa de ter falido na vida» –
vai repetindo nas suas cartas aos amigos João de
Barros, Luís Pinto Ribeiro, Teixeira de Pascoaes,
António Patrício, Ramiro Mourão, Pedro Blanco, João de Deus Ramos, Amadeo de Souza
Cardozo, António Carneiro ou Miguel de Unamuno. A este último (que considerava as cartas
de Laranjeira como o seu melhor), sublinha, em
Outubro de 1908, que o tédio que sente não
é só seu, é um mal nacional: «O nosso mal é
uma espécie de cansaço moral, de tédio moral,
o cansaço e o tédio de todos os que se fartaram
– de crer.» E acrescenta esta conclusão tremenda: «Em Portugal, a única crença ainda digna de
respeito é a crença – na morte libertadora.» «Em
Portugal chegou-se a este princípio de filosofia
desesperada – o suicídio é um recurso nobre, é
uma espécie de redenção moral. Neste malfadado
131
país, o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.»
Nesta mesma carta, Laranjeira referia-se igualmente ao «pessimismo suicida de Antero de
Quental, de Soares dos Reis, de Camilo, mesmo
do próprio Alexandre Herculano (que se suicidou
pelo isolamento como os monges)», sublinhando
que «não são flores negras e artificiais de decadentismo literário», «estas estranhas figuras de trágica
desesperação irrompem espontaneamente, como
árvores envenenadas, do seio da Terra Portuguesa. São nossas: são portuguesas; pagaram por todos: expiaram a desgraça de todos nós. Dir-se-ia
que foi toda uma raça que se suicidou.»
E ainda: «A Europa despreza-nos; a Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa,
prática e egoísta, detesta-nos, como se detesta
gente sem vergonha, sobretudo… sem dinheiro.
Apesar de isso, em Portugal ainda há muita nobreza moral, ainda há pelo menos nobreza moral bastante para morrer, e ainda existem coisas
bem dignas de simpatia.»
Respondendo à carta de Unamuno em que este
lhe anunciava que andava a escrever um livro
sobre as coisas «desta minha tão desgraçada terra
de Portugal», lembra-lhe que, sendo Unamuno
«um homem de paixão e sentimento» e que «vê
as coisas da vida através da lógica afectiva», «há-de ser naturalmente levado a defender calorosamente um povo essencialmente sentimental.
Tão sentimental que se deixou dominar pela
emotividade despótica de um alienado com o
delírio da tirania» (João Franco).
E sublinha: «Às vezes, em horas de desânimo,
chego a crer que esta tristeza negra nos sobe da
alma aos olhos; e, então, tenho a impressão intolerável e louca de que em Portugal todos trazemos os olhos vestidos de luto por nós mesmos.»
«Portugal atravessa uma hora indecisa, gris, crepuscular, do seu destino.» «Não falta mesmo por
aí quem diga que isto não é já um povo, mas sim
– o cadáver de um povo.»
Noutra carta ao amigo Unamuno, em Dezembro do mesmo ano de 1908, escreve: «Tem razão:
Portugal é uma terra trágica, “tragica à la griega”,
e Camilo é, por assim dizer, o Sófocles da nossa
vida fatídica.» «Essa obra de grande sinceridade
reflecte todo o nosso pessimismo de instinto,
toda a nossa intuitiva filosofia do desespero.»
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
A última carta a Unamuno é de 15 de Fevereiro
de 1912, ou seja, uma semana antes do seu suicídio. É uma carta de despedida, por si ditada «a
um amigo», em que comunica que no começo
do ano anterior adoeceu com uma febre hepática «que me prostrou na cama e creio até que
me levará à morte.» E termina dizendo: «Adeus,
querido amigo, até… não sei quando.»
Há quem defenda, com razão, que o capítulo
«Um povo suicida» do livro «Por Terras de Portugal e de Espanha», de Unamuno, foi directamente influenciado por Manuel Laranjeira, no
contacto que ambos tiveram em Espinho, em
1908, e nas cartas que trocaram. De facto, quando Unamuno escreve «Portugal é um povo de
suicidas, talvez um povo suicida», cita os casos
de Antero, Soares dos Reis, Camilo, Mouzinho,
Trindade Coelho e a seguir transcreve a carta de
Laranjeira de 28 de Outubro de 1908, já aqui referida. Mais tarde, no prefácio que escreve para a
edição das «Cartas» de Laranjeira, Unamuno sublinha: «Foi Laranjeira quem me ensinou a ver a
alma trágica de Portugal (…) e ensinou-me a ver
não poucos recantos dos abismos tenebrosos da
alma humana. Era um espírito sedento de luz,
de verdade e de justiça. Matou-o a vida. E, ao
matar-se deu vida à morte.»
Ou seja, Unamuno viu em Laranjeira a própria
personificação deste país, da sua tragédia, na sua
doença da alma, e na sua grandeza profunda.
Nesse mesmo ano de 1908 em que os dois escritores se encontraram, Laranjeira publicou o
último dos artigos, em «O Norte», subordinados ao tema do pessimismo nacional. Fazendo
uma análise da situação do país realça «o estado
da desagregação da alma nacional», «o mal da
sociedade portuguesa é apenas este – a desagregação da personalidade colectiva, o sentimento
de interesse nacional abafado na confusão caótica do sentimento de interesse individual (…)
A nossa vida política, económica e moral não
tem sido senão uma série lastimosa de actos de
egoísmo individual impondo-se despoticamente
ao egoísmo colectivo, ao interesse da Nação e
subjugando-o» «(…) o mal na verdade é profundo. E de facto o povo português tem amargas
razões, razões de sobra, para ser pessimista.»
O seu último poema de «Comigo» (1912) é
bem significativo:
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
«Em tudo vejo a morte e, assim, ao ver
que a vida já vem morta cruelmente
logo ao surgir, começo a compreender
como a vida se vive inutilmente»
Manuel Laranjeira está muito doente, confinado
ao leito; como médico, sabe exactamente qual
é a sua situação clínica. E começa a preparar o
suicídio. Dez dias antes do desenlace, com uma
caligrafia incerta que revela a perda de coordenação dos movimentos, escreve a dedicatória
de «Naquele engano de alma» em que admite a
hipótese de publicação da obra «em ocasião em
que o autor não esteja presente.» Três dias depois,
já não consegue escrever a carta de despedida a
Unamuno, dita-a a outro. Segundo parece, era
a sífilis que estava a destruí-lo lentamente. Mas
havia nele uma doença mais grave, uma dor mais
profunda que ele conhecia bem; vai-lhe dando
vários nomes científicos, histeria, neurastenia,
nevrose, psicastenia, ou simplesmente tédio.
Cada vez mais cansado de tudo, da sua vida («eu
creio que não faço senão morrer a vida, tanto esta
minha existência se parece com viver a morte»)
e da vida do país – a implantação da República,
que tanto desejara, e que tanta alegria lhe dera,
rapidamente desembocou em ferozes lutas partidárias –; sentindo intensamente o seu mundo
interior, «brumoso país de tédio, de desânimo,
de dúvida»; incapaz de amar realmente as diversas mulheres da sua vida; incapaz, igualmente, de
«poder talhar a vida ao nosso ideal»; queixando-se sempre do seu mal, «sentir de mais»; Laranjeira escolhe a única «saída» que lhe parece possível
e, afinal, inevitável: o suicídio. Aliás, esta solução
já lhe parecia lógica desde 1903, como refere em
carta a Manuel Luís de Almeida, e reafirma em
1905, em carta a António Carneiro. E nas outras, dos anos seguintes, já aqui citadas.
Cerca de um mês depois da sua morte, Miguel
de Unamuno homenageava o amigo escrevendo
que ele tinha «uma alma trágica como a sua própria pátria. O seu espírito fundiu-se com os espíritos de Antero e Camilo, seus irmãos.» Para o
mestre de Salamanca, havia aqui uma linhagem
espiritual de homens que se identificaram com
Portugal e a sua tragédia.
Pelo meu lado, e conhecendo bem as afinidades
existentes entre Portugal e o Japão (outro «país
de suicidas»), não posso deixar de me lembrar
dos suicídios de dois grandes escritores japoneses, Yukio Mishima e Yasunari Kawabata, respectivamente em 1970 e 1972.
Sem querer ir mais além nesta anotação, recordo
apenas estas palavras de Mishima, no seu discurso desesperado às Forças de Auto-Defesa do Ja-
133
pão, momentos antes de se suicidar ritualmente:
«Onde está hoje o vosso espírito nacional? Os
políticos não se preocupam com o Japão. Têm a
ganância do poder.»
Laranjeira disse o mesmo, fez o mesmo apelo no
seu tempo. Quem os ouviu…?
MANUEL LARANJEIRA E O NOSSO HOJE
Eugénio Montoito
L
er e escrever sobre Manuel Laranjeira é sempre um desafio e uma agradável redescoberta, quer pela compreensão de actos, leituras e
momentos datáveis num tempo, quer pela coincidência impressionante de, cem anos passados,
permanecerem vivas e actualizadas as observações e os sentidos, praticamente sem exigência
ao uso de palavras novas1.
Manuel Laranjeira nasceu no lugar de Vergada,
freguesia de Moselos, Concelho de Vila da Feira,
em 17 de Agosto de 1877. O núcleo Familiar
de Domingos Fernandes não foge à realidade vivencial da época, em que a situação de manifesta
pobreza, acompanhada pelos estigmas sociais do
analfabetismo, do alcoolismo e da tuberculose,
deixam as suas sequelas, através do desaparecimento do progenitor e de cinco dos seus filhos,
orientando declaradamente os percursos e os
sentimentos do futuro médico de Espinho numa
confrontação permanente entre a vontade das
suas motivações e a marca do seu passado.
Manuel Laranjeira viveu, conscientemente, espartilhado entre a incerteza de não conseguir
optar pela felicidade da ignorância ou pela angustiante tristeza que o conhecimento lhe proporcionava. O tormento de se sentir «traidor»
perante o destino familiar e, consequentemente, de si próprio, por ter sido o resultado da
O presente artigo corresponde a um reaver e uso de sínteses,
do autor, apresentadas em conferências e publicações sobre Manuel Laranjeira.
1
oportunidade que a fortuna, encontrada em terras do Brasil por um dos seus irmãos, lhe proporcionou, ao poder estudar e, consequentemente,
abandonar uma vida medianamente ordenada
em atitudes e comportamentos de predestinado
proletário, abala-o e mantém-no num estado de
perturbação constante e de sentimento de contradição. Paralelamente, à responsabilidade sentida
de substituir e ocupar o lugar, prematuramente
deixado vago pelo seu pai, o poeta viverá uma
relação familial de insatisfação silenciosa, devido
à permanente incomunicabilidade e fragilidade
de resposta intelectual dos seus familiares.
Manuel Laranjeira ao ver-se rodeado por pobres pescadores, batoteiros de passagem, espanhóis
com a peseta na alta [e] provincianos burgueses,
foi passando de lamentos a amarguras, até à irremediável descrença, não encontrando os seus
sonhos realização, nem as suas palavras ecos.
O poeta – que era simultaneamente médico
–, transforma-se num interveniente passivo e,
de certa forma, rendido a uma realidade que
o obrigava constantemente a desempenhar um
papel de observador presente num quotidiano
desenhado pela doença, pelo sofrimento, pela
amargura, pela injustiça e pela fome física e espiritual, como prevalências constantes, sensíveis
e marcantes de um tempo, visto para si e por si,
sem esperança.
Fidelino Figueiredo e Vitorino Nemésio identificam, de uma forma subtil, o perfil e a natureza
134
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
do escritor espinhense, reconhecendo-lhe as circunstâncias e as dificuldades, quando afirmam,
respectivamente, que Manuel Laranjeira era
“um homem de aguda sensibilidade intelectual e
brava independência de carácter, [que viveu uma]
curta vida de luta e amargura – luta com uma
doença nervosa e amargura de quem quer viver em
harmonia com a sua concepção de vida e esbarra em obstáculos intransponíveis2. Possuindo,
o poeta, um temperamento hipersensível, que
interiorizava todas as impressões, em vez de as
exuberar; Laranjeira era um ser “melindroso, de
uma fina sensibilidade moral, mas cheio de si, capaz de dúvidas e primores com a família e os amigos, [era, enfim, um] inapto para a indulgência
infinita que cada passo nos pede”3.
Manuel Laranjeira iniciou os seus estudos universitários, em 1899, em Medicina, na Escola
Médica do Porto, defendendo tese em 1907,
com a apresentação de um trabalho de interpretação psicológica do misticismo, denominado
“A Doença da Santidade”. O seu saber e os seus
interesses intelectuais levaram-no a escrever, infatigável e indistintamente, sobre os mais diversos temas. A medicina, a crítica literária, musical
e artística, a análise política e o comentário social, receberam a sua atenção, denotando-se em
toda esta produção dispersa um elo de ligação
nas interrogações e nas certezas apontadas, quais
condições e estados de espírito, que mais não
eram do que o resultado de um ser preocupado
que se agitava por entre um mundo inconstante
e inseguro, preenchido por optimismos rebeldes
e pessimismos descrentes.
O poeta procurou o «grande mistério da vida»
pelo mesmo modo que Antero e Camilo, tentando encontrar a sua última verdade no desmanchar da última ilusão: a ilusão da imortalidade, pelo que a morte, presenciada a 22 de
Fevereiro de 1912, pelas 23 horas, longe de ter
sido um acontecimento repentino de impulso
imediato foi, antes, uma atitude amadurecida e
decidida ao longo de um prolongar do tempo.
Este estado de espirito e esta determinação pode
Fidelino Figueiredo. Ideias de Paz. Lisboa. Portugália Editora,
1966. pp. 288-289.
3
Vitorino Nemésio. Conhecimento da Poesia. Lisboa. Verbo.
1970. p. 105.
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Século XXI
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ser justificada por uma dual sintomatologia reconhecida, quer pelo agravamento de uma doença que o tornava refém da dor e do sofrimento
desde os meados de 1911, quer, de um modo
mais prolongado, por um desencontro espiritual tortuoso, explicado no ambiente civilizacional
da sua época, em que a passagem do século é
sentida com dúvida e desencanto, e irremediavelmente observado pelas inquietações metafísicas de uma geração que vive um novo mundo,
de onde a razão expulsou os antigos deuses.
No fundamento das nossas opiniões somos de
recorrer a Bernard Martocq utilizando a sua
observação sobre este diagnóstico de “suicídio
oscilante”, previamente determinado entre uma
saúde muito precária e um desencanto de geração, quando nos diz que “mais do que a crise
espiritual do seu tempo, mais do que em todas as
filosofias aqui ou ali visíveis, mais até do que no
marasmo que caracteriza a agonia da monarquia
portuguesa ou da abulia da sociedade em que Laranjeira viveu, é necessário (...) ver no próprio Laranjeira as razões que o conduzirão a disparar uma
bala na cabeça após ter deixado os seus negócios
em ordem e se despedir dos amigos. Este gesto não
surge de um dilaceramento súbito. É o último acto
de uma longa tragédia vivida em silêncio, angústia e dor. Esmagado já pela revelação e a experiência de uma doença cujo desfecho ele não podia
ignorar”4. É nesta convergência de ideias e sem
contestar o verdadeiro peso da tuberculose ou
da sífilis nervosa, que pensamos ser impensável
descurar os sentimentos vividos pelo escritor
como resultantes da vivência de um interveniente intelectualmente activo, num país, também
ele, considerado moribundo e onde a realidade
quotidiana era vista como tendo perdido significado e qualquer tipo de atracção.
São agonias e desencantos que o obrigam à dualidade constante de ser um viajante e um eremita. Percorrendo, o primeiro, os caminhos do
sentimento e do sonho à procura da “sua salvação” e, o segundo, refugiando-se nas memórias
dos seus messianismos, como único abrigo às
inconstâncias do seu universo. Vivem-se tempos
2
Bernard Martocq. O Suicídio de Manuel Laranjeira. Lisboa. Prelo,
n.º 15. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Abril – Junho, 1987.
pp. 60-61.
4
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
de crises de consciência, onde o mundo e a sua
moral apresentam-se subvertidas e os antigos
alicerces sociais ameaçam ruir transformando a
sociedade vigente em descréditos absolutos, sustentados pela angústia, pela opressão e pela instabilidade. São os tempos da dança do rotativismo político do liberalismo constitucional, ou,
simplesmente, da ditadura declarada do franquismo. É o descrédito total do parlamentarismo monárquico, sustentado pelos permanentes
desgovernos e corrupções do aparelho governativo e pelos viciados e vendidos resultados eleitorais. São as dúvidas e as incertezas constantes
no sistema financeiro e nos resultados económicos, a par do desespero, da impotência e da derrota nas questões internacionais, por ausência de
uma política externa com rumo definido. São os
desencantos pelo reconhecimento de que o único desenvolvimento declarado é o do obscurantismo, da ignorância e da ausência de soluções
que alterem os dados. Em suma, são os tempos
em que se vivia na renúncia, com a indiferença,
o cansaço e o pessimismo demolidor.
Manuel Laranjeira, nas descrições e nos sentimentos de saudade dos seus epitafistas, é recordado como um ser possuidor de uma inteligência
perspicaz e de um espírito aglutinante, com uma
forte capacidade de análise e de objectividade.
Reconhecemos e aceitamos que as intenções registadas nas colunas dos jornais que manifestam
estas qualidades ultrapassam a vontade circunstancial de querer recordar, de forma simpática e
magnânima, o espírito que deixou o mundo dos
vivos, a troco de uma bala suicida, na noite de
inverno de 22 de Fevereiro de 1912. O escritor,
apesar de pertencer a uma geração de vultos que
identificavam a Revolução como principal desígnio nacional de um povo abandonado e o Republicanismo como forma solidária para terminar
com a tormenta social existente, não possui a
convicção e a força anímica no caminho a seguir.
A sua insegurança e a sua insatisfação ideológica, reconhecidas no constante estado de espírito
tedioso e pessimista, aproximam-no de todos
aqueles que, também, por não terem encontrado
a determinação e a resposta necessária à aplicabilidade dos seus ideais, optaram, como símbolo
de vontade e força sobre o desânimo e a apatia
colectiva, pela manifestação pessoal do suicídio.
135
Os seus amigos e companheiros, Teófilo Braga,
Miguel de Unamuno, Teixeira de Pascoaes, Júlio
Brandão, Eurico de Seabra, entre outros, compreenderam que a ligação consequente do venerador Laranjeira com as suas venerações Antero de
Quental, Camilo Castelo-Branco, Soares dos Reis
e Oliveira Martins, ou seja (à excepção do último),
com o “Portugal trágico” dos intelectuais suicidas,
tem uma ligação emblemática e uma procura
declarada da indignação, manifestada pelo recurso do protesto através da morte libertadora.
Viviam-se os tempos daqueles que, como nos
observa Joel Serrão, numa prece estético-religiosa
de Ideal, romanticamente prospectivo, sonhavam
com um perseguido “Amanhã”, onde a lei vagamente intuída (porém imanente) que governava
os destinos humanos, multiplicar-se-ia, enfim, em
flores e frutos. Um “Amanhã”, escrito e dramatizado, também, por Manuel Laranjeira, onde a
justiça social e o crescente nível educacional e
cultural do povo, deixariam de ser a mesquinha
trivialidade quotidiana, ao transformarem-se,
como que por magia, na idealidade desenhada
no sonho. O poeta, sempre acompanhado por
nevoeiros e brumas “românticas de afectividade
difusa”, projectava as suas expectativas indefinidas numa República que havia de proporcionar,
pelo domínio do seu ideal, a esperada salvação
messiânica e, consequentemente, tão necessária
para pôr fim a uma descrente e decadente pátria
monárquica. São nestas indecisas esperanças,
encontradas quer na ambiência irracionalista da
passagem do século XIX, quer nas confusas e,
por vezes, delirantes expectativas criadas com a
vinda do novo século XX, que o poeta vagueia
desolado sem se conseguir opor ao domínio das
ideias do seu tempo e à triste e imperfeita realidade que o cerca.
Manuel Laranjeira, como muitos da sua geração
– João de Barros, António Patrício, Amadeo de
Sousa Cardoso, por exemplo –, agonizaram ao
descobrir que a realidade que os envolvia estava envolta num manto de fatalismo e de miséria
moral politiqueira, de indigências e corrupções,
de obscurantismos e ignorâncias, em suma, de
passividades e apatias que conduziam toda e
qualquer atitude de tentativa de mudança à desistência e ao abandono, nas suaves delícias da
136
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
vagarosa morte do tédio e do pessimismo. Laranjeira é um interlocutor e um interveniente de
excelência neste retrato da intelectualidade portuguesa da passagem do século XIX. A leitura e
interpretação dos seus pensamentos, escritos no
diário, na correspondência enviada para os seus
amigos, nas prosas ensaístas, nos artigos políticos, na dramaturgia ou na poesia, permitem-nos
ilustrar, paralelamente, um conjunto de sentimentos e as consequentes contradições perante a
vida e a sua alma. Os seus escritos, independentemente da forma e do tipo, demonstrando-nos
a dualidade do seu ser, dando-nos a observar o
ente sensível e inteligente, em simultâneo com o
desfalecimento derrotista de um homem perdido
num tempo cronológico que ele próprio questiona se será o seu, quando repute “(...) sinto-me
deslocado do meu tempo... talvez por ser do meu
tempo. Mas tenho a impressão de que devia ter nascido há dois séculos ou daqui por dois séculos”5.
*
A Espinho de Manuel Laranjeira identifica-se
com uma povoação que se espraia no areal encostado ao atlântico e que com o percorrer do
tempo foi sendo vagarosa e dramaticamente
apagada pelas investidas do oceano.
Todo este imemorial convívio e gladiar entre a
natureza e o homem reflectiu-se, no percurso da
vila espinhense, numa conjugação de valores e interesses socialmente diferentes, mas que possuíam
como ponto convergente, o mar. Por um lado, a
vivência permanente de homens e mulheres pertencentes a um frágil mundo de estacas, pedras,
palheiros e fracas dunas, que viviam de lançar
redes de arrastar além barras, esperando conseguirem regressar aos areais com os seus tesouros
vivos e crepitantes e, por outro, o repartir do
quotidiano veranico com os passeantes burgueses, vindos do Porto, de Penafiel e de Amarante
para cumprirem com os velhos hábitos de convivência, repouso e banhos. O Hotel Particular,
o Bragança, a Pensão Nova Estrela e os quartos
do Café Chinês, os prédios do senhor Fulgêncio
Pereira, do Cardoso Valente ou do Pinto Bastos enchiam-se de veraneantes e aqueles “largos
5
Manuel Laranjeira. Diário Íntimo. p. 58.
para o
Século XXI
arruamentos rectangulares” enchiam-se de uma
“espessa multidão, rajada de tipos diversos de forasteiros”, a marcar o seu estrato social, a sua procedência geográfica, o seu estilo e a sua “saúde”
material. São os “Janotas de Lamego, da Régua, de
Viseu, com esporins e luvas novas, bigode farto, chapéu à banda, brasa ardente no charuto, e no olho”6,
vestindo os recentes casacos com lapela reduzida e cintura marcada, os coletes de cor branca,
as calças vincadas e estreitas, rasando um sapato
de biqueira quadrada. São os ricos comerciantes,
os altos funcionários aduaneiros, os digníssimos
conselheiros, os ilustres magistrados e as suas excelentíssimas esposas que passeiam pausadamente com o indispensável toque de classe dado pela
bengala na mão masculina e a sombrinha aberta
repousada no ombro feminino.
É uma Espinho farpiana e sublime, retratada
por Ramalho Ortigão, em que um admirável
e preciso conjunto de figurantes, estilos e momentos percorrem e animam o Chiado da vila,
na passagem de um século para um outro século.
São “eclesiásticos morenos, sólidos, de beiços grossos,
sobrancelhas cerradas, chapéus moles desabados,
cabeção e volta ao pescoço, cigarro brejeiro nos
dedos”. São “pais de famílias salamanquinas, de
jaleco cor de pinhão, sombreiro de toureador, cara
rapada, e a trouxinha em lenço de seda suspenso da
mão pelas quatro pontas”. São “meninas de tournure, vivos de veludo magenta na gola do vestido,
chapéu de palha forma Carlos IX, e botinas por
engraxar”. São “lavradores minhotos ou transmontanos, de capotes de briche com forro encarnado e
gola de peles”. São “mulheres do campo, sempre
arrepiadas da frialdade do banho, artelhos nus e
descarnados, saia pelos ombros, mãos encruzadas
no estômago, lenço na cabeça, cabelo em viseira sobre os olhos, pés arrastando chinelas”. São “músicos
ambulantes; tocadores de realejo; rabequistas cegos
arranhando a Marseillaise acompanhada á viola;
e mendigos de romaria, à moda antiga, de muletas,
barbas grandes e sacola ao pescoço, como nos dramas da Rua dos Condes; ou de pernas às costas, em
monograma, andando nas mãos como fantásticos
aranhiços. Tudo isto bole, mexe, rabeia, de cá para
lá e de lá para cá, no grande arruamento central
a que chamam o Chiado, numa atmosfera vivaz,
6
Ramalho Ortigão. Ob. Cit.. p. 269.
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
sacudida, peneirada por uma animação de arraial,
confusa de cheiros e ruídos diferentes, impregnada
de vapores de fritura e de exalações de caranguejos
fermentados ao sol, envolta em poeira, repicada de
pregões, de música feirense, do telintar de dinheiro
nas batotas, e do estoirar de foguetes na estação, aos
comboios que chegam com banhistas novos”7. Enfim, “Espinho é, com efeito, e por excelência, além
da costa célebre da sardinha, a piscina consagrada
da magistratura”8
Ultrapassada que era a “Passarele” elevada da estação de caminho-de-ferro, qual fronteira entre
uma vila velha e uma nova vila, chegava-se aos
coretos improvisados da Avenida Serpa Pinto
ou do Largo da Graciosa, para assistir a uma
actuação da Banda de Música da Real Fábrica
de Conservas Brandão Gomes ou, então, noutros propósitos fugazmente sentidos, entrava-se
no Café Chinês ou no Peninsular para uma reconfortante gasosa, sifão ou outra bebida congénere, saída da vizinha Fábrica do Mocho, e
tudo isto, antes de se procurar a arte mágica do
senhor Carlos Evaristo Júnior, no fazer uma fotografia pintada para recordar aquele fim de dia
de verão. Todavia, estes eram apenas os momentos de compasso de espera, onde se escondia a
ânsia do saudoso retorno às mesas de roleta ou
de bacará. Nesses inúmeros casinos, inexistentes
no papel dos decretos, mas brandamente aceites,
viviam-se os verdadeiros momentos de exaltação
da permanência nesta vila costeira, através de
exorbitantes palpites sortudos, ou de desilusões
choradas pelas glórias perdidas. Meses em que a
pequena vila provinciana se transfigurava numa
cosmopolita espectadora das mundanidades
das famílias burguesas nortenhas e galegas que
repartiam os dias, os locais e as vistas, segundo
as referências obrigatórias descritas nos almanaques de ocasião, a par de presenças menos desejadas de outros “peregrinos”, que aos Domingos
e Dias Santos, vindos dos lugares e aldeias vizinhas “ocupavam a área deixada pelos sistemáticos,
espojavam-se a esmo, pisavam as algas de calças
arregaçadas, banhavam-se enfim, numa girândola
de gritos e impropérios, saindo de combinações e
Ramalho Ortigão. As Farpas. Lisboa. David Corazzi. 1887.
(Vol. 1). pp. 269-271.
8
Ramalho Ortigão. Ob. Cit. p. 272.
7
137
cuecas coladas a seus volumes”9. Destes, ficavam
as lembranças de passagens desagradavelmente
comentadas, quando no dia seguinte, por entre
o ondulado da areia “surgia uma extensão juncada de papéis de embrulho, ossos de frango, cascas
de melancia”10, que a preia-mar se esquecia de
levar. Tinha sido o dia dos vilões! Os outros, os
fidalgos11, preferiam, após sestas reconfortantes,
apreciar nos seus círculos fechados de clubísticas
opiniões, os prazeres de um passeio até à Fonte
do Mocho ou até à Ponte da Canha; desfrutar
com as penitências oferecidas por uma ida à Romaria do Senhor da Pedra; deleitarem-se com
um concerto de música variada na Assembleia;
assistirem, empoleirados nas janelas dos quartos
dos seus hotéis, ao desfile dos carros alegóricos
da festa das flores, ou mesmo participarem,
mostrando-se ao volante de um último modelo
da Argyll; divertirem-se com a última fita muda
do Cinematógrafo Avenida ou, ainda, presenciarem uma corrida de touros de morte na nova
Praça de pedra e cal.
Sempre que terminada a época balnear, Espinho
regressa à sua melancolia saborosa e indefinível12
e no, agora, silencioso salão do Café Chinês reencontramos a pacatez e o sossego da vida social
burguesa espinhense. Regressam aos seus lugares
as personagens cativas e os imperiosos comentários sobre o último verão. Tertuliam-se as anteriores cumplicidades de desprezo e de sarcasmo
que tinham gozado com as trivialidades vividas,
com os amores e as comoções dos suspiros e das
indiferenças dos que tinham passado por aquela
praia, andado por aquelas avenidas, extasiado
os sons dos violoncelos do Peninsular. Ramiro
Mourão, Pinto Coelho, Amadeo de Sousa Cardoso, Manuel Laranjeira, ocupavam o espaço
deixado vago pelos murmúrios das enchentes do
estio e desfiavam, sem perdão, o peso do tédio e
da melancolia de serem os únicos residentes naquele pequeno Espinho de mesas redondas e de
cadeiras de espaldares largos, juntando conversas
Mário Cláudio. Amadeo. p. 31.
Mário Cláudio. Amadeo. p. 31.
11
Termo característico que identificava os veraneantes, enquanto
que a expressão vilões designava os habitantes dos arredores de Espinho. (Álvaro Pereira. Monografia de Espinho. p. 71).
12
Manuel Laranjeira. Ob. Cit. p. 55. [Carta remetida a Pedro
Blanco. 3 de Setembro de 1908].
9
10
138
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
conforme os momentos e os cabeçalhos dos jornais do Porto. Contudo, quem regia a ressaca
de uma morte tediosa, cem vezes anunciada,
era, de facto, Manuel Laranjeira. A distância e o
isolamento conhecidos nos sentimentos do poeta levavam-no a afirmar que “no meio daquela
humanidade vivendo a vida edénica durante a fugacidade duma noite”13, ele sentia-se o despenhado, um estranho, voluntariamente desterrado. E,
apesar de reconhecer que aqueles momentos poderiam, também, ser seus, não lhe sorria aquele
instante duma noite, porque era [apenas] a vida
fugidia, porque não era a vida dos seus sonhos e
dos seus desejos.
Os seus vagares espinhenses, permanentemente
entregues na procura da sua verdade e vividos
na melancolia das lembranças do ser e do pensar das gerações trágicas, eram recordados em
cada encontro de café, pelos seus companheiros,
como uma evasão à morte cantada. A recordação ditava que naquele “(...) canto carregado de
fumo de tabaco e sonho chegava a figura do suicida, trazida pelos passos incertos de tabético. Tomava uma das suas posturas descompostas: o tronco
de magricelas desequilibrado na cadeira, a tombar
sobre o mármore sujo de bebidas e cinzas que enodoava mais a vestimenta desleixada; as pernas estiradas, em cruz nos joelhos inseguros; o chapéu mal
sustido na floresta negra da cabeleira; a bengala
em riste, a marcar o compasso dos pensamentos sem
ou com ordem. Na face de prognata e tuberculoso
hereditário, uma barbite rente sempre mal rapada,
bigode fecundo que rimava com a cabeleira, olhos
negros, enormes, aveludados. E bebia e fumava”.14
A inquietude do poeta, dividida entre ideais e
sonhos, transportava-se na palavra e na imagem
para um espaço geográfico e um tempo cronológico precisos. O refúgio eremítico, em terras
de Espinho, fosse no agitado verão ou no calmo
inverno, defendia-o da mundanidade vivida nas
urbes da sua época e proporcionava-lhe uma observação localizada e perfeitamente definida no
campo das suas expectativas. Era um mundo descrito de forma fluida, mas que pela sua própria
Manuel Laranjeira. Carta a Manuel Luís de Almeida. Boletim Cultural de Espinho. Vol. VI, n.º 21. 1984. p. 38.
14
Manuel Laranjeira. Ob. Cit. (Introdução de Alberto Serpa).
pp. 12-13.
13
para o
Século XXI
natureza inquieta e contraditória apresentava-se
fragmentado e indefinido, e a sua leitura acabava, imperiosamente, por ser transferida para
um plano de identificação superior, sem fazer
qualquer limitação na extensibilidade dos seus
testemunhos. Este irreverente exílio, que ao reflectir o sentimento intelectual de um homem
que se define como um produto de um tempo
agonizante, emparedado entre os falhanços dos
finais de um século e as esperanças e expectativas
que poderiam advir com o seguinte, mais não é
do que a demonstração de um conflito entre,
por um lado, a razão e a verdade e, por outro, o
sentimento e a fé.
A Espinho de Laranjeira é de fácil identificação
simbiótica entre o sentido do ser e o sentimento
sobre a ambiência exterior que envolve o próprio
poeta. A sua alma reflecte o vento desabrido e o
cerco das brumas, enquanto os percursos e as rondas que faz diariamente entre os espaços do seu
quarto e as areias da praia, espelham a descontinuidade de pensamento, os silêncios amargurados,
as desmotivações justificadas e as fadigas morais.
Sintomas próprios de um ser perdido na solidão,
por se ter transformado num simples figurante
de tempos de transição, entre um mundo que
desabava e um outro que se agitava na dúvida
das ideias abortadas, das missões e destinos frustrados, enfim, das iniciativas patrióticas malogradas.
Manuel Laranjeira escreverá, vezes sem conta,
palavras que se transformarão em ecos de outras
palavras, expressará sentimentos que serão repetições de outros sentimentos, definindo o seu
silêncio como o seu tédio e aceitando que este
desolamento de morte, que este desânimo e este cansaço prematuro sejam as suas constantes discursivas em relação aos homens, às coisas e à vida15.
Em carta a Amadeo de Sousa Cardoso, como
exemplo entre muitos outros, registará as justificações dos seus silêncios e dos seus desânimos
desesperantes, ao escrever: “Perdoa o meu silêncio, (...) já que se trata, em mim, de uma dessas pavorosas crises de tédio... e mais alguma coisa. Mais
alguma coisa – quer significar este desânimo, este
nojo, este desespero, esta desolação infinita, indizível, esta angústia sem nome pela vida, pelos homens
Bernard Martocq. Ob. Cit. p. 638. [Carta remetida a Manuel
Luís de Almeida. 28 de Dezembro de 1903].
15
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
e pelas coisas até. Eu não sinto o vazio universal
de Antero: Sinto uma coisa pior – sinto a torpeza
universal. Em redor de mim tudo desaba, tudo se
afunda, tudo liquida na mesma lama, na mesma
porcaria sentimental. Tudo! – mesmo aquilo e
aqueles que eu me afizera a considerar como cobertos de atmosfera imaculada”16. Ora, é este estado
de espirito de descrença e de desfazer dos sonhos
que vai, por um lado, anular qualquer possibilidade de entusiasmo e, por outro, levam-no a
não aceitar que o seu espaço de vivência quotidiana seja merecedor de registo quanto aos seus
encantos e às suas gentes. O céu imóvel que lhe
cobre a cabeça é visto como uma tampa duma
imensa sepultura, que o não deixa respirar, pelo
que sentimos que a sua Espinho não está nas
suas graças. Ele esmaga-a frequentemente com
referências adjectivas, identificadas por condições atmosféricas adversas, mas que não deixam
de ser apenas sinonímias justificações de um estado de espírito inquieto e padecente, de uma
saúde física trémula, de uma solidão de ser, ou
de uma incerteza surgida num ideal concebido,
tudo numa descrição lamentosa e insurgente
contra as lamas que se vão formando, um pouco
por todo o lado, logo que aparecem os primeiros chuviscos outonais. Em Manuel Laranjeira
“Espinho agoniza”17, perpetuamente, num quotidiano de tempo, de lugar, de eventualidade ou
de momento, em palavras sentidas que se repetem
em epistolados monólogos ou em simples registos
de diários íntimos. Para o poeta os dias despertam sempre brumosos, turvos, tristes e cansados,
em manifestações expressivas da cólera de Deus,
havendo sempre uma luz envolvente espessa, húmida, suja, parda, viscosa e imunda, como a lama,
exalando do céu, do mar e da terra uma tristeza
tediosa que se infiltra nas coisas e na alma.
Espinho funciona como uma redução de escala, através de um processo comparativo e meramente dimensional, na leitura de críticas e
na apresentação de propostas de soluções sobre
e para um Portugal “desgraçado” que se reconhece estar a atravessar, também ele, uma hora
brumosa, gris, crepuscular no seu destino. Deste
modo, é usual os metaforismos vocabulares de
referências desanimadoras sobre situações circundantes, consideradas opressivas nas suas causas e, consequentemente, limitativas nos efeitos
manifestados na capacidade social e criadora do
poeta. Manuel Laranjeira, em Outubro de 1906,
numa das suas cartas a António Carneiro, dirá
que tem momentos em que sente agitar-se turvamente no fundo do seu ser a ansiedade suicida
do esquecimento e do repouso. E, por isso, reconhece que tem medo de se vir a afogar numa
dessas vertigens18. A este impasse sempre descrito
e emoldurado por cercos de brumas e de tédio,
e também considerado mistério do seu inaudito aborrecimento e refúgio19, Manuel Laranjeira contrapõe uma outra fuga, ditada e pensada
para terras parisienses, qual terra prometida em
que se reconhece que se vive, que se sente, que
se repousa e que se trabalha20. Será, no entanto, a
constatação de uma família dependente que justificará o impedimento da sua tão desejada partida. É, naturalmente, uma convivência forçada
que lhe reprime a vontade e lhe impõe a presença
da responsabilidade, originando uma flutuação
de comportamento, entre um moralismo patriarcal e a contradição resultante. São sentimentos e
razões que deverão ser, sempre, vistos sob uma
dualidade de se ter consciência do fraco proveito,
tirado da relação existente e, simultaneamente, a
de interveniente social, que exige a sua presença
como participante activo no processo de transformação da sociedade – e neste caso o fugir deste
Portugal narcótico era compreendido como uma
necessidade de tentar tomar por esse mundo fora
um grande banho de energia que o estimulasse a
contribuir com algo bastante frutuoso –, e a de
pragmático, perante a realidade da sua própria
vida pessoal e íntima, como indivíduo responsável por tudo aquilo que os seus possam ter ou não
ter e, ele próprio, possuir ou não possuir.
O quotidiano de Laranjeira arrasta-se em contenções e imobilidades passadas entre a sua casa,
Manuel Laranjeira. Ob. Cit. p. 119. [Carta remetida a António Carneiro. 9 de Outubro de 1906].
19
Manuel Laranjeira. Diário Íntimo. p. 61.
20
Manuel Laranjeira. Ob. Cit. p. 67. [Carta remetida a Amadeo
de Sousa Cardoso. 1 de Dezembro de 1905].
18
Manuel Laranjeira. Cartas. p. 64. [Carta remetida a Amadeo de
Sousa Cardoso. 8 de Novembro de 1905].
17
Manuel Laranjeira. Cartas. p. 83. [Carta remetida a Amadeo
de Sousa Cardoso. 9 de Outubro de 1906].
16
139
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Cultura
na rua dezanove, o seu consultório – regulado,
rotineiramente, entre as 11 e as 14 horas –, os
descansos tertuliantes no Chinês, no Peninsular
ou no Aliança, os lazeres caminhados por entre
os pontões da praia ou nos passeios da avenida, ou ainda, nas visitas resguardadas a casa da
Augusta. Tudo observado metodicamente como
um encarceramento que provoca fadiga e desinteresse e, em consequência, se vê reflectido nas
imagens rotineiras da mundanidade desse seu
pequeno-grande mundo espinhense.
A passagem do tempo vai-lhe moldando a consciência sobre as inutilidades dos esforços e da
pregação. O médico, que também era poeta,
começa a reagir amargamente à imobilidade humana que o rodeia, esquecendo-se das suas afirmações a João de Deus Ramos quando escrevia
que os frutos da sua alma, a partir do momento
em que os reconhecia em pensamentos, ideias
ou sensações finais, deixavam de lhes pertencer,
para passarem a ser propriedade dos homens, de
todos os homens. Agora, prevaleciam as aclamações de desprezo e de fuga para um mundo
restrito de espiritualidade e de intelectualismo
superior, em que se defendia que a melhor maneira de desprezar os homens – é tolerá-los. Em
que, suportar os homens, como quem suporta as
coisas, é estar acima deles, ou pelo menos fora deles,
já que basta pensar que como as coisas, esses mesmos homens, são máquinas do destino – joguetes
irresponsáveis21. A demonstração desta incredulidade e ingenuidade dos homens é exemplificada, ora de uma forma mais suave, pela facilidade
com que o povo se deixava envolver pela teatralidade dos acontecimentos, de umas alegóricas
manifestações que rodearam a aclamação do Rei
D. Manuel II, na passagem do cortejo real por
terras espinhenses ou, de uma forma mais flagrante e dolorosamente sentida, através do retrato da realidade vivida pelos pescadores e da
sua apática resposta social. Neste último caso,
o contraste singular entre a assumida simpatia
e fascínio, existente em tempos passados, pela
simplicidade e frontalidade com que aqueles
homens dominavam o mar e a vida e o actual
comportamento passivo perante as amarguras
dos tempos de miséria e fome e a escolha alterManuel Laranjeira. Diário Íntimo. p. 131.
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
nativa, de fuga ao problema, através do uso e
abuso do álcool, alteraram-lhe o sentir e o pensar
sobre as suas gentes. Em escrito, para António
Carneiro, dirigirá o seu lamento, escrevendo que
pela gente do mar já teve carinho, mas que hoje
reconhece que tal sensação era uma sentimentalidade artística. Pois, essa gente consegue ser tão desgraçada que nem piedade inspira, quanto muito a
simpatia humilhante que se tem pelos estropeados de
nascença. Ainda, na mesma carta, responde a uma
observação do pintor, dizendo que compreende a
sua manifestação de carinho para com os pescadores de Espinho, porque, também ele, se iludiu,
enquanto os não viu com olhos de naturalista.
Agora, com o passar do tempo e do aprofundar
do conhecimento, Manuel Laranjeira crê que
aqueles homens são, no fundo, uma raça miserável
e desgraçada, tão desgraçada que até os sentimentos
mais elementares de solidariedade têm pervertidos22.
Este sentimento desconfortante e, de certa forma,
cruel sobre as posturas e os comportamentos dos
pescadores, possui, também, por parte do poeta,
o reconhecimento das causas da desgraça. Laranjeira sabe que os “Palheiros” se situam no outro
lado de Espinho; No lado antigo, desabrigado e
triste, emparedado entre a linha de caminho-de-ferro – identificado como muro fronteiriço que
separa o “gueto” miserável dos bairros novos, ricos e burgueses –, e o mar rigoroso, invasor e destruidor do espaço do casario pobre e abarracado.
Laranjeira reconhece que, apesar de viver a
mundanidade de uma vida burguesa, as soluções
dos problemas de carestia, e dos consequentes
problemas sociais, passam pela organização da
defesa da vila perante a agressividade do mar e
não pela aplicação de qualquer acto de caridade
hipócrita em relação à miséria das suas gentes.
Vem de longe o problema e a respectiva solução.
O mar corroendo vagarosamente a duna, desfolhando-a dos seus haveres, enquanto os homens
vão tomando, de tempos em tempos, algumas
providências, mais como meros procedimentos
pontuais do que como resoluções definitivas, que
adiavam até uma outra dramática ocasião o solucionar do infortúnio. As promessas do poder
político recaíam sistematicamente no ter e haver
Manuel Laranjeira. Cartas. pp. 129-130. [Carta remetida a António Carneiro. 12 de Janeiro de 1908].
22
21
para o
de construir o desencantado paredão, que assegurasse a tão desejada defesa contra as investidas
do mar. Monarquia e República, a seu tempo, argumentarão com as possibilidades materiais, com
as oportunidades cedidas pelo oceano, com os
rigores dos pareceres técnicos da sua engenharia
hidráulica, e Espinho contra-argumentará com as
suas solicitações, reclamações e protestos, com as
suas perdas, os seus medos e as suas esperanças.
O Mar de Laranjeira é, também, um elemento
simbólico de dupla leitura que pode identificar-se com os porquês sem resposta dos seus difíceis
dias de angustiante existência ou, então, com os
desejos inquestionáveis da procura insistente da
perfeição. É esse mar que a vista não alcança,
porque se encontra no infinito, que, quando não
há desânimo nem melancolia, é fervorosamente
procurado, porque se crê existir nessa mesma planura longínqua a razão da adaptabilidade de todos
os pragmatismos defendidos em ideias e ideais:
“O mar é o símbolo da inquietude”. Um mar, que
o poeta encontra nos olhos e na alma melancólica
dos homens e mulheres da sua terra e que transfere, para si, como sendo a sua inexplicável insatisfação por tudo aquilo que pensa compreender
e conhecer, mas que, de facto, reconhece serem
apenas indefinições e incompreensões.
O seu lamento é universalista. Já o reconhecemos. Todavia, quem, de facto, o observará no
mais íntimo do seu ser e da sua confissão, será
Miguel de Unamuno que, em palavras de despedida, junto à campa rasa do poeta, fará lembrar
que só há uma manifestação que corresponde à
“alma dessa costa triste como os pinheiros melancólicos que à beira-mar tenebroso, mar de naufrágios,
parecem cheios de saudades doutro mundo, de um
mundo impossível”23. Mundo resultante da sua
fantasia24 de encarar a vida como uma obra de
arte25, e onde todas as ideias de felicidade são eliminadas como supérfluas, já que o Bem, o Mal,
a Perfeição, a Bondade, a Pureza – reconhecidas
considerações da sua alma –, não deixam de ser
Carta de Miguel Unamuno lida por Ramiro Mourão, junto à
campa de Manuel Laranjeira, aquando do cortejo de homenagem
efectuado ao cemitério de Espinho. Gazeta de Espinho. Ano 12º, n.º
583. 31 de Março de 1911. 1ª Página.
24
Manuel Laranjeira. Diário Íntimo. p. 31.
25
Manuel Laranjeira. Cartas. p. 84. [Carta remetida a Amadeo de
Sousa Cardoso. 13 de Outubro de 1906].
23
141
noções relativas, tão próprias de um homem
dividido entre a consciência de descobrir a inutilidade dos seus sonhos, em consequência da
desarmonia existente do seu espírito e a intenção
em não renunciar a esses mesmos sonhos.
O levantar dúvidas aos ideais mais profundos e
a intensificação do tédio de uma vida que abandonou as razões de ser ela própria vida, sobrevivendo, apenas, em considerações permanentes
sobre a inexistência do valor, da razão e do ser,
contribuem, necessariamente, para o princípio
do fim. Paralelamente, o pensamento do poeta
encontra um grupo de ouvintes cada vez mais
restrito, permanecendo o colectivo alheio e
amorfo ao seu discurso. Ora, ao ser ignorado, a
sintomatologia desesperante da incompreensão,
provocada pela sensação de se ser um estranho
e um inimigo da verdade pela qual se luta, conduz ao doloroso ódio contra os homens, contra
a sociedade e contra as suas próprias razões de
viver. Manuel Laranjeira transforma-se numa
alma fechada em si mesma, “sem coragem para
sair de dentro de si mesmo”26. Sofre num silêncio
pessoal, em conversas sem interlocutores, transformando-se em “único ouvinte das suas próprias
queixas, único médico das suas próprias dores, único crítico dos seus defeitos ou qualidades”27. As
razões desta complexa e, por vezes, contraditória personalidade, que, numas alturas, exalta a
vida e a amizade e, noutras, deseja o isolamento
absoluto, encontram-se nas incompreensões de
quem, ao pretender oferecer tudo, apenas encontra o silêncio do ignorar. Manuel Laranjeira
descobre a ausência de eco, o afastamento das antigas cumplicidades, como Ramalho Ortigão ou
Guerra Junqueiro, ou a discordância ignorante
de sectários opositores, a par do cruel reconhecimento, pelo próprio, da existência de um divórcio entre a ideia construída e a realidade aceite
por outros homens. O silêncio e o desespero da
ignorância conduzem-no, imperativamente, ao
desapego pela vida e à amarga voz da resposta
irónica, sarcástica e cínica, sobre as coisas e sobre
todos aqueles que não compreendem, não concordem ou não respeitem a sua verdade. Manuel
Bernard Martocq. Ob. Cit. p. 661. [Carta remetida a Miguel
de Unamuno. 28 de Julho de 1910].
27
José Corte-Real. Ob. Cit.
26
142
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Laranjeira reconhece estar a perder a fé em tudo
e em todos28, abandonando referências e afectos,
reduzindo, deste modo, o grupo dos nomeados
pelo seu coração e pelo seu espírito, como seres
espiritualmente diferentes e até superiores. A
amizade passa a ser uma interrogação contestada
no papel, por se ter deixado de saber “Quem são
os amigos?“; Por se reduzir a sua definição a uns
simples “sujeitos que às vezes se lembram de sentir
por nós, de pensar por nós, de ser virtuosos por nós,
de ser práticos por nós e até de duvidar de nós”, e
por se considerar, também, que o sentimento,
em si, é algo que, apenas, nos perturba o espírito,
nos enxovalha o espírito, os pensamentos, as intenções e as palavras. Enfim, na solidão amargurada
do poeta, só se pode aceitar como único amigo
o seu próprio eu, porque conceder que os outros
o sejam é abdicar estupidamente de si, e para
se estar tranquilo, em paz connosco, não há como
sentir na consciência o direito indestrutível – de
mandar os amigos à merda”29.
Manuel Laranjeira, com pouco mais de trinta
anos, sente-se arrefecido da sua mocidade, num
“lento morrer a vida“ em sombras perdidas de um
passado recente de vésperas de São João, onde tinha existido comoção e amor. Agora, o estado de
espírito lamacento delonga-se em paralisias exteriores, em que a vontade, a inquietude e a irreverência perante a vida, simplesmente, se transformam em tédio e falência. Ao levantarem-se as
dúvidas, em constantes atmosferas pardacentas
de tédio e tristeza, que lhe criam a ansiedade
suicida pelo esquecimento e repouso, o escritor
só encontra nojo pelo mundo e pela vida. Vida,
essa, que é igual, parda e ordinária no dia-a-dia
e que “imbecilmente”, o gasta sem lhe poder dar
o consolo de saber viver a vida. Nove anos antes, numa carta a Manuel Luís de Almeida, terá
dito que o homem mais sozinho é o suicida, e
que o suicídio é o acto de maior vontade. A 22
de Fevereiro de 1912, pelas 23 horas, Manuel
Laranjeira confirmará o seu último desencanto,
dizendo com uma bala: – “Fico por aqui. Adeus,
meu querido amigo, até... não sei quando”30.
28
Manuel Laranjeira. Ob. Cit. p. 124. [Carta remetida a António Carneiro. 4 de Outubro de 1907].
29
Manuel Laranjeira. Diário Íntimo. pp. 115-116.
30
Manuel Laranjeira. Cartas. p. 165. [Carta remetida a Mi-
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
*
A História tem a tendência de se ocupar, apenas,
das vontades impostas pelos tempos, escolhendo
os seres reais e as situações concretas que devem
ser lidas e relidas nas suas páginas de lembranças.
Manuel Laranjeira por ter sido um irreverente à
própria história e por ter feito frente a essas humanas vontades pagou com o esquecimento da
memória o seu comportamento.
A obra de Manuel Laranjeira, independentemente do estilo, propósito ou forma literária
utilizada, transmite a sensibilidade profunda de
um “plebeu orgulhoso” (como, carinhosamente,
os seus pares o relembravam), que percorre o
seu tempo em permanentes agitações interiores,
esgrimindo com as inúmeras leituras desconcertantes e desencantadas das realidades que os
seus olhos identificam como produto do meio
envolvente. A uma poesia disciplinada pelo sentir do seu tempo, opõe-se uma prosa livre e circunstanciada pela pressão dos acontecimentos. A
um teatro, humanamente problematizado como
espelho dos dramas, risos, virtudes e desfavores
da sociedade de então, surge-nos, em paralelo, o
ensaio penetrante e demonstrativo de um espírito efervescente e rebelde, de um oposicionista
às situações impostas aos homens. Em suma, o
seu espírito, construído na desolação da vida e
condicionado por circunstâncias pessoais, é um
exemplo preciso do seu tempo, como produto
de uma ambiência cultural e mental que reflectem o mundo de então e que se consubstanciam
no permanente atrito da observação da realidade
e das contradições encontradas, resultantes da
ausência de percursos coerentes e aceites, para
se atingir as soluções desejadas. As justificações
dessa desolação da vida ultrapassam com toda
a facilidade as fronteiras do seu pensamento e
a dimensão geográfica da mesa do Café Chinês,
da Rua Bandeira Coelho (agora, Rua 19), da sua
Espinho ou do seu “desgraçado Portugal”. Para
o poeta as agonias sociais que se vivem na Europa, “há cem anos para cá”, fruto de uma intensa crise de pessimismo, são o resultado de
“uma crise afectiva, que define os grandes períodos
de transição. [Em que] desaba um mundo e um
mundo germina. [Em que] a humanidade, como
espécie em plena evolução ainda, ensaia uma nova
adaptação. Adaptação penosa, adquirida a custo,
através de uma luta impiedosa [e] feroz”, que provoca “um mal-estar geral, vago, como o das crises
da adolescência. [São os tempos, onde] o homem
esboça um novo homem. [Onde] o sentido evolutivo da humanidade, aquilo a que os poetas chamam
o sentido da vida, parece enigmático e há uma inquietação indefinível pelo futuro. O homem tem a
sensação dolorosa de que tudo é incerto, misterioso
– como a boca muda e o olhar das esfinges. Enfim, “essa dificuldade adaptativa, esse desequilíbrio
momentâneo, essa desarmonia entre o homem e o
mundo que o cerca”, traduz-se, para Manuel
Laranjeira, “por um síndroma colectivo: [de]
pessimismo, [de] tristeza contemporânea, [de] tédio
dos tempos”31. A sua crença e a sua descrença na
razão digladiam-se, permanentemente, e a desesperança da derrota tediosa na vida convive com a
glorificação da vitória de viver. Em suma, quando a observação cega da realidade se transforma
na intransigência total de se abandonar as ideias
construídas, ou até, de se adaptar o pensamento
e o sentimento a novas leituras, o sofrimento da
opressão existente, como única certeza definida,
dá lugar à instabilidade da liberdade.
Sabemos que são atitudes momentâneas, mas
constantes e cíclicas no tempo. O poeta percorre o seu mundo olhando para o passado e
tentando perspectivar o futuro e, quando o
conflito lhe demonstra o seu desenraizamento,
o cansaço domina-o e as crises de consciência
sobressaltam-no, levando-o a reconsiderar a única saída possível, também ela intangível tantas
vezes, mas, sempre sedutora pela possibilidade
da decisão a tomar, lhe vir a proporcionar a salvação moral da sua imagem degradada através
da morte libertadora.
Toda a reflexão pessoal sobre a complexidade
das suas dúvidas e das suas certezas, provavelmente efectuada enquanto assistia ao desfilar
social da vida espinhense, numa mesa junto à
porta do Chinês, levaram-no, ao reconhecimento da fragilidade dos seus pensamentos e a
confessar os seus desânimos, como próprios de
um “falido da vida”; E, por muito que Manuel
Laranjeira defenda, perante os seus pares de diálogo, ou mesmo perante si, a permanência da
procura da verdade, o desencontro e a perda das
“ilusões consoladoras” e dos ideais, tantas vezes
invocados, são, de facto, pertinentes e avassaladores. Todavia, para o poeta “este nosso doloroso
mal-estar ainda não é o paroxismo duma raça decadente, ainda não é o crepúsculo dum povo. O
nosso pessimismo quer dizer apenas isto: que em
Portugal existe um povo, em que há, devorados por
uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria
que sofre porque a não educam e uma minoria que
sofre porque a maioria não é educada”32.
António Sérgio, nos seus Ensaios, questiona
quais as «condições especiais» que existem no
nosso país e, naturalmente, o porquê delas existirem, para ter havido um suicídio de um Antero, de um Camilo, de um Soares dos Reis, de
um Costa Ferreira, de um Júlio César Machado, de um Mouzinho de Albuquerque, de um
Manuel Laranjeira, de um José Fontana, entre
outros. Na sua amargurada interrogação, Sérgio
pergunta-nos “(...) porque há tanto vil, co’a breca, entre os “intelectuais” desta terra, e tanto escarninho odiador de toda reverberação do espírito;
(...) porque é que tudo que vale sofre o desprezo
aqui, ou o ataque, a traição, o abandono, a chufa;
porque é que a sarça da retórica, tão invasora e
fértil, a do psitacismo expansivo, a da estupidez
invencível, sempre reconquistam todo cantinho de
agro que porventura uma personagem de excepção
cultiva; porque é que tudo que surge de realmente
bom, de probo, de saudável, de inteligente e nobre,
se perde, definha, degenera ou morre, neste ambiente inóspito; porque é que no nosso país, mais
que em qualquer outro, os “núncios de um futuro longínquo” são sempre “vitimas de um presente
cruel”?”33. Sem saber dar uma resposta precisa
nem solúvel sobre o fenómeno plural apontado,
somos de opinar e reconhecer que, ainda hoje,
é legítima e cheia de actualidade a interrogação
sergiana, mesmo havendo o abandono “generalizado” do sentimento suicida vivido na passagem
Manuel Laranjeira. Pessimismo Nacional. p. 41.
António Sérgio. Ensaios (Tomo I). 3ª Ed. Lisboa. Sá da Costa, 1980. pp. 92-93.
32
guel de Unamuno. 15 de Fevereiro de 1912, sete dias antes
de falecer].
Manuel Laranjeira. Prosas Perdidas. Lisboa. Portugália Editora, 1958. pp. 45-46.
31
143
33
144
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
do século XIX para o XX. As fatalidades e as
apatias, as angústias e as duvidas encontradas no
passado, perseguem-nos pelo tempo, repetindo-se a gladiatura das incertezas nas crenças de ser
ou não ser por um Deus qualquer, com mais
ou menos fundamentalismos exacerbados, do
abandono da respeitosa troca de opiniões pelas
manifestações cegas do individualismo totalitário, da substituição de princípios e de noções de
convívio e de civilidade, pelas imposições dos
sentimentos de terror e medo que se passeiam
armados de canos serrados, da obscuridade das
decisões impostas pela globalidade de uns poucos sobre a identidade e o querer de muitos outros, da morbidez dos desânimos causados pela
falta de realização dos sonhos, ou do azedume
quotidiano dos apertos dos transportes e das
filas indetermináveis do trânsito em hora de
ponta, pela identificação de propósitos e desejos
colectivos, da transformação do suspirante abraço de solidariedade, no cinismo do desvio dos
pacotes de espaguete ou de arroz agulha, saídos
do armazém do “banco da fome”, da sumptuosidade do verbo possuir e do mundo colorido
do engano do cartão de crédito, propagandeado
no leve agora e pague depois, pela consciência
do limite e da sensatez, da falsa felicidade dos
momentos prometidos nos argumentos das telenovelas ou da glória de uma fama televisiva, encontrada em comentários falados, em mundos
“vip’s”, em entrevistas acorrentadas ou em “big
brodianos” ópios que anestesiam o nosso pensar.
As gentes deste pequeno e belo canto, à beira-mar plantado, permanecem frágeis e inseguras
como noutras ocasiões, mesmo tendo havido
mudança de tempos e de vontades. As novas
mistificações do “processus vital”, inseridas, agora, numa declarada capacidade de tomar decisões de natureza material, política e social, usando, para isso, os meios democraticamente disponíveis, iludem a verdadeira realidade de não
ser permitido assumir as responsabilidades que
resolvem os problemas quotidianos e projectar
o desejo de segurança e de autoridade sobre o
rumo da vida, permitindo que sentimentos e
sensações deixem de ser ilusórias e se transformem em realidades progressivas, em direcção à
liberdade responsável.
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
As pessoas, independentemente do seu sexo e
do seu grupo etário, estão a viver permanentes situações de extremo aviltamento. A actual
sociedade portuguesa apresenta contrastes gritantes, extremados socialmente pelos novos pedintes que nos indicam o lugar para estacionar
o carro ou nos “limpam” o pára-brisas durante
uma pausa de semáforo e o novo-riquismo das
vaidades desfiladas nas “passerelles” dos arautos
que anunciam a vinda para a lusa pátria, já com
comprador garantido, de todas as unidades distribuídas para Portugal do último «Lamborghini
Murciélago», qual carro de série mais potente do
mercado, pela módica quantia de 269.350 euros, ou em moeda de outros passados, por, apenas, 54 mil contos, por unidade.
Todos os outros – aqueles que preenchem as audiências das maiorias –, gritam que tudo estará
bem melhor, numa angustiante ignorância, enquanto se transformam em “Reichilianos” “Zé
Ninguém”, através de prostituídas formas de
oferta, agora sem corpo nem as tradicionais avenidas ou esquinas mal iluminadas, e instalam-se nas almas e nos espaços em que imperam o
“salve-se quem puder”. São eles administradores
de empresas públicas ou privadas, dirigentes de
confederações patronais ou sindicais, quadros
de partidos mais ou menos liberais ou proletários, profissionais independentes ou por conta
de outrem, simples intelectuais, porteiras ou
motoristas de longo curso. Os “Zé Ninguém”
agigantam-se em meras rivalidades, fruto de
snobes arrogâncias ou de crueldades desumanas,
e cedem à chantagem exigida pela megalómana
necessidade do sucesso imediato. Estes homens
e estas mulheres não estão interessados em conhecer a verdade acerca de si próprios e o consequente processo de decadência que estão abraçando. Eles não desejam assumir a responsabilidade que lhes cabe de apresentarem soluções
quando protestam, ou de exigir alternativas às
silenciosas imposições do poder. Eles preferem
permanecer naquilo que são ou, quanto muito, transformarem-se em clones das figuras, dos
momentos, dos comportamentos ou dos resultados exibidos nos écrans publicitários.
Conforme escrevemos no início deste texto, ler e
escrever sobre Manuel Laranjeira é sempre uma
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
agradável redescoberta de momentos e sentidos datáveis no tempo; Mas, acima de tudo, é
impressionante (e de algum modo, arrepiante),
redescobrirmos a coincidência de estarem vivas
e actualizadas as observações efectuadas. Quer
aquelas que dataram o pessimismo nacional de
Laranjeira, quer as registadas nos nossos propósitos de crónica, em 1999 e hoje, passados cem
anos após o adeus do poeta.
Ora, os tédios e os pessimismos do nosso “fado”
em nada mudaram, apenas as formas de se manifestarem e os intervenientes. Também agora, são agonias e desencantos que [nos] obrigam
à dualidade constante de ser um viajante e um
eremita. Percorrendo os caminhos do sentimento e do sonho à procura da “nossa salvação” e
refugiando-nos nas memórias dos nossos messianismos, como único abrigo às inconstâncias
do nosso universo. Vivem-se tempos de crises
de consciência, onde o mundo e a sua moral
apresentam-se subvertidas e os antigos alicerces
sociais ameaçam ruir transformando a sociedade
vigente em descréditos absolutos, sustentados
pela angústia, pela opressão e pela instabilidade. Continuamos, agora como então, a viver na
ideia do descrédito total do papel da função e do
desempenhar político, porque os governantes
da nossa insatisfação continuam, de forma demagógica, a dar-nos como cordeiros pensantes
adquiridos. São os tempos da dança dos novos
«rotativismos» políticos do neoliberalismo sem
rosto, desenfreado, arrogante e vil, sustentado
pelos permanentes desgovernos e corrupções do
aparelho governativo e assessorado no crédito
total do eleitoralismo democrático, bastando,
para isso, prometer que a obtenção da sustentada “terra prometida” encontra-se na anulação
de uns quantos feriados e da aplicação do livre
arbítrio da mobilidade e do despedimento. São
os tempos do mercantilismo informativo controlado, fabricado nas capas dos jornais que
melhor vendem ou nas sondagens telefónicas
de números mágicos. São as dúvidas e as incertezas constantes nos sistemas financeiros e nos
resultados económicos, a par do desespero, da
impotência e do sobressalto de se viver refém
das vontades internacionais, agora chamados de
“Mercados”. São os processos jurídicos amorfos
145
e bolorentos que se arrastam em dúvidas e em
incertezas esperando a prescrição como, ainda, a impotência de não sermos ninguém nas
questões internacionais, apesar da imensidão
do mar nostrum e, consequentemente, de não
termos, nas quantidades desejadas, submarinos,
porta-aviões ou mísseis intercontinentais. São
as agressividades comerciais internas de hipermercados sedentas do sangue do desespero e
pretensiosas no desrespeito pela civilidade da
Lei. São os desencantos pelo reconhecimento
de que o único desenvolvimento declarado é o
do obscurantismo, da ignorância e da ausência
de soluções que alterem os dados de podermos
ser sempre mais que os outros, porque se de seis
estádios de futebol apenas se precisava, fizemos
dez no culto do princípio da vaidade e da fachada de querermos entrar no clube dos ricos.
São as desumanas e insensíveis atribuições das
responsabilidades da salvação da Nau no tomar
prepotente do sustento, da saúde e dos direitos
do mensageiro, ao invés da impunidade total do
autor da mensagem. São os novos “pogrons” de
falsos bodes expiatórios encontrados no valor do
trabalho, do funcionalismo ou do pensionismo,
como desvios de atenção dos resultados reais de
décadas de clientelismo político. São as novas
diásporas imigratórias do futuro nacional, transformando-se este imenso Portugal num banco
de jardim onde, em Outonos de vida de renúncia, de indiferença, de cansaço e de pessimismo
demolidor se aguarda o final.
Relembrando Fernando Dacosta na ideia, mesmo fazendo outra baliza temporal nos elementos comparativos, Portugal é, no presente, mais
bonito por fora que em outras décadas de triste
memória, contudo, também é menos denso por
dentro. Mais informado mas menos reflexivo, mais
individualista mas menos solidário, mais cenográfico mas menos genuíno, mais sedutor mas menos
leal, mais livre mas menos responsável. Em suma,
são os tempos em que vamos ter de entrar, como
nos disse Manuel Laranjeira, numa outra lista
de espera até “sentirmos o desejo de ser civilizados
e, não apenas, contentarmo-nos só em parecê-lo”34
Bernard Martocq. Manuel Laranjeira et son temps. Paris.
FCG. 1985. p. 662 [Carta remetida a Miguel de Unamuno,
provavelmente em Abril de 1911].
34
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
E o’fantasma responde-me alterado:
– ‘Eu sofro porque tu sofres. Desgraçado,
vais gozar a desgraça de viver...
Palavras d’um fantasma
ANTROPOLOGIA E RELIGIOSIDADE
EM MANUEL LARANJEIRA
José Acácio Castro
M
anuel Laranjeira é um caso exemplar de
um dos nossos escritores com menor
visibilidade que a dos grandes vultos, mas que
todavia reflecte, na sua obra, e mesmo na sua
vida, alguns arquétipos, e muitas da aspirações e
contradições da literatura e cultura portuguesas.
Viveu e escreveu na transição do séc. XIX para o
séc. XX, um tempo de republicanismo aceso, de
positivismo, um tempo de grandes contrastes,
onde o terreno da religião e da espiritualidade
era palco de grande conflitos culturais, com
muitos dos paradigmas da cultura ocidental a
serem postos em causa, e novos modelos, o materialismo dialético, o darwinismo, o freudismo,
a crítica nietzschiana ao cristianismo a chamarem a si as energias mais juvenis e afirmativas.
É precisamente neste ambiente que um finalista de
medicina, com amplos dotes literários elabora uma
tese, que será posteriormente publicada, circulando e captando a atenção dos meios científicos e
humanísticos, intitulada, “A doença da santidade”1.
Não nos esqueçamos que é na década de vinte
do século que então se inicia que Freud, também um médico, escreve duas obras capitais, “O
Futuro de uma Ilusão” e “O mal-estar na cultura”,
onde espiritualidade e os paradigmas essenciais
da cultura judaico-cristã são postos em causa a
partir de um lugar quer cultural, quer psicanalítico. De qualquer modo, publicados posteriormente à obra de Laranjeira.
Mas qual a dimensão e o perfil da crítica e das posições do autor lusitano, face à distância enorme que
o separava de Viena e, em geral, da Europa culta?
Comecemos por alguns dados biográficos.
Manuel Laranjeira nasce em 1877 em S. Martinho de Moselos, concelho de Vila da Feira, no
Laranjeira, Manuel, A doença da santidade, ed. Labirinto, Lisboa, 1986.
1
seio de uma família modesta. É graças à herança
recebida depois da morte de um tio brasileiro
que Manuel Laranjeira prossegue os estudos e
consegue formar-se na Escola Médico-Cirúrgica
do Porto, onde poucos anos depois estudará Jaime Cortesão. Entretanto, dedica-se desde novo
à poesia e ao teatro, colaborando em diversas
publicações. Viaja entretanto até Madrid, visitando o Museu do Prado, que lhe causa forte emoção, e este interesse pelas artes plásticas
leva-o a desejar fixar-se em Paris onde conhecera
Amadeo de Sousa Cardoso.
Em 1908 conhece Miguel de Unamuno, na cidade de Espinho, vindo a trocar correspondência com ele. Troca também correspondência com
João de Barros, António Patrício e Afonso Lopes
Vieira, entre outros homens de letras. Em 1912,
com 35 anos, desesperado com uma doença do
foro neurológico, suicida-se com um tiro na cabeça, como já o fizera Antero de Quental.
Deixou-nos uma obra multifacetada e extensa
para quem viveu tão poucos anos, onde podemos destacar “Amanhã” (prólogo dramático),
“Comigo” (poesia), “A doença da santidade”
(1907), na qual mais nos deteremos, e outras
obras só publicadas postumamente, como “Naquele engano de alma”, “Diário íntimo”, “Dor surda” e “Prosas perdidas”.
Pela forma como viveu e morreu não podemos
deixar de o inserir naquele filão valioso e trágico
da cultura portuguesa da segunda metade do século XIX e primeira do século XX que engloba
figuras como Antero, Amadeu de Sousa Cardoso, Mário de Sá-Carneiro e, porque não, Camilo
Pessanha e Fernando Pessoa, para quem a vida
foi, também, um lento suicídio.
Entretanto, vejamos três poemas muito elucidativos
da sua poética, quer temática, quer estilisticamente.
“Aquela doce e mística suicida
que me visita pela noite morta,
vim agora encontrá-la à minha porta
esperando por mim, toda transida...
Prendeu-me nos seus braços desvairados,
Longamente, em silêncio, como louca...
E ainda sinto o consolo dessa boca,
Beijando-me nos olhos desolados...
Depois pôs-se a dizer em voz baixinha:
– ‘Bem vês, meu pobre amor, ela não tinha
um coração como eu...
Alma de sacrifício – nunca a viste
Igual à minha!... e a minha não te deu
Felicidade alguma se... isso existe...’”
Agora que tu amas, é que a vida
é vã e aborrecida,
sem ninguém que nos possa compreender...’” 2
Perante estes poemas e tantos outros, com o mesmo carácter, que se escreveram em Portugal neste
período, não podemos deixar de nos interrogarmos por que motivo o nosso ultra-romantismo
assumiu um tom mais pessimista, mais trágico do
que que encontramos em escritores congéneres
em Espanha, França ou Alemanha, por exemplo.
Creio que Jorge Dias numa obra interessantíssima intitulada “Estudos do carácter nacional
português” responde, pelo menos parcialmente,
a esta questão. Escreve ele a certa altura:
VENDO A MORTE
“O português tem um vivo sentimento da natureza e um fundo poético e contemplativo estático diferente dos outros povos latinos. Falta-lhe a
exuberância e a alegria espontânea e ruidosa dos
povos mediterrâneos. É mais inibido que os outros
meridionais pelo grande sentimento do ridículo
e medo da opinião alheia. É como os espanhóis,
fortemente individualista, mas possui um grande fundo de solidariedade humana. O português
não tem muito humor, mas um forte espírito crítico e trocista e uma ironia pungente.
“Em tudo vejo a morte! E, assim, ao ver
Que a vida já vem morta cruelmente
Logo ao surgir, começo a compreender
Como a vida se vive inutilmente...
Debalde (como um náufrago que sente,
vendo a morte, mais fúria de viver)
Estendo os olhos mais avidamente
E as mãos p’ra vida... e pônho-me a morrer.
A mentalidade complexa que resulta de factores diferentes e, às vezes, opostos dá lugar a um estado de
alma sui generis que o português denomina saudade. Esta saudade é um estranho sentimento de ansiedade que parece resultar da combinação de três
tipos de mentalidades distintos: o lírico sonhador
– mais aparentado com o temperamento céltico, o
faústico – mais de tipo germânico, e o fatalístico,
de tipo oriental. Por isso, a saudade é umas vezes
um sentimento poético de fundo amoroso ou religioso, que pode tomar a forma panteísta de dissolução na natureza, ou se compraz na repetição
obstinada das mesmas imagens ou sentimentos.
Outras vezes é a ânsia permanente da distância,
de outros mundos, de outras vidas. A saudade é
então uma força activa, a obstinação que leva à
realização das maiores empresas; é a saudade fáustica. Porém nas épocas de abatimento e de desgraça, a saudade toma uma forma especial, em que o
A morte! Sempre a morte! Em tudo a vejo
Tudo ma lembra! E invade-me um desejo
De viver toda a vida que perdi...
E não me assusta a morte! Só me assusta
Ter tido tanta fé na vida injusta
...e não saber sequer p’ra que a vivi!”
Diálogo com um fantasma
– “Ó fantasma de alguém que soube amar
e teve um coração grande e perfeito,
porque é que vens agora soluçar,
muito abraçada a mim, quando me deito?
Porque é que tu me beijas a chorar
E me apertas calada contra o peito,
Ó morta que me vinhas visitar,
Debruçada a sorrir sobre o meu leito?
147
2
Laranjeira, Manuel,“Comigo, ed. Labirinto, Lisboa, 1986.
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
espírito se alimenta morbidamente das glórias passadas e cai no fatalismo de tipo oriental, que tem
como expressão magnífica o fado, canção citadina,
cujo nome provém do étimo latino fatu (destino,
fadário, fatalidade). Nas épocas extraordinárias,
quando acontecimentos históricos puseram à prova
o valor do povo ou lhe abriram perspectivas novas,
que o encheram de esperança, então brotaram por
si, naturalmente, as melhores obras do seu génio.
Porém nos períodos de estagnamento nasce a apatia do espírito, a relutância contra a mediania, a
crítica acerba contra tudo o que não está à altura
daquilo a que se aspira, ou cai-se na saudade negativa, espécie de profunda melancolia.” 3
Estas reflexões que apontam para uma bipolaridade no que se refere a essa complexa noção-sentimento que é a saudade, creio poderem transpor-se do âmbito colectivo e cultural para um outro
individual e psicológico. E essa curva descendente, onde a saudade é desânimo, abatimento, pessimismo, tragicidade, fatalismo, enquadram-se
plenamente com o clima poético que exprimem
os poemas citados de Manuel Laranjeira.
Nas últimas décadas vários autores têm relevado
a dimensão positiva da saudade, que, presente na nossa cultura desde a lírica medieval até
aos nossos dias, tantas vezes foi um factor inspirador e dinamizador de criatividade artística
e cultural, de paixão colectiva vertendo-se em
actos plenos de heroísmo, de elevação transcendental por via dessa riquíssima e lusitana noção
que poderíamos designar como saudade de Deus.
Ela é a seiva da tensão criativa de autores como
Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra ou, em alguns aspectos do próprio
Fernando Pessoa, entre outros. E a recordação,
substância da saudade assim entendida e vivida,
não consiste em abatimento melancólico, mas
em valor ontológico acrescentado ao presente e
em factor de definição de um futuro a construir.
No entanto, na sua curva descendente, na sua
faceta mais sombria e negativa, do mesmo modo
que parece imobilizar as forças mais positivas e
luminosas do povo português, parece induzir os
nossos melhores autores a uma espécie de torpor
espiritual, de desânimo e pessimismo interiores, que se traduzem numa espécie de mórbido
desejo de apagamento do sujeito, de elisão do eu.
Dias, Jorge, O carácter nacional português, edição do Centro
de Estudos de Antropologia Cultural, Lisboa, 1971, pp.19/20.
3
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Isso aconteceu pontualmente na obra de autores de primeira linha como Camilo Pessanha ou
Fernando Pessoa, e, em Manuel Laranjeira, esse
desejo de apagamento do sujeito, transforma-se
extremadamente em desejo de morte. Uma morte
consumada (ou consumida) em suicídio.
Numa obra relativamente recente, Portugal Hoje,
o medo de existir”4, José Gil ao mesmo tempo
que faz uma profunda reflexão filosófica, descreve também as características essenciais da
personalidade portuguesa. E como o título indicia, “o medo de existir”, ou a “não-inscrição”,
apresentam-se quase como uma pulsão colectiva,
um princípio genérico de acção ou de não-acção,
embora emergindo também, a espaços, nas obras
dos mais notáveis representantes da nossa cultura, do nosso modo de sentir e pensar. E, segundo ele, tem sido “esse nevoeiro inconsciente que se
instala na consciência “, que ao longo dos séculos
e, quando mais seria necessário, tem inibido as
nossas mentes e as nossos comportamentos, impedindo-nos de sair de um limbo de apagamento
e mediocridade, em que o pais parece mergulhar
às vezes décadas e décadas a fio.
Vejo naquilo que designei como “desejo de apagamento do sujeito”, e as noções de “medo de existir”
ou “não-inscrição”, segundo a expressão de José
Gil, autênticas noções vizinhas, quase gémeas,
porque vivendo e manifestando-se no mesmo território cultural e civilizacional, e produzindo os
mesmos efeitos, ou pelo menos, efeitos paralelos.
A obra de Manuel Laranjeira, particularmente a
sua vertente poética, é mais um breve mas significativo afloramento desse húmus que parece
enlear a nossa maneira de ser traduzindo-se em
hábitos, comportamentos colectivos, e muitos
dos nossos gestos culturais mais recorrentes.
A polémica em torno destas noções acendeu-se inevitavelmente. E sendo legítima, não pode
evitar que essas realidades existam já que abertamente se manifestam. O que será discutível é se
“não-inscrição” ou “medo de existir” são tendências maioritárias, congénitas e como que uma
fatalidade inevitável da nossa cultura, personalidade de base, se é que esta existe, e no rumo
da nossa História. Creio que não, já que muitas
são as manifestações contrárias para o confirmar:
inúmeros gestos de cultura popular assentes
numa alegria genuína, a vitalidade da nossa
música popular e erudita contemporâneas, podendo afirmar-se o mesmo a propósito de uma
literatura e artes-plásticas que, não raramente,
apelam mais ao espírito crítico do que à inércia,
mais à invenção criativa luminosa do que a uma
estética assente no pessimismo e morbidez, mais
à celebração da vida do que à pulsão de morte,
mais à exploração de todas as virtualidades do
humano, do que ao seu apagamento.
*
Mas retomemos a crítica que Manuel Laranjeira
faz à religião e à espiritualidade em geral e que se
centra em duas obras, “A doença da santidade” e “O
diário íntimo”, no primeiro, de modo mais sistemático, no segundo, através de reflexões dispersas.
A Doença da santidade é um texto que veio a
lume em 1907, numa época culturalmente rica,
heterogénea e onde as tendências emergentes
orbitavam em torno do positivismo, do darwinismo, do desenvolvimento da psicologia, desde
a psicologia experimental à psicanálise. E o objectivo da obra, enquanto tese de medicina psiquiátrica, é precisamente descrever e interpretar
os aspectos psicopatológicos do misticismo.
Todavia, Manuel Laranjeira não adere totalmente ao organicismo positivista de uma certa
psiquiatria da época, nem utiliza a abordagem
psicanalítica, permanecendo numa certa “terra
de ninguém, original, humanista”, como escreve
Maria Belo no prefácio à edição de 1987.
O pressuposto filosófico geral é de que “a neurose é o resgate do génio, a consciência amarga da
superioridade intelectual”5.
Um aspecto significativo reside no facto de Laranjeira afirmar que o misticismo não é apenas
de carácter religioso. Ele pode ser laico, com
formas artísticas, intelectuais e, particularmente, político.
Escreve ele, de um modo freudiano muito heterodoxo, que se trata de uma tendência para o
gozo orgânico, mesmo orgástico, cuja forma final
seria um certo tipo de êxtase, em qualquer das
suas diferentes formas. Mais tarde, Emmanuel
Levinas atribuirá a esses momentos e estádios a
designação de “expériences de sommet” (experiências de cume).
Paralelamente, Laranjeira analisa aquilo a que
designa a “psiconeurose da virtude”, uma psicose
de natureza afectiva, que radica no temperamento místico. Este é descrito como uma “tendência
para exagerar as coisas políticas e religiosas” (...)
“uma tendência exagerada para a virtude”6, sendo
a virtude definida como “um estado emocional
que se propõe como fim resolver o problema da felicidade humana”7.
Muitos são aqueles a quem Laranjeira atribui
o temperamento místico, com as virtudes, mas
também os excessos e desequilíbrios que isso implica: Sta. Teresa de Ávila, S. João da Cruz, Pe.
Manuel Bernardes..., mas também Platão, Marco Aurélio, Tolstoi, Maomet e Buda.
Ora as diferenças entre eles são de duas ordens:
por um lado, uma diferença de estrutura, enquanto nuns é a dimensão intelectual que consegue um “apaziguamento psíquico das suas tendências contraditórias”, noutros, essa função é
predominantemente emocional e afectiva; por
outro lado, enquanto nuns a pulsão de vida é
predominante, fazendo deles líderes ou personalidades de grande afirmação social, noutros, a
pulsão de morte conduz a um certo apagamento
ou mesmo isolamento social, como foi o caso de
Manuel Bernardes.
Em todo o caso, trata-se sempre, segundo Laranjeira, de “sob a aparência da renúncia, afirmar
uma técnica de fruição que passa pela sublimação,
no exercício da virtude, do altruísmo e da actividade intelectual, sublimação sempre ligada à ampliação da consciência do mundo interior, com o inevitável estreitamento do mundo exterior”. Como
dizia Sta. Teresa “há almas tão enfermas e acostumadas a estar nas coisas exteriores, que parece não
haver remédio para elas, nem parece que possam
entrar dentro de si”8.
E comentando a densidade possível deste percurso interior, espiritual, nem por todos explorado, Laranjeira refere-se a alguém com quem
privara e que muito admirava: “Unamuno faz-me falta. É uma alma perturbada, um espírito
dramático, como ele diz, “una consciência turbia”
Ibid., p. 34.
Ibid., p. 35.
8
Ibid., p.86.
6
Gil, José, Portugal hoje – O medo de existir, ed. Relógio d’Água,
Lisboa, 2005.
7
4
5
Laranjeira, Manuel, A doença da santidade, p. 16.
149
150
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
– e estes conflitos interiores são para mim um espectáculo emocional raro” (8)9.
É significativa esta interpretação da vida espiritual, que parece estar no extremo oposto da paz
interior. Aliás, o “Diário íntimo”, destaca-se pela
sua escrita dolorosa, própria de uma consciência
turva e atormentada, chegando mesmo a manifestar um certo desprezo pelo outro, que, no
fundo, revela um desprezo por si próprio, que
terminaria no triste desenlace do suicídio.
Como afirma Maria Belo, escapou a Laranjeira
aquilo que Freud buscava e experimentava, e que
ele não entendeu: “que a ilusão de toda a relação
intersubjectiva não impede que seja nessa relação
(ou nessa ilusão) que o homem se faz homem, ao
exprimir-se e tentar comunicar com o outro a todos
os níveis”. Essa experiência “du sommet”, esse momento de cume ou de êxtase, que Laranjeira tão
persistentemente diagnostica e parece perseguir,
provavelmente não existe enquanto aquilo que dá
consistência à nossa vida. “São apenas momentos
felizes ou dolorosos, biombos de uma pequena réstia
da verdade de cada um, que brilha como a luz intermitente de um pirilampo, incontrolável”10.
Creio que a atitude quer emocional quer intelectual em relação ao fenómeno religioso e à espiritualidade em geral assenta, de certa forma, numa
relação de atração-rejeição. Atração enquanto
apelam a uma constante superação do humano,
a uma abertura a um mistério que, apesar da pretensa cientificidade das suas análises, ele pressente
flutuar sempre, qual nevoeiro na orla e no horizonte da realidade. Algo que muito se pressente
na sua obra poética ( “..Aquela doce e mística suicida...”). Rejeição, pois era completamente adverso a qualquer forma de institucionalização dessa
dimensão, bem de acordo com o positivismo da
época e, porque, muitas das manifestações colectivas de religiosidade eram, para ele, claramente
uma manifestação de patologia social, que depois
teria também a sua componente individual. De
facto, as suas análises que, dispersamente procuram definir uma psicopatologia da vivência pessoal e social da religiosidade afirmam muito esparsa
e intuitivamente o que Freud viria a escrever em
1927 em O Futuro de uma Ilusão, e em 1929 em
O mal estar da cultura.
Laranjeira, Manuel, Diário íntimo”, ed. Vega, Lisboa, 1992, pp. 87/88.
Bello, Maria, Prefácio à edição citada de A doença da santidade, p. VIII.
9
10
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Perante isto, é evidente que Laranjeira não seria
receptivo a admitir a consistência ontológica da
graça divina, nem a sua vida se alicerçou na experiência salvífica da vivência da fé, esperança e
caridade. Mas nas suas imprecisões e perplexidades, ou mesmo no seu cienticismo pretensamente regenerador, não lhe podemos negar a ele e à
sua geração, Pascoaes, Pessoa, Cortesão, Leonardo Coimbra, entre muitos, a grande virtude de
nos terem aberto o caminho da inteligibilidade
do homem moderno.
Num mundo de contradições, indefinições, conflitos, autênticas fracturas antropológicas, devemos-lhe o esforço de procurar ser lúcido, tentando nomear, reconhecer, estabelecer novas correlações e, nessa expressão, constituir a sua vida e a
sua morte que, em boa parte, ainda são as nossas.
Manuel Laranjeira, juntamente com os autores que já referi, teve a ousadia de ser um dos
homens, desse fecundo período da nossa História, a interrogar-se sobre a dimensão da espiritualidade a partir de um lugar de cultura de
matriz laica. E isso conduziu-o a ele, e aos seus
companheiros de percurso histórico, à afirmação de formas de espiritualidade com marcas de
heterodoxia, embora sem assumir a radicalidade social e política que, em épocas anteriores,
caracterizaram um Antero de Quental ou um
Eça de Queirós.
O que não deixa de ser relevante, particularmente
no caso de Laranjeira, é uma certa incapacidade
de pensar o “universo da fé” pela óptica da positividade, de uma certa “luminosidade de espírito”,
intrinsecamente constitutiva de uma antropologia cristã. Algo que encontramos de modo muito
evidente em Leonardo Coimbra, por exemplo.
Uma antropologia que, pela sua matriz, será inevitavelmente optimista e assente na esperança.
Mas aqui talvez reencontremos o velho fado do
temperamento lusitano, ao qual raramente não
falta o sentido da solidariedade ou mesmo da caridade, mas que sempre conviveu mal com uma
antropologia assente no optimismo e na esperança. Uma antropologia que coloque em diálogo
cultura e progresso espiritual, conferindo à fé um
rosto voltado para o futuro, não só escatológico,
mas também histórico, cultural e científico. Desta perspectiva holística e abrangente, a lição de
Laranjeira, testemunhada pela sua vida e obra, é
ainda uma referência bem viva e actual.
151
Teresa David
MEDITA Ç ÃO DA AU RO RA
Ao Mestre António Telmo
Mestre,
de pé
com o halo
da Fé
estende-nos
ao vento
o Manto do Céu
na Dita
e Alta Subtileza
da Certeza
Mestre,
da Inteireza,
abre-nos os braços,
fiéis
despertando
do Sonho
com o Coração
de quem espera
a cantar
Nova Esfera
Logo,
revigorados, vibrantes
somos, na Realidade,
construtores e amantes
da Nova Aurora!
diálogos com
JOÃO DE DEUS
1
Textos apresentados no Seminário “Espiritualidade,
Cultura e Pedagogia em João de Deus (14 de Abril de
2012, na Caixa Agrícola de São Bartolomeu de Messines).
1
152
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
O PORTUGAL DE JOÃO DE DEUS
E A ESPANHA DE JOÃO DA CRUZ
Carlos Aurélio
H
oje, 14 de Abril, é com gosto significativo
que venho a S. Bartolomeu de Messines
falar de João de Deus. A data acerta com a terra
natal do poeta conforme o que quero dizer e, o
que digo é isto: vendo como vejo, João de Deus
é uma manifestação humana de pura bondade,
um homem justo, diria um santo, ainda que na
minha terra, o Alentejo, há nos altares um outro
santo seu homónimo, este de Montemor, o qual
palmilhava Granada carregando pobres às costas
enquanto a plebe lhe chamava doido.
Hei-de falar aqui de João de Deus, de judaísmo
e de cristianismo em suas santidades poéticas e,
desde logo, me apraz verificar que para os hebreus a Páscoa, Pessach ou passagem, se comemora no mês de Nissan, a 14, assim hoje, tomando
Nissan por Abril, o que em honesta analogia se
permite. Por outro lado, Bartolomeu, um dos
apóstolos evangélicos, é o nome latinizado de
Natanael, aquele mesmo que Jesus destacou
como «autêntico israelita em quem não há fingimento» (Jo 1,47). Convém que hoje e aqui o
não haja em assuntos tão sérios. Data e local
reúnem-nos portanto sob bons auspícios.
Comecemos.
1. Designei assim esta dissertação: ”Portugal e
João de Deus, Espanha e João da Cruz”. Não vou
fingir: na altura do convite tive que escolher um
título e veio este para me sentir à vontade, podendo discorrer sobre portugueses e espanhóis
e com bastante território para me alargar metaforicamente, o que só por si Camões e Pessoa
já haviam feito, pondo a Ibéria como cabeça da
Europa, Portugal o seu rosto. João de Deus e
João da Cruz, um poeta e um santo, duas formas gémeas de buscar o divino, duas espiritualidades complementares num certo destino ibéri-
co. Mais tarde, viria a descobrir a densidade da
obra diversa, ainda que irmãs, que separa e une
o João de Messines e o outro, o Juan de Yepes,
nascido em Fontiveros, um lugarejo nas serranias de Medina del Campo, em Castela. Estas
almas delicadíssimas, ambas brotaram da aspereza de terras pedregosas e quase isoladas.
Peço a vossa generosidade por antes do poeta eu
me trazer aqui, mas há nove anos foi editado o
meu primeiro livro, o Mapa Metafísico da Europa, e agora convinha que o víssemos, não o livro,
mas o próprio mapa como então o desenhei: de
pernas para o ar, orientado não por oriente/ocidente mas antes norteado pelo eixo norte/sul,
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
sustentado pelo passo elegante de uma bailarina
a dançar sobre as estepes russas, os cotovelos,
um sendo a Itália e outro a Inglaterra, o abdómen, a Alemanha, e o peito a França, tendo por
cabeça a Ibéria e a sua face, Portugal, coroada
com um diadema de pedras preciosas que são
o arquipélago dos Açores polvilhando de luz o
Atlântico que nos fez. O olhar desta bailarina,
dirigido ao oceano austral, coincidia com um
outro que representava a Senhora da Esperança.
Há nove anos e sobre esse mapa assinalei os sefiroth da Cabala judaica, melhor dito, as safiras ou
pedras luminosas da revelação de Deus através
de uma árvore que desabrocha entre terra e céu.
Havia então intuído de que uma certa e subtil
espiritualidade europeia se revelava, não através
das actuais diatribes transitórias e económico-financeiras de Berlim a Paris, mas pelas preciosidades literárias e supremas que cada nação
ou língua tinha produzido. Digamos que, para
conhecermos o que de melhor há no espírito inglês, nos bastaria ler Shakespeare, e no alemão,
Göethe. Mais ainda, dei por mim a perceber a
criatividade sui generis de cada nação, não só
seguindo o veio da sua literatura superior mas
buscando-lhe a expressão viva à volta da sua personagem mais significativa. É que, acho mesmo
que D. Quixote há muito se escapuliu do livro
de Cervantes ou que Fausto cortou o cordão
umbilical que o ligava aos versos de Göethe.
Desde logo, comecei onde a minha bailarina
assentara os pés na Europa, percebendo a grandeza da Rússia através do olhar azul e límpido
do Príncipe Nikolaevitch Míchkin, saído de O
Idiota de Dostoiévski, sem confusão ou ofensa.
Por aqui sondei o Reino/Malcuth, décima e última séfira da árvore sefirótica, nesta verdadeira
Europa enraizada desde os Urais, o que, pressupõe a necessidade fundamental de que não pode
haver construção europeia excluindo a Rússia.
E continuei, vendo sucessivamente no Fausto, a
Alemanha de Göethe, como expressão do Fundamento/Yesod do espírito europeu; em Ulisses,
a Grécia de Homero como Esplendor/Hod e,
em Serafita, nascida de Balzac e Swedenborg a
esfera da Escandinávia, oitava séfira ou a Vitória/Netzah; depois, Jean Valjean de Victor Hugo
significava a alma bela e suprema da França, a
153
Beleza/Tifereth; e o Dante da Divina Comédia era
mais que Dante Alighieri, o poeta de Itália ou
seja, o Rigor/Gueburah, 5ª séfira, tal como o Rei
Próspero de A Tempestade transcendia Shakespeare, sendo a Inglaterra e através dele, a génese da
Clemência/Hesed europeia; chegado à cabeça, vi
na Catalunha da Ibéria e pelo Rei Salomão do
bíblico Cântico dos Cânticos, a semi-séfira que é
o Conhecimento/Daath, expressão do Amor em
Deus; depois, na Andaluzia islâmica e pela Princesa Xerazade d’As Mil e Uma Noites descobri a
Inteligência/Binah em sua alta versão imaginativa; D. Quixote de Cervantes era a expressão
de Castela e da Sabedoria/Hocmah; finalmente,
Camões vivia já como alter-ego do poeta d’Os Lusíadas, Portugal como Coroa/Kether da Europa.
Presunção ou megalomania? Delírio ou ficção
aleatória? O eixo economicista Paris-Berlim em
suas causas e efeitos não seria por certo. E João
de Deus, o que tem que ver? Lá iremos.
Ainda no meu livro e àquelas figuras, personagens ou personas – máscaras gregas através das
quais soa o mistério – a elas, dizia eu, ficcionalmente as coloquei em convívio, conversado e
enamorado, fértil e criativo, em consílio supremo do espírito europeu, todas as onze reunidas
na sala única de uma casinha caiada sobre um
promontório escarpado nas Azenhas do Mar, visão premonitória do futuro que falta fazer. Sempre confiei que dum convívio desta natureza haveria de dar-se maior realização efectiva do que a
procedente dos contabilistas habituais reunidos
em Bruxelas sob o espírito de Maastrich. Trouxe aqui este mapa até Messines porque há nele
uma semi-séfira especial de passagem ou de Páscoa, da qual farei cadinho e metamorfose nesta
minha dissertação: ao Conhecimento ou Daath
fiz corresponder a Catalunha e a espiritualidade
judaica na Europa, se quisermos, o espírito do
Zohar e da Carta Sobre a Santidade, obras emblemáticas da Cabala. A sua personagem viva é
Salomão, sábio rei enamorado pela Sulamite do
Cântico dos Cânticos e que, certa vez, num dos
versículos do Livro dos Reis pediu ao Senhor
um coração sábio.
Retirei do Mapa Metafísico da Europa o seguinte
esquema onde está figurado o que tenho vindo
a dizer, bem como outros rabiscos a lápis que
entretanto fizera (ver página seguinte).
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
As dez séfiras desta árvore são, na Cabala, dez
modos que Deus gerou para se nos revelar, esferas ou atributos divinos que se derramam de
cima abaixo sobre a cria­ção, o Deus incognoscível ou Ain-Soph a dar-se-nos conforme o grau
receptivo que tudo tem. De certa forma e a meu
ver, a árvore sefirótica é sempre e necessariamente analógica da essência da revelação em Cristo, a Cabala corresponde no judaísmo ao que
significa o Novo Testamento no cristianismo:
ambos são o caminho desde o Deus Absconditus
a dar-se-nos em Deus Revelatus, com a diferença
de que os cristãos, pelo Paracleto, sabem que o
Filho do Homem deixou entre nós o Deus vivo
até ao fim dos tempos. Pela Cabala cristã, auxiliada pelos conceitos inerentes ao judaísmo,
se ascende à polaridade de Cristo inteiramente
Deus e transcendente e, pela prática das virtudes
cristãs se reverte ao Cristo imanente e polarizado em sua natureza inteiramente humana. Desta
tensão criativa entre correntes de sentidos aparentemente contrários se percorre a legítima via
crística: a Cabala percorrida pelos dogmas, doutrina e sacramentos cristãos. Aliás, se consultarmos os cabalistas cristãos do Renascimento, por
exemplo Jean Reuchlin, dito Capnion, veremos
que pelo alto simbolismo da letra Schin ( ‫ = ש‬S )
o Santo Nome do Tetragrama (YHWH) revela-se pronunciável ou seja, YHSWH = Ieshua =
JESUS ascende a sonorização do inefável e, não
por acaso, Jesus Cristo irradia da esfera central
da árvore sefirótica, Tifereth, a Beleza.1
Regressemos ao mapa. Nele se encima o triângulo da Península Ibérica, cabeça da Europa, e
que se fundamenta na base da relação de Castela/Hocmah à Andaluzia/Binah, erguendo-se no
vértice superior apontado ao Atlântico, Portugal/Kether. Isto dito, explicitemos mais largo:
a) Castela/Hocmah: aqui reside a Sabedoria divina advinda do inefável, a semente masculina e silenciosa prévia à palavra, a
introspecção meditativa e relação do Tetragrama com o Filho, o cristianismo portanto,
tal como antes o enunciámos. Aqui assenta o
François Secret, Les Kabbalistes Chrétiens de la Renaissance, Arché
Milano,1985, p.49: «Si tu entends le mot YHWH, c’est-à-dire
quand le Tétragramme sera audible, alors le nom Tétragramme
appelé par Scin sera sur toi». Le Tétragramme, afin de pouvoir être
prononcé, doit prendre la consone Scin et donner YHSWH.
1
155
âmago crucial de Castela e da espiritualidade
que lhe dá acesso pela língua castelhana até,
talvez, a sua atmosfera de culto e cultura, a
sua fisicidade geográfica, Quixote e a meseta
árida e manchega, o quixotismo heróico que
é muitíssimo mais que fantasia quixotesca;
b) Andaluzia/Binah: é a Inteligência divina no feminino, a matriz que elabora e
exprime conhecimento directo e infuso pela
imaginação fecundante, ventre onde germina a necessária distinção do mundo vário, a
expressão individual. Pelos cabalistas, nesta
séfira, se estabelece a relação do Deus Elohim e o Espírito Santo. Meditemos pois a
Andaluzia como expressão suprema d’As Mil
e Uma Noites, útero imaginativo da princesa Xerazade, o encanto e a sagacidade, em
suma, o Islão.
c) Portugal/Kether: aqui se estabelece para
a Europa a Coroa de Deus, a esfera suprema
onde radica a árvore celeste, relação íntima
com o incognoscível de Ain-Soph, o mar
imenso sem fim e, quem diz mar, vê saudade e futuro. Tudo aqui se contém e germina,
do mais subtil e misterioso ao nevoeiro de
luz que transcende e ilumina. Corresponde
à ideia de Deus incognoscível que começa a
revelar-se quando dele se escutam as vogais
audíveis que no Sinai formaram o Nome:
EHEIEH = “Sou Aquele Que Sou”. Meditemos Portugal por Camões, a Ilha dos Amores no caminho da Parusia, o cristianismo
que falta fazer, tudo como expressão do V
Império e seu menino imperador.
Ora, Portugal só será futuro, não o de Maastrich
ou Bruxelas, mas por sua especial e inalienável
relação com uma certa tradição judaica e sefardita que, no mapa, se significa na Catalunha, terra
do Zohar e da Cabala medieva, o Conhecimento
pela relação amorosa homem/mulher. Se a Espanha significa o cristianismo bimilenário, Portugal é o que dele falta ser, o da completude dos
tempos. A Catalunha e o judaísmo actualizam
a potência do espírito criador que se move entre o masculino e o feminino, entre Castela e a
Andaluzia, o encanto criativo do Rei Salomão a
partir do olhar oarístico e sedutor de Sulamite,
o Cântico dos Cânticos de onde emana o verda-
156
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
deiro conhecimento humano, Daath: «…e Adão
conheceu Eva» porque o amor, sexual e conjugal,
verdadeiramente conhece. Desta união/tensão
criativa entre a sabedoria viril (Castela) e uma
certa inteligência feminina expressa em imaginação criadora (Andaluzia) estabelece-se um eixo
existencial e imanente a propor um outro, transcendente e vertical: o que do conhecimento amoroso e humano (Catalunha) contempla a proximidade do amor de Deus, reflexo e semelhança
de que a espiritualidade portuguesa é imagem. O
espírito é amor e só o espírito liberta: Portugal só
será, se instrumento da liberdade de Deus entre
os homens, expressão do que venha a ser amar
humanamente em Deus. Daqui, vem Camões e a
Ilha dos Amores. Ora, João de Deus, o nosso poeta
dado ao mundo em Messines, é messias significante deste tipo especialíssimo de relação entre o
Conhecimento e Deus através do amor conjugal,
a conjugação que transcende o jugo do solipsismo egoísta que tanto caracteriza a modernidade.
Reside aqui a semente sacra e a santidade implícita em Daath, santa pelo magno sacramento
do Matrimónio como lhe chamou São Paulo, tão
santa como a que outros atingem por votos perpétuos no sacramento da Ordem. João de Deus e
a linhagem espiritual portuguesa que de Camões
chegou a Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro ou
António Telmo, entre outros, representam em
Portugal o que o sefardismo representa na Europa: a projecção futura de um judaísmo infuso
que será síntese num cristianismo supremo capaz
de atrair e acelerar a Parusia. Quanto a mim, é
isto Portugal como Coroa da Europa, e que, desde a fundação do reino passando pelos Descobrimentos vem sendo espiritualmente encoberto e
desenhado, ou seja, via de redenção escatológica.
Falo de um judaísmo sefardita e infuso em João
de Deus como algo sanguíneo e instintivo, ao
modo inconsciente como já o é na maioria dos
portugueses assimilados de cristãos-novos. Nada
em João de Deus permite detectar qualquer
laivo de judaísmo devocional, nem sequer de
cripto-judaísmo, ele que sempre se assumiu claramente como cristão e católico.
2. Aplanada a terra, semeemos. Ser santo, numa
certa forma e limite, é conhecer Deus, tanto quanto o pode aqui afirmar a impureza de quem viven-
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
cialmente ignora a santidade. Na antiguidade clássica passava o arquétipo da perfeição humana pela
figura do herói e, daí, vieram Hércules, Heitor
e Aquiles, ou depois e já “certificados” historicamente, Alexandre Magno, Júlio César ou Aníbal
Barca. Não será estranho admitir neste modelo –
o do herói – a sua intrínseca relação com o corpo,
tal como o vemos idealizado na escultura grega,
seja na helenística, seja na arcaica quando, através
da imagem do kouros, admiramos a imagem heróica do homem perfeito, sóbrio e feliz, penetrando os Campos Elíseos, escapado ao Hades e sem
que o absorva o mundo das sombras.
Já no cristianismo o arquétipo ascende ao de
santo, a perfeição da alma pelo caminho das
virtudes que significam exactamente virilidade heróica e daí, Santo Agostinho e Tomás de
Aquino, Joana d’Arc e São Nuno de Santa Maria, mais ainda São Francisco de Assis.
Desde a modernidade e pela idealidade paralela
à revolução francesa alterou-se o modelo de perfeição para o de sábio, supostamente porque a
intelecção, confundida com o espírito, ganhou
escala de superioridade e, daqui, nos chegaram
Darwin, Freud ou Einstein entre muitos outros
que constam da lista Nobel. Como parêntesis,
apetece dizer que algo de grave vai descendo em
plano inclinado, pois ao infra-humano iremos
chegar, senão, como veríamos vencer o modelo
da infernal gente do rock, o mesmo para os gangsters legitimados pela política?
E, todavia, só por ilusão poderemos fazer corresponder ciência de intelecto a santidade de alma,
pois o que verdadeiramente move a perfeição
humana não é a massa cerebral, mas mais intimamente, é esse não-sei-quê inefável que designamos por amor – o amor que move as estrelas, como disse Dante – e cuja morada fazemos
coincidir em linguagem simbólica no coração.
O homem atlético (corpo) e o homem mental
(cabeça) são duas evasões modernas que precisam ser recentradas no coração ou na alma, que
é onde tudo verdadeiramente se decide quanto
à alteração da natureza das emoções. Sem isso,
nem o herói nem o sábio se aperfeiçoam, ambos
se amputam da irradiação formadora da alma. É
desta acepção que os autores lusos têm contemplado a Coroa espiritual que nos transcendentaliza e, por aqui, lembro Camões e o conceito
de lusíada ou contemplativo do amor, Álvaro
Ribeiro e “razão animada”, Agostinho da Silva e
“o português como poeta à solta”, António Telmo e “a vida poética”. Por esta via, o sábio do
futuro só o será em seu reencontro heróico com
a santidade, os três centros trazidos ao reflexo do
motor imóvel que é a alma cordial ou amorosa,
a trindade modelar do puro arquétipo humano
anterior à queda adâmica. Por aqui iremos em
busca do mistério poético de João de Deus.
3. A Gramática Secreta da Língua Portuguesa
(1981), obra de António Telmo, trouxe para a
ordem da linguística e da fonética, ainda antes
de O Bateleur (1992), a analogia entre a Cabala e a estrutura dos elementos consonânticos e
vocálicos da língua portuguesa. Nessa obra, Telmo indicou similar estrutura que João de Deus
estabelecera para os fonemas pátrios repartidos
em 19 articulações (consoantes) e 15 vozes (vogais), afirmando mesmo que o modelo seguido
pelo pedagogo da Cartilha Maternal era o do
Sepher Ietsirah «livro [da Formação] que, com o
Zohar, constitui a principal escrita da doutrina
secreta hebraica».2 Segundo esta árvore fonética
António Telmo, aos quatro mundos cabalísticos
– Aziluth/Emanação, Beriah/Criação, Ietsirah/
Formação, Asiah/Fabricação –, fez corresponder
as quatro formas distintas de articular na boca as
consoantes: de maneira explosiva (seja no palato, lábios ou dentes) ou então de forma soprada,
líquida ou vibratória. Sendo a terminologia de
João de Deus algo distinta – nele as consoantes
repartem-se em vozes, tons e sons, as “proferíveis” e no modo das “improferíveis” – não deixa
de ser muito próxima, portanto, desta arrumação quaternária da Cabala. Todavia, modestamente me parece, que o poeta da Cartilha estará longe dos conceitos cabalísticos, pelo menos
conscientemente, antes habita nele de forma
infusa e amorosa o conhecimento interior da língua pátria que aqui convém confirmar materna.
João de Deus conhece intuitivamente pela via de
Daath, ama os fonemas portugueses como Salomão Sulamite, em sabedoria enamorada de inteligência íntima, em oaristo encantatório perante
os sons. Ele contempla a língua portuguesa em
António Telmo, Gramática Secreta da Língua Portuguesa, Lisboa, Guimarães Editores, 1982, p.55.
2
157
símile da sarça-ardente escutando o Deus de Kether: EHEIEH, “Sou Aquele Que Sou”, em eco
desde o “Ai Deus y u é” das flores do verde pinho
cantadas pelo nosso velho trovador Dinis.
João de Deus e António Telmo, o poeta e o filósofo, ambos significam na cultura portuguesa
este enamoramento fundador do múltiplo expressivo contemplando o uno e a origem, a multiplicidade elementar da criação face ao mistério. Ambos são da linhagem lusa cujo rio irrompeu em Camões: João de Deus pela busca do
ritmo mais natural à fonética portuguesa, avesso
a modismos falsamente intelectuais, penetrando a sensibilidade desde o português culto ao
mais humilde; António Telmo pelo pensamento
em simultâneo elíptico e subtil, certeiro e encantatório, no reencontro nodal com a Ilha dos
Amores camoniana, paraíso de redenção escatológica da alma lusa. A seu modo, ambos buscam
incessantemente a contemplação do divino pela
via amorosa e conjugal, a qual podemos sondar
inscrita pedagogicamente nesse extraordinário
livro da Cabala medieval e peninsular que é a
Carta Sobre a Santidade.3
E João da Cruz? Esse frade carmelita e descalço que os seus irmãos calçados tanto fizeram
padecer! Se João de Messines habita Daath em
judaísmo infuso e num cristianismo criativo de
futuro libertador, Juan de Fontiveros significa a
relação tensa e fecunda entre o cristianismo antigo, pleno de paixão austera, com a atmosfera
de imaginação islâmica vivida no medievo Califado de Córdova, afinidade que liga cruzadas e
reconquista na integridade heróica dos santos,
El Cid e D. Quixote, uma reserva que o devir
não pode ignorar. Sem essa relação a flecha lusíada partirá frouxa, sem que se possa perder a
si própria como convém aos longes do futuro.
O eixo Castela/Andaluzia é a corda retesada do
arco, enquanto a Catalunha está pela cauda da
flecha repuxada atrás. O voo, lusíada será. João
da Cruz, não o esqueçamos, é também o poeta contemplando a natureza, pedregosa, sóbria
e por isso poderosa, sondando misticamente o
esplendor cósmico enraizado em seu Cântico Espiritual. Se João de Deus busca o divino na casta
3
Lettre Sur La Sainteté (La Relation de l’Homme Avec Sa Femme), Éditions Verdier, 1993; Joseph Gikatila, Carta Sobre a
Santidade, Al-Barzakh, 2011.
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Cultura
vida conjugal, e casta significa pura, isto pela sua
esposa e filhos amados, já João da Cruz sobe à
pureza dos montes para que, entre pedras e regatos, pássaros e arbustos, contemple a família
das criaturas de Deus, qual Santo Elias como lhe
chamam os carmelitas, antes de arrebatado pelo
carro celeste no mistério do Carmelo. Ambos
são poeticamente famintos de conhecimento
directo de Deus, um pelo sacramento do Matrimónio, o outro pelo da Ordem, um vê o divino
nos olhos da mulher, o outro vê a mulher pelos
olhos de Deus, imanência e transcendência.
4. Concluamos, embora devagar. A língua castelhana, forte e heróica como Quixote, forma
a atmosfera propícia a João da Cruz, o Juan de
Yeppes que, a seu modo, abraça a contemplação
divina frente ao Calvário e ao crucifixo. Toda
uma carga plena de entrega e heroísmo humano aqui se descarrega, inerente a uma certa
Igreja combatente tão característica de Espanha,
fiel e frontal, seja no militar que fundou uma
Companhia militante por Jesus, seja no intrépido fundador da Opus Dei: Inácio de Loyola
e Josemaría Escrivá, dois homens que são duas
figuras em pedra ou em terracota, ressequidos
pelo sol da meseta, dois iluminados projectando sombras. Em sentido similar de entusiasmo
vibrante, pleno de fé infinita, já este modo o
assinalara D. Quixote, qual derradeiro cavaleiro medievo crucificado a sós e montado no seu
velho Rocinante, meseta ibérica adentro, talvez
em regresso saudoso às suas origens berberes, aos
desertos e ao Magrebe, tal como o fazem os elefantes moribundos savana fora.
Somos sempre parte do que amamos e também
do que odiamos e, talvez, a pujante cultura espanhola que até inventou um Santiago Mata-Mouros, tente ignorar o que nela habita de islâmico. E, todavia, até para pronunciarem o Santo Nome de Jesus recorrem os castelhanos à letra
“J” em modo claramente fonetizado pela influência árabe, tal o ouvimos similar na expressão
de “Allah-u-Akbar” e repercutido no flamenco
andaluz do cante jondo. O “J” castelhano, consoante fricativa velar e surda pela designação dos
foneticistas, é um som arrancado à garganta, diremos nós, e não tem correspondente na língua
lusa, tão branda em seu suave mar de ditongos.
para o
Século XXI
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Pronunciar “viejo” ou “rojo”, “Jesus” ou “juez”,
castelhanamente, implica aspirar desde o fundo
gutural, arrebatando do abismo da garganta e da
alma até que tudo se perca no palato ou no céu,
trazendo as entranhas à tona da vida, espiritualizando uma vibração, subtilizando o denso. A
pedido, nós portugueses, fazemo-lo, enquanto
neles, o nosso “ão” nasalado seja em “João” ou
em “cão”, lhes fica perto do impossível.
A língua portuguesa guarda a doçura dos ditongos tornando “la luna y la noche” mais doces
quando levantadas em “lua e na noite”, exprime uma variedade espantosa em sons de vogais,
abertos ou mudos, nasalados ou breves, também
em sons consonânticos a modelarem-se em quase vozes ou semi-vogais. Quanto a mim, é desta
larga amplitude fonética que o ouvido português, porque cultivado em inúmeros sons desde
o aprendizado infantil, faz eclodir o nosso proloquial jeito para as línguas, ao invés da língua
castelhana onde predominam os sons abertos e
quase fixos, a pronúncia sincopada. Quando um
espanhol não diz bem as nossas palavras ou as
dos outros, não é defeito ou feitio, é inevitabilidade. Digo mais, esta nossa riqueza fonética que
de qualquer português faz um poliglota, sempre
a vi em analogia com a nossa paisagem, vária
em tão curta terra, modulada como as nossas
atmosferas, meridianas ou marítimas, solarengas
ou aquosas. Entre tanta neblina até os azuis dos
nossos céus do interior são mediterrânicos, sem a
rigidez da meseta ibérica, na qual, a fonética das
gentes se abre forte e sonante, solar e inequívoca. O génio das línguas peninsulares tem muito
de tudo isto, interpretando os sentidos íntimos
germinados de sensações, trabalhando diferentemente a mesma argila que foi o latim através da
“mão” do povo e dos poetas, dos cantares e dos
ritmos, fabricando em olarias distintas.
Outra característica interessante da fonética
lusa, talvez na continuidade suave e lunar dos
ditongos, é a proliferação dos sons associados ao
“x” e seu derivado “ch”, a troca entre o “v” e o
“f ”, ou a frequência do uso do “s” sibilino, tudo
no campo das consoantes sopradas. É relevante
destacar que na sua Gramática, António Telmo
coloca o “j” e o “x”, ambos em Tifereth, a Beleza, séfira por excelência do mundo da criação
e relacionada com Jesus Cristo. Digamos que a
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Espanha é cristã pelo “j” com o que isso implica
de islamização e Calvário, enquanto Portugal é
cristão pelo “x” com o que nele se significa de
judaização, messianismo, ressurreição e Parusia.
O interior mas, principalmente, o que da Beira-Baixa vai até Trás-os-Montes, é a terra por excelência da diáspora judaica em Portugal e o que
dela resultou em sua mistura realizada com os
portugueses. Aliás, estudos recentes dão o impressionante número de que cerca de 30% dos
nossos habitantes são de sangue judeu. Ora, é
naquela região do interior, mormente na Beira
Alta, que mais encontramos o som do “x” ou a
pronúncia de sons sibilantes e sopros consecutivos, como se fosse uma língua ciciada tendo o “s”
como vector preponderante. Precisamente isso
nos coloca em similar característica na linhagem
fonética e semita dos judeus, tal como mostram
muitos exemplos de sabor bíblico: shemah (escuta), shalom (paz), berechit (princípio), kadosh
(sagrado), Kadosh-Kedoshim (Santo dos Santos),
Shir-Haschirim (Cântico dos Cânticos), shem
(nome). shemen (perfume), Shelomô (Salomão).
A Espanha levanta-se portanto como primado
da fé, seja pelo islão ou pelo cristianismo antigo, irmanando em similar sensibilidade religiosa
Ibn Arabi e São João da Cruz, sendo que, toda a
sua atmosfera telúrica e espiritual se harmoniza
na língua, enquanto Portugal tem a sua âncora
como lugar metafísico da esperança que é sempre
saudade do futuro. Aqui se significa a superior
síntese que virá da ancestralidade judaica com
um cristianismo adventício da Parusia, a caridade
que há-de vir de uma linhagem onde percebemos outra coloração de “santidade” mais aberta:
de Santo António à Rainha Santa, de Camões a
Agostinho da Cruz ou a João de Deus. O Amor,
excelsa caridade, por aqui virá. O santo enorme
que é João buscou a “Cruz” a vida inteira, enquanto o nosso João já nasceu… de “Deus”.
A conclusão persiste e demora. O lirismo português que tanto caracteriza a nossa poesia permite recriar pela lira os sonetos de Camões a partir
da Ilha dos Amores, como se o poeta lá os tivesse criado, ascendendo assim o Amor a epopeia,
transformando a viagem marítima do Gama
para a Índia em viagem interior dos heróis ou
contemplativos do Amor, os lusíadas. Esta é a
metanóia que os portugueses guardam para a
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humanidade, um caminho casto pela via amorosa e conjugal. Não esqueçamos que na Ilha
os nautas casaram com as ninfas: «As mãos alvas
lhe davam como esposas/ Com palavras formais e
estipulantes/ Se prometem eterna companhia/ Em
vida e morte, de honra e alegria» (IX,84), longe portanto do desregramento libidinoso que
os leitores apressados fantasiam. Precisamente,
exemplo vivo desta metanóia pelo caminho do
magno sacramento do matrimónio foi o de João
de Deus, João da Cruz pelo sacerdócio, ambos
libertos em suas vidas intrinsecamente poéticas.
Para quem aprouver proponho leitura atenta
e enriquecedora da única biografia que conheço do nosso vate de Messines: João de Deus,
L’Homme, le Poète et le Penseur, edição de 2001
da Escola Superior de Educação que traz o
nome do próprio poeta. É sempre preciso ser
um estrangeiro a dizer o que melhor somos. Ao
caso, Charles Oulmont descreve com relatos e
documentos um João de Deus absolutamente
bondoso e convivial, generoso e viril, amante
e nada egocêntrico ou falsamente sociável. Ao
invés de uma certa intelectualidade que nos chegou do século XIX e hoje prepondera, o nosso
poeta não precisou de ser desregrado sexualmente ou boémio, não se exibiu narcisicamente
para viver a arte, o pensamento e o amor. Por
isso digo que à sua maneira foi um santo, e nos
dias de hoje, um santo que convém, de tal modo
matrimonialmente se vem trocando o certo pelo
errado. Os relatos da época confirmam que o
poeta quase não lia jornais, possuía biblioteca
curta e austera, lendo e relendo em profundidade, entretinha-se a tocar harmónica e vestiu capote algarvio nas pouquíssimas vezes que aguentou a vida política parlamentar. Amiúde viajava
pelos arredores de Messines montado em mulas,
auxiliava os pobres, era um marido apaixonado,
um pai dadivoso e, num pormenor factual se
aproximou do carmelita descalço que foi João
da Cruz: certa vez talvez distraído, aquando da
visita de um amigo, ficou sem poder sair de casa
porque acabara de oferecer a um mendigo o único par de botas.
Deveríamos também reler com pausa e em ritmo campestre a obra deste poeta e que bem certifica o que vimos dizendo, aliás fraternalmente
reunida por Teófilo Braga ainda «sob as vistas do
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Cultura
Autor» e com o título de Campo de Flores, dada a
público em 1898. Que campo e que flores! Vasto e variado, lírico e profundamente português
em sua naturalidade escorreita e de aparência fácil, tudo nesta obra conflui para o diálogo amoroso, um conhecer-se olhos nos olhos entre duas
almas que o amor une e aflora até ao divino: «e
Adão conheceu Eva», eis a contínua marca lusíada desde D. Dinis a Camões, do nosso cancioneiro popular a João de Deus, eis a redenção em
espiritualidade cristã e portuguesa.
Para experimentarmos esta harmonia dedilhada em música amorosa até Deus, teríamos que
reler entre muitos outros os versos de No Leito
Nupcial (Tocar que ímpio se atreve / No que
é sagrado assim?), o poema Encanto (Como a
luz de um olhar teu / É uma bênção do céu!)
ou Num Álbum (É na face das belas mulheres
/ Que eu só vejo o bom Deus retratado). Ou
ainda recordarmos a morte de Raquel (Imagem
sua, Deus não volve ao nada) ou de Marina (É
esta vida um mar…), depois da leitura deglutida
de Casto Lírio (Meu casto lírio, / Terno delírio,
/ Glória e martírio / Do meu amor! / Amo-te
como / A haste o gomo, / O lábio o pomo, / E
o olho a flor.). Ou então, entregarmo-nos à saudável diversão de fino humor efabulado no Leão
Moribundo ou na doçura mordaz de Marmelada.
E quem não lembra o Dia de Anos: «Com que
então caiu na asneira / De fazer na quinta-feira
/ Vinte seis anos! Que tolo! / Ainda se os desfizesse… / Mas fazê-los não parece / De quem
tem muito miolo!», isto quando as boas selectas
de língua materna nos davam poetas em vez de
jornalismo desportivo. Também nos poderíamos
enlevar em poemas absolutamente reveladores
do seu catolicismo: Oração, Padre Nosso, No Templo, Maria ou Crucifixo; ou do seu fundo bíblico:
Salmo 136, Provérbios de Salomão, Do Livro de
Ruth e uma das suas versões livres mais conhecidas sobre o Cântico dos Cânticos de Salomão, obra
emblemática da santidade matrimonial.
João de Deus é de estirpe simples e telúrica,
sensível e natural, vem na descendência desses
que Camões fez nautas do Gama, assim como
Leonardo ou Veloso desembarcados em pleno
século XIX e chegados da Ilha dos Amores. É
por isso que neste homem nascido entre a pedra
vermelha de Messines descobrimos o ritmo do
para o
Século XXI
remador, ondulante e português, marítimo e suave, dadivoso quase sempre, bravio só para que
o riso amaine a indignação em ventania. O seu
Campo de Flores é um mar alto repleto de música: odes e canções, cançonetas, elegias, idílios e
cânticos, tudo colabora em harmonia de esferas
humanas e cósmicas.
Tudo nele conduz ao amor pela mulher, e dela,
a Deus, como que antepondo a suprema natureza entre o humano e o divino. A alma lusa não
hostiliza ou prescinde da natureza, antes tudo
integra em Deus, ao invés de outros que inferiorizam o natural caindo em misticismo seco
e abstracto. Digamos que o espírito português
religioso se orienta medularmente pela Virgem
Maria em seus Mistérios Gozosos, enquanto
outros, talvez complementares, contemplem os
Mistérios Dolorosos. Dito rasteiramente sem
cair em grosseria: o português é imbuído de
escala humana e, ao desejar redimir o mundo,
jamais esquece de levar o seu gato ou o seu quintal para a eternidade. Não resisto a uma citação
do autor biógrafo de João de Deus – Charles
Oulmont – que, por sua vez cita Eça, tudo em
francês, que de outra forma infelizmente não
encontrei: «Eça n’a pas besoin de l’aveu de João
pour savoir qui rien ne l’intéressait comme poète s’il
n’y avait pas ces deux thèmes: la femme et Dieu –
«Il demeura toujours étranger à son siècle fécond et
revolté, sinon par son intelligence, du moins par le
sentiment. Ni la terrible dislocation des classes, ni
les illusions humanitaires de la Démocracie, ni la
conquête violente des Droits Politiques, ni l’oeuvre
grandiose de la science expérimentale, ni les audaces de la mécanique, ni la révolution social, ni la
révolution spirituelle ne parvinrent à tirer un son
de sa lyre amoreuse et sacrée».4
Agora se percebe porque o ignora tanto a modernidade. Não lhe façamos nós tamanha injustiça e bem hajam os messinenses por nos fazerem devedores de tão grande poeta.
Charles Oulmont, João de Deus, L’Homme, Le Poète et le Penseur, Lisboa, Escola Superior de Educação, 2001, p.67.
4
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
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JOÃO DE DEUS E RAUL XAVIER: O POETA E O ESCULTOR
Maria Leonor Xavier
João de Deus: o “lírico suavíssimo”
Cartas de torna-viagem é o título de dois volumes de artigos de Eugénio de Castro, o primeiro
publicado em 1926, e o segundo, em 1927. O
escritor esclarece assim o título dos dois volumes:
«De torna-viagem se chamava antigamente aos
vinhos generosos que, de Portugal exportados para
o Brasil e não tendo lá encontrado colocação remuneradora, voltavam à pátria, onde as bocas e
as narinas experimentadas neles surpreendiam
considerável aumento das suas melhores e mais características virtudes, sabor e perfume. – […]. – As
cartas que constituem este volume foram escritas
em português para um dos maiores periódicos do
globo, La Nacion, de Buenos Aires, e aí publicadas
em espanhol. São cartas, pois, que como o vinho
de torna-viagem, foram do Velho ao Novo Mundo, donde, depois de lá terem sido vertidas para
a língua de Cervantes, voltam aos pátrios lares e
aparecem em público na sua forma primitiva.»1
Nas suas cartas, escritas em Coimbra, o autor
procura dar a conhecer Portugal à Argentina,
através de pessoas e lugares da sua memória afectiva e cultural. Entre os portugueses evocados,
contam-se os pintores Carlos Reis2 e António
Carneiro3, o escultor Teixeira Lopes4, o escritor
Eça de Queiroz5, e, em maior abundância, poEugénio de Castro, Cartas de torna-viagem, Primeiro Volume,
Lisboa – Porto – Coimbra – Rio de Janeiro, «LVMEN» Empresa Internacional Editora, 1926, pp.7-8.
2
Idem, “Uma família de artistas”, in op. cit., Primeiro Volume,
pp.123-139.
3
Idem, “O pintor António Carneiro”, in Cartas de torna-viagem, Segundo Volume, Coimbra, “Atlântida” Livraria Editora,
1927, pp.35-45.
4
Idem, “O escultor Teixeira Lopes”, in op. cit., Segundo Volume, pp.83-97.
5
Idem, “Os livros póstumos de Eça de Queirós”, in op. cit.,
Primeiro Volume, pp.273-283.
1
etas, como Guerra Junqueiro6, Cesário Verde7,
João de Deus8 e Júlio Dinis9. Esperava Eugénio
de Castro que a viagem de retorno a Portugal
desse mais sabor às suas cartas, como acontecia
com o vinho de torna-viagem. De facto, assim
sucede hoje na nossa redescoberta dessas cartas
cujo sabor se apurou ainda mais pela viagem de
amadurecimento ao longo de muitas décadas.
Adoptámos, por isso e em especial, a mediação da
carta de Eugénio de Castro sobre João de Deus,
para esta nossa evocação do autor da Cartilha
Maternal. Trata-se de um testemunho vívido e
afectivo de um poeta acerca de outro poeta, a
quem conhecera e admirara pessoalmente, e que
Idem, “Sabugosa e Junqueiro”, in op. cit., Primeiro Volume,
pp.9-21.
7
Idem, “Cesário Verde”, in op. cit., Primeiro Volume, pp.87-102.
8
Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, pp.47-66.
9
Idem, “Júlio Denis, poeta”, in op. cit., Segundo Volume,
pp.177-187.
6
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
obtém, hoje, um sabor raro, tal como o vinho de
torna-viagem, que nenhuma abordagem erudita
ou académica pode repetir.
A carta de Eugénio de Castro, intitulada “João
de Deus”, data de Fevereiro de 1926 e assinala
a efeméride dos 30 anos volvidos sobre a morte
do poeta-pedagogo, ocorrida a 11 de Janeiro de
1896. Desse modo, o autor procurou contrariar
o esquecimento da efeméride no Portugal de então, registando uma memória pessoal e abrangente do poeta nascido a 8 de Março de 1830
em S. Bartolomeu de Messines. Com efeito,
Eugénio de Castro dá-nos um retrato de João de
Deus a quatro dimensões: o poeta, o político, o
pedagogo e o polemista.
A primeira dimensão é a poesia e ter-se-á começado a manifestar nos seus tempos de Coimbra,
para onde João de Deus foi estudar Direito em
1949 e onde permaneceu até 1862. Só em 1868
começou a publicar a sua poesia, nos livros Flores
do Campo e, posteriormente, Folhas Soltas (livros
que estão na base da antologia Campo de Flores,
publicada em 1893). Deus e a Mulher são os motivos maiores da sua poesia. Eugénio de Castro
escolheu alguns poemas de João de Deus para
ilustrar a sua obra poética: desde logo, o poema
“Adoração”, que diviniza a Mulher e sublima a
sua atracção; o poema “Descalça”, que, em sentido inverso, canta a sensualidade da Mulher,
reduzida pela pobreza aos seus dotes naturais; o
poema “Boas Noites”, que canta a virtude da Mulher, numa lavadeira que resiste à sedução de um
caçador; mas também, por outro lado, o poema
“Militarão”, que exemplifica a poesia de humor,
uma vertente não despicienda do poeta algarvio10. Por sua vez, a prosa poética de Eugénio de
Castro sintetiza assim a personalidade do poeta:
«João de Deus, o lírico suavíssimo, que, cantando
Deus e a Mulher, parecia elevar-se imponderavelmente da terra, como São Francisco de Assis
pairando sobre as águas, e atingir as cumieiras
onde chega o perfume dos rosais celestes, João de
Deus aliava a um extraordinário poder de idealização uma agudeza, não menos extraordinária,
de observação.»11
Estes traços de personalidade não se combinaCf. Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume,
pp.54-60.
11
Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, pp.64-65.
para o
Século XXI
ram, porém, de molde a prover ao poeta uma
carreira política bem sucedida no mundo real.
De facto, foi curta e desencantada a passagem
de João de Deus pela política, que Eugénio de
Castro descreve assim:
«Em 1868, por iniciativa de alguns amigos, que
muito esperavam da sua eloquência natural e
abundante, foi João de Deus eleito deputado pelo
círculo de Silves. A decepção que então sofreu,
bem pode comparar-se à de um anacoreta, que,
vindo da solidão ao mundo e querendo entrar
num convento, entrasse por engano numa tavolagem. – João de Deus deixara-se eleger e aceitara
o diploma de deputado, não só pelo espírito de
condescendência com que passivamente procurava satisfazer todas as solicitações que lhe eram
dirigidas, por mais estrambólicas que fossem, ficando muito pesaroso por não poder dar a lua,
se alguém lha pedisse, mas também pela ingénua
ideia que ele fazia da política e dos políticos, julgando que estes eram, sem excepção, inteligentes e
incorruptíveis servidores da Pátria, e aquela uma
augusta divindade sempre absorvida no bom governo da nação.»12
Foi, portanto, na década de 60 do séc. XIX, que
João de Deus emergiu na vida pública, como
lírico e deputado. Não o conhecera, nessa época, o poeta Eugénio de Castro. Quando este o
conheceu, a meados dos anos 80, encontrou-o
a viver com dificuldades, conforme denunciam
pormenores peculiares da seguinte descrição:
«Quando o conheci pessoalmente, em Outubro de
1885, João de Deus, que já então tinha quatro filhos, vivia modestissimamente no primeiro andar
duma casa do Alto do Penalva, tão acanhada,
que a banheira familiar, não encontrando colocação noutro aposento, teve de ser instalada na
cozinha, onde, para não estorvar a cozinheira, foi
suspensa por uma corda, e içada no ar, como a
lâmpada dum santuário.»13
Nessa época já a actividade poética de João de
Deus havia cedido o passo à dimensão de pedagogo, como autor da Cartilha Maternal. Todavia, o novo método de leitura, que viria a substituir, em 1888, o Método Repentino, de António
Feliciano de Castilho, em vigor desde 1853, não
10
12
13
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, pp.58-59.
Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, p.61.
teve logo aceitação fácil, pois vinha alterar hábitos instalados na aprendizagem da língua. João
de Deus teve, por isso, de sair à liça do debate
público para defender o seu método de leitura,
o que lhe valeu ainda a dimensão de polemista.
Esta dimensão cumpriu-a o pedagogo também
como poeta, através múltiplos epigramas satíricos, cuja subtileza levou o outro poeta, Eugénio
de Castro, a dar a seguinte metáfora:
«Quando o atacavam, este rouxinol defendia-se
briosamente com o seu biquinho afiado, cujas picadas não matavam mas contundiam.»14
O suplemento “letras e artes” do periódico Novidades, de 11/ 05/ 1941, recorda a polémica em
torno da Cartilha Maternal, e reporta algumas
palavras em prosa do poeta-pedagogo em defesa
do seu método. Este considerava-o o autor tão
intuitivo que a sua descoberta fora menos laboriosa do que a invenção da sua poesia:
«É natural e intuitivo. Nenhuns versos meus me
levaram menos tempo do que este plano de ensino,
nem podia levar.»; tão natural que: «Saiu-se com
esta resposta a um amigo, que se mostrava admirado de que tão simples solução (a do seu método)
não tivesse antes surgido em outra pessoa: – Então
que quer você! Por estar muito perto do nariz é
que não viam.»15
Sendo natural e intuitivo, o método poderia ter
sido descoberto por outros, pelo que poderia
não ser novo, mas era original, conforme o defendeu afincadamente o seu autor, porque este
não o copiara de outro. Assim se posicionava
João de Deus na questão da novidade e originalidade do seu método de leitura.
Finalizamos esta evocação, relevando três traços
que vincadamente moldavam a personalidade
de João, segundo o testemunho caloroso, mas
não acrítico, de Eugénio de Castro: a “indolência, filha da abstracção contemplativa”; a larga
generosidade; e a mansa fortaleza.
Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, p.64.
Palavras do poeta-pedagogo, citadas em: M. Vaz Genro, “Polémica ruidosa. A Cartilha Maternal de João de Deus, julgada
por alguns mestres da pedagogia”, Novidades (11/ 05/ 1941).
Para este artigo, o autor consultou na Biblioteca Nacional os
dois volumes – Cartilha Maternal e o Apostolado e Cartilha Maternal e a crítica – que haviam pertencido à Companhia de Jesus
por oferta, respectivamente, de João de Deus (1º vol.) e do seu
filho João de Deus Ramos (2º vol.).
14
15
163
A “indolência”: «A sua indolência, filha da abstracção contemplativa, em que quase permanentemente se deleitava, tornou-se proverbial,
e por ela se explica que o Poeta só ao fim de
dez anos conseguisse alcançar a carta de bacharel formado, que então, como ainda agora, geralmente se conquistava, sem grandes canseiras,
num lustro. A esse facto aludia João de Deus,
dizendo que a sua formatura tinha durado tanto
como a guerra de Tróia. – Havendo concluído
os seus estudos, como gostasse de Coimbra,
onde aliás nenhum motivo ponderoso justificava o prolongamento da sua permanência, e
como o arranjo da sua mala lhe parecesse um
negócio de dificílima solução, em Coimbra se
deixou ficar, e aqui viveu mais três anos, até que,
em 1862, saudoso dos seus, abalou para casa,
mas fazendo tão lentamente a viagem que só lá
chegou anos depois.»16. Após a breve experiência
de deputado: «João de Deus fugiu do parlamento, mas, sempre escravo da indolência, em vez
de regressar ao seu cantinho natal, onde a vida
lhe seria mais fácil e mimosa, em Lisboa ficou e
em Lisboa se enraizou tão profundamente, que
nunca mais de lá saiu.»17
Filha da “indolência” proverbial de João de Deus
foi a afeição com que ele se arreigou aos lugares
que habitou, e que o tornou um coimbrão acidental e, por fim, um definitivo lisboeta.
A larga generosidade: «Uma vez, como eu o desafiasse para um passeio no jardim da Patriarcal
Queimada, que ficava a dois passos da sua casa,
e onde íamos a míude, João de Deus desculpou-se com a maior franqueza: – Hoje, não pode
ser, porque estou sem botas.»18. As botas que tinha, tinha-as dado na véspera a alguém que lhe
aparecera quase descalço.
A mansa fortaleza: «Fortalecido pela melhor das
filosofias, a sua conformidade resistia mansamente à fatalidade das coisas, por mais desvairada que esta fosse»19
Se a larga generosidade do poeta era aquela misericórdia bíblica dos justos, se a sua mansa fortaleza
era aquela sabedoria prática dos antigos filósofos,
e se a sua proverbial indolência era aquela voEugénio de Castro, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, pp.53-54.
17
Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, pp.59-60.
18
Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, pp.61-62.
19
Idem, “João de Deus”, in op. cit., Segundo Volume, p.61.
16
164
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
cação contemplativa que prendia ao mosteiro e
desprendia dos interesses mundanos os monges
medievais: bem se pode dizer que João de Deus
era um homem de outros tempos. Não queremos mitificar o poeta João de Deus, no reino
da competitividade e da exclusão, que é o tempo contraditório que atravessamos. Através da
escrita poética de Eugénio de Castro, quisemos
apenas evocar o poeta que incarnou nobres ideais
humanos e amou a língua portuguesa.
Ainda que tantas vezes esquecido, João de Deus
não deixou de ter reconhecimento público, mesmo para além do seu próprio tempo. Dada a importância do poeta na nossa memória cultural, o
Estado português erigiu-lhe o monumento que,
sob concepção do escultor Raul Xavier, foi implantado na terra natal do poeta, S. Bartolomeu
de Messines, em 1964.
Raul Xavier: o “escultor da serenidade”
Por dois anos João de Deus e Raul Xavier partilharam o mundo dos vivos, uma vez que o
escultor nasceu em 1894 (23 de Março), dois
anos antes da morte do poeta. Todavia, não se
cruzaram em vida, pois o poeta vivia em Lisboa
quando o escultor nascia em Macau. Raul Xa-
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
vier era filho e neto de portugueses que casaram
com chinesas, provindo assim dos cruzamentos de sangue e de cultura que os portugueses
assumiram com outros povos do mundo. Por
isso, e mesmo depois de se ter tornado escultor
português em Portugal, Raul Xavier foi um artista “lusófono”, podemos hoje dizê-lo, embora
o termo não se usasse ainda no tempo da sua
vida. Se, por um lado, o escultor nunca menosprezou as suas raízes orientais, por outro lado,
foi na cultura portuguesa que se formou e para
ela contribuiu ao longo em toda a sua carreira
artística. A sua personalidade e a sua obra não
podem, por isso, deixar de fazer uma síntese
singular de culturas distintas, no horizonte mais
universal da lusofonia.
Os laços com o Oriente emergem, desde logo,
naquela que é considerada a sua primeira obra:
o busto de sua mãe macaense (gesso, 1911). Já
casado e com dois filhos pequenos, Raul Xavier
regressou à sua terra natal para desempenhar um
cargo de condutor de obras públicas na construção do porto de Macau, função que desempenhou entre 1923 e 1925. Essa experiência de
dois anos ter-lhe-á servido, sobretudo, para se
aperceber de que a sua vocação não estava na
administração pública, mas antes no ofício de
modelar. Regressado e estabelecido em Lisboa,
já com obra feita e reconhecida, o escultor não
deixou, porém, de manifestar apreço pelas suas
origens macaístas, como ilustra o facto de se
apresentar com um costume tradicional chinês
na fotografia que serviu de base ao retrato a óleo
que dele fez o seu amigo pintor Domingos Rebelo. Podemos mesmo dizer que uma contida
saudade do Oriente se faz sentir em obras significativas do escultor, como ilustram: a nostálgica
“Fantasia oriental” (placa, 1926), que nos dá
um perfil feminino com trança, e que nos toca
mais por uma estranheza com ternura do que
por algum padrão convencional de beleza; ou a
estatueta de Wenceslau de Moraes (1939), vestido de quimono segundo fotografia da época, o
que permitia sublinhar a japonização do militar
e escritor português.
Mas, se Wenceslau de Moraes foi um português
que se apaixonou pela cultura nipónica, que o
tornou escritor, Raul Xavier foi um macaense que se afeiçoou decisiva e definitivamente à
cultura portuguesa, que o tornou escultor. Com
efeito, ainda menino de 3 anos, Raul Xavier veio
de Macau para Lisboa, onde teve a sorte de encontrar, para as primeiras letras na escola do Altinho20, um genuíno pedagogo, o mestre Palyart
Pinto Ferreira, que descobriu uma vocação artística nos desenhos daquele seu aluno. Concluída
a instrução primária, Raul Xavier continuou a
ter o estímulo e o apoio do professor, que lhe financiou o curso geral de desenho, de três anos,
na Escola de Belas-Artes, sabendo que o pai do
jovem, um humilde soldado com família numerosa, não tinha condições para sustentar a
formação artística do filho. Foi, pois, o mestre
Palyart Pinto Ferreira, o grande impulsionador
de Raul Xavier para as artes plásticas. O escultor
nunca o esqueceria, como o atestam quer a sua
colaboração na ilustração de escritos pedagógicos do seu antigo mestre quer a medalha que
o homenageia e o faz perdurar na nossa memória cultural21. Foi ainda a pedido do mestre,
admirador de João de Deus, que o jovem Raul
modelou um busto do ilustre pedagogo para a
Casa Pia, onde Palyart Pinto Ferreira também
leccionava. Com a sua obra primeva sobre João
de Deus, inicia Raul Xavier o seu percurso na
escultura, antes mesmo de se tornar escultor.
Após o curso geral de desenho, Raul Xavier começou a sua formação escolar em escultura, na
aula de Costa Mota (tio), então membro do Conselho de Arte e Arqueologia e posteriormente preterido em concurso público, a favor de Simões
de Almeida (sobrinho), para a disciplina que leccionara provisoriamente, por doença do antigo
docente22. Com a saída de Costa Mota (tio), Raul
Instalada no antigo palácio de Angeja, que fora residência do
físico-mor do reino, no tempo de D. José.
21
Como o atestam também as seguintes palavras de um amigo do escultor: «Meu caro Xavier: se a firmeza do seu carácter
não me fosse familiar de longa data, bastaria a sua fidelidade
constante à memória do seu primeiro professor para ma revelar.
Fernando Alfredo Palyart Pinto Ferreira, logo na aula primária,
descobriu-lhe a vocação artística e orientou com paternal entusiasmo os seus estudos no sentido dessa vocação. E o Xavier foi
escultor, construiu a sua obra e alcançou renome, como se documenta nas publicações que têm sido consagradas a tal obra. E
uma indissolúvel amizade gratíssima o prendeu para sempre ao
professor modesto, mas inteligentíssimo que foi esse excelente
Palyart.» Fidelino de Figueiredo, “Elogio de um nobre educador (Carta a um Amigo)”, Separata da Revista de Guimarães,
vol. LXXI, nº 1-2 (Guimarães, 1961), p.1. Vd. uma fotografia
da medalha de Raul Xavier, representativa do mestre Palyart
Pinto Ferreira, ibid., p.3.
22
Informação biográfica disponível em: Oldemiro César, Artis20
165
Xavier seguiu o mestre e deixou a Escola de Belas
Artes, não chegando a concluir o curso de escultura. Deste modo, o jovem estudante de escultura
emancipou-se da Escola e continuou informalmente a sua formação no atelier do mestre Costa
Mota. O valor da fidelidade pessoal primou sobre
o da instituição escolar, o que revela um traço de
carácter do futuro escultor. Julgamos, por isso,
ser fiéis à memória de Raul Xavier, dizendo que
os dois mestres da sua vida e arte foram Palyart
Pinto Ferreira, nas primeiras letras, e Costa Mota
(tio), na escultura. Ambos foram também, por
isso mesmo, os dois grandes elos afectivos do escultor com a cultura portuguesa.
Ultrapassada a experiência de dois anos de administração pública em Macau, Raul Xavier
estabeleceu-se definitivamente em Lisboa, onde
se tornou professor da Casa Pia e mestre de canteiro artístico da escola de António Arroio, e
onde se devotou incansavelmente ao seu ofício
de modelar até à sua morte em 1964. O escultor
Raul Xavier dedicou grande parte do seu labor
artístico a modelar figuras relevantes da cultura
portuguesa, e, desse modo, a guardar memória
delas, material e cultural. Desde logo, referências contemporâneas ou próximas do seu tempo,
e das mais diversas áreas do engenho humano,
como sejam: o caricaturista e ceramista Rafael
Bordalo Pinheiro (busto, 1917); o médico Fernando Bissaia Barreto (busto, 1933); o filólogo e
etnólogo José Leite de Vasconcelos (placa, 1934,
estatueta, 1942, e medalha, 1948); o historiador
Joaquim de Oliveira Martins (placa, 1935); o
professor de literatura e ensaísta Fidelino de Figueiredo (busto, 1937); o artista-fotógrafo Manuel Alves de San-Payo (busto, 1944); o pintor
Carlos Reis (busto, 1945); o professor e historiador de filosofia Joaquim de Carvalho (estatueta, 1944, e busto, 1947); o matemático Gomes
Teixeira (medalha, 1948); o violoncelista David
Sousa (placa, 1948); o arqueólogo Santos Rocha (busto, 1953); a poetisa Florbela Espanca
(busto, 1955); o pedagogo João de Deus Ramos
(medalha, 1955), filho do poeta e pedagogo
João de Deus; etc. Esta lista de obras, umas feitas de encomenda a propósito de homenagens e
efemérides, outras não, pois tão somente feitas
por estima de amigo, longe de ser exaustiva, é
tas Portugueses. Raúl Xavier – Escultor, Lisboa, 1943, pp.19-20.
166
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
quanto basta para significar o apreço do escultor
macaense pela cultura portuguesa do seu tempo.
Raul Xavier conviveu com muitos daqueles dos
quais fixou memória nas suas obras, e tornou-se
um deles, tendo sido adoptado e reconhecido
culturalmente como escultor português.
Entretanto, o escultor português de origem macaísta foi também um atento intérprete da escultura portuguesa do seu tempo, bem como das dominâncias do modo de ser português que nela se
exprime. No seu artigo “A Escultura em Portugal
nos últimos vinte e cinco anos”, publicado a 15
de Dezembro de 1948 no periódico Novidades, o
próprio escultor Raul Xavier sublinha, como traço comum à personalidade do seu mestre, Costa
Mota, e aos discípulos mais ousados do mestre Simões de Almeida (sobrinho), algo como o lirismo
português23. Este será também o traço dominante
de união entre três vultos da história da cultura
literária portuguesa, que atraíram o talento de
Raul Xavier na sua produção escultórica: o poeta
Luís Vaz de Camões, cujo busto (1931) se encontra instalado na Biblioteca da Universidade de S.
Francisco da Califórnia; o escritor romântico Camilo Castelo Branco, ao qual o escultor dedicou
vários tipos de trabalhos, como o busto, a estatueta e a medalha; o poeta e pedagogo João de Deus,
que motivou o conjunto escultórico implantado
na sua terra natal, São Bartolomeu de Messines,
e inaugurado a 9 de Março de 1964, pouco tempo depois da morte do escultor, a 1 de Janeiro
do mesmo ano. Uma obra madura sobre João de
Deus marca, assim, o fim do percurso produtivo
de Raul Xavier na escultura.
Para compreendermos o conjunto escultórico
sobre João de Deus, porém, talvez não baste o
lirismo português, que seduziu o escultor macaense. Talvez sejam necessários outros valores trazidos do Oriente no sangue de Raul Xavier. Um
«Costa Mota, discípulo de Vítor Bastos, teve personalidade
forte, a um tempo lírica de português, e criadora incisiva de estados de alma. – […]. – Simões de Almeida (sobrinho), por seu
turno, transmitiu a sua arte a discípulos, que se têm distinguido
nas correntes modernas, desde o neoclassicismo sereno e equilibrado, até às concepções irreverentes e ousadas em que todavia
se manifesta sempre o lirismo da gente portuguesa, e frequentemente o apreciável sentido decorativo, que vem completar e
formar ambiente sugestivo a este lirismo, talvez por vezes demasiado saudosista, mas evocador. São: Leopoldo de Almeida, Rui
Gameiro, Barata Feio, Martins Correia, António Duarte, Anjos
Teixeira (filho), etc.» Raul Xavier, “A Escultura em Portugal nos
últimos vinte e cinco anos”, Novidades (15/ 12/ 1948).
23
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
escritor e jornalista seu amigo, Carlos Sombrio,
chamou-lhe o “escultor da serenidade”, especialmente a propósito da maqueta do monumento a
D. Francisco Gomes do Avelar, em frente da Sé
de Faro24. Com efeito, a serenidade é uma qualidade expressiva que domina em toda a estatuária
monumental de Raul Xavier. Desde logo, as estátuas que personificam simbolicamente ideias
nobres, como a “Arte” e a “Ciência” (1932, Palácio dos Desportos, Parque Eduardo VII, Lisboa), a “Prudência” (1935, Palácio de S. Bento,
Lisboa), ou a “Lei” e a “Justiça” (1949, Palácio
da Justiça, Beja), acusam uma hierática impassibilidade. Também no painel pétreo da batalha
de Aljubarrota, “Alegoria a D. Nun’Álvares Pereira”, ao calor da batalha, sobreleva a harmonia da composição25 e a postura vertical, firme
e quase invulnerável, do herói a cavalo, Nuno
Álvares Pereira. Mas é, sobretudo, nas pequenas
figuras simbólicas, a que os críticos chamavam
na época “figuras de fantasia”, que melhor se exprime a liberdade criativa de Raul Xavier26, bem
como as qualidades mais indissociáveis da sua
escultura: entre elas, encontra-se mesmo uma
“Serenidade” (1936), a par de uma “Saudade”
(1932), de um “Pensamento longínquo” (1941)
ou de uma “Melancolia” (1950). Todas estas
ideias, estados ou sentimentos são representados
por figuras femininas. Há, na escultura de Raul
Xavier, uma espiritualidade no feminino, que
Cf. Carlos Sombrio, “Raul Xavier: o Escultor da Serenidade
e o seu monumento ao Arcebispo-bispo Gomes de Avelar”, Jornal de Notícias, 30 de Novembro 1939.
25
A “Alegoria a D. Nun’Álvares Pereira”, originalmente destinado e apresentado a forrar a Sala de Aljubarrota na Exposição
do Mundo Português (1940) e posteriormente colocado em S.
Jorge (Aljubarrota), é para o Prof. Émile Schaub-Koch, esteta e crítico de arte, a obra mais significativa de Raul Xavier,
escolhida para figurar em: Émile Schaub-Koch, Valeurs de Rappels d’Esthétique Comparative, Lisbonne, Publication sous les
auspices de l’International Institute of Arts and Letters, 1958,
fig.109. A mesma obra será, portanto, uma daquelas que melhor manifesta o talento do escultor como mestre da composição: «L’energique vitalité de l’oeuvre est question tecnique et
ne dépend pas du tout de la vision qu’elle exprime, et qu’elle
pourrait exprimer de manières différentes et selon d’autres méthodes. Voilà ce que saisit à fond Xavier et ce que certes, en matière de composition, il connaît à fond. Et cette connaissance
est celle d’un grand artiste.» Émile Schaub-Koch, Raul Xavier.
Sculpteur Portugais, Lisboa, 1957, p.3.
26
No que sintonizamos inteiramente com as seguintes palavras
de Émile Schaub-Koch: «Il est évident que les plus belles oeuvres de Xavier ne sont que des valeurs de représentation de sa
conscience d’artiste, telle sa Mélancolie, étonnante d’expression
créée.» Raul Xavier. Sculpteur Portugais, p.6.
denuncia uma delicada estima pela mulher. A
este respeito, é de assinalar o parentesco anímico
do escultor com o poeta João de Deus.
A escultura de Raul Xavier é, aliás, toda ela figurativa, e isso valeu-lhe a depreciação de “não
moderna”, em comparação com a arte abstraccionista. Todavia, nem por isso se tornou mais
fácil de caracterizar e de classificar do ponto de
vista da crítica da arte. Em 1939, Luís Chaves
procurava entrever assim influências e tendências na arte de Raul Xavier:
«Da serenidade olímpica da criação artística passa à violência insatisfeita da realização. Procurar-se-ia estremar na técnica de R. Xavier a influência de um outro mestre escultor. Em vão. Talvez
impressionista aqui, visão de Rodin que se funde
num momento; talvez classicista além, na majestade de Cánovas através de mármores de Thordwaldsen; realista porventura na lição portuguesa de Soares dos Reis. Talvez tudo, e de tudo um
pouco, e não por espírito de formação ecléctica,
feição inferior de impersonalidade; antes porque
a arte é omnímoda, e na alma sincera do artista
bem formado brota como fonte da montanha.»27
Afinal, impressionista, classicista e realista, mas
não ecléctico. Por sua vez, em 1957, Émile
Schaub-Koch procurava definir assim a novidade da arte de Raul Xavier:
«Xavier é um gótico da época flamejante, isto
é, da época em que o gótico se enriquece com o
arabesco, e com todas as riquezas do barroco que
acaba de nascer em Veneza.»28
24
Afinal, uma arte fora do seu tempo, que combina tendências remotas. Estes dois testemunhos
de crítica favorável ao escultor Raul Xavier ilustram bem, todavia, que, quando intenta rotular
uma obra de arte pessoal, a crítica facilmente se
enreda em contradições insanáveis nas suas apreciações. De qualquer modo, o especialista de estética comparativa, que foi Émile Schaub-Koch,
compara por afinidade a escultura figurativa de
Raul Xavier com a da escultora americana Anna
Luís Chaves, “Raul Xavier. Escultor”, Letras e Artes, Suplemento literário das Novidades, Ano II – 4-VI-1939 – Nº41.
28
«Xavier est un gothique de l’époque flamboyante, c’est-à-dire, de l’époque où le gothique s’enrichit de l’arabesque, et
de toutes les richesses du baroque qui vient de naître à Venise.»
Émile Schaub-Koch, Raul Xavier. Sculpteur Portugais, p.29.
167
Hyatt Huntington29, e não é por ser figurativa
que a arte de um e de outra é uma arte menor.
Figurativo é também o conjunto escultórico
do monumento a João de Deus, em S. Bartolomeu de Messines. Raul Xavier adoptou, para
o monumento, a iconografia espectável sobre
João de Deus, ligada, sobretudo, à sua Cartilha
Maternal. Olhando então para o monumento,
o que vemos? Não do ponto de vista do crítico profissional, mas apenas com o olhar de um
observador atento. Vemos a figura de João de
Deus, sentada sobre a saliência de um muro,
que lhe serve de banco: o pedagogo segura com
a mão esquerda a sua Cartilha, erguida sobre o
joelho esquerdo, e reclina-se levemente sobre
o lado direito, com o cotovelo direito sobre o
muro e a mão apoiando o rosto, que olha na
direcção do horizonte acima de duas crianças ao
lado a ler. Na figura de João de Deus, sobressai a tranquilidade, que procede de uma missão
cumprida, e a serenidade contemplativa, que era
um traço comum à personalidade do poeta e à
do escultor. As crianças, por seu turno, não são
um detalhe decorativo do monumento, elas estão praticamente no mesmo plano fronteiro do
pedagogo, porque elas são a sua razão de ser. As
crianças foram, aliás, um motivo predilecto do
escultor Raul Xavier, que cedo começou a modelar a cabeça encaracolada do seu próprio filho
e que tomou por modelo o seu neto mais novo
para o menino que carinhosamente acompanha
a pequena leitora, neste monumento a João de
Deus. Há, neste conjunto escultórico, traços
cruzados de serenidade e lirismo. Nada espanta
por inesperado; tudo se combina sem sobressaltos na sensibilidade do espectador. Apenas o
poeta em pensamento longínquo e duas crianças
em atenta leitura, isto é, colhendo o fruto da
sua intuição pedagógica, numa suave harmonia
entre contemplação e acção, que não sobressai
senão pela arte de composição do escultor. Era
assim a escultura de Raul Xavier.
27
Cf. Émile Schaub-Koch, Valeurs de Rappels d’Esthétique Comparative, Lisboa, 1958, pp.116-122.
29
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
168
de
Cultura
para o
Século XXI
JOÃO DE DEUS E TEIXEIRA DE PASCOAES
1
Pedro Martins
idade, uns quinze ou dezasseis anos, vítima da
mesma doença transcendente. Eu rabiscava os
meus primeiros versos em papel vermelho; e ele,
em papel de carta de namoro. O meu ídolo era
Guerra Junqueiro, e o ídolo do meu condiscípulo
era o João de Deus. Nas nossas íntimas palestras,
em que a vaidade das crianças e dos tolos, a si
mesma, se exalta e lisonjeia, eu afirmava, encantado: Serei um outro Guerra Junqueiro! E o meu
confrade respondia-me: E eu serei um João de
Deus! Eu concordava, é claro, para ele concordar
comigo. Concordávamos um com o outro, muito
sinceramente, que a vaidade é a sinceridade em
pessoa. Se há um sentimento em pessoa, é o da
vaidade, ou, pelo menos, é o único sentimento
que toma figura humana. Alimentávamos mutuamente o nosso amor-próprio. Eu, sem ele, não
era um Guerra Junqueiro; e ele, sem mim, não
era um João de Deus. Chamava-se Nasianzeno,
e tinha um olho castanho e outro, azul; ou tinha
um olho na terra, e outro, no céu, muito à João
de Deus: João, quando calçava de beijos os pés
da bem amada; de Deus, quando pairava etereamente, na abóbada infinita, sustentando, nos
braços, não um corpo de mulher, mas apenas a
sua imagem divinizada.3
para o Joaquim Domingues
1
1. Teófilo Braga, a quem devemos algumas das
melhores páginas que se escreveram sobre João
de Deus, inicia por uma citação de Shelley o
estudo votado ao poeta algarvio naquela parte
da sua História da Literatura Portuguesa em que
trata da “dissolução do ultra-romantismo”. São
do prefácio do Prometeu Libertado as linhas brevíssimas aí transcritas:
Um grande poeta é uma obra prima da natureza,
que deve impor-se e se impõe necessariamente ao
estudo de um outro poeta.2
De Teófilo para Pascoaes muda, decerto, a estatura poética do estudioso, com larga vantagem
para o vate de Gatão. Mas a posição de princípio – como, em certa medida, a perspectiva
adoptada – ou a admiração pelo poeta estudado
mantêm-se razoavelmente inalteradas.
Nas laudas memoriais da conferência sobre
Guerra Junqueiro, proferida no Teatro Amarantino em 19 de Março de 1950, Teixeira de Pascoaes começa por nos dar conta de circunstâncias deveras curiosas, à vista do que nos move:
Frequentava eu o liceu amarantino, quando me
apaixonei pela Poesia, isto é, quando, em mim, se
produziram os primeiros sintomas duma espécie
de loucura transcendente ou mal sagrado… que
a saúde é da idade das cavernas, a roer bolotas e
raízes. Era meu condiscípulo um rapaz da minha
O presente estudo completa, desenvolve e aprofunda o esquema tópico da comunicação que, com o mesmo título, se
apresentou ao Seminário “Espiritualidade, Cultura e Pedagogia
em João de Deus”, realizado em 14 de Abril de 2012, em São
Bartolomeu de Messines.
2
Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa, VII, As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, A Geração de 70, Mem
Martins, Europa-América, 1986, p. 11.
1
De João de Deus (n. 1830) para Guerra Junqueiro (n. 1850), assim ofertados à juvenil emulação
das primícias, vai a distância exacta de uma geração, se aqui se antolha justa a medida cabal do
vinténio. Não se explica, porém, a inclinação de
Pascoaes senão por razões diversas, que agora seriam de difícil desenvolvimento, mas que a subtileza das afinidades electivas deixa desde já entrever. Lembremos somente ser Junqueiro, na feliz
expressão significativa de Joaquim Domingues,
Teixeira de Pascoaes, Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 46.
3
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
uma d’as duas colunas da Renascença Portuguesa4,
sendo a outra Sampaio Bruno. Ora esta asserção
emerge e releva em revérberos de nitidez logo
que verificamos ter sido Teixeira de Pascoaes figura de proa deste movimento, e porventura a
de maior proeminência entre quantas lhe deram
ser e expressão. Por outro lado, Bruno e Junqueiro concorrem com flagrância, e de modo
superlativo, na formação do pensamento pascoalino. Bem vistas as coisas, os dois factores quase se não distinguem: a doutrinação renascente
de Pascoaes, vertida no acervo de documentos
em prosa a que habitualmente surge referida a
campanha saudosista, é já o corolário de um decantamento, operado a partir dos seus grandes
textos poéticos, mormente os relatos míticos do
Maranos e do Regresso ao Paraíso.
A abordagem precedente justifica-se no propósito de filiar a leitura pascoalina de João de
Deus – pois é sobretudo disso (mas não só) que
aqui se vai tratar – na tradição interpretativa
própria do ambiente em que se inscreve – e a
este respeito importaria talvez considerar “as
razões pelas quais Álvaro Ribeiro atribuía à acção de Junqueiro, a par da de Bruno, a criação
do clima espiritual que esteve na génese da Renascença Portuguesa”5. Na impossibilidade de
o fazer aqui, limitar-me-ei a frisar que João de
Deus pode ser visto, a juízo do Pascoaes d’Os
Poetas Lusíadas, como o primeiro agente do pátrio renascimento verificado na segunda metade
do século XIX, qual sorte de pioneiro, destarte a
par de Antero, tal como a este o entende Pessoa,
nele vislumbrando o precursor do saudosismo,
na série de escritos aquilinos sobre A Nova Poesia Portuguesa. Que tudo isto possa ter sua parte
de verdade acorre a demonstrá-lo a circunstância de Teixeira de Pascoaes, prestes a terminar
a citada conferência sobre o poeta das Orações,
o entronizar, num juízo maturado pela senectude, com Antero de Quental e João de Deus, na
“Trindade Sagrada do Parnaso português”6.
Joaquim Domingues, “Junqueiro e Bruno: as duas colunas da
Renascença Portuguesa”, in Nova Águia, n.º 9, Sintra, Zéfiro, 1.º
semestre de 2012, pp. 101 e ss.
5
Idem, p. 105.
6
Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita, p. 59.
4
169
Averbe-se, a propósito, a ilustração anedótica de
um episódio singular, revelado por Joaquim Domingues no escrito, já referido, sobre “as duas colunas da Renascença Portuguesa”: foi João de Deus
Ramos, filho do poeta do Campo de Flores, o portador, do Porto para Lisboa, em Julho de 1910,
de uma proclamação expressamente redigida por
Junqueiro e Bruno7, na iminência de uma revolta
que só a 5 de Outubro se tornaria efectiva8.
A consideração sistemática de uma ambiência
cultural em que as linhagens se urdem e cruzam
não deveria, em princípio, levar-nos a deixar de
fora do nosso escrito a figura primaz de Teófilo
Braga, amigo de João de Deus e incomparável estudioso e zelador da sua obra. Tanto mais que é
ainda Álvaro Ribeiro quem, judicioso, o religa a
Bruno e Junqueiro e no-lo revela no alto estatuto de quem “entreviu, em contornos indecisos, a
originalidade do pensamento português”9, como
último romântico a quem se deve “a primeira tentativa de formular a filosofia portuguesa”10. Sem
prejuízo das influências ou confluências que, a
este respeito, importe adrede acentuar, é porém
com Bruno, fundador a quem estava destinada “a
glória de referir ao pensamento teológico a filosofia portuguesa”11, que iniciamos o nosso bosquejo. Junqueiro fará a ponte com Pascoaes.
2. Num escrito tão breve quanto denso, dado à
estampa no n.º 7 da 2.ª série de O Ideal. Revista litteraria e artística, Sampaio Bruno começa
por evidenciar a simplicidade artística de João de
Deus, simultaneamente considerada pelo prisma
da ideação como pelo da expressão, e perante a
qual “o esforço crítico aborta na impotência de
irresoluções fundamentais”. Neste número de
homenagem ao poeta de Messines, datado de 27
de Dezembro de 1894, Bruno assinala-lhe em
De Sampaio Bruno para o próprio João de Deus, “ilustre correligionário e amigo”, conhece-se uma carta, datada de 26 de Novembro de 1883, solicitando colaboração para um diário democrático
– A Discussão – “devendo aparecer brevemente”. Foi recentemente
coligida por Joaquim Domingues na pág. 45 no volume Correspondência Epistolar e outros textos avulsos, de Sampaio Bruno, editado
em 2011 pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
8
Idem, p. 104.
9
Álvaro Ribeiro, Os Positivistas. subsídios para a história da filosofia em Portugal, Lisboa, 1951, p. 138.
10
Idem, p. 133.
11
Idem, p. 58.
7
170
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
seguida a espontaneidade, “aferida (…) na pronta transmissibilidade da sua obra”, pela qual “o
mesmo simplismo que o personaliza o torna refractário aos minuciosos reparos e ao processo
pedante das esquemáticas correlacionações”. Por
isso, segundo o filósofo, “não nos encontramos
aqui com uma destas fisionomias estéticas em
que se entrecruza a influência das várias correntes históricas da evolução literária geral”. Previamente percorridas, e afastadas, por impertinentes, as presumíveis influições, a consideração da
originalidade de João de Deus fica a um passo,
bem pequeno, do leitor: “Aqui, no sublime
exemplar português, nenhuma interdependência, tão inconfundível é a condição subjectiva do
artista”. Célere, directo, singelo, Camilo Castelo
Branco dirá de outro modo: “João de Deus não
tem escola. É Ele…”12.
E, no entanto, será talvez pressuroso afirmar, sem
mais, que João de Deus não tem escola. O poeta,
quando a não cria, ou a não inaugura, pelo menos anuncia, ou propicia, o surgimento de uma
nova escola, à qual, à falta de melhor expressão,
e observando as devidas prevenções, caberá qualificar, sob o signo da ruptura, pelo prisma do naturalismo. De novo a palavra a Sampaio Bruno:
Atente-se ainda, a este propósito, por sumamente esclarecedor, no seguinte episódio, por Sampaio Bruno averbado, alguns anos mais tarde,
nas páginas d’A Ideia de Deus: o haver António
3. Adentro desta leitura da poesia de João de
Deus, de Sampaio Bruno para Guerra Junqueiro há um progresso que se opera, resoluto, na
definição objectiva da Natureza, em simultânea
aproximação à visão que, por esses anos, será
também a de Teixeira de Pascoaes. A Natureza,
condição do que nasce e morre, é – sobretudo –
a Mulher, numa concretização que apela à solidariedade semântica de palavras como matéria e
mater. Mais: esse progresso permite-nos mesmo
Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, Porto, Lello, 1998, pp. 53-54.
Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa, VII, As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, A Geração de 70, p. 12.
14
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
João de Deus, pela simplicidade ingénua da sua inteligência, quando a mocidade era atraída para as
aspirações revolucionárias, que renegava segundo
ulteriores conveniências, escapou a este estado de insurreição mental propagado por um metafisicismo
dissolvente. Eis a razão da superioridade das suas idealizações, espontâneas, naturais, verdadeiras, belas,
porque não eram sugeridas pela exaltação romântica
melancólica, satânica, revolucionária, ou pessimista,
das formas incoerentes da arte moderna.14
13
Alfredo Pinto (Sacavém), João de Deus na inspiração musical
(antologia), Lisboa, Tipografia da Livraria Ferin, 1934, p. 7.
12
Século XXI
Feliciano de Castilho declarado o Dom Jaime de
Tomás Ribeiro uma epopeia superior à d’Os Lusíadas, porque Luís de Camões apresentava descrições libertinas. Ora, como o filósofo portuense
então consigna: “No Bejense, João de Deus teve
a frase feliz: condenar Os Lusíadas porque não
servem para Cartilha do Padre Inácio, o mesmo
é que censurar a Cartilha do Padre Inácio porque
não serve para epopeia nacional”13.
Registe-se, no ingénuo reparo, significativo do
mais elementar bom senso, o traçado emergente
de uma linha de fronteira, ou não fosse, entre
nós, Tomás Ribeiro acurado dignitário do movimento ultra-romântico, conforme a taxonomia
teofilina, naquele ponto crucial em que a renovação do moderno lirismo encabeçada por João
de Deus concorre grandemente na dissolução
do mesmo ultra-romantismo.
Seja pela metodologia analítica, seja pela asserção substantiva, não difere por aí além, neste
como noutros pontos, o autor da Geração Nova
da doutrina expendida na História da Literatura
Portuguesa, onde encontramos, eloquente, esta
meia dúzia de linhas:
Entre nós, o aparecimento literário de João de
Deus marca a época da revertência à franca realidade, brotando ingénua e pura do transporte
interior que deu plasticidade estética à emoção
psicológica. Desvairados pelo ultraromantismo,
imobilizados no neoclassicismo, ou desmoralizados pelo misticismo mundano, a poesia de João
de Deus foi um abrupto, inconsciente protesto da
simples natureza, eterna e cândida.
É assim que, melhormente do que com os primeiros versos de Daudet e de Maupassant pretendeu
Zola, a crítica portuguesa pode reivindicar para
o naturalismo tal lirismo, fundindo à realidade
concreta um tão amplo rapto no destino do supremo, transcendente ideal.
para o
perspectivar algo que passa do poeta algarvio
para os versos admiráveis do vate amarantino.
Segundo Junqueiro, diante de João de Deus “o
universo maravilhoso, criado por Deus, move-se
em Deus, mas a expressão suprema do Divino
radia na beleza deslumbradora e fecundante, na
graça da amante, na mulher. O centro do mundo de Deus é o beijo de amor, divinizado”15.
A menção do “centro do mundo” implica já alusão provável a uma iniciação pelo amor, como
via de libertação espiritual e de união a Deus. A
mulher, em cuja beleza esplende – ou se reflecte – a verdade da Sabedoria divina, surge-nos
assim como a mistagoga, aquela que conduz o
homem pelos mistérios, para aqui empregarmos a expressão certeira de Rafael Monteiro16.
E Junqueiro, bem que comece por a dissociar,
tal como o Campo de Flores no-la revela – vária,
tangível e voluptuosa –, das subtis, feminis figurações universalmente encontradas em Laura,
Beatriz ou Natércia (e outro tanto será dizer: em
Petrarca, Dante e Camões), não poderia, afinal,
estar mais perto da doutrina dos fiéis-do-Amor
(que os três poetas representam) quando desta
sorte, condescendendo, acaba por escrever:
Mas a poligamia da volúpia, continuamente idealizada e sublimada, unifica-se e resolve-se, ao
cabo, numa só imagem espiritual.17
Logo depois, e consequentemente, na obra de
João de Deus identifica Guerra Junqueiro uma
“mística amorosa”, onde destrinça cinco “graus
ascendentes de elevação e perfeição”18. Nos três
primeiros graus Junqueiro entrevê, difusa, uma
ascese que toma o corpo – ou o “desejo voluptuoso” que este inspira – como ponto de partida,
ou de apoio, da realização iniciática. Nada se faz
contra o corpo – ou apesar do corpo –, mas pelo
corpo, que nos surge como algo de eminentemente santificável, numa marca cripto-judaica
que tenderia a passar despercebida, não fora a
subtil hermenêutica já intentada por António
Telmo19. Há nesta purificação da volúpia, de
contínuo operada pela imaginação idealizadora,
uma desmaterialização que propriamente constitui o cerne da iniciação, conducente ao êxtase.
Estamos em pleno território dos Fedeli d’Amore,
para quem, lembra Julius Evola, “o transporte
e a exaltação do eros desempenham um papel
técnico, como apoio da realização iniciática”20.
No quarto grau assinala-se, de um modo discreto, o paracletismo desta via, assim se caucionando a aproximação ensaiada à doutrinação
iniciática da Fede Santa. Ali, “a mulher-alma
desencorpora-se, diviniza-se, deifica-se. É graça,
piedade, dor, amor, misericórdia, a Virgem das
virgens, a Mãe de Cristo, a mãe de Deus! É Deus
em mulher, é Deus no feminino”21.
A parte inicial do excerto que venho de transcrever parece encontrar eco ainda no ensino de
Evola, quando este autor nos lembra que, para
os fiéis-do-Amor, a mulher real é concebida e
vivida, através de um processo evocatório, como
a encarnação de uma força vivificante e transfiguradora, transcendendo a sua pessoa22. E, do
penúltimo para o último parágrafo, como que
identificamos a translação do consciente cristão
para o subconsciente hebraico, repetidamente
assinalado por António Telmo. A Virgem, no
dizer clássico de Gilbert Durand, constitui “representação vicarial” do Espírito Santo, sendo
este, por seu turno, permutável com a Presença
da Shekinah, em que a Cabala, consabidamente,
vislumbra o aspecto feminino da Divindade.
No quinto e último grau, “o poeta religioso, liberto do mundo, uniu-se a Deus”23. União que
só é verdadeira quando os que chegam a Deus
“levam no coração, como um filho gemendo, o
universo inteiro”24, e tal é o caso do santo que,
inclinando-se para a natureza, “ergue nos braços
a humanidade, agasalha no peito a infância humana, e cantando e chorando e rezando, lá vai
com ela para Deus”25. Desenvolver este ponto
António Telmo, “A influência da Cabala em Portugal”, in Viagem a Granada, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005, pp. 176 e ss.
20
Julius Evola, O Mistério do Graal, Lisboa, Vega, 1978, p. 203.
21
Guerra Junqueiro, Prosas Dispersas, p. 86.
22
Julius Evola, O Mistério do Graal, p. 201.
23
Guerra Junqueiro, Prosas Dispersas, p. 86.
24
Idem, ibidem.
25
Idem, pp. 86-87.
19
Guerra Junqueiro, Prosas Dispersas, Porto, Livraria Chardron,
1921, p. 84.
16
Rafael Monteiro, “O Culto do Espírito Santo”, in A Festa das
Chagas, os Painéis de Nuno Gonçalves e outros temas, Sesimbra,
Câmara Municipal de Sesimbra, 2002, p. 119.
17
Guerra Junqueiro, Prosas Dispersas, pp. 84-85.
18
Idem, p. 85.
15
171
172
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
implicaria detida incursão no pensamento do
próprio Junqueiro, qual ele resulta, em esboço
obsidiante, das suas Prosas Dispersas; e bem assim
na similar visão brunina de uma ética cósmica,
para aqui se empregar a definitiva expressão celebrada por Joaquim Domingues26. Bastará, para o
que nos interessa, encarecer o concorde altruísmo
dadivoso com que João de Deus endereçou ao
ensino do seu povo a Cartilha Maternal, na popularização de um método tradicional (como superiormente registou António Telmo na Gramática
Secreta da Língua Portuguesa, ao divisar no poeta
pedagogo um cabalista sequaz do Sepher Ietsirah),
fenómeno que, não raro, encontra estreitos paralelos na história da mística judaica27.
Teófilo Braga, que lhe imputa “um alto sentimento de sociabilidade”, posto “em todos os
actos da sua vida”, relata, por seu turno, na
História da Literatura Portuguesa, um episódio
pungente e exemplar, que tão pessoal e dramaticamente o tocou:
E quem mais do que eu poderá reconhecer a organização simpática de João de Deus? Quando a
morte me feriu no mais íntimo do meu ser, levando-me os dois filhos que eram a razão da minha
existência, ele veio dar-lhes a imortalidade subjectiva, vivificando-os pela poesia, nas emoções
externas da obra de Arte. Sob o título A Maior
Dor Humana reuniu um feixe de elegias, que ele
pediu a todos os poetas da geração actual para
entretecer a grinalda depositada sobre a sepultura
das duas crianças.28
4. Se Junqueiro, para o que nos toca, nos levou
mais perto de Pascoaes que Sampaio Bruno,
é a este último, todavia, que convém tomar de
empréstimo o discurso do método apropriado
à abordagem que constitui, afinal, o objecto do
presente escrito, doravante projectado na visão do
estudioso de João de Deus que o poeta do Marão
também foi, sobretudo nas páginas de Os Poetas
Lusíadas. Refiro-me à dicotomia que distingue o
Joaquim Domingues, “A ética cósmica de Bruno”, in De Ourique ao Quinto Império – para uma filosofia da cultura portuguesa, Lisboa, IN-CM, 2002, pp. 85 e ss.
27
Cfr., por exemplo, Moshe Idel, Cabala: nuevas perspectivas,
Madrid, Siruela, 2005, pp. 88-90 e p. 92.
28
Teófilo Braga, Op. cit., p. 66.
26
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
plano prévio da ideação dessoutro que é já o da
expressão. Comecemos, pois, pelo primeiro.
Naquela sua obra, Pascoaes distingue três formas de poesia: a amorosa, a patriótica e a religiosa29, numa trilogia que se compõe com a tríade
de seres espirituais, cada vez mais complexos,
que havia já deduzido na Arte de Ser Português: a
Família, a Pátria e a Humanidade, culminando
no supremo ser espiritual: Deus30.
Compreende-se a articulação, em termos de
pura correspondência, se pensarmos que o fim
da poesia amorosa é “a criação da Família, unindo o homem à mulher”; e que o fito da poesia
patriótica concerne “à criação da Pátria, definindo um sentimento original comum a determinada Raça que assim conquista a sua unidade
moral, a íntima fisionomia que ela mostra a
Deus, para que Deus a veja e a reconheça entre
os outros Povos…”31
A correspondência que proponho tornar-se-á
– estou em crer – inteiramente nítida quando
ponderamos as seguintes palavras do vate de
Gatão: “Acima da poesia amorosa e patriótica,
a poesia religiosa cria a unidade das Pátrias em
Deus, a sua concordância num ideal cada vez
mais belo e perfeito”32. Que a Humanidade seja
então essa superior instância universal onde a
mediação com o divino se irá operar, percebe-o
o leitor da Arte de Ser Português ao deparar-se
com a seguinte passagem deste breviário:
o protótipo do poeta religioso, quer esse santo
seja maximamente Jesus Cristo, ou São Francisco de Assis35, quer seja o nosso Frei Agostinho
da Cruz36.
Mas o que nessas trilogias mais nos pode interessar, por aquilo nos mostra do alto lugar que
Pascoaes, logo em 1918, reserva a João de Deus,
é o facto de este ser ali o poeta do amor por
excelência, ou o poeta amante37, assim como
Camões o é para a Pátria, e Frei Agostinho (implícita ou explicitamente) para Deus. Atente-se
nesta passagem:
Ao ler os versos de João de Deus, sentimo-nos enamorados da mulher; ao ler Os Lusíadas sentimo-nos portugueses d’aquém e d’além-mar; lendo o
Sermão da Montanha ou o Canto das Criaturas, Deus como que ressurge do nosso sentimento
divinamente exaltado. Com João de Deus, eu
vivo em minha casa; com Luís de Camões eu vivo
em Portugal; com Jesus ou S. Francisco de Assis,
vivemos no Infinito.38
E nesta outra – nos nossos Poetas da Saudade, há
um profundo sentimento da Eternidade e do Infinito, que abrange o amor do homem pela mulher:
Sempre será meu amor
Como a sombra enquanto eu for.
Quanto vai sendo mais tarde,
Tanto vai sendo maior.
(Cristovam Falcão).
Chamaste-me tua vida
Eu tua alma quero ser.
A vida acaba com a morte,
A alma não pode morrer.
(Cantiga popular).
O homem superior vive também como patriota. E
o homem sublime, o santo, por exemplo, vive ainda
a vida da Humanidade e mesmo a do Universo.33
Para fechar o silogismo, restará aditar, com Rafael Monteiro, que a santidade se atribui às coisas ordenadas para Deus34.
Não por acaso, nas formulações triádicas d’Os Poetas Lusíadas (que nos conduzem da poesia amorosa à religiosa pela termo médio da patriótica) a
figura do santo preenche quase invariavelmente
E abrange o amor do português à sua Pátria, em
remotos tempos que passaram:
Vereis amor da Pátria não movido
De prémio vil, mas alto e quase eterno.
(Camões).
E o amor a Deus:
Teixeira de Pascoaes, Os Poetas Lusíadas, Lisboa, Assírio &
Alvim, 1987, p. 43.
30
Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português, Lisboa, Assírio &
Alvim, 1991, p. 33.
31
Os Poetas Lusíadas, p. 43.
32
Idem, p. 44.
33
Arte de Ser Português, p. 33.
34
Rafael Monteiro, Op. cit., p. 123.
29
Ama comigo a Deus eternamente
(Frei Agostinho).
Os Poetas Lusíadas, p. 44.
Idem, p. 56 e p. 164.
37
Idem, p. 102.
38
Idem, p. 44.
173
São os três amores a que correspondem as três
formas da Poesia: amorosa, patriótica e religiosa: –
João de Deus, Camões e Frei Agostinho da Cruz.39
Na visão de Pascoaes, esta modelaridade de João
de Deus tem, todavia, o senão de o havermos de
considerar, entre a lírica plêiade lusíada, como
um dos “poetas restritos”40, pois que estes, ao
cantarem a mulher, a apontam a um ser espiritual – a Família – inferiormente situado na escala
deduzida na Arte de Ser Português, e nessa medida
se distinguem dos “poetas de mais profunda inspiração, como Frei Agostinho, Camões e Antero
de Quental”, tendo já Deus no seu horizonte.
Bem vistas as coisas, talvez não seja tanto assim.
Bastará pensar na leitura que Junqueiro nos
apresentou de João de Deus e procurar demonstrar quanto o próprio Teixeira de Pascoaes, de
alguma sorte, lhe sofre a influência. O ponto
fica em aberto, para a final ser retomado.
Por outro lado, o surgimento do poeta do Campo
de Flores reveste-se, aos olhos do mesmo Pascoaes, de uma significação patriótica tremenda. Mas
essa é matéria que implica já a consideração da
sua lírica pelo prisma remanescente da expressão.
5. N’Os Poetas Lusíadas, Teixeira de Pascoaes
fia do génio saudoso da língua pátria, e das virtualidades expressivas que ele lhe confere, uma
faculdade eminente de exprimir a Natureza em
termos tão peculiares que a Poesia que nela radica se impregna de nuances características das belas-artes (escultura e pintura) e da música. “Por
isso – escreve o poeta –, o que mais caracteriza a
nossa Poesia, são músicos compondo em verso,
pintores que trabalham em verso, escultores que
modelam em verso”41.
Num passo próximo, mas prévio, da mesma
obra, Pascoaes já havia escrito: “A nossa língua
contém a matéria-prima de todas as Artes: a tinta,
o mármore e o som; a tinta sublimada em Fialho,
o mármore em Antero e Herculano, o som em
João de Deus e Guerra Junqueiro…”42
A analogia – pois é disso que se trata – tem tão pouco de casual quanto de insignificante. O mármore,
Idem, p. 164.
Idem, p. 56.
41
Idem, p. 157.
42
Idem, p. 151.
35
39
36
40
174
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
a tinta e o som formam escala remetendo para a
hierarquia da tríade elementar terra – água – ar;
e, por via desta, para a simbólica alquímica, que,
como Pedro Sinde muito bem divisou, pode ser
transposta para a teoria da Saudade43.
A predominância do elemento trabalhado por
cada poeta surge-nos, pois, plena de consequências, sabido que a terra (mármore) está para o
corpo, como a água (tinta) está para a alma inferior e o ar (som) para a alma superior. Do ponto
de vista expressivo, um músico compondo em
verso não é o mesmo que um pintor trabalhando em verso ou um escultor modelando em
verso. Todos são poetas; mas o primeiro logrou
alcançar um estado mais avançado de desmaterialização, uma superior espiritualização da expressão artística. Escreve Pascoaes:
A pintura dá melhor a ilusão da realidade que a
escultura, em virtude do seu poder de nuançar e
fundir os contrastes. Quanto mais incorpórea for
a matéria, mais animada nos parece. A música
é a arte que mais depressa nos comove. O som é
matéria invisível, o espírito da cor, quase a essência dos movimentos vitais que se organizam
e avultam no ser. Pela sua íntima qualidade, a
música é uma arte divina; e, pela sua universal
acção magnetizante, é uma arte que atinge o desumano: deslumbra os animais e os deuses.44
para o
Século XXI
para o autor de Maranos, coube a estes dois últimos poetas “retomar a música íntima e original, o
verdadeiro ritmo da nossa linguagem poética”46,
algo que nem Guerra Junqueiro, nem Gomes Leal
(quanto a Antero, Pascoaes parece hesitar, contradizendo-se no seu juízo), puderam na verdade alcançar, a despeito dos “primeiros sobressaltos desordenados” que o “esplendoroso renascimento”
da alma pátria experimenta nas liras de ambos47.
E é justamente neste ponto que podemos perceber, em sua exacta dimensão, a estatura quase
incomensurável que o vulto de João de Deus
(anote-se a precedência crónica que o destaca de
António Nobre) irá assumir aos olhos de Teixeira de Pascoaes, confrade que o concebe como a
antemanhã da Renascença Portuguesa. Não será
outro o sentido do excerto d’Os Poetas Lusíadas
que irei transpor para estas laudas. Pascoaes vem
de referir-se a Antero e a Camilo, a Fialho e a
Brandão – fautores dos “primeiros movimentos
da alma de um Povo que revive”, movimentos
“grandes, mas ilógicos, abandonados à sua própria energia indomável, actuando em sentidos
diferentes, sem obediência a um princípio superior construtivo”48 – quando, um tanto ao arrepio do rigor cronológico, escreve:
Como coordenar estes desordenados voos do nosso
sentimento, espavorido ante o clarão da sua aleluia? Condensando-os num mármore. Só a densidade e o peso criam a verdadeira presença, o corpo
que se interpõe entre a luz do sol e a dos olhos,
marcando a sombra a realidade das suas formas.
O Verbo divino, para ser visto e sentido, fez-se
pedra; – a pedra de uma estátua. É o Desterrado
de Soares dos Reis, um escultor macambúzio e sublime, que se mata ralado de desgostos.
Viu-se há pouco que Teixeira de Pascoaes põe
João de Deus a par de Guerra Junqueiro no patamar dos poetas que trabalham o som. Deste
prisma, um e outro, que pudemos surpreender
à compita na imberbe emulação amarantina do
liceal Joaquim e de seu amigo Nasianzeno, sobrelevam Fialho, Herculano e Antero, aquele
vogando na tinta da paleta, e estes jungidos ao
denso mármore da estatuária.
Não se pense, porém, que João de Deus e Junqueiro são músicos situáveis no mesmo plano. É
certo que o segundo nos surge, a juízo de Pascoaes, como “o grande músico do verso. Mas a sua
música, excessiva e objectiva, não deu as notas
íntimas e crepusculares do sentimento lusíada,
como João de Deus e António Nobre”45. Aliás,
O Desterrado é a saudade amorosa de Bernardim, a saudade religiosa de Frei Agostinho da
Cruz e o vulto do Encoberto, visionando, cabisbaixo e triste, a manhã nevoenta do seu regresso…
O Verbo lusíada reencarnou. João de Deus restituiu-lhe a fluidez, a graça, o ar luarento em que
se movem as mais delicadas formas do Amor e da
Saudade (…).” 49
175
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Segue-se a transcrição de alguns versos, extraídos de poemas de João de Deus. Ora: “Estes
versos de infinita suavidade musical, onde o Desejo em flor se orvalha de ternura, e sobe num
perfume, ao absoluto êxtase amoroso! Estes
versos que são beijos volatilizados numa prece,
acesos num luar que se insinua nos mais íntimos
e obscuros recantos do coração enternecido; estes versos, tão frequentes no lirismo de João de
Deus, representam as primeiras místicas nupciais da Lembrança com a Esperança, depois de
Frei Agostinho”50.
Quem conhece a obra de Teixeira de Pascoaes, e em particular a leitura cíclica da nossa
história espiritual que o vate empreendeu nas
páginas hieráticas d’Os Poetas Lusíadas, está em
condições de avaliar o alcance extraordinário
que estas palavras encerram. Para Pascoaes, a
morte de Frei Agostinho da Cruz marca o fim
de um ciclo grande e superior no devir espiritual da nação portuguesa. É em Camões e no
monge arrabidino – os dois confrades portugueses que o leitor Pascoaes mais amava51 – que
a nossa Poesia – na autenticidade da sua essência saudosa, está bem de ver – atinge a maior
altura, sendo natural “a sua decadência suceder
ao máximo esplendor”52.
João de Deus é quem vem pôr termo a essa decadência, tornando firme uma tendência apenas
entrevista nos sobreditos movimentos “grandes,
mas ilógicos, abandonados à sua própria energia indomável, actuando em sentidos diferentes, sem obediência a um princípio superior
construtivo”. Esse princípio, a cuja adunação,
ressurgente, se submete já a lírica de João de
Deus, é a Saudade, e eis pois o que está significado na citada menção das “primeiras místicas
nupciais da Lembrança com a Esperança, depois de Frei Agostinho”.
Na Arte de Ser Português, Pascoaes já fora expresso
em incluir João de Deus, a par de alguns outros
nomes, num movimento de pátria Renascença
sob a égide da Saudade, corrente aí porém difusa,
Idem, p. 153.
Leia-se o poema “Agora”, dos Cânticos, in Teixeira de Pascoaes, Londres.Cantos Indecisos.Cânticos, Lisboa, Assírio & Alvim,
2002, pp. 117 e s.
52
Os Poetas Lusíadas, p. 123.
protraída pelos séculos – a eterna Renascença –,
e tanto abrangendo Camões, Frei Agostinho e
Nuno Gonçalves como o poeta algarvio, Camilo
ou Garrett, entre outros. A multidão dos nomes
lusos menos significando a medida do génio ou
do talento no carácter individual (ao arrepio
do sucedido lá fora, na Itália do humanismo
greco-romano; e, modernamente, nas pátrias de
Victor Hugo, Wagner, Nietzsche e Ibsen) que o
perfeito acordo dos vultos insignes com o seu
Povo53. Quanto a João de Deus, já sabemos o
que pensar a este respeito.
6. Até agora, vimos o que Pascoaes pensou de
João de Deus. Era sobretudo esse o nosso propósito. Por isso, pouco mais longe iremos. Limitamo-nos, aliás, a reproduzir o soneto À Minha
Musa, de Teixeira de Pascoaes. O leitor diligente saberá, decerto, relacioná-lo com os “beijos
volatilizados numa prece” que o vate de Gatão
entreouviu na lira de João de Deus. E talvez então a este, desautorizando Pascoaes, deixe de o
poder encarar como um poeta restrito.
À minha musa
Senhora da manhã vitoriosa
E também do crepúsculo vencido.
Ó senhora da noite misteriosa,
Por quem ando, nas trevas, confundido.
Perfil de luz! Imagem religiosa!
Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido!
Corpo, que é alma escrava e dolorosa,
Alma, que é corpo livre e redimido.
Mulher perfeita em sonho e realidade.
Aparição Divina da Saudade…
Ó Eva, toda em flor e deslumbrada!
Casamento da lágrima e do riso;
O céu e a terra, o inferno e o paraíso,
Beijo rezado e oração beijada.
50
Pedro Sinde, O Velho da Montanha – a doutrina iniciática de
Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Hugin, 2000, pp. 79 e ss.
44
Idem, p. 157.
45
Idem, p. 140.
43
Idem, p. 146.
47
Idem, p. 145-146.
48
Idem, p. 152.
49
Idem, pp. 152-153.
46
51
Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português, Lisboa, Assírio &
Alvim, 1991, pp. 107-108.
53
176
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
177
Maria Seoane Dovigo
C AI A N O IT E
A noite cai
sobre os nossos ombros de escravos
e a escuridão tece
um muro de ar negro entre nós.
Carlos Gonçalves
Gabriela Correia
PO R T U GAIS
E MIG R A Ç Ã O
Deambulando vastos horizontes,
buscando áureas visões,
bebemos em cinco fontes.
Miscigenámos amplas ilusões.
Trémulos de desejo e medo
os marinheiros sobem aos mastros
num adeus à urbe velha
e seguem na busca do Destino
desfraldando as velas.
Nos solavancos da largada
embalam o sonho louco da quimera,
lavam as chagas do presente triste
erguendo o orgulho em riste,
desafiando ventos e marés,
levando a fé por companheira,
mais do que a bandeira do país
(que o poeta diz: não é Pátria!)
onde nasceram sob o signo da maldade.
Mas a vontade é mais forte
e a razão deles só eles a sabem.
A vaidade de uns
a certeza indómita e voraz do ouro
e a recompensa no altar de Zeus
há-de levar ao caos e à morte.
dos sonhos mais legítimos e sinceros
nas aras ardentes do mistério
não desvelado
ao transporem os portões do inferno
e as águas agigantadas por Adamastores
Nesse coriolano devir,
mais fortes que o perigo,
mas sem tempo para o florir.
Num vórtice de umbigo,
ultrapassando as primaveras,
tergiversámos culturas
(se não eram sinceras
não mereciam doçuras),
pois que se olhassem a cruz,
assim abraçariam a descoberta,
e de alma bem aberta
banhar-se-iam na luz.
Composto em 2/3 de devaneio
com outro de profusos copitos,
ansiando o fundo de maneio:
é o Portugal dos pequenitos!
Estrelas medidas em bom rigor
fruto de conhecimento radioso,
ensinando o caminho de Nosso Senhor:
Este Portugal tenta ser grandioso!
Mergulhados num oceano sem costas
buscamos a marinha inocente da manhã.
Mas não há gaivotas que anunciem a terra,
não há céu que anuncie o dia.
Perdidos num oceano imóvel,
como uma grande pedra
consagrada a nenhum deus,
andamos à procura
dum tempo e dum espaço
para nos encontrar.
Eu beberei as estrelas
para que as minhas mãos
deitem caminhos de luz
e farei três barcas
com as conchas dos esquecidos
com três panos de prata sobre o leme.
Cantarei um rio de descobertas,
tecerei rios nas ondas
e sonharei a ilha de todos os mares.
Com as mãos cobertas de espinhas
aguardarei que as águas se movam
ao redor desta ilha recendente,
que o vento cante
o ouro dum novo dia,
que os caminhos devorem
a escuridão que nos faz calar.
Desenharei o espaço da tua ausência
e cobrirei-o de rosas cada abril.
Abrir-se-ão feridas nas entranhas da terra,
rios de cristal perfumado subirão pelas avelaneiras.
Aguardarei o meu amigo
à beira das fontes,
à sombra dos pinos,
embalada pelas ondas do mar.
Sonharei sem dormir
que a dor não existe,
que o sol é uma cunca de mel,
e que tu ainda sabes o meu nome.
outros autores
TEIXEIRA DE PASCOAES,
FARIA DE VASCONCELOS e
MILTON VARGAS
178
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
O SAUDOSISMO DE TEIXEIRA DE PASCOAES
CEM ANOS DEPOIS
António Cândido Franco
O
que hoje se designa, cem anos depois, por
saudosismo corresponde a uma das tendências fundadoras da Renascença Portuguesa
(1911-1932), aquela que teve como mentor Teixeira de Pascoaes (1877-1952); essa corrente foi
a que no seio das tensões iniciais da fundação da
associação se mostrou melhor apetrechada para
catalisar a maioria dos sócios, acabando por emprestar o seu imaginário
próprio ao conjunto mais
representativo das actividades que marcaram o
arranque da associação.
O saudosismo de Pascoaes tem porém um estrato anterior, que remonta
à primeira parte da sua
obra poética em verso,
que se iniciou com a estreia de Embryões (1895)
e com a primeira edição
de Sempre (1898). Não
obstante, estes seus primeiros livros, pouco pessoais e que o autor sentirá
mais tarde necessidade de
reescrever em profundidade, não são saudosistas.
Só com Jesus e Pã (1903) e
sobretudo com Vida Etérea (1906) e As Sombras
(1907) se pode falar dum
primeiro estrato para o saudosismo de Pascoaes.
Nestes dois últimos livros, o autor abandona a
saudade como motivo de superfície e mostra-se
capaz de a transformar num lugar retórico de
grande visibilidade expressiva e surpreendente
efeito textual.
Esta metamorfose da poesia de Pascoaes, a partir
da qual Leonardo Coimbra elaborará em 1910
uma terminologia crítica nova, que será aquela que Fernando Pessoa desenvolverá dois anos
depois nos textos da Nova Poesia Portuguesa,
mostra-se criadora de um novo e poderoso estilo, centrado no paradoxo e na metáfora. Esta
revolução poética não pode ser desligada de
questões de pensamento,
como perceberam os seus
dois primeiros críticos.
Quer o paradoxo, muito
sentido nas simetrias que
Fernando Pessoa destacou
na “Elegia” de Vida Etérea,
“A folha que tombava/ era
a alma que subia”, quer a
metáfora, comutando os
termos da matéria pelos
do espírito, revelavam no
seu íntimo movimento
um evolucionismo de tipo
metafísico, que encontrava antecedente em certas
sequências das Odes Modernas (1866) de Antero
de Quental ou nas duas
grandes orações de Guerra
Junqueiro, praticamente
contemporâneas da revolução poética saudosista.
O saudosismo poético de
Teixeira de Pascoaes surge assim nos primeiros
anos do século XX como expressão inovadora,
que criou um modo desconhecido até aí, mas
também como expressão onde se reconhece
a transformação de todo um trilho da poesia
portuguesa imediatamente anterior, do Antero
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
das Odes ao Junqueiro das Orações. Essa mesma riqueza e originalidade de expressão ajudou
Pascoaes a esclarecer um pensamento filosófico
de tipo libertário, com duas longas exposições
em prosa dedicadas ao sentido da vida no jornal anarquista portuense A Vida (14 de Julho
de 1907 e 18 de Agosto de 1907) e que são
contemporâneas das inteligentes e complexas
analogias que vertiginosamente desfilam nas
misteriosas apóstrofes dos versos de As Sombras.
De qualquer modo, certos aspectos filosóficos
do saudosismo só no quadro da proclamação da
República e da fundação da Renascença Portuguesa encontraram terreno favorável para germinarem e frutificarem. Criador de uma nova
poesia, cuja primeira expressão foi naturalmente
o poema, Pascoaes percebeu desde muito cedo
que a sua nova poesia substantiva, a saudosista,
tinha em si uma visão atributiva do mundo, em
que a poesia se transformava em pensamento
poético. A primeira consequência deste trânsito foram as duas longas exposições filosóficas
de 1907, que constituíram a estreia de Pascoaes
como prosador, estreia que aconteceu num jornal operário anarquista, que todavia parecia tirar
o seu nome do tríptico de António Carneiro, “A
Vida”, cujo terceiro painel se chamava “A Saudade” (1901); a República, pretendendo renovar as instituições portuguesas, e a fundação da
Renascença Portuguesa, almejando esta dar ao
novo regime uma orientação cultural que fosse
uma ruptura com os hábitos recentes, prepararam o terreno para a eclosão de um saudosismo
que, sem perder a sua qualidade poética, ganhou
dimensão social, política e religiosa.
É o que acontece na primeira conferência que
Teixeira de Pascoaes fará no Ateneu Comercial
do Porto ao serviço da Renascença Portuguesa
em Maio de 1912, logo impressa em folheto
com o nome de O Espírito Lusitano e o Saudosismo, e que constitui um verdadeiro manifesto,
o primeiro, do saudosismo como pensamento
capaz de dar saída aos problemas mais urgentes
do país. Um ano depois, nova conferência manifesto ao serviço da associação, impressa com
o título de O Génio Português na sua Expressão
Filosófica, Poética e Religiosa (1913), permitiu a
Pascoaes explorar em profundidade as questões
antes tratadas. Foram estes dois textos que leva-
179
ram António Sérgio a polemizar com Pascoaes
nas páginas de A Águia, numa controvérsia de
ideias que ainda hoje, cem anos depois, está por
esclarecer em todas as sua metamorfoses, apesar de ser talvez a mais importante polémica
de ideias travada no século XX português. Em
1914, Pascoaes fará ao serviço da Renascença a
sua derradeira conferência manifesto, A Era Lusíada, a que se junta no ano seguinte Arte de Ser
Português, espécie de súmula final do saudosismo preparada para divulgar em escala alargada
as ideias do saudosismo e que, escrito e pensado
para as escolas da República, se destinava a ser
um manual cívico, e logo depois, em 1919, em
aberta saída, de novo para a poesia, que foi o primeiro estrato do saudosismo, Os Poetas Lusíadas.
Que tirar deste conjunto de textos didácticos,
a que se pode juntar o testamento de ideias de
Pascoaes, escrito no ocaso da vida, A Minha Cartilha (1953) e a autobiografia espiritual, O Homem Universal (1937)? Em primeiro lugar, estes
textos, posto que mais poéticos que didácticos,
só podem ser compreendidos no seio das ideias
avançadas, próximas do pensamento libertário,
se bem que difuso, em que germinaram e se desenvolveram as primeiras acções do grupo nortenho que em 1911 lançou a ideia da Renascença
Portuguesa. Nesse sentido, assinale-se a ágil e
muito consequente profissão de fé de Pascoaes
no anarco-comunismo nos versículos de A Minha Cartilha, mas também, para surpresa de
muitos, afirmações espalhadas pelos textos fortes
de 1912-1915. Leia-se por exemplo este representativo passo da sua conferência de 1912: Eu
creio que conviria imenso à República e a Portugal,
não a separação das Igrejas do Estado, mas a separação de Roma, podendo talvez eliminar-se o alto
clero que foi quase sempre uma nódoa estrangeira
na nossa Pátria, à semelhança dos políticos. Sente-se a afinidade do pensamento social do saudosismo com o nacionalismo literário da geração
de 90, mas muito menos pela via reaccionária do
neogarrettismo de Alberto d’Oliveira, ou pela via
folclorizante do neolusitanismo de Silva Gaio,
que pela larga estrada libertária do universalismo
situado, de feição esotérica, de Sampaio Bruno.
Em segundo lugar, o uso e o abuso do epíteto
‘nacionalista’ aplicado ao saudosismo doutrinário da Renascença Portuguesa é enganador,
180
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
como se tira da Arte de Ser Português e das duas
ideias-chave deste livro – a Humanidade está
acima da Pátria e o Homem, vivendo para a Humanidade, é superior ao que vive para a Pátria.
Pascoaes aceitava a ideia de abertura da cultura
portuguesa ao universal; recusava porém que essa
universalização tivesse obrigatoriamente de se fazer pela imitação de modelos estrangeiros; a cópia parecia-lhe sinal de menoridade cultural, se
não de colonização mental; preferia por isso seleccionar os momentos criadores da cultura portuguesa, apurando um modelo próprio, capaz de
se universalizar e concorrer em pé de igualdade
com os modelos das culturas fortes. O saudosismo na sua expressão social, política e religiosa
talvez tenha sido apenas isto: a tentativa de pôr
cobro à tendência do português para a imitação
mecânica, que se acentuara de forma caricatural
no constitucionalismo da segunda metade do
século XIX, e que vinha sendo virulentamente
questionada, substituindo-a por uma nova singularidade criadora, que não desdenhasse porém
da possibilidade de assimilar criativamente
aspectos superiores de culturas exógenas.
Ao pretender retirar todas as consequências do
seu pensamento poético, dando corpo no quadro
das actividades iniciais da Renascença Portuguesa
a um saudosismo doutrinário, Pascoaes ajudou
por outro lado o seu primitivo saudosismo poético a libertar-se de formas exclusivamente líricas,
aprofundando uma marcante vertente dramática
e dando-lhe uma forma narrativa ampla, cada
vez mais universalizante e humana, como se tira
da publicação de Marános (1911), marcado por
um iberismo dialogante, e sobretudo da poderosa
intertextualidade cultural, tocando variadíssimas
línguas e autores, de Regresso ao Paraíso (1912).
Ao mesmo tempo que o saudosismo de Pascoaes se desenvolvia, alargando-se a círculos
de acção cada vez mais vastos, a sua revolução
poética, criadora de um novo e poderoso estilo,
impunha-se aos poetas mais jovens (entre outros,
Afonso Duarte, Augusto Casimiro, Jaime Cortesão, Mário Beirão, Santiago Prezado, Guilherme
de Santa-Rita, João Lebre e Lima), reorientava as
produções dos poetas imediatamente anteriores,
contemporâneos do primeiro Pascoaes (Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira e
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
António Patrício), animava o aparecimento fora
da cidade do Porto de novas publicações poéticas (A Rajada e Dyonisos), impunha a estreia nas
páginas de A Águia dum jovem crítico tão dotado como Fernando Pessoa, dava lugar em 1912 e
1913 a uma vasta e muito participada polémica
nacional, iniciada nas páginas do jornal lisboeta
República e recolhida depois por Boavida Portugal no volume Inquérito Literário (1915), e que é
a primeira grande controvérsia literária do século
XX português e uma das mais significativas de
sempre, onde se defrontaram em duas trincheiras separadas por um fosso intransponível os expoentes da velha geração, de Adolfo Coelho a Júlio de Matos, de Gomes Leal a Gonçalves Viana
(este nascido em 1840), e os da nova, de Pascoaes
a Cortesão, de Raul Proença a Fernando Pessoa,
de António Sardinha a Hernâni Cidade.
A revolução poética do saudosismo criava assim
entre 1910 e 1913, pela progressiva propagação e
individualização do seu estilo próprio, uma nova
escola poética na poesia portuguesa. Esta nova
escola, que teve o seu antecedente filosófico em
Leonardo Coimbra e o seu desenvolvimento crítico no Fernando Pessoa de 1912, é a primeira
do século XX português e dela saíram, por contraposição imediata ou solução de continuidade,
todas as mais significativas formas poéticas das
gerações seguintes, incluindo o que há em Orpheu de paulista, de interseccionista ou até de
sensacionista e de vertiginista. O saudosismo
de 1912 foi o bojo expressivo onde todas estas
formas estilísticas ensaiaram pela primeira vez a
alucinante combinatória da sua existência.
Merece por isso esta nova escola saudosista um
lugar de destaque, de primeira importância, nas
histórias da literatura portuguesa no que à modernidade e ao século XX diz respeito. Desgraçadamente, cem anos depois, esta escola saudosista
está muito longe de ter o reconhecimento que
merece, já que facilitismos de abordagem e equívocos conceptuais têm até hoje ocultado a sua
importância. A ideia de um primeiro modernismo centrado na revista Orpheu e de um segundo
em torno da Presença, entre Lisboa e Coimbra,
não se tem mostrado adequada, pelo formalismo esquemático (revolução e contra-revolução),
e até pelo exclusivismo (1915 e 1927) em que
se fecha, a examinar com verdadeiro interesse e
isenta imparcialidade a poesia do saudosismo de
Pascoaes e da primeira geração de poetas que lhe
deu largueza e profundidade e que é pela idade a
primeira criação do século XX português.
Assim como assim, a importância fundadora do
saudosismo poético é uma das linhas de força
que do nosso ponto de vista justifica aquela incómoda e pessoalíssima apreciação que Mário
Cesariny fez em 1972, sessenta anos depois do
primeiro manifesto do saudosismo, considerando Teixeira de Pascoaes um poeta bem mais importante que Fernando Pessoa, e que justificaria
só por si, neste centenário, caso houvesse audácia de abandonar o ramerrão conceptual, uma
atenção cuidada, que fizesse justiça, à situação
181
do saudosismo no campo poético português do
século XX e uma homenagem muito especial ao
seu criador, Teixeira de Pascoaes, credor de toda
a grande poesia que se lhe seguiu.
Como a rotina dos lugares comuns é superiormente cómoda e a verdade demasiado audaz
para consciências anestesiadas, o saudosismo
e o seu criador serão decerto esquecidos neste ano de 2012 por aqueles que tinham obrigação de o lembrar e preitear. As fanfarras, os
foguetes e os encómios ficam guardados mais
uns tempos; daqui a três anos sairão das arcas.
Então, sim, haverá champagne, brindes, colóquios, comemorações oficiais e até discurso da
presidência da República. Pobre Orpheu, que
vai a enterrar pacóvio.
100 ANOS (DES)ACOMPANHADOS
DE FARIA DE VASCONCELOS
Abel Coelho
F
arão em outubro 100 anos que na Bélgica,
mais exatamente, em Château des Vallées,
António de Sena Faria de Vasconcelos fundou, à
sua custa, a Escola Nova de Bièrges-les-Wavre,
escola que, nas, suas palavras, foi uma “obra de
experimentação, de análise incessante (…) foi
também uma obra de síntese e de idealismo”.
Porque a modernidade da escola de Faria de Vasconcelos face às novas descobertas nos domínios
da psicologia, nomeadamente da psicologia da
aprendizagem, se mantém; porque FV conseguiu, como poucos, concretizar o princípio de
Aristóteles de que “é fazendo que se aprende a
fazer aquilo que se deve aprender a fazer”; porque à escola nunca como hoje se exigiu tanta
motivação dos alunos, imaginação e coordenação dos professores, flexibilidade dos currículos,
permeabilização entre as disciplinas, formação
no domínio do conhecer, do fazer, do viver
com os outros e do ser (Délors, 1996); porque
o conhecimento só tem razão de ser se tiver
aplicabilidade e utilidade; porque se aprende
mais fazendo do que ouvindo e lendo; porque
o ensino profissional, mais do que o científico-humanístico, pode ser e deve ser um bom laboratório de aplicação de muitos dos preceitos
ou dos exemplos apresentados em “Une École
Nouvelle en Belgique”; porque, como reconhece a OCDE, há sempre jovens que não gostam
de ir à escola, têm pouco interesse, qualquer que
seja o critério de avaliação (OCDE, 1989); porque FV postulava uma Ciência Educativa que
se baseie no Estudo Científico da Criança, na
sua diversidade e singularidade; porque, enfim,
a Escola Nova foi uma abordagem do centenário
experimentalismo republicano, vale a pena sempre reavivar a obra e o pensamento deste grande
pedagogo português.
Dados biográficos
O nome de Faria de Vasconcelos é, porventura,
um nome desconhecido à generalidade da população portuguesa e é, contudo, uma das grandes
figuras intelectuais da Primeira República e da
182
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
história da educação, que se situa no frontispício
da escola nova, da educação ativa, precursor das
designadas novas correntes da pedagogia.
*
António de Sena Faria de Vasconcelos nasceu a
2 de Março de 1880, em Castelo Branco, na freguesia de S. Miguel da Sé.
Era filho de Luiz Cândido de Faria e Vasconcellos, Delegado do Procurador Régio na Comarca de Castelo Branco, e de Maria Rita Sena
Bello de Vasconcellos, pianista, filha do conselheiro Simão Pedro de Sena Bello. O pai de
Faria de Vasconcelos viria a ser juiz em diversas
comarcas, chegando à Relação e ao Supremo
Tribunal de Justiça.
Fez os estudos secundários num colégio dos padres do Espírito Santo. Em 1896, matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra onde se bacharelou em Direito. Em 1900, ano de conclusão do
seu bacharelato, escreveu a primeira
obra: “O Materialismo Histórico e
a Reforma Religiosa do Século XVI”,
onde manifestamente se distancia das
explicações religiosas tradicionais.
Pairam sobre Coimbra as sombras
tutelares de Antero de Quental, e
Faria de Vasconcelos absorve-as, passando do Direito às questões filosóficas e depois à psicologia infantil. Revelava conhecimentos profundos sobre a obra económica
e social de Marx e Engels, porém sentia-se um
homem comprometido com a sociologia, mais
do que com a intervenção política. Preocupa-se com a educação e escreve “O Pessimismo” em
que revela grande interesse por questões como
o dever de educar as multidões e assegurar-lhes
condições de vida dignas. Em1902 foi para a Bélgica estudar na Universidade Nova onde chegaria
a Professor Catedrático. Ainda em 1903 publicou
um pequeno livro com um estudo apresentado
na Universidade intitulado “La psychologie des
foules infantiles”. Em 1904 doutorou-se em Ciências Sociais com a tese no campo da Sociologia
“Esquisse d’une théorie de la sensibilité sociale”, obtendo a maior distinção universitária dos últimos
10 anos quer para doutorandos belgas, quer para
estrangeiros. Lecionou na Universidade Nova de
para o
Século XXI
Bruxelas, no ano letivo de 1903/4. Entre 1905 e
1910, lecionou Literatura Dramática na Extensão Universitária da Bélgica. Porém, em 1907, fez
uma série de conferências na Sociedade de Geografia, em Lisboa. Estas conferências foram editadas em 1909 com o título “Lições de Pedologia e
Pedagogia Experimental”.
Em 1912 fundou a Escola Nova de Bièrges-Les-Wavre. Porém, com o estalar da guerra, em
Agosto de 1914 ocorre a invasão alemã da Bélgica, pouco antes de se iniciar o 3º ano letivo
na Escola Nova de Bièrges. Faria de Vasconcelos
viu-se obrigado a fechar a escola e refugiar-se na
Suíça onde, em Genebra, lecionou no Instituto
Jean-Jacques Rousseau. Ainda em Genebra, Faria de Vasconcelos colaborou com Claparède1 no
Laboratório de Psicologia Experimental e secretariou o Bureau International des Écoles Nouvelles,
criado por Ferrière, em 1899. Foi por este recomendado aos governos de Cuba e da
Bolívia para a criação e desenvolvimento, nesses países, das Escolas do Magistério Primário. Em 1916, Menocal foi
reeleito presidente de Cuba e Faria de
Vasconcelos exercia as suas funções de
educador naquele país, fundando escolas segundo o modelo de Bièrges e
proferindo conferências no Ateneu, na
Academia e no Colégio Inglês. O clima
cubano é-lhe, porém, desconfortável e
ele, no primeiro semestre de 1917, deixa Cuba com destino à Bolívia, integrando uma
missão educativa belga. “Por Terras de Além-Mar”
é o livro de viagens que ele escreve, a propósito
da sua deslocação para a Bolívia. Na viagem conhece a grande realização americana do Canal do
Panamá e rende-se ao espírito empreendedor e à
forte organização do trabalho norte-americano,
comparando-o com o atavismo latino: “o problema fundamental dos latinos é um problema de
educação, de direção espiritual, de organização, de
construção, que demanda tempo, esforço persistente, inteligência clara dos nossos defeitos e aptidões e um ideal nitidamente orientado”. VasconÉdouard Claparède (1873-1940) foi um neurologista e psicólogo do desenvolvimento infantil, destacando-se nos estudos
da psicologia infantil, da pedagogia e da formação da memória.
Foi o fundador, em 1912, do Instituto Jean-Jacques Rousseau,
uma instituição da Universidade de Genebra dedicada à investigação e ao ensino da psicologia e da psico-pedagogia.
1
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
celos, Faria de – Por Terras de Além-Mar: Viagens
na América – Lisboa, Seara Nova, 1922, pp 7-26.
Fica em La Paz para organizar a secção de Psicologia e Pedagogia da Escola Normal Superior.
Exerce o cargo de Diretor da Escola Normal de
Sucre. Infatigável, em Sucre irá exercer o cargo
de diretor da Revista Pedagógica e iniciar um
processo de transformação das metodologias
de ensino, em conformidade com as experienciadas na Escola Nova – o self-government;
criou a secção de “Jardineiras das Crianças”,
introduziu o 4º grau primário com tendências
profissionais também em escolas femininas;
lançou bibliotecas itinerantes, criou o gabinete
de informações pedagógicas.
Em Cuba e na Bolívia publicou variados ensaios
sobre Psicologia. A sua ação foi determinante.
Foi à educação, com este sentido social transformador, que dedicou toda a sua vida. O Direito
foi apenas o seu ponto académico de partida.
Em Outubro de 1920, Faria de Vasconcelos voltou
para Portugal e participou, com António Sérgio,
numa tentativa de reforma educativa. Não se conhecem as suas relações com o Estado Novo; foi
professor na Universidade de Lisboa. As Obras
Completas incluem ensaios sobre Psicologia, Educação, Ensino e Pedagogia. Morreu em 1939.
Faria de Vasconcelos
no contexto filosófico e social
Ora, FV nasce em pleno contexto de roturas nos
modelos educativos. Leiam-se Os Maias e atente-se à importância que Eça dá à educação, confrontando a educação física e experimental com
a cartilha. O positivismo de Augusto Compte
estendia-se à educação. Pretendia-se construir o
“homem novo”, liberto da teologia e da metafísica.
A dobragem do século XIX para o XX foi acompanhada desse olhar diferente sobre a Pedagogia
e a Psicologia. Com Pestalozzi, Froebel, Herbart
e, principalmente, com John Dewey2, a experimentação é a essência da aprendizagem e da
formação que transformarão a escola, o cidadão
livre de Deus e do seu modelo terreno, o rei. A
nova pedagogia ativa transporta uma carga ideJohn Dewey (1859-1952), nos Estados Unidos, sustenta que
a educação deve ser baseada no que as crianças precisam e não
no que se pensava que elas deviam saber.
2
183
ológica forte: é herdeira dos ideais do Emílio de
Rousseau e da revolução francesa. A escola nova
pressupõe métodos e práticas novas para construir um homem novo e um povo regenerado. É
uma ciência porque a experimentação constitui
os fundamentos da ciência e a pedagogia positivista republicana encarna no cientismo de Spencer3. Acompanha o homem novo que se pretende construir, o homem que pode desenvolver
as suas próprias capacidades, transformados em
cidadãos criativos e autónomos para que se pudessem tornar responsáveis. Os ideais da escola
nova identificam-se com os ideais republicanos.
Assim, entende-se que é obrigação do Estado que
quer construir cidadãos verdadeiramente livres,
proporcionar condições de aprendizagem onde
esse homem realize as suas próprias aptidões.
A este propósito, Cristiana de Soveral vê em Faria
de Vasconcelos, basicamente, um seguidor e praticante das correntes de pensamento positivista e
experimental, considerando que “o positivismo
de Faria de Vasconcelos vai-se aproximando de
Lafitte, como também o fez Teófilo Braga”4
Une École Nouvelle en Belgique 5
“Une École Nouvelle en Belgique” é uma obra
que resulta de um conjunto de conferências,
publicadas em 1915, mas ainda não traduzidas
em português, e onde se relatam as experiências
pedagógicas que davam corpo às teorias da pedagogia ativa implementadas na Escola Nova de
Bièrges-les-Wavre.
A escola foi fundada, como atrás se referiu, em
Outubro de 1912, e constituiu-se como a primeira Escola Nova6 fundada no campo na Bélgica.
Para tal, organizou-se um comité de apoio formado pelo embaixador de Portugal na Bélgica, Alves
da Veiga, pelo do Brasil, Oliveira Lima, e com
Herbert Spencer (1820-1903) é um seguidor dos estudos de
Darwin e autor de uma das frases mais expressivas do evolucionismo “a sobrevivência do mais apto. Aplicou os princípios do
darwinismo biológico ao social.
4
Soveral, Cristiana de, e Paszkiewicz, “Faria de Vasconcelos:
uma aproximação ao seu pensamento”, in AAVV, O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro. Actas do I Congresso Internacional,
Vol. I, Lisboa, INCM, 2009, p. 248
5
As transcrições de Une École Nouvelle en Belgique não pertencem a nenhuma tradução ainda publicada pelo que não são coincidentes as páginas referidas com qualquer versão em francês.
6
Estas escolas obedeciam ao lema de que o que mais importava
eram os interesses das próprias crianças.
3
184
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
o apoio de Decroly, Ferrière e outros pedagogos.
O ensino da Escola Nova centrava-se na aprendizagem, partindo-se dos seus próprios interesses,
motivações e aptidões. Postulava a pedagogia diferenciada, o ensino individualizado, a metodologia ativa aplicada através do desenvolvimento de
projetos, ensinando a fazer para melhor se aprender a conhecer, numa permanente interação com
o outro para fazer do aluno um melhor cidadão.
Uma escola ativa facilita a aprendizagem e obriga
à implicação da criança no processo educativo,
mobilizando inteligência, sensibilidade e vontade.
No prefácio de “Une École Nouvelle en Belgique”, Ferrière7 apresentou uma grelha de classificação das escolas modernas, pontuando a Escola
de Bièrges com 28 pontos, seguindo-se-lhe a Escola de Bedales, em Inglaterra, com 25 pontos; a
Escola de Abbotsholme, também em Inglaterra,
com 22,5 pontos; a Escola de Lietz, na Alemanha, com 22 pontos; a Escola des Roches, em
França, com 17,5 pontos. Faria de Vasconcelos
é qualificado por Ferrière como “ce pionnier de
l’education de l’avenir”.
O livro é constituído por quatro capítulos, a saber: o primeiro, sobre o “Meio ambiente e educação física”. Aí reforça o seu idealismo e visão humanista da sociedade. “(…) acima dos homens e
das nações, perdura o espírito humano” (p. 22).
Diz ter instalado a escola numa região agrícola
para que os alunos pudessem “acompanhar de
perto as grandes aplicações da ciência à técnica e
à exploração do solo;” (p. 26). Noutro ponto, e
para acentuar a individualização do trabalho diz
“Dos dois edifícios das aulas, um é especialmente reservado a ateliês e laboratórios. Inclui: uma
oficina de serralharia, uma carpintaria, um laboratório de física e de química e uma oficina de
modelagem (…). Os ateliês afastados das outras
salas de aula para não perturbarem as aulas que
exigiam silêncio, calma e concentração (…)” p
30. Por outro lado, acentua o velho espírito clásFerrière (1879-1960) foi o fundador do Bureau International
des Écoles Nouvelles (1899). Construiu uma grelha para catalogar os 30 princípios segundo os quais era possível reconhecer
uma «escola nova». À Escola de Bièrges foram atribuídos 28
pontos. “Os únicos princípios que não se cumpriam em Bièrges
eram a co-educação dos sexos (por ser proibido pelas leis belgas) e, em parte, o agrupamento dos alunos em casas separadas
(por ter sido impossível na altura construir novos edifícios” –
Une École Nouvelle en Belgique, pp.18-19.
7
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
sico de “alma sã em corpo são”: “O que é importante para a cultura do corpo, nos cuidados de
beleza e vigor, é um regime de vida saudável” (p.
idem). Este primeiro capítulo debruça-se sobre
a fundação da escola, a localização da escola, os
edifícios, a higiene do corpo, a educação física,
os trabalhos manuais e os trabalhos no campo.
O segundo capítulo incide sobre a educação
intelectual, favorecendo o contacto da criança
com a terra, com o seu meio natural, respeitando as necessidades e interesses de cada uma,
rejeitando-se toda a forma de currículo rígido e
inflexível, construindo-se classes móveis e individuais em oposição às “classes regulares sucessivas”, alimentando a interligação dos conteúdos
e dos trabalhos já que se entende que “Todas
as ciências se completam, explicam-se umas às
outras, entreajudam-se pela reciprocidade dos
seus factos, dos seus princípios e até mesmo dos
seus métodos (…)” (p. 81). O objetivo da educação é, pois, formar para a vida real “através
de métodos de educação integral”. Repare-se
na atualidade desta afirmação: “O trabalhador
culto conhece e exerce a sua profissão com mais
inteligência e habilidade que o trabalhador que
se especializou demasiado cedo” (p. 83).
O terceiro capítulo é sobre “Alguns processos de
ensino”. Discorre sobre as aprendizagens das ciências naturais, a matemática, as línguas, a geografia e a história; afirma a dispensa de manuais
escolares, preferindo autores onde se incluem, designadamente, Júlio Verne, Tolstoi, Fabre, Vitor
Hugo, Charcot, J. Renard, Rambaud, Hoefler…
O quarto capítulo incide sobre a “Educação
moral, social e artística” – o meio material e social, a autonomia, os valores de liberdade, autoridade, de sanções; as artes; a educação sexual e
a coeducação.
*
Como nota final, pode perguntar-se se mantêm
validade as práticas da Escola Nova de Bièrges,
o seu apelo ao ensino motivado, ao desenvolvimento das capacidades individuais, ao desenvolvimento do trabalho de projeto, ao ensino centrado no aluno e não nos programas, ao estímulo
da criatividade e do pensamento crítico. Lendo
a Estratégia de Lisboa 2000 e a Estratégia Euro-
pa 2020, o Relatório Délors – “Educação, um
tesouro a descobrir” – parece que sim; ouvindo
e lendo o senhor ministro da educação Nuno
Crato, o seu “Eduquês em discurso direto” e as
suas mais recentes medidas, parece que se caminha numa direção absolutamente oposta.
Com efeito, o último relatório da OCDE denuncia que no sistema educativo português “a
oportunidade dada aos pais e aos estudantes de
influenciar as aprendizagens é mais limitada do
que noutros países” e reconhece que em Portugal “o aluno não está no centro da aprendizagem
porque existem elevados índices de repetência,
acima da média da OCDE” e aponta para que
o aluno seja o centro da escola e não o programa rígido, universal e desligado do quotidiano
do jovem. Acentua ainda como prioridade a
necessidade de colocar maior enfoque nas práticas educativas e menos nos testes e nas classifi-
185
cações. Crato considera que isso são utopias de
uma escola construtivista, moderna e romântica
que promovem a ignorância.
Pela parte que me toca, com maior ou menor
relevância sobre um ou o outro olhar, a diferença entre os rotulados de “rousseaunianos” e
os racionalistas é a diferença entre uma escola
de inclusão, de oportunidades para todos com
eventual sacrifício de uma maior excelência de
uma minoria, ou o pagamento do custo de uma
maior exclusão e injustiça social em troca do
eventual aumento de ganhos da referida minoria. Este diferente olhar constitui-se como uma
questão ideológica e política correspondendo a
uma fratura entre uma escola democrática, um
ensino para todos e uma aprendizagem ao longo
da vida, e uma escola de competição, de individualismo e de sucesso para alguns.
NA MORTE DE MILTON VARGAS
António Braz Teixeira
N
o final do ano passado, quase centenário,
faleceu o filósofo brasileiro Milton Vargas
(1914-2011), membro destacado do que se convencionou designar por “Escola de São Paulo”,
movimento especulativo desenvolvido na capital paulista, durante a década de 50 e 60 do
século XX, em torno do Instituto Brasileiro de
Filosofia, em que participaram os portugueses
Agostinho da Silva (1906-1994) e Eudoro de
Sousa (1911-1987).
Amigo, companheiro e convivente de Vicente
Ferreira da Silva (1916-1963), desde o tempo
em que ambos frequentaram o Ginásio São
Bento e aí foram despertados para a reflexão
filosófica pelo magistério de Leonardo Van
Acker (1896-1986), engenheiro de formação,
membro fundador do Instituto Brasileiro de
Filosofia e editor da revista Diálogo, em que
abundantemente colaborou, professor da Escola Politécnica da Universidade paulista, Milton
Vargas dividiu a sua actividade especulativa pela
Epistemologia, pela Filosofia da Ciência e pela
Estética, numa perspectiva que, como noutros
destacados membros da “Escola de São Paulo”,
conferia decisivo lugar à noção de cultura.
A sua obra filosófica, cuja parte mais significativa se acha reunida nos volumes de ensaios Verdade e Ciência (1981), Poesia e Verdade (1991) e
Para uma Filosofia da Tecnologia (1994), tem o
seu ponto de partida na ideia de que a essência
do fenómeno humano se encontra na trilogia
homem-linguagem-técnica, pretendendo com
isto significar que só é verdadeiramente humano
o ser dotado da capacidade de comunicar pela
linguagem e de fabricar utensílios pela técnica.
Para o pensador paulista, se é certo que a lingua-
186
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
gem e a técnica são obra do homem, que fazem
parte da sua cultura, não poderia imaginar-se o
homem desprovido de nenhumas delas.
Por outro lado, a cultura era para ele entendida
como um sistema simbólico que, tendo embora a sua origem na natureza e no homem o seu
agente transmissor, não se esgotava no mero
comportamento humano no mundo que o circunda nem se limitava à simples percepção e
memorização das coisas mas constituía um sistema complexo que englobava, num modo de acção recíproco, o homem, o símbolo e a técnica.
Lembrava, ainda, o engenheiro-filósofo que
os símbolos eram uma realidade inteiramente
diferente da natureza ou do mundo natural,
constituindo a essência das culturas humanas e
sendo dotados da propriedade de se combinarem entre si e de darem origem a determinadas
cadeias de significados.
A linguagem seria, para Milton Vargas, um desses sistemas simbólicos, a qual permitiria a interiorização das imagens captadas pelos sentidos,
possibilitando um “projecto” de acção no mundo e o aparecimento de um outro “mundo”, o
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
das formas simbólicas.
Elemento imprescindível para uma adequada
compreensão do aparecimento da cultura seria,
para o pensador brasileiro, o mito, que entendia
como relato das acções dos deuses que haveria
dado origem às estruturas e às instituições culturais do homem, como a linguagem, as artes,
as técnicas, a família, a religião, o governo e a
guerra, relato esse que constituiria determinadas
formas de comportamento, que deveriam ser
obedecidas ou respeitadas pelos homens.
Pensando, como outras figuras destacadas da
“Escola de São Paulo” (Vicente Ferreira da Silva,
Eudoro de Sousa e Adolpho Crippa), que as raízes dos mitos se encontram além ou aquém da
História, num outrora originário e fundador, o
filósofo paulista pensava, igualmente, que as diversas culturas míticas contêm, cada uma delas,
modelos de comportamento incomunicáveis e
insusceptíveis de ser transpostos ou incorporados noutra cultura, se bem que admitisse serem
dois produtos fundamentais da originária cultura mítica – a escrita e a contagem regular do
tempo – que se achavam na génese da História,
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
fazendo que os relatos míticos, contados e de corados pelas sucessivas gerações, houvessem chegado até hoje, embora despojados, agora, da sua
primeira natureza de modelos divinos, apresentando-se, actualmente, com o carácter de lendas
fantásticas, mais dirigidas à nossa imaginação do
que à nossa compreensão.
Isto não significaria, contudo, segundo Milton
Vargas, a morte ou a definitiva e irreparável perda de sentido dos mitos ou da mitologia, pois
aqueles são elementos constitutivos essenciais
da psique humana e, nessa medida, da mesma
cultura. Deste modo, a filosofia não seria algo
que invalidasse ou substituísse o saber mítico,
devendo, antes, entender-se que nem ela destrói
a mitologia nem a ciência as destrói a ambas,
sendo mais acertado admitir ou reconhecer que
mitologia, filosofia e ciência coexistem no nosso
entendimento como diferentes formas de exprimir uma única e mesma realidade, nenhuma delas podendo considerar-se superior a outra, nem
sendo legítimo afirmar a existência de qualquer
progresso entre elas, porquanto o que haveria
era um suceder em que coexistem as três, no
fim, no meio e no princípio, cabendo advertir
que aquilo que, porventura, se tenha ganho em
universalidade com a filosofia e a ciência, se perdeu no que respeita ao contacto directo com as
coisas que o mito proporcionava.
Esclarecia o mestre paulista que, em seu modo
de entendê-la, a filosofia visava, antes de mais,
responder à “pergunta ontológica” ou à pergunta sobre a realidade, notando que esta
compreendia três espécies diferentes de seres,
que denominava existências, entes e valores e se
encontrava dividida ou distribuída por cinco
regiões, correspondentes, respectivamente, à
existência subjectiva, à natureza, à cultura, às
ideias e às ultimidades, sendo o domínio da
ciência o estudo das três regiões intermédias,
aquilo que, em regra, se designa por mundo ou
que se nos depara na vida prática.
No pensamento epistemológico de Milton
Vargas, o saber científico era entendido como
uma visão que objectiva a realidade mundana, a
qual, por seu turno, é regida por leis científicas
formuladas pelo homem, apresentando-se, por
isso, como realidade bipolar que implica, ne-
187
cessariamente, sujeito e objecto. Deste modo, o
conhecimento científico, como todo o conhecimento, reveste-se de um carácter hermenêutico,
é sempre uma interpretação, pois só é possível
compreender as coisas pela sua significação, apenas o que é captado pelo símbolo se encontra à
nossa disposição e não a coisa em si, a qual se
furta, inteiramente, ao conhecimento humano.
Daqui decorria, então, que toda a teoria científica
mais não seria do que um sistema de símbolos
linguísticos e matemáticos, que proporcionava
um determinado significado, em que o símbolo
dispensa a coisa em si, apresentando-se como a
própria coisa. Por outro lado, o conhecimento
científico é um conhecimento fenoménico, dado
que os seus objectos são apenas fenómenos e
nunca o ser em si na sua totalidade, cabendo ainda ter em conta que o entendimento dos fenómenos unicamente se torna conhecimento científico
quando esses mesmos fenómenos são unificados
e se tornam coerentes no símbolo científico, adquirindo significado e cognoscibilidade.
Daí que, como notava o filósofo paulista, a teoria
fosse sempre uma “visão do espírito” e não a própria realidade concreta, em toda a sua exuberante, complexa e múltipla plenitude, a operação do
espírito mercê da qual algo se torna visível, o que
faz do saber teórico um “ver” com os olhos do
espírito uma realidade ordenada, que se ocultava
sob o caos das coisas ou dos entes do mundo, implicando, por isso, todo o conhecimento humano, inevitavelmente, a opção por uma determinada atitude perante as coisas, uma forma estabelecida, postulada ou pressuposta como verdade.
Deste modo, segundo Milton Vargas, a ciência
moderna, ao assentar na cisão entre o eu e o
mundo, vinha a consistir num saber ôntico, que
revela apenas as determinações dos entes e não
a “coisidade” das coisas, renunciando, por isso,
a chegar ou visar qualquer saber absoluto, antes
constituindo um saber relativo que, no entanto,
tem em si a marca da verdade insusceptível de
ser contestada e se apresenta como única forma
legítima de pensamento.
Uma das mais importantes dimensões da reflexão de Milton Vargas é a relativa à estética, cujo
ponto de partida é o de que a obra de arte tem
não só a capacidade de modificar o mundo em
188
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
que vivemos, como, ainda, o poder de desvelar
ou de instituir aspectos desse mesmo mundo
por nós ainda não vivenciados. A esta capacidade, própria de toda a obra de arte, acresceria,
no caso da poesia, cujo material é a própria linguagem, a possibilidade de “pronunciar pela primeira vez, denominar ou preservar” os aspectos
insuspeitados da realidade, escondida ou oculta
“nas aparências fugazes do mundo”, a verdadeira
face dos entes ou do ser do existente.
Porque a obra de arte poética cria o seu próprio
material, a linguagem, a qual é originariamente poética, a poesia seria a primeira das artes,
sendo a sua essência a própria essência da arte.
Pela mesma razão, a poesia ou a palavra poética
aparece como categoria inaugural e fundadora de todo o mito, assim como impregna toda
a mitologia e é a épica iniciadora da História,
encontrando-se também presente em todas as
formas de revelação religiosa.
Para o especulativo brasileiro, a obra de arte
e, de modo proeminente, a poesia e a palavra
poética são sempre a verdade, cumprindo, notar, porém, que aqui o conceito de verdade ou
a essência da verdade não se situa no plano do
conhecimento ou da relação cognitiva do sujeito relativamente ao objecto, devendo antes entender-se num sentido ontológico, como “algo
instituidor ou fundamentador que ocorre anteriormente à coisa e à proposição, ao estabelecer-se um mundo”, o que significará, então, que a
essência da verdade que a arte revela ou funda
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
“é sempre correlacionada com a interpretação
de tudo o que existe, em qualquer idade ou em
qualquer grande era da história”.
Nesta visão fundadora, reveladora ou instituidora da arte, caberia papel primordial à poesia, pois
o falar inicial é poético antes de ser lógico, dado
que o mito precede o logos, pertencendo aos poetas o estabelecer o que é verdadeiro, permanente
e sagrado, assegurando, assim, o que é essencial
para a existência humana. É pela palavra que se
denominam os deuses, se instituem os ritos, se
narram os mitos e tudo o que é sagrado, se estabelecem as culturas e se contam as suas histórias
e se proclama a sua decadência e o seu fim, bem
como a ocultação e a morte dos deuses.
A este propósito, notava Milton Vargas que, no
pensamento mítico, diversamente do que acontece no pensamento lógico, em vez da relação
sujeito-objecto, ocorrem várias subjectividades,
entre as quais se cria ou estabelece uma relação
de compreensão, uma vez que nele o homem
não se separa do mundo nem da natureza mas
faz parte deles como de todo o cosmos. Desta
forma de pensamento própria do mito, algo
subsiste na arte e, de modo especial, na poesia, em que há, não descrição, classificação ou
conhecimento de objectos, mas desvelamento,
visão, compreensão de algo que é o mundo, feito na linguagem dos símbolos que, por via do
insconsciente, liga o homem à totalidade do
cosmos, sem, contudo, se separar da imaginação
do poeta ou do artista.
António José Borges
de al gum zoroa s t ris m o
no dia em que renasci alistei-me ainda
inconsciente na peleja que me foi despertando
sei agora que devo tomar parte na batalha cósmica
a moral da luta entre o bem e o mal
resolvi-me pela porção idealista e alcunhada de utópica
e assim tenho vivido na diligência do prazer de querer viver dentro do sonho
não procurando a vitória espero deixar o meu cunho perto dela
pois não tenho por antecipação como certo voltar sob uma outra forma
189
Maria Filomena Xavier
IN V O C A Ç ÃO A BO C AGE
Pois pobre Bocage
que já não falas
de falar eu estou
cansada de tanto ouvir
não de ti
mas deste mundo.
Vinte séculos sem fim
que rolam as palavras
que são malditas
que as bem ditas
foram tuas
as magoadas
saem de mim
que já fui mulher
e subi montes
e desci escadas
encostei as mãos
às janelas dos meus olhos
e estrelas reflectiram.
Tirei água com os limos
os musgos
e os plátanos.
Chorei sem chorar
Gritei sem gritar
Ri-me sem rir
Cantei sem cantar
Vivi sem viver
Que já fui mulher
Soaram as horas
na tarde mascarada
fiquei presa ao fio do Nada.
RUBRICAS
190
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Outros Sítios
ENTRECAMPOS
J. Pinharanda Gomes
A Livraria Portugal
Durante anos e anos, pelo menos desde os longínquos em que já só faltavam quarenta para
o fim do século XX, criei o hábito de adquirir
livros, regra geral, na Livraria Portugal, sito na
Rua do Carmo, n.°s 70-74, à esquerda de quem
sobe, quase junto a outra casa histórica, a Livraria Lello, e fazendo esquina com a Rua de
Santa Justa. Um sítio ao que parece esplêndido,
com montras para as duas ruas, para a promoção de venda de livros. Para além de ser o mais
frequentado balcão livreiro da cidade, dispondo
de existências de obras de todas as especialidades, os empregados de balcão eram mais valia.
Noutras casas, foi possível encontrar empregados que, à pergunta se tinham este ou aquele livro, fácil lhes vinha a resposta – não – e, quantas
vezes esse livro estava no escaparate da parede,
nas costas do empregado. Na Portugal, nunca
tive essa experiência. Na dúvida o empregado
sumia-se por uma pequena porta, por detrás do
balcão, decerto a consultar o ficheiro, e voltava
com a resposta, sim ou não, ou, suba ao primeiro andar, ou, quer que se mande vir... Aliás, a
Livraria Portugal editava com regularidade, desde 1953, o Boletim Bibliográfico, informando de
tostas as obras disponíveis, sobretudo as mais
recentes. O Boletim era habitualmente ilustrado por uma crónica, na última página, assinada
pelo Doutor José Pedro Machado, crónicas essas
que chegaram a ser reunidas em dois volumes;
Factos, Pessoas e Livros, publicados no 30.° aniversário da Livraria (1971).
Propriedade da firma Dias e Andrade, Lda., a
vasta clientela, que de muitas partes do mundo
se lhe dirigiam à procura de bibliografia pouco
corrente no mercado tornou possível, a muitos autores que editavam pequenos estudos em
separatas de publicações, verem essas separatas
aceites pela Livraria, à consignação. Durante
anos beneficiámos deste sistema, mediante o
qual dezenas de separatas foram transaccionadas,
chegando mesmo, por informação do Boletim
Bibliográfico, a clientes no Estrangeiro, sobretudo Universidades e Bibliotecas interessadas em
temas de antropologia e de cultura portuguesa.
A quantidade de separatas era sempre modesta,
umas dez ou doze, e o seu preço de venda, consoante o número de páginas, raramente ia além
de 200/300 Escudos (= Euro 111.5), mas a sua
venda ajudava quando, adquirindo livros, procedíamos ao encontro de contas. O débito era
sempre muito superior ao crédito, mas ajudava.
Lá tive ensejo de conhecer alguns escritores, entre
eles o poeta Armindo Rodrigues, amigo do principal proprietário da Livraria, o sr. Henrique Pinto, que, além de respeitado livreiro, era também
um atleta praticante (apesar do seu coração) e um
homem desprendido dos poderes do mundo.
Com o romancista Francisco Costa, cuja amizade estimava (ainda participámos, em Sintra, na
celebração das bodas de ouro do casamento do
romancista com a Sr.a D. Feliciana) tinha um
peculiar entendimento da justiça social e das
relações capital/trabalho. Em tempo, muito a
tempo, testamentou que uma parte do seu capital na Livraria fosse doado e dividido em quotas
pelos mais antigos colaboradores, que, por isso,
se tornaram co-proprietários.
Mantemos boa memória de todos quantos conhecemos, aqueles com os quais lidámos de
perto – srs. Reis, Machado, Simões, Joaquim,
Lopes, Manuel, Arronches, que nos lembre.
Agora, 71 anos após a fundação, a Livraria Portugal encerrou. E, com este encerramento, desaparece uma parte válida da cultura livreira e
da paisagem cultural do Chiado.
No dia em que, na Rua do Carmo, nos apercebemos das obras no edifício que fora da Livraria Portugal, tínhamos passado por outros sítios
emergindo então na imagem retrospectiva. A
Leitaria Irlandesa, na esquina da Rua Alexandre
Herculano com a Avenida da Liberdade (que fora
do romancista José Loureiro Botas, e local onde,
durante anos, a tertúlia de Álvaro Ribeiro/ José
Marinho e discípulos se reunia às quintas feiras)
vi que estava já sem vida activa. Seguindo a pé, a
desagradável surpresa de, ao descer a Rua da Misericórdia, o n.° 68 já estar fechado e vazio, com
escrito para arrendar: era a Livraria Guimarães,
fundada por Delfim Guimarães, que veio a ficar
na posse do Dr. Francisco Guimarães da Cunha
Leão, e que foi adquirida por outro empresário.
Continuando a descer, na Rua Garrett, ainda nos
ocorreu a imagem do Café Chiado, amplíssimo,
ora ocupado por uma Companhia de Seguros.
O Café Chiado, que se estendia por um amplo
rés-do-chão, em duas ou três salas interligadas,
abria com um átrio, com montras envidraçadas,
para ser ver o movimento da rua. Estava mobilado com mesas e cadeiras de verga. À direita
duas colunas de mármore, que ladeavam a porta de acesso ao W.C. dos homens. Um histórico
frequentador deste Café, o jornalista e boémio
Gualdino Gomes (1857-1948) baptizara as colunas com um nome: «Colunas de Mijâncio».
Lá tertuliei, ainda rapaz novo dos meus vinte
anos, com um grupo de convivas, dos quais lembro dois. Um, o jornalista reformado, anarquista,
Carlos Silva„ que mandara imprimir uns cartões
de visita com os dizeres «abençoado pelo Cardeal
Patriarca de Lisboa», porque este, agradecendo
qualquer escrito que o jornalista lhe enviara, talvez crítico, agradeceu com um cartão, com uma
bênção. Outro, João Pires dos Santos, que subscreveu livros e artigos com o pseudónimo Leal de
Zêzere (era natural de Casegas, Covilhã). Escritor dos submundos, registam-se dois títulos: Homens e Feras que eu vi, (1951) e No Mundo do Delírio e da Alucinação (1955), reportagem de uma
adrede permanência no Hospital Júlio de Matos.
Um livro terrível. Quando o conheci, andava entusiasmado com a publicação de uma revistas de
artes, letras e actualidades, Esfera (que publicou
191
desde Agosto de 1956 a Julho de 1959) sempre
com dificuldades e atrasos. Morava no Rua do
Arco a S. Mamede, era personagem quotidiano
do Café Chiado. O título da revista Esfera, veio a
ser retomado no jornal mensal de Gabriela Castelo Branco e Graça Cid (1963). Também participámos de uma outra tertúlia, da qual eram
habituais os escritores e jornalistas Alfredo Margarido e sua mulher, a bailarina Maria Manuela
Margarido, Carlos Cunha, José de Melo e Paulo
Jorge, angolano activista.
Ocorre-nos agora que, no decurso dos anos, o
Café Ribatejano, ao começo da Rua dos Anjos, à esquerda de quem sobe a Av. Almirante
Reis, virou loja de utensílios. Do lado direito da
mesma Avenida, o Café Colonial já não existe,
e parece em ruína. Do Café Lusitano, com suas
colunas maçónicas, na Rua da Prata, julgo já
não ser o Café que era antes de 1974. A Leitaria
Paris, também na Av. Almirante Reis, no lado
esquerdo ascendente, a seguir ao Desterro, creio
que ainda existe, mas tipo snack-bar. Do Café
Arraiano e da Pastelaria Estrelas Brilhantes em
Campo de Ourique, onde já não vou há muitos
anos, não encontro os nomes na Lista Telefónica de Lisboa. Enfim, pouco depois da morte
de José Marinho, a Pastelaria Nova Iorque, no
começo da Av. dos Estados Unidos da América,
junto a Entrecampos, do lado esquerdo, tornou-se um banco de garrida cor vermelha. Já muito
antes tinham fechado os Cafés Chave de Ouro
e Portugal, no Rossio, tendo sido neste que José
Marinho reunia com os frequentadores da sua
tertúlia, em que ele perorava como só ele sabia.
Frequentadores chamavam a estes convívios as
«missas de Marinho». Mais acima, no Largo
João da Câmara, o Martinho do Rossio, agora
Banco. Na cave onde universitários costumavam
fazer sala de estudo, lá conheci dois jovens que
se tornaram distintos – o romancista José Martins Garcia, que ainda se não revelara, mas chegou por então a escrever um artigo para a página
literária do semanário O Debate, e o professor de
filosofia José Trindade Santos.
Na Praça dos Restauradores já não existe o amplo Café Aviz com envidraçada portaria e onde
se costumavam encontrar Tomás de Figueiredo,
Manuel Anselmo, Amândio César, Goulart Nogueira e outros.
192
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Uma Lisboa desaparecida, e, com ela, os sítios em
que, itinerantes e livres, «os da filosofia portuguesa»
se juntavam, com frequência mudando de poiso,
mas, depois de 1975, ano da morte de José Marinho, salvo alguns encontros com Álvaro Ribeiro, no
Estrelas Brilhantes, esse convívio chegou ao fim.
In Memoriam:
Benzion Netanyahu (1910-2012)
Na idade de cento e dois anos, faleceu em Jerusalém no pretérito dia 30 de Abril o historiador
e pensador Benzion Netanyahu, pai do Primeiro
Ministro de Israel, Benjamim Netanyahu.
A cultura hebraico-portuguesa deve-lhe magistrais páginas acerca de temas e figuras de um
medieval tempo vivido por judeus e cristãos no
Reino de Portugal.
B. Netanyahu, de genealogia askenasi, nasceu
em Varsóvia e, na idade de dez anos passou
com seus pais para Tel-Aviv. Em tempo aderiu
ao Partido Sionista Revisionista, de que se tornou activo militante, dirigindo ainda o jornal
Ha-Yarden. Em 1940 emigrou para os Estados
Unidos, onde protagonizou importantes cargos
no movimento sionista, exercendo a docência
de Estudos Hebraicos em várias Universidades,
entre elas a de Denver, exercendo também a gestão de Iniciativas editoriais. Foi Editor geral da
Encyclopedia Hebraica (1948-1962), da Enciclopédia Judaica (1961-1963) e da História Mundial do Povo Judaico (The World History of the
Jewish People) em vários volumes (1954-1964).
Entre as suas principais obras de que a Biblioteca Nacional (Lisboa) dispõe, para além da notável Enciclopédia Judaica, contam-se dois estudos
de fundamentação histórico-filosófica: Don Issac
Abravanel. Statesman and Philosopher (Edição
da The Jewish Publication Society of America,
Philadelphia, 5713 [ 1953], 346 páginas; e The
Marranos of Spain from the Late XIVth to the early XVIth Century according to the Contemporary
Hebrew Sources (Ed. da American Academy for
Jewish Research, 1966, e 1973, 280 pp).
Enquanto na segunda obra apresenta as literaturas filosóficas e polémicas, as homiléticas e
exegéticas, na primeira apresenta a vida e o pensamento de quem é considerado como último
filósofo de linguagem hebraica de Origem portuguesa. Nascido em Lisboa (1437), faleceu em
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Veneza (1508), para onde emigrou poucos anos
antes de morrer, no reinado de D. João II. Foi
pai de Judas Abravanel, celebrizado com o nome
de Leão Hebreu, nascido em Lisboa (1465),
quando o seu pai tinha a idade de 28 anos. Judah saíu de Portugal já adulto, talvez na idade de
30 anos, tendo-se fixado em Nápoles. Enquanto
é celebrado pelos Diálogos de Amor (escritos em
italiano), seu pai legou uma vasta obra filosófica
e teológica, em que avulta a trilogia messianológica – Mashmia Yeshuah (Pregoeiro da Salvação), Maaynei ha-Yeshuah (Fontes da Salvação)
e Yeshuot Meshino (Salvações do Ungido).
incerteza ideológica dos «angry young men». Foi
leitor de Português em Heidelberg.
Em tempo fixou-se em Aveiro, onde exerceu a
carreira docente, e prestou continuada atenção
à literatura portuguesa, sobretudo nos jornais de
Aveiro. Era um amigo, e também Maria Luísa. E
grato companheiro de um jovem inexperiente que,
chegado da província a Lisboa, encontrou nele um
hospitaleiro interlocutor. Nas areias movediças da
sociedade literária, deixou pegadas. Dele são devedores escritores como V. Ferreira, Natália Correia,
Tomás Kim, Urbano T. Rodrigues e muitos outros. A todos deu o aval de leitor culto e exigente.
In Memoriam: José de Melo (1930-2012)
Ecos de Abril
Um inesperado telefonema de Maria Luísa Ramos (distinta ficcionista) deu-nos conta do falecimento de seu marido, o professor e ensaísta
José de Melo, no pretérito dia 29 de Maio.
Personalidade talvez com menos visibilidade que
a de outros, tem direito a ser considerado como
singular dialogante crítico com as tendências
principais da literatura portuguesa na segunda
metade do século XX. Jornalista, estudante trabalhador, licenciado em Românicas, deixou vastíssima colaboração em jornais e revistas, dirigindo
e criando páginas literárias como no semanário O
Debate e na revista Cooperação. A sua ideia de crítica literária era a de uma arte de abordagem por
via empática, compreensiva, o que testemunhou
em livros como Miguel Torga (1960), Literatura
Portuguesa de Hoje. Encontros (1962), e Abordagens (2004), sua última obra. Valorizou o carisma
educacional da poesia, em estudos como Entendimento e Ensino da Poesia (1974), tendo, de resto, iniciado a sua carreira como poeta (Comboio
Azul, 1954) repetindo a experiência em Tábuas
da Lei (1959) e Aqui e Outros Poemas (1964).
Fundou urna iniciativa editorial, designada «Colecção Antológica Best-Sellers», em que publicou
textos de Fernando Botelho, Maria Luísa Ramos
e outros, e também uma antologia que foi novidade ao tempo: Geração Batida (1965), com o
pseudónimo Jorge Daun, e poemas traduzidos
por Carlos Cunha, Manuel de Seabra e M. G.
Palmeirim. Escreveu o prefácio desta obra que
divulgou os principais poetas da chamada «geração batida» (beat generation), em que se salientou
Jack Kerouac, num clima de «reumanização da
poesia», próximo da inquietação, da revolta e da
Parece que existem criaturas humanas as quais,
não obstante existirem, julgam que não existem,
ou, no mínimo, temem não existir. Para terem
a certeza de que existem precisam de se ver, e
de serem vistas, ou de serem tidas e havidas em
imagens, se possível cada vez mais sensíveis,
quais sejam as audiovisuais.
Por vezes o cenário em que as imagens lhes são
propostas, não lhes agradam e recusam ilustrá-
193
-las. De onde promana um importante fluxo
de notícias, comentários e glosas, as quais, em
suma, comprovam melhor que existem, pois há
quem acerca delas, criaturas, escreva e fale.
Se algo produziram, entendem que nenhuma luz
deve focar a ribalta, sem a sua, das criaturas, prévia
presença. Não basta terem contribuído para um
acontecimento que consideram benéfico. É-lhes
radical, dramática e teatralmente necessário receberem provas de que existem. A descrença na existência também pode não passar, ao fim e ao cabo,
de uma crise de vaidade. Verba regis: «vanitas vanitatum anitas vanitatum omnis vanitas» (Ecl., 1, 2).
E, afinal de contas, a ânsia de sobressair talvez
afogue o eventual acto de servir.
Iberismos (?)
Aos encontros que, em apregoadas datas, se
efectuam entre os Chefes do Governo da República Portuguesa e da Monarquia Espanhola, é
dado o nome de Cimeira Luso Espanhola, mas
nos rodapés da RTP e em títulos de jornais, em
Maio, fartámo-nos de ler Cimeira Ibérica. É
protocolar, ou é intencional?
DO ESPÍRITO DOS LUGARES
Manuel J. Gandra
A QUINTA DA REGALEIRA
LEGADO SEBÁSTICO-TEMPLARISTA
de António Augusto Carvalho Monteiro
Antelóquio
Escreve pois em um livro todas as coisas que
viste e conserva-as em um lugar oculto. Donde as mostrarás aos Sábios do teu Povo, cujos
corações entendes que são hábeis para ver,
compreender e guardar estes Mistérios.
ESDRAS IV, XII, 37-38
Foi o carisma de D. Sebastião, acrescido do desejo de sonegar a nação ao usurpador espanhol,
que suscitou o advento dos falsos D. Sebastião.
Se, todavia, nos casos protagonizados pelo rei de
Penamacor (1584), por Mateus Álvares, rei da
Ericeira (1585), e Gabriel de Espinosa, pasteleiro
de Madrigal (1594), impostores instigados por
terceiros, tudo culminou na execução sumária e
inequívoca dos implicados, já não se poderá rotular com idêntico labéu aquele, surgido espontaneamente e encarnado pelo denominado Cavaleiro
da Cruz (1598), cujo processo, apesar das numerosas e apressadas opiniões em contrário, nunca
teve um desfecho satisfatoriamente dilucidado.
Às suas andanças e tribulações entre Veneza e
Sanlucar de Barrameda (Cádis), passando por
Florença e Nápoles, à sua substituição por um
sósia, o (esse sim) calabrês Marco Túlio Catizone, ao seu exílio em França, no convento agos-
194
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
tinho de Limoges, cujo saque, na sequência da
Revolução francesa, deu a conhecer uma arca
tumular contendo as suas ossadas, identificadas
por uma medalha em ouro. A tudo isso prestei a
atenção devida em anteriores ocasiões 1.
A detalhada exploração que já empreendi e tenciono prosseguir no que concerne à biblioteca
sebástica (manuscrita e impressa) que pertenceu
a António Augusto Carvalho Monteiro permite-me garantir, sem hesitações, que, à excepção do
epílogo de Limoges (sobre o qual nada consta
no acervo), o colecionador possuía as peças-chave susceptíveis de traçar o percurso encoberto
do Desejado.
De resto, estou convicto que não só as tinha,
como as integrou no seu imaginário, legando-nas no registo plástico da Regaleira, a qual
constitui, concomitantemente, um tributo à
tradição templarista portuguesa e o testamento-legado espiritual, sebástico e quinto-imperial
do seu proprietário.
Onde então se vislumbram na Quinta da Regaleira os sinais a que me reporto?
Ao invés das demais hipóteses hermenêuticas já
ensaiadas, as quais são compelidas a ajustar a realidade material às respectivas paralaxes ideológicas 2, a assunção do destino profético de Portugal é inequívoco na obra-prima de Carvalho
Monteiro, emergindo do argumento subjacente
ao plano-director da Quinta, cuja explanação
global reservo para próxima oportunidade.
De momento, apenas me proponho revisitar três
dos mais paradigmáticos dos aludidos sinais.
I – O “Lema da Tripeça”
na Capela da Santíssima Trindade
Nos preceitos compendiados na tratadística joaquimita radica o denominado “lema da tripeça”,
com o qual se prova a autenticidade de um texto
sibilino. Segundo ele “todas as profecias têm três
realizações diferentes em três tempos distintos”.
Cf. Manuel J. Gandra, Joaquim de Fiore, Joaquimismo e Esperança Sebástica, Lisboa, 1999 e Hubert Texier, Pesquisas Históricas sobre Sebastião I. de Portugal (Paris, 1903), ou de como o
Desejado morreu no exílio, em Limoges, Mafra, 2010.
2
Cf. Manuel J. Gandra, Colecção Portuguesa I e II da Biblioteca
do Congresso – Livros Maçónicos, Mafra, 2012.
1
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Pormenor do estudo de Luigi Manini
para o “Lema da Tripeça”
Fernando Pessoa, que, neste particular, terá bebido nas mesmíssimas fontes de António Augusto
Carvalho Monteiro, trataria de esclarecer que:
“[...] Todas as profecias têm três realizações, e
isto é simbolizado pela tripeça, que tem três pés.
Não é por isso tão fácil como se julga dar a interpretação de uma profecia, pois que uma só interpretação (sempre fácil de conseguir, dado certo
engenho) nada vale se não for acompanhada de
mais duas, que com ela devem ter certa relação.
Essa relação pode ser de três ordens: espacial, temporal, intelectual. Se um evento profetizado cai
sob a ordem espacial, então dá-se no mesmo lugar
ou país em três tempos diferentes, e tem de haver
concordância perfeita (a história repete-se) entre
os três eventos. Se um evento profetizado cai sob
a ordem temporal, então dá-se ao mesmo tempo
(ou, pelo menos, no mesmo ano) em três países. Se
o evento cai sob a ordem intelectual, então dá-se
de três maneiras iguais (idênticas) no material,
no intelectual e no espiritual. Império é domínio,
e pode ser domínio material, domínio intelectual e domínio espiritual. A fórmula profética do
Quinto Império é pois aplicável a estes três planos,
e em cada plano se revelará da mesma maneira.
No plano material, que é o que se tem suposto até
agora ser o único, os quatro Impérios que precedem o Quinto são os de [Babilónia], de [Pérsia],
de Grécia, de Roma; o Quinto será o europeu,
de sorte que nesta interpretação a profecia está
consumada. Estamos já, segundo ela, no Quinto
Império. No plano intelectual, como o reino da
Inteligência começa só com a Grécia, onde nasceu
o espírito crítico, que é o em que a inteligência se
195
define, os quatro impérios são o grego, o romano,
o cristão ou medieval, o europeu, e ainda falta
o quinto, que deverá ser o Universal. Na ordem
espiritual, como o domínio do espírito verdadeiramente começou com os egípcios, os três primeiros são o de Osiris, o de Baco e o de Cristo, em
que estamos, devendo notar-se que, entendidos
em certo modo, estes três Deuses são três formas do
mesmo Deus. Faltam-nos ainda dois magnos impérios até à consumação dos tempos e cessação de
ser necessário o mundo. O sentido em que tomaremos particularmente as profecias aqui expressas
é o segundo, pois o primeiro está extinto, o terceiro
muito longe na sua consumação.” 1
A tripeça, como instrumento divinatório, é referida em diversos passos das Trovas do Bandarra:
Corpo II, trova I
Levantei-me muito cedo.
Puz-me na minha tripeça,
E lá do longe começa
Um bramido, que põe medo.
Corpo 5, trova VIII
A minha tripeça tem
Três pés mui bem seguros,
Vejo fabricar uns muros
Mas eu não sei para quem.
Corpo 5, trova XXXII
Os pés da minha tripeça
Conta três vezes areio,
Ajunta-lhe dois e meio
Dize-lhe que apareça.
Fernando Pessoa apontou um exemplo cabal da
aplicação da chave da tripeça na 1ª quadra do
Corpo III das Trovas do Bandarra:
Em vós que haveis de ser Quinto
Depois de morto o Segundo,
Minhas profecias fundo
Nestas letras que VOS pinto.
Em 1934, no prefácio ao livro de poemas de
Augusto Ferreira Gomes, intitulado Quinto Império e ideado sob a mesma luz (o seu autor é-o
também do curioso manual sebastianista, No
claro Escuro das Profecias), deu à estampa o resultado da sua hermenêutica 4:
“[...] A palavra VOS, no quarto verso, tem a
variante AQUI em alguns textos. Mas, de qualquer dos modos, a interpretação vem a ser igual
[...]. Se as letras são as da palavra VOS, indicam,
como se mandou que se soubesse, Vis, Otium,
Scientia. E se as letras são as da palavra AQUI,
indicam, segundo a mesma ordem, Arma, Quies,
Intellectus, que logo se vê serem termos sinónimos
dos outros. Temos pois que a Nação Portuguesa
percorre, em seu caminho imperial, três tempos
– o primeiro caracterizado pela Força (Vis) ou as
Trovas avulsas
Para que o leão não grunha
E o galo perca a sua m[an]eira
Vejo a águia por peneira
E ponho na tripeça uma cunha 2.
Trovas avulsas
Pus a tripeça a um canto
Duas tesouras e um fio
Quem rir deste desvario
Venha fazer outro tanto 3.
Esp. 125 – 4, in Sobre Portugal, p. 234-235
Miscelânea sebástica que pertenceu a Camilo Castelo Branco
(colecção Manuel J. Gandra), p. 88.
3
Idem.
1
2
O sistema adoptado em Mensagem é, justamente, o da tripeça. Vislumbra-se ela implícita na tripartição do poema em
Brasão, Mar Português e Encoberto, aliás em consonância com
o postulado tradicional que afirma ter a nação portuguesa de
percorrer no seu caminho imperial, três tempos, falhando por
duas vezes as tentativas efectuadas, muito embora estas deixem
de si, de cada vez, como recorda Pessoa, “qualquer coisa para
ser continuada pela tentativa seguinte sendo a última a que se
realiza”. Mas a tripeça também se patenteia nos Três Avisos de
Mensagem, a saber: Bandarra, António Vieira e o próprio poeta
(poema sem título, redigido na primeira pessoa).
4
196
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
197
AS IDEIAS PORTUGUESAS DE GEORGE TILL
Jorge Telles de Menezes
Dia 16 de Junho de 2002
Esquema das Cinco Idades surgidas dos Três Tempos da Trindade, consoante Joaquim de Fiore
(Tratado sobre o Apocalipse)
Armas (Arma), o segundo pelo ócio (Otium) ou
o sossego (Quies) e o terceiro pela Ciência (Scientia) ou a Inteligência (Intellectus). E os tempos e
os modos estão indicados nos primeiros dois versos
da quadra: Em vós que haveis de ser Quinto /
Depois de morto o Segundo... No primeiro tempo
– a Força ou Armas – trata-se de el-rei D. Manuel o Primeiro, que é o quinto rei da dinastia de
Avis e sucede a D. João o Segundo, depois de este
morto. Foi então o auge do nosso período de Força
ou Armas, isto é, de poder temporal. No segundo
tempo – Ócio ou Sossego – trata-se de el-rei D.
João o Quinto, que sucede a D. Pedro o Segundo,
depois de este morto. Foi então o auge do nosso
período de esterilidade rica, do nosso repouso do
poder – o ócio ou sossego da profecia. No terceiro tempo – Ciência ou Inteligência – trata-se do
Quinto Império, que sucederá ao Segundo, que é
o de Roma, depois de este morto [...]”.
Ora, consoante o aludido preceituado de Joaquim de Fiore, a obra da Trindade vai-se definindo progressivamente no decurso de cinco
Idades determinantes de cinco situações diversas
do género humano: antes da Lei (ante legem), da
Lei (sub lege), do Evangelho (sub Evangelio), da
inteligência espiritual (sub spirituali intellectu) e
na Pátria (in Patria).
As quatro primeiras Idades são, na realidade,
Tempos; a última, ou quinta Idade, sucederá ao
Fim dos Tempos e, por esse motivo, escapa ao
nosso entendimento.
As duas primeiras podem fundir-se numa única e, com efeito, Joaquim referir-se-á exclusivamente a três Idades, status ou Tempos: o Tempo
ante gratiam, o Tempo sub gratiam e o Tempo
quod e vicino expectamus, sub ampliori gratia.
Ao Tempo da Lei natural sucede o Tempo da Lei
evangélica que, por sua vez, deverá dar lugar ao
Tempo da inteligência espiritual. O primeiro foi
na Ciência, ou na Luz; o segundo na Sageza, ou
na Beleza; o terceiro será na plenitude do Espírito, ou no Amor. O primeiro foi o Tempo dos Velhos, o segundo o Tempo dos Homens maduros,
o terceiro será o Tempo dos Meninos.
(continua no próximo número)
As minhas questões são absolutamente marginais em relação ao «sistema». Quem está dentro dele tem um ponto de convergência, um
objecto com duas faces que aparentemente se
opõem, mas que, no conjunto, formam como
uma única moeda onde convergem no verso
e reverso os símbolos de uma determinada
unidade. Eu sinto-me como um ser de outro
tempo, não por uma qualquer pretensão vanguardista ou passadista, mas porque este «sistema» simplesmente não me serve, nem num
plano meramente «existencial», nem num
plano autenticamente cosmopolita/metafísico. Mas quais são então as minhas questões?
Primeiro, cientificamente, diríeis, haveria que
definir quem é esse sujeito que tem questões,
segundo, saber se elas seriam verdadeiramente
questões. No primeiro caso, prefiro responder
– visto que também sou o único que o pode
fazer – que sou simplesmente eu, um ser igual
e único, um «sistema» como são afinal todos os
«eus». No segundo, qualquer questão é no fundo uma questão, porque decerto que nenhuma questão é suficientemente importante para
responder de forma definitiva à única questão
máxima comum, que reza: Que somos?
O sistema tem um tempo, mas para mim, é
sempre como se eu estivesse fora do tempo que
é o do sistema. Vivi assim em vários tempos
de vários sistemas, sempre fora do seu tempo,
como se as coisas se passassem para mim a um
outro nível, primeiro que não o do sistema, segundo que nunca o do seu tempo. Julgo mesmo que o único movimento sábio da minha
Vida é aquele que me tem dirigido cada vez
mais para fora do tempo do sistema, seja ele
qual for. Cheguei assim a um lugar, na minha
existência, onde o espaço enquanto manifestação do progresso do tempo, é quase inalterável de dia para dia. Nada se passa aqui, nesta
aldeia, como costuma dizer o povo. Há uma
milagrosa coincidência entre a inalterabilidade deste espaço, e a sua inevitabilidade como
expressão da marcha em direcção ao princípio único do tempo. Só o mundo, enquanto
conflito moral permanente do ser, é que não
foge de qualquer espaço, e também me toca,
conspurcante, no meu retiro do mundo/abertura ao cosmos. O mundo existirá enquanto
o verdadeiro tempo não tiver chegado. Não
haverá mais mundo quando só existirem, reinantes, as forças da virtude, ou seja, quando
tiver ocorrido a reintegração do ser no tempo
inicial e único. Esta não-existência futura do
mundo como nós o conhecemos, não significa
a não existência de formas, incluindo as nossas. Mas nessa altura teremos a oportunidade
de sermos todas as formas que a nossa vontade
e imaginação ditarem, sem por isso nos degradarmos no espaço do mundo; seremos tudo,
iguais a nós mesmos, e unos na essência definitiva do tempo.
No próximo número:
Dia 20 de Junho de 2002
Como poderá o povo português entrar num
novo ciclo de existência, em que tome consciência da sua espiritualidade, em que se liberte das
deprimentes agarras do pensamento materialista
e positivista? (...)
198
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
LITERATURA ORAL E TRADICIONAL
Ana Paula Guimarães
Criacionismo… Criacionismo…
(Inspirado no Criacionismo
de Leonardo Coimbra) 1
Já sei. A filosofia da liberdade assenta nas infinitas capacidades criadoras… da criação, não é?
Se ao humano não cabe ser inútil mas sim
“obreiro de um mundo a fazer”, então haverá
que reflectir sobre formas de ir criando no mundo à maneira de um ser obreiro da criação. Que
criação? Com maiúscula? Criando qual capoeira? O ovo nascerá primeiro do que a galinha?
O professor:
– Não acham maravilhosa a forma como os
pintainhos saem das cascas?
A menina:
– O que me dá mais que pensar, minha senhora, é a forma como eles entram lá para dentro!
(Machado Guerreiro)
Estas complexas tarefas de criação (a mais justa, a que nos alimenta, a nós humanos, todos
criados), revelam-se na fraseologia que reencena
o ovo. Consultemos Novo Dicionário Aurélio da
Língua Portuguesa:
No ovo, em embrião; no germe, no princípio,
na origem, no começo, no início.
Ficar no ovo, não avançar, não progredir, não nascer.
A busca dessa origem comporta a imprevisibilidade. E o ovo reaparece para a expressar:
Contar com o ovo no cu da galinha, contar com o
ovo na bunda da galinha, fazer planos com base
em coisa incerta.
Texto reescrito a partir de Cuidar da Criação – Galinhas, Galos, Frangos e Pintos na Tradição Popular Portuguesa, escrito por
Ana Paula Guimarães e publicado por Apenas Livros, em 2002.
1
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
O facto de um ovo poder estalar e dele irromper
o desconhecido, estimula o espanto:
Fazer ovo, fazer mistério em torno de algum
facto, escondê-lo.
De pocar o ovo, extraordinário, admirável, do
outro mundo; dos diabos, azar.
Algumas expressões remetem para a fragilidade,
precariedade e (des)prestígio deste espaço oval
tão mitificado nas cosmogonias (como a finlandesa em que o universo nasce de um ovo chocado no joelho de Luonnotar):
pisar em ovos, conduzir-se com cautela, diplomacia, habilidade, por tratar-se de situação delicada e/ou constrangedora; pisar ovos, andar
muito devagar, pastelar, não se despachar.
ser um ovo, ser muito pequeno, ou muito estreito, ou pouco cómodo.
cheio que nem ovo, muito rico, muito cheio, repleto.
um ovo por um real, coisa muitíssimo barata.
chupar o ovo, balançar o ovo, bajular.
de ovo virado, de mau humor – no Brasil.
Outras expressões associam a feição mais sublime da criação ao aspecto mais primário e humilde: a defecção. É o caso da expressão para
defecar: pôr o ovo. Cabe perguntar se será para,
deste modo, ir continuando o caminho? Assim
se devolve à terra aquilo que se lhe devia?
É um facto: antes de morrer, importa nascer, reproduzir e… pôr a render. Recordemos então
os inúmeros preceitos relativos ao gesto, hoje
em dia ainda mais importante para que a sobrevivência seja assegurada: deitar a… criação.
Decerto o leitor saberá que não deve deitar os
ovos quando há trovoada, porque eles ‘golam’,
isto é apodrecem, bem como também não os
deve deitar por lugar onde esteja água. E se os
ovos tiverem forçosamente de passar por água,
deve deitar-se-lhes por cima ou sal ou broa (pão
de milho) esmigalhada (ensina hoje a obra de
Leite de Vasconcellos, a quem, por sua vez, alguém terá ensinado). Também para os ovos não
saírem ‘golos’, quando se deita uma galinha em
sítio que possa estremecer, é bom colocar-se, por
debaixo deles entre a palha, uma ferradura (conselho que nos chega hoje à mão, consultando
obra de Consiglieri Pedroso).
E ainda Leite de Vasconcellos (tratando da criação?!) terá aprendido e transmitido que a deitadura da galinha choca deve ser de ovos a nunes
(ímpares), de preferência treze (porque nascem
todos). Não se devem deitar ovos a pares, senão
‘goram’. E depois de se dizer “Vai em louvor de
Nosso Senhor”, deve rezar-se uma salve-rainha
ao colocar cada ovo e proferir fórmulas que, neste caso, estabelecem uma relação rimática entre
o nome do santo e o ser desejado. Augura-se o
nascimento de mais fêmeas (mais rendimento)
do que machos (o suficiente para assegurar a reprodução) — o inverso do que acontece em sociedades humanas de miséria e superpopulação
onde o nascimento de uma mulher é, à partida,
objecto de desilusão e dor.
Acontece também botar-se a galinha assubindo
«para cima de um forno com umas calças vestidas com a cuada para a cabeça», dizendo:
Em louvor de S. Gonçalo
Doze galinhas e um só galo.
Em louvor de S. Salvador
Tudo galinhas e um só galador.
Em louvor de Santa Rita
Tudo galos, só uma pita!
Afinal, desde Aristóteles e Avicena, são conhecidos truques para que uma galinha choque
aquilo que se deseja: ovos curtos e redondos dão
fêmeas; ovos compridos e agudos, machos (recado transmitido, em 1792, por Jeronymo Cortez,
em Fysiognomia e Segredos da Natureza).
Pelo rendimento que significam há, sobretudo
hoje, que estimular a reprodução — pela palavra
e pela gestualidade, por vezes jogando marcada-
199
mente com os polos masculino-feminino: quando as galinhas desovam, devem-nas passar pela
perna esquerda de um homem, para tornarem a
pôr ovos de casca dura.
Terminemos avançando para pegar num texto/
ovo de casca dura quebrando-lhe a inteireza,
irreparável. Arrisquemos, no entanto, nem que
seja para que apeteça o pleno do ovo (quase
um voo, por acaso, uma simples troca de letras
quando o O do início voa e se cola ao final da
palavra). É de Clarice Lispector o texto dos textos sobre quem nasce primeiro e para quê e até
quando:
Como o mundo, o ovo é óbvio.
Ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada.
O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo.
Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por
isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o
ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe
é para isso.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se se
disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o
mundo fica nu.
E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na
vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha.
A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o
ovo. Se soubesse que tem em si mesma um ovo,
ela se salvaria? Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser uma
galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver
é a salvação. Pois parece que viver não existe.
Viver leva à morte. Então o que a galinha faz
é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é
mortal. Ser uma galinha é isso. A galinha tem
um ar constrangido.
“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a
galinha. A galinha tem muita vida interior. Para
falar verdade a galinha só tem mesmo é vida
interior. A nossa visão de sua vida interior é o
que nós chamamos de “galinha”. A vida interior
na galinha consiste em agir como se entendesse.
Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se
quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro
da galinha é como sangue.
200
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
201
CARTAS SEM RESPOSTA
João Bigotte Chorão
a António de Navarro
Meu caro Poeta
D
e um velho poeta, disse alguém que ele
nascera para cantar. Para cantar nasceu
também o António de Navarro. E mal avisado
andaria quem, esquecido do privilégio gratuito
do canto, lhe viesse pedir juízos críticos e teorias literárias. A sua linguagem – única que
conhece – é a do verso; a sua pesquisa, a da palavra – sobretudo a da palavra de sabor raro e
de sonoro timbre.
Contemporâneo da Presença e seu colaborador
desde o primeiro número (quando leremos em
livro os poemas deste tempo?), ninguém menos
“presencista” que o António de Navarro. Um
dos grandes méritos da Presença foi o de ter criado uma consciência crítica e autocrítica. Ora o
António Navarro, nascido para cantar, não se
desviou dessa vocação para reflectir sobre a sua
arte e sobre a arte alheia.
Se o quisermos aproximar de alguém, é dos
homens d’A Águia e dos homens do Orpheu,
pelo que há de intrinsecamente português e de
alucinadamente onírico na sua poesia. Através
dela, não se exprime a complacência de um
poeta pelo seu pequeno umbigo: exprime-se o
nosso inconsciente colectivo. Parece ouvir-se na
sua poesia o grande lamento da história trágico-marítima; mas, vindo dos abismos do desespero, como que chega até nós o eco de um cântico
de esperança.
Porque a sua poesia não veste uma passageira
moda literária, mas sente a essência eterna da
nossa alma, e porque se identifica com a própria
Pátria, não tem o António de Navarro – poeta
militante no mais nobre sentido da expressão –
recebido as homenagens públicas e privadas que
lhe são devidas. Paga-se caro em Portugal a fidelidade às raízes, mas lá disse quem sabia que o
amor da Pátria não é movido de prémio vil, alto
e quase eterno.
No livro que acaba de publicar, O Acordar do
Bronze (um título tão seu!), silvam como um
chicote o lamento e a cólera de um português
inconformado com a nossa vil tristeza. Mas,
não cedendo ao instinto de morte que trazem
nos seus flancos os profetas da desgraça, o meu
Amigo como que convoca os Portugueses, à voz
solene do bronze, para gritarem o seu “direito
à revolta” e para, na fidelidade ao passado, caminharam rumo ao futuro. O saudosismo de
António Navarro é também futurista. A sua poesia é já, no dia de hoje, a poesia de amanhã –
quando reencontramos Portugal no seu destino
histórico e na sua vocação espiritual.
A António de Navarro cabe, como a poucos, o
título de vate. Não é vate aquele que vaticina – a
terra prometida depois do exílio, a ressurreição
depois da morte? Fiel a si próprio, o António
de Navarro cumpre zelosamente as consignas do
único partido que reúne os homens livres – o
partido da Pátria.
Sei, meu Amigo, que esta carta o vai encontrar
no desconforto do luto e da solidão. Confio às
palavras – sons que se dispersam ao vento, sinais
que se apagam na areia, símbolos visíveis do que
em nós é frágil e fugaz –, confio a elas a difícil
missão de lhe significarem a minha solidariedade e o meu apreço.
Um grande e grato abraço
24 de Abril de 1980
Jaime Otelo
SO N ET O I
Que venha a mim a Musa mais formosa
P’ra inspirar a mim só um simples bardo,
Mas senhor de amor meu é bela rosa,
Não quero musas pois de amor ardo.
Inspirou-me de dia claro ou pardo,
Mas escrevo amorosa poesia:
Pois trova de ódio não passa de um cardo
Que traz somente pérfida agonia;
O que mais esta rima poderia
Dizer senão que o amor me inspira tanto?
Que mais este soneto então diria
Do que: “eu faço parte deste espanto”?
Meus sonetos de amor falam e audazes
Versos são p’ra o mais belo dos rapazes.
SO N ET O II
Quando num jardim nasce bela rosa
Vénus, da paixão deusa, então a beija,
Mas Minerva desdenha a flor formosa
E Juno tem inveja tão sobeja.
Deus, beleza vossa que se veja!
Ela até titã pode vir a ser;
Meu amor vossa b’leza não deseja
Mesmo que outro olhar feio o possa ver.
A cegueira do amor vem aquecer
Olhar que inveja a cara bela e alheia,
Línguas que invejam têm tão maldizer
Da b’leza que não penso que ser tão feia.
O Amor não tem olhar, porquê olhar
P’ra depois com tão má língua opinar?
BIBLIÁGUIO
202
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
A VOCAÇÃO HISTÓRICA DE PORTUGAL
de Miguel Real
Renato Epifânio
N
a esteira de mais de
uma dúzia de obras
publicadas nesta última
década sobre Portugal e a
sua tradição cultural e filosófica, ora em geral ora
sobre alguns autores em
particular1, série iniciada,
auspiciosamente, com o
premiado ensaio Portugal. Ser e Representação, de
1995, ofereceu-nos, Miguel Real, mais uma obra
com o sugestivo título de A Vocação Histórica de
Portugal2. Desde logo pelo título mas, sobretudo,
pelo conteúdo, esta obra retoma uma outra que,
também aqui, nas páginas da Nova Águia, no
seu primeiro número, destacámos3. Referimo-nos à obra A Morte de Portugal, de 2007.
Nesta, diagnosticava o autor “os quatro complexos culturais por que Portugal se foi concebendo
a si próprio ao longo de 800 anos de História”.
O primeiro designa-o como o “complexo viriatino” – por ele se denota a alegada “origem
exemplar de Portugal”4. O segundo é o “complexo vieirino” – por ele se denota o alegado
Referimo-nos a: Eduardo Lourenço: os anos da Formação
(2003); O Essencial sobre Eduardo Lourenço (2003); O Marquês
do Pombal e a Cultura Portuguesa (2005); O último Eça (2006);
Agostinho da Silva e a Cultura Portuguesa (2007); A Morte de
Portugal, Porto, Campo das Letras (2007); Matias Aires: as Máscaras da Vaidade (2008); Padre António Vieira e a Cultura Portuguesa (2008); Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (2008);
José Enes: Poesia, Açores e Filosofia (2009); Introdução à Cultura
Portuguesa (2011); O Pensamento Português Contemporâneo
(2011); Nova Teoria do Mal: ensaio de biopolítica (2012)
2
Prefácio de José Eduardo Franco, Lisboa, Esfera do Caos,
2012, 147 pp.
3
“Miguel Real: uma obra em três livros”, in NOVA ÁGUIA:
Revista de Cultura para o século XXI, nº 1, 1º Semestre de 2008,
pp. 95-98.
4
Figuração que, como refere, “emerge na segunda metade do
século XVI através da imagem de Viriato, herói impoluto,
puro, virtuoso, soldado modelo, chefe guerreiro íntegro, homem simples, pastor humilde que se revolta contra a prepotência do ocupante estrangeiro, conduzindo os lusitanos a vitórias
sucessivas – povo singelo e singular que, não obstante a sua
fragilidade militar, é vencedor das legiões do império romano”.
1
para o
Século XXI
estatuto de Portugal como “nação superior”5.
Contrapolar a este é o terceiro complexo, que
designa como o “complexo pombalino” – por
ele, ao invés, se denota o alegado estatuto de
Portugal como “nação inferior”6. Resultante
da contrapolaridade destes dois últimos, mas
ainda em referência ao primeiro, indica o autor um quarto, que designa como o “complexo
canibalista”7. Por este, “não temos feito história
da cultura com o pensamento, mas com o sangue, sustentando-nos antropofagicamente do
corpo do adversário”.
Daí, enfim, o impiedoso retrato que Miguel
Real fez, nessa obra, do Portugal de hoje: “O
Portugal desenhado pelos quatro complexos
acima enunciados encontra-se moribundo,
submerso pela avalanche de costumes liberais e
americanos (…).”; “Mistura de complexo pombalino com um arreigado individualismo americano, o projecto político português caracteriza-se hoje, nos comecinhos do século XXI, pela
exaltação unidimensional do homem técnico,
Daí a referência a Vieira: “…da decadência do Império a partir de D. João III, do fracasso de Alcácer Quibir e da perda
da independência nasce o assombro de nos sentirmos insignificantes depois de nos termos sabido gigantes na descoberta da
totalidade do mundo. Padre António Vieira, resgatando o providencialismo de Ourique e o milenarismo judaico de Bandarra, deu voz majestática a este cruzado sentimento de grandeza
e pequenez, recusando testemunhar a nossa real insignificância
europeia, dourando-nos o futuro com o regresso anunciado às
glórias do passado, agora sob o nome de Quinto Império.”
6
Ainda nas palavras de Miguel Real: “Desde a revolução liberal de 1820, todos os ímpetos modernistas portugueses têm
nascido deste complexo cultural que eleva a Europa a destino
e sentido de Portugal – o complexo pombalino, hoje acefalamente política dominante do Estado português que, como
‘bom aluno’, se põe nas filas das estatísticas, subordinando a sua
imensa valia cultural à mera e exclusiva valia dos indicadores
económicos, gerando um notório sentimento de mal-estar e de
inferioridade entre as actuais elites portuguesas, envergonhadas
do povo rústico, bruto e arcaico que comandam (…).”.
7
Como escreveu: “…em função dos três complexos referidos,
idiossincraticamente portugueses, se quiséssemos definir o
tempo moderno e contemporâneo da cultura portuguesa entre
1580 – data da perda da independência – e 1980 – data do
acordo de pré-adesão à Comunidade Económica Europeia –,
passando simbolicamente pelo ano de 1890 – data do Ultimatum britânico a Portugal –, atravessando 400 anos de história
pátria, defini-lo-íamos como o tempo de canibalismo, o tempo
da culturofagia, o tempo em que os portugueses se foram pesadamente devorando uns aos outros, cada nova doutrina emergente destruindo e esmagando a(s) anterior(es), estatuídas estas
como inimigas de vida e de morte, alvos a abater, e as suas obras
como negras peçonhas a fazer desaparecer.”.
5
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
o homem-eficiente, o homem-contabilista, o
homem-robótico, desprovido de consciência
histórica global (…).”; “É um novo Portugal
que está nascendo, sem sublimidade, sem espiritualidade, sem projecto superior às suas forças e
à sua dimensão (…), o Portugal dos pequeninos
(…).8”. Em suma, somos hoje, como conclui,
uma “canina imitação do pior da Europa”.
*
Nesta obra, A Vocação Histórica de Portugal, esse
diagnóstico não se alterou propriamente. Mas,
se na obra A Morte de Portugal esse era ou pelo
menos parecia ser um diagnóstico sem esperança, aqui, ao invés, há um Horizonte que se
abre, um “novo espaço histórico a criar” – como
escreve Miguel Real, logo na apresentação da
obra: “Assim, contra a tese de Jorge Borges de
Macedo (…), considera-se não existir um destino histórico para Portugal, antes uma vocação
histórica segundo a vontade das suas elites e a
tendência conjuntural europeia e internacional.
A vocação histórica de Portugal, hoje, à entrada do século XXI, é, incontestavelmente, a de
cruzar a nova experiência europeia com a antiga
provação imperial, gerando um novo e exemplar espaço político internacional de igualdade
e prosperidade – a Lusofonia. Este novo espaço
é, hoje, para o futuro de Portugal, mais importante do que o espaço europeu”. Eis, em suma,
a tese que Miguel Real desenvolve ao longo de
três capítulos.
No primeiro deles, intitulado “O Espírito da
Europa”, faz, Miguel Real, um tão grande quanto justo elogio ao espírito europeu, o que em
nada colide com a posição de princípio pró-lusófona. É, de resto, um elogio pertinente, tanto
mais porque é contra-corrente, podendo até ser,
pelo menos em parte, ser visto como “politicamente incorrecto”. Com efeito, Miguel Real
defende, expressamente, que “outro continente
não existe com tão grandiloquente e realizador
passado” – por isso, “deve a Europa respeitar
Como escreve ainda Miguel Real nesta passagem, “com estes
homens, no século XV, nem a Madeira teríamos descoberto,
nem Ceuta teríamos conquistado – os custos eram então, de
longe, superiores aos benefícios imediatos, desconhecendo-se
totalmente os benefícios futuros, a existirem”.
8
203
e orgulhar-se dos seus feitos passados”. Como
concretiza, “nenhum outro continente teve Platão e Galileu, Aristóteles e Copérnico, Leibniz
e Newton, Kant e Einstein”. E daí “a grande,
grande diferença entre a Europa e os restantes
continentes”: “a Europa é o continente da cultura”, “o continente que transformou o animal homem no homem humano”. Como escreveu ainda
Miguel Real, a fechar o ensaio inicial do primeiro capítulo: “nunca a humanidade do homem
tão alto se elevou quanto na Europa, o genuíno
e autêntico continente da única forma mentis
que abarca a totalidade da humanidade”.
Isso deve-se, desde logo, como refere a abrir
o ensaio seguinte “O decálogo civilizacional
da Europa”, a quatro primados: “o primado
da Cidade (Polis) sobre a Horda e a Tribo”, “o
primado do Direito (Jus) sobre a Tradição”, “o
primado da Ética (Ethos) sobre o Interesse” e,
finalmente, “o primado da Razão sobre o Mito
e a Magia”. Por via desses quatro primados e de
outros factores – como, em particular, “a separação entre o Estado e a Religião”, “a criação do
Sistema Democrático” e a “industrialização do
mundo” –, conclui Miguel Real: “Nenhum outro continente pode apresentar tão alto sistema
de valores e realizações operados para o bem e o
progresso humanístico da humanidade no seu
conjunto. Os valores culturais asiáticos e árabes,
centrados na religião, e africanos e sul-americanos, centrados no tribalismo, estatuem-se como
menores (e, até, por vezes insignificantes) para a
totalidade do mundo se comparados com a criação política, filosófica, religiosa, estética, científica, social e económica europeia.”
Contudo, como defende no ensaio seguinte,
com o título de “A Decadência da Europa”: “pela
primeira vez em três mil anos, a Europa habita
o panteão dos povos e territórios que não fazem
História, antes a contemplam, vendo-a passar ao
longe, a Oeste e a Este”; “tecnologicamente (que
é o actual padrão de medida do progresso), a
Europa parou na II Guerra Mundial”, passando a ser “internamente vista como um apêndice
dos Estados Unidos da América”. Por tudo isso,
como conclui Miguel Real: “o europeu de hoje é
um cidadão conformista, acrítico, por vezes mesmo
acéfalo, pasto de programas imbecis de televisão,
204
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
de revistas fúteis, de campeonatos nacionalistas
de futebol, adorador dos mais medíocres bezerros
de ouro (políticos, futebolistas…), um cidadão
movido pelo interesse, desprovido de sonho e
transcendência. A Europa é hoje um continente
cego guiado por políticos cegos./ Assim, nenhuma forma de vida é criticada ou asperamente
excluída da cidade. Na Europa, hoje, o espírito
nómada da aventura e da viagem tornou-se um
modismo experimental, uma ânsia da novidade,
do exótico, do insólito, do selvagem, do fantástico, num imoral cruzamento entre pornografia
e misticismo, como a arte e, dentro desta, a literatura de mercado bem revela.”.
Não obstante este diagnóstico, que o próprio assume como “muito cruel”, Miguel Real defende
no ensaio que se segue e que encerra o primeiro
capítulo, intitulado “Esperança na ressurreição
da Europa”, que, precisamente, “a esperança na
possibilidade de uma futura ressurreição europeia não deve ser abandonada”. E aqui assumimos a divergência maior relativamente a Miguel
Real. Ao contrário dele, nós não temos a menor
“esperança na ressurreição da Europa”. Falamos,
em particular, da União Europeia, enquanto
alegada consagração política deste continente.
Com efeito, ainda que hoje isso pareça fazer
parte de uma história hoje já muito distante,
o grande “cimento” da construção da União
Europeia foi a ameaça que o bloco soviético,
que, como sabemos, se estendeu a toda a Europa de Leste, constituiu, durante quase meio
século, para a Europa ocidental. Isso e a posição
subalterna que a Alemanha aceitou, como expiação da sua culpa pela II Guerra Mundial – a
Alemanha (falamos, obviamente, antes da reunificação, da Alemanha ocidental) não poderia
afirmar-se politicamente, apenas financiar todo
o projecto político da construção europeia. E
deveria até mostrar entusiasmo por isso.
Com o fim da ameaça soviética e com a reunificação alemã, era inevitável que também essa
derradeira máscara caísse. A Alemanha reunificada voltou a ser, naturalmente, um país como
os outros – não mais do que os outros, mas
também não menos. Para mais, acedeu ao poder
uma geração que já não carregava sobre os seus
ombros esse peso histórico da “culpa alemã”. O
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
que a Alemanha tinha a pagar, já o havia feito.
Agora, defenderia simplesmente os seus interesses,
tal como todos os outros países europeus. Quem
a poderia impedir? E eis como inevitavelmente
se encerrou o último acto da farsa da “solidariedade europeia”. Chegados aqui, e concordado
de novo com Miguel Real: “existe hoje, em Portugal, uma alternativa à Europa sem que desta
nos tenhamos necessariamente de desvincular,
uma alternativa de futuro aos actuais valores
europeus (que, verdadeiramente, já são mais os
valores americanos que europeus) sem o corte
radical com a Europa – o retorno à antiga comunidade de língua portuguesa: a lusofonia./ De
facto, existe uma nova geração que, desejando
um futuro diferente para Portugal, assume sem
complexos neo-colonialistas a existência passada
do Império, projectando-o no futuro da língua
comum. O que tem esta nova geração para dar?
Nada, a não ser a vontade e o entusiasmo de
transformar o passado comum num futuro comum assente numa língua comum e num espírito comum”.
Como escreve ainda Miguel Real, a finalizar o
penúltimo ensaio do terceiro capítulo, sugestivamente intitulado “Morte e ressurreição de
Portugal”9: “Se, para Portugal, entre 1975 e
2010, a Europa esteve sempre primeiro, é hora
de nos centrarmos nas infinitas possibilidades
virtuais presentes na Lusofonia, tanto do ponto
de vista económico como diplomático, como,
sobretudo, do ponto de vista cultural e tecnológico, criando entre os seus países constituintes
uma comunidade semelhante à Europeia.”. Semelhante?! O próprio Miguel Real, já no último
ensaio, intitulado “O Futuro da Lusofonia”, se
corrige – “A Lusofonia deve criar uma paisagem
política nova” –, dado que, ainda nas palavras
do autor: “Diferentemente, a Lusofonia corresponde a um genuíno programa civilizacional de
fundo, unindo num vínculo único povos que a
História fez encontrar e desencontrar. A Lusofonia não é uma ilusão política porque se fundamenta na história dos encontros/desencontros
dos seus povos constituintes unidos actualmente
por um falar comum.”. Eis, em suma, o Horizonte que Miguel Real nos abre como via de superação da “morte de Portugal” que ele próprio,
como referimos, havia diagnosticado. Horizonte
que, entre nós, tem sido defendido sobretudo
pelo MIL: Movimento Internacional Lusófono10, que tem dado voz a essa “nova geração”.
JORGE DE SENA E DELFIM SANTOS.
CORRESPONDÊNCIA
11
Mourão Jorge
A
pós a publicação da
correspondência de
Jorge de Sena com os poetas e escritores Sophia de
Mello Breyner e Raul Leal,
a editora Guerra & Paz
continuou, em dezembro
de 2011, a série de edições
dedicadas ao autor de Sinais de Fogo, agora com a
publicação da correspondência trocada com o
filósofo Delfim Santos.
O livro, de grafismo agradável à vista e ao tacto,
reúne ao longo de 128 páginas toda a correspondência entre Jorge de Sena e Delfim Santos que
se conserva, e que abrangeu os anos de 1943 a
1959. Um conjunto enriquecido pela apresentação do encontro entre os dois autores por Mécia de Sena, pelo estudo introdutório e notas às
cartas da responsabilidade de Filipe Delfim Santos, um índice cronológico da correspondência,
uma nota complementar de José Augusto França e um conjunto de anexos de que se destacam
as respostas de Delfim Santos a um inquérito
de Jorge de Sena sobre a vida dos intelectuais
portugueses e a sua relação com o passado da
cultura portuguesa. Como é de rigor numa obra
Os Princípios e Posições do MIL podem encontrar-se na
obra, recentemente editada, Convergência Lusófona (Zéfiro,
Colecção Nova Águia, 2012).
11
Filipe Delfim SANTOS, org., Jorge de Sena e Delfim Santos.
Correspondência 1943-1959, Lisboa: Guerra&Paz, 2011, 128 pp.
10
Nesta recensão, necessariamente breve, não aludimos ao segundo capítulo da obra, “O Fracasso Histórico de Portugal”,
onde o autor retoma e desenvolve o diagnóstico feito n’A Morte
de Portugal.
9
205
desta natureza não falta o indispensável índice
onomástico e, apresenta-se até o elenco de outras edições de correspondências quer do escritor quer do filósofo.
O encontro entre Jorge de Sena e Delfim Santos
não é propriamente inesperado. Os dois viveram no Porto; os dois cursaram as suas licenciaturas na Universidade dessa cidade, ainda que
um o fizesse na Faculdade de Engenharia e outro
na Faculdade de Letras; os dois frequentaram assiduamente as tertúlias dos cafés lisboetas onde
se reuniam os intelectuais extrauniversitários e
nas quais participava, algo excecionalmente, esse
mesmo professor da Universidade de Lisboa que
sempre preferiu o convívio dos escritores e poetas ao dos académicos; e, principalmente, há
que ter presente que Literatura e Filosofia não
são almas opostas. No entanto, se o encontro
entre os dois não é inesperado foi, isso sim, uma
felicidade. Felicidade para eles pela amizade que
alimentaram em torno da paixão comum pela
Literatura. Felicidade para nós porque a correspondência entre ambos oferece à cultura portuguesa o enriquecimento dos matizes de duas
das suas figuras cimeiras. A apresentação e estudo
introdutório salientam ao leitor alguns desses
matizes: «foi um encontro de afinidades estéticas de dois intelectuais que, mesmo estando
profissionalmente vinculados a outros campos
(Engenharia num caso, Pedagogia no outro) devotaram sempre um amor intenso à Literatura e
uma tendência primordial para pensar os temas
da Cultura com base no fenómeno literário»
(apresentação, p. 9); «a irreprimível tendência
de ambas as personalidades … para a intervenção cultural, no sentido mais amplo deste conceito, ditaria que o seu encontro no campo das
letras ocorresse sob o signo da crítica, tanto a
literária como a cinematográfica…» (estudo introdutório, p. 16); «isto sem esquecer as inquietudes filosóficas do próprio Jorge de Sena que
inauguram este carteio e que nele permanecem
até ao final, com menções a Wittgenstein, Heidegger e a Jaspers…» (Idem).
Cabem muitas vidas na vida de cada pessoa. As
vidas de Jorge de Sena e Delfim Santos não as
tiveram menos. O escritor não foi só escritor,
o filósofo não foi só filósofo. Na nossa leitura,
206
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
a importância maior de Jorge de Sena e Delfim
Santos, Correspondência 1943-1959 reside na
revelação da amplitude dos horizontes e interesses intelectuais dos dois autores. O livro ajuda
o leitor a alargar o campo biográfico e temático
de cada um deles e a reposicioná-los para além
do labor poético e da redação de tratados filosóficos. Por exemplo, o carteio revela ao público
de hoje uma faceta de Delfim Santos eventualmente não muito conhecida, a de crítico literário e de cinema. As suas cartas comprovam
a leitura atenta e crítica que ele fazia dos livros
oferecidos pelo então poeta estreante. Leiam-se
por exemplo as cartas de Delfim Santos a Jorge
de Sena de 7.12.50, 5.12.51 e 23.11.55. Essa
atividade de crítico literário em Delfim Santos
ainda está por explorar e, a nosso ver, bem mereceria um estudo mais detalhado. No que diz
respeito à crítica cinematográfica, encontram-se referências a alguns desses seus textos, neste
caso os redigidos para a quíntupla participação
do filósofo de Conhecimento e Realidade no ciclo
de cinema com palestras organizado pelo Jardim
Universitário de Belas-Artes (J. U. B. A.). Não
menos importantes são as peças em anexo sobre
a receção de Gide e dos escritores da Nouvelle revue française pela intelligentsia portuguesa, uma
influência que marcou a brilhante geração da
presença, ou os suculentos debates promovidos
também pelo J. U. B. A. sobre os conceitos de
arte e de filosofia, com a participação da fina-flor dos pensadores e artistas da época.
Jorge de Sena também se revela nesta correspondência um leitor de filosofia não menos atento e
acutilante. Se publicadas na altura, teriam dado
muito que falar as palavras do poeta expressas a
Delfim Santos em carta de 4.3.52, e darão ainda
eventualmente que falar aos atuais críticos do
Movimento 57: «o que eu não entendo é como
se concilia o seu pensamento e a sua formação
com as manobras de [Orlandos] Vitorinos e [Álvaros] Ribeiros, as escolásticas propugnadas por
eles, e a confusão filosófica de um [José] Marinho… Sim, realmente estou cada vez mais farto
daquela impossibilidade para transcenderem a
tripa originária uns homens que tanto esperam
de transcendências nacionais ou divinas. (…)
Toda a minha cultura técnica, toda a minha
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
outra cultura, e todo o meu patriotismo (que o
tenho) se revoltam contras estas filosofias portuguesas, a cuja falta de pão de trigo já o tomismo
disse há sete séculos o que tais escolásticos poderiam ouvir» (p.64).
A terminar, cumpre-nos evidenciar o trabalho
minucioso e pertinente patenteado nas notas à
edição. É certo que a qualidade do trabalho de
um editor de documentos históricos está na sua
capacidade de anotação exaustiva e pertinente.
Provavelmente à maioria dos leitores esse trabalho de anotação passará despercebido pelo lugar
secundário que o livro lhe atribui mas, a nosso
ver, as notas são a parte mais valiosa da presente
publicação, especialmente para os interessados
pela história da cultura e da filosofia em Portugal. Ali o leitor encontra referências que o ajudarão a compreender determinados passos das
cartas e a enquadrá-los no contexto da época,
bem como elementos para explorar com mais
leituras e investigações. Por isso só é pena que os
editores do livro não tenham optado pela colocação das notas em rodapé já porque facilitaria
a leitura das notas e a sua associação às cartas, já
também porque dessa forma os editores teriam
dado às notas o destaque que elas merecem.
Em geral, o interesse pela correspondência dos
autores foi sempre grande. O leitor e o investigador esperam encontrar nas letras escritas na
privacidade a revelação do que publicamente ficou por dizer na brevidade de uma vida
ou de uma obra. Essa curiosidade intelectual tem sido, nos últimos tempos, ainda mais
acentuada através do aumento do número de
correspondências editadas. Jorge de Sena e Delfim Santos, Correspondência 1943-1959 insere-se nesse movimento de interesse pela história
das ideias. Se nem todos os conjuntos de correspondências publicadas e a publicar terão o
mesmo valor, há dois méritos que, estando presentes, mais do que justificam o seu tratamento e divulgação. São eles: (1) o renascimento e
rememoração dos autores que tão importante
é para a promoção da cultura pelo avivar da
memória; e (2) o contributo para a melhor
compreensão das mundivisões dos fazedores de
mundos. Ora é isto que acontece com o livro
que acabámos de apreciar.
FILOSOFIA MORAL CONTEMPORÂNEA
12
José Maurício de Carvalho
O
rtega y Gasset é o
autor espanhol mais
importante do século XX
e, hoje em dia, o mais estudado filósofo espanhol.
Arlindo Gonçalves Jr. é
um de seus comentaristas
no Brasil. As ideias orteguianas marcaram muitos
pensadores, alguns dos
quais reconhecidos como integrantes da Escola
de Madri. Dentre os nomes mais importantes
da Escola o autor do livro destaca cinco: Garcia
Morente, Recaséns Siches, Julián Marías, José
Luis Aranguren e Maria Zambrano. No legado intelectual dos autores enumerados atenção
maior é dada às noções de ética que, mesmo sem
formar modelo único, revelam influência de Ortega y Gasset. Todos os filósofos que sofreram
influencia de Ortega y Gasset integram a Escola
de Madri? Gonçalves Jr. esclarece bem a questão. Escola de Madrid foi o nome dado a um
grupo de professores ilustres que giravam em
torno de Ortega y Gasset, na Faculdade de Filosofia da Universidade de Madrid, em especial,
durante o ano de 1935. Com o franquismo estes professores espalharam-se pelo mundo, mas
conservaram o estilo intelectual desenvolvido
no convívio com Ortega y Gasset na Universidade de Madri.
O primeiro dos nomes listados é Manuel Garcia Morente (1888-1942), notável professor que
teve influência no Brasil desde que seus Fundamentos de Filosofia foram traduzidos em 1964.
Diz Gonçalves Jr. que “a tomada de consciência
da vida humana como dado radical e primário
teorizado por Ortega y Gasset e a axiologia scheleriana são as fontes para Garcia Morente construir sua fenomenologia moral” (p. 14). Suas
ideias centrais sobre ética estão reunidas em O
GONÇALVES Jr., Arlindo Ferreira. Filosofia moral contemporânea, a contribuição dos herdeiros de Ortega y Gasset. Aparecida: Ideias e Letras, 2012.
12
207
cultivo das humanidades. Na base da sua ética
há uma teoria de objetos na qual a ontologia do
valor representa contribuição notável à Axiologia. As características mais importantes do valor
são para ele: a não indiferença que ele provoca; a
qualidade pura, o que significa que, distanciada
dos objetos, o valor não tem realidade; a polaridade, isto é, para cada valor há um contravalor; a
hierarquia, ou escala em que se agrupam na vida
singular de cada pessoa. A caracterização dos valores remete a um fundamento último que para
Morente é: “a vida, de onde há o surgimento de
todos os outros objetos” (p. 19). Neste ponto está
o cerne do diálogo com Ortega y Gasset, quando
Morente propõe na ontologia da vida que ela é
ente absoluto e autêntico, de duração finita, íntima e inconfundível. O ideal ético se expressa
no cavaleiro cristão, símbolo da vida espanhola
e figura típica da Idade Média. Morente propõe
como virtudes fundamentais do personagem
ideal: a valentia ou ideal de resolução; a submissão ao destino ou desprezo pela morte; a altivez
que é o contrário do servilismo; personalidade
enérgica, nobre e generosa; honra e religiosidade.
Estes valores eram cultuados no mundo feudal e
já não parecem adequados em nosso tempo, mas
Morente avalia que os valores do cavaleiro cristão
são fundamentais para construir um novo humanismo necessário em nossos dias.
Outro autor de destaque da Escola de Madri é
Luís Recaséns Siches (1903-1977) estudado no
capítulo dois. “Sua especialidade foi a Filosofia
do Direito, na qual aplicou princípios do pensamento orteguiano, sobretudo na intersecção
entre a teoria dos valores e a existência historicamente determinada” (p. 39). Para Recaséns,
o objeto da Filosofia do Direito é um dever-ser,
uma idealidade e não um objeto factual. A fenomenologia de base husserliana lhe ofereceu os
elementos para corrigir os problemas da filosofia
jurídica kantiana. A análise da subjetividade se
completa com o estudo dos valores que oferecerão à Filosofia do Direito de base subjetiva uma
fundamentação objetiva e fecunda. O ponto de
aproximação com Ortega y Gasset está no vínculo entre o fato jurídico e a metafísica da vida
de contornos raciovitalistas. Os valores são, para
Recaséns, categoria especial de seres ideais, nos
208
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
termos propostos na fenomenologia de Scheler.
Seu propósito, esclarece Gonçalves Jr., é “o de
investigar criticamente a axiologia de Scheler, seu
alcance e compreendê-la afastada das manifestações do humanismo transcendental” (p. 47). As
teses orteguianas são percebidas na compreensão
de que o homem é o único ente capaz de realizar
valores e na referência às objetivações de cultura “como objetividade intravital porque nada é
para mim, nem tem sentido para mim fora do
marco de minha vida” (p. 48). É neste núcleo
essencial da condição humana que os valores se
manifestam, quer como experiência singular, situada e concreta, quer como expressão de valores
objetivos presentes na sociedade, como é o Direito. Os valores objetivos expressos na cultura
correspondem à razão histórica tematizada por
Ortega y Gasset. Eis os princípios que o filósofo
utiliza para estabelecer a diferença entre valores:
1. a vida é a fonte de valores, mas vida não é apenas realidade individual, mas possui social; 2. O
dever-ser é o princípio positivo do direto a que se
refere o sujeito; 3. a ordem moral se dá no íntimo
da consciência, o Direito é, em contrapartida,
uma ordem objetiva construída na sociedade; 4.
a moral aspira propiciar paz interior, o Direito, a
exterior; 5. ser fiel em moral é respeitar a própria
vocação, no Direito é acolher a ordem social; 6.
na moral o dever se impõe ao sujeito para guiar
a vida, no Direito, a obrigação de considerar a
outra pessoa; 7. a moral é vivida na intimidade
e o Direito na exterioridade e 8. na moral o não
cumprimento da regra não causa punição e no
Direito o não cumprimento da lei termina em
sanção. No que se refere aos aspectos morais presentes na Sociologia, Recaséns distingue a noção
de eu inseparável da circunstância da de eu enquanto personalidade singular. A descoberta do
outro como eu confere especificidade à dinâmica
intersubjetiva, que é entendida como fenômeno
de sujeitos autônomos. Indivíduos “em sua circunstância concreta com seu arbítrio, sua missão intransferível e, sobretudo, vivendo a relação
entre a efetivação da personalidade e o mundo
ético” (p. 65).
Outro orteguiano importante é estudado no
terceiro capítulo: Julián Marías. Havendo desenvolvido um pensamento próprio, ele é tam-
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
bém reconhecido como o principal comentador
do pensamento orteguiano. Marías é autor de
uma clássica História da Filosofia que Ortega y
Gasset examinou em famoso epílogo. As teses
morais de Marías destacam “a importância da
vocação e sua absorção na circunstancialidade,
onde a relação amorosa tem lugar privilegiado”
(p. 68). Enquanto sujeito circunstanciado, o
homem possui também pretensão como modo
de se situar no mundo. A inserção do sujeito na
sociedade se faz com a dramática realidade que
se concretiza na condição sexual, classe social,
idade, corporeidade e cultura. Condição sexual
expressa os arquétipos feminino ou masculino
em suas vidas, circunstância que, como o corpo
e a condição social afetam a inserção do sujeito na cultura. Todos estes aspectos contribuem
para a instalação empírica do sujeito na circunstância, fato a que Marías dá o nome de têmpera.
Estar na consciência é condição para o sujeito
apreender aspectos culturais que necessita para
tocar a vida social. Nela acomoda os aspectos
psicológicos, o drama pessoal e sua singularidade, todas características fundamentais do sujeito humano. Marías distingue ainda o social do
coletivo, o primeiro presente nas relações intersubjetivas e o segundo associado a movimentos
de despersonalização que Ortega y Gasset denominou de massa. Entre os primeiros, que asseguram relações pessoais, estão a relação com os
mortos e com Deus, tido como grande ausente
no mundo fenomênico. No centro de todas as
relações pessoais está o amor que aproxima os
núcleos interpessoais. É o amor a forma de enfrentar a solidão na qual todos estamos inevitavelmente mergulhados. O amor permite que o
sujeito mostre o que é. No que se refere às ações
morais, Marías trata de “uma vontade imperativa na qual se objetiva sua universalidade com
lei” (p. 87). Essa moral, como explicou Ortega
y Gasset, está radicada na vida e é condição para
suplantar utopias que as perspectivas idealistas
constroem quando reduzem os princípios morais a deveres. A moral radicada na vida “afeta a
vida humana em todos os seus conteúdos e condutas” (p. 90). A moral deve considerar variáveis
que afetam a vida como sexo e idade. O objetivo
da moralidade é reconhecer a condição de pes-
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
soa singular ao homem, evitando “convertê-lo
em coisa – impessoal” (p. 92). Tal conversão, se
e quando ocorre, leva à imoralidade (p. 92)
O capítulo quarto é dedicado à apresentação da
proposta moral de José Luís López Aranguren
(1909-1966). O autor comenta que Aranguren
emprega cinco princípios para tratar o objetivo
da moral. O primeiro é etimológico e consiste
em separar moral de ética, indicando que a segunda refere-se tanto ao lugar que o sujeito habita quanto ao seu modo de ser, enquanto moral
vem de mores ou costumes. O outro princípio é
pré-filosófico, trata-se de entender se o homem
age eticamente porque possui uma tendência
para fazê-lo ou, se obedece ao dever ético, racionalmente reconhecido contra suas disposições
naturais. O terceiro princípio é genético e histórico, remonta a Aristóteles e consiste em subordinar a Ética à Política, o quarto é psicológico e foi
sugerido por Locke, Hume e Smith, empiristas
que defendem estarem as relações éticas pautadas
nos sentimentos. O último princípio é metafísico, adotado tanto como ponto de partida quanto
como justificativa das ações. São dois os objetos
da moral: o material e o formal. O primeiro é a
vida enquanto totalidade e o segundo a procura da felicidade, o que inclui as noções de bem
e valor. Aranguren observa que as virtudes são
identificadas com a noção de bem e reconhece
quatro fundamentais, acompanhando a classificação escolástica: “prudência, justiça, fortaleza e
temperança” (p. 107). Estas virtudes dependem
da liberdade constitutiva do homem encontrada
no mais fundo da personalidade. “Esta liberdade
constitutiva do homem, em cujas decisões expressam suas tendências profundas, é derivada,
desde o início, de condicionamentos da própria
vida” (p. 112/113). É ela a responsável pelo engajamento do indivíduo com o próprio projeto,
condição para a felicidade.
O último capítulo é dedicado ao examine da
razão poética e da virtude do sacrifício, que
estão na base do pensamento moral de Maria
Zambrano. Para ela, razão poética é a “refutação e revisão da razão discursiva, partindo do
solo onírico-simbólico e hermenêutico” (p.
119). O principal argumento para superação
da razão discursiva é o amor presente na vida
209
e que só pode ser captado pela razão poética.
Expressão maior de amor é a piedade, diz a
pensadora, tema de fundo das obras platônicas, definida como “trato de um outro que não
figura em nosso horizonte vital, ou seja, outro
ser” (p. 122). Piedade se concretiza no sacrifício
pelo outro. O paradigma da piedade, segundo
Zambrano, é Antígona, heroína da tragédia de
Sófocles. Ela enfrenta Creonte e defende as leis
não escritas do dever contra a falsa justiça das
decisões humanas. “Antígona, resume Gonçalves Jr., personifica a paixão pela piedade, uma
piedade-amor-razão”. Antígona é filha de Édipo
com a mãe e decide morrer pela culpa de ser
filha de quem é, e como irmã por parte de mãe
partilha o sofrimento trágico do irmão. Com a
noção de amor-piedade, Zambrano aproxima a
razão poética da moral. Conclui o autor que este
modo de tratar o assunto é “um projeto inacabado do próprio Ortega, que ao propor uma obra
dedicada primordialmente à Ética, teria anunciado seu tratamento à luz da ideia de intensidade como critério definitivo para a realização da
moralidade” (p. 131).
O livro de Gonçalves Jr. segue a intuição de
orteguianos como Julián Marías que apontam
para a existência da Escola de Madri. Os autores estudados tiveram contato com Ortega y
Gasset na Universidade de Madri, recebendo
do filósofo princípios e métodos de investigação
observados no trabalho intelectual de cada um.
Cada pensador desenvolveu um aspecto das teses orteguianas e todos ajudaram a promover
a filosofia da razão vital. Ela aparece na obra
de todos eles como uma das escolas filosóficas
contemporâneas. O livro centra a discussão na
problemática moral, sem deixar de considerar
os aspectos gerais do pensamento dos comentados. É uma tarefa difícil a realizada pelos pensadores listados no livro, pois se Ortega y Gasset
afirmou em Pidiendo un Goethe desde dentro
que “a vida é por si mesma ética” não chegou a
escrever um tratado de Ética. O principal tema
de seus textos é uma ontologia da vida humana
circunstanciada, mas ao se penetrar nas ideias
de Ortega y Gasset identificam-se os elementos de uma ética que os professores estudados
procuraram desenvolver. O livro de Gonçalves
210
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Jr. apresenta à comunidade acadêmica os elementos básicos de uma ética raciovitalista, mas
faz mais que isto ao indicar o sentido de responsabilidade e a singularidade pessoal como
fundamentais para enfrentar as dificuldades de
um tempo cheio de dificuldades.
A VIA LUSÓFONA
de Renato Epifânio
Miguel Real
R
enato Epifânio faz
parte de uma geração
espiritual e filosófica que
escapou ao absoluto domínio totalitário da Europa
no pensamento português,
postulando uma nova alternativa para Portugal. A
Europa não satisfaz hoje
esta nova geração, ou melhor, não a satisfaz em
absoluto, legando à nossa consciência crítica o
imenso vazio das civilizações decadentes, aquelas que já não fazem História mas ainda não saíram da História.
Desde a II Guerra Mundial, o aparelho de Estado, privilegiando exclusivamente um sector da
sociedade – a economia –, desprezando fundo
os valores morais e espirituais próprios da cultura europeia, tem gerado na mente dos europeus uma representação parcial de si próprios,
que, incapaz de se elevar à unidade de uma ideologia estruturada e consolidada, se caracteriza
pela passividade cívica, compensada por uma
hipervalorização do individualismo, assente
na fórmula amoral do “salve-se quem puder”.
Mistura de complexo de superioridade com um
arreigado individualismo americano, o projecto
político europeu caracteriza-se hoje, nos começos
do século XXI, pela exaltação unidimensional do
homem técnico, o homem-eficiente, o homem-contabilista, o homem-robótico, desprovido
de consciência histórica global, funcionando
exclusivamente segundo o duplo horizonte de
raciocínios técnicos quantitativos e consequen-
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
tes objectivos. Não são políticos os nossos governantes de hoje, mas técnicos, robots substituíveis uns pelos outros, possuindo o mesmo
vocabulário, aplicando invariavelmente o argumentário da eficiência de custos e proveitos, totalmente desacompanhados de uma dimensão
cultural e espiritual para a sociedade.
É contra esta Europa que o Renato combate, não
contra o legado humanista e a herança espiritual
europeias. O combate do Renato, que lhe alimenta um pensamento pessoal, bem como a sua
acção pública, desdobra-se em quatro vertentes:
1. Exemplo determinante da sua personalidade
tem sido a sua acção na Associação Agostinho
da Silva, onde, em conjunto com os restantes
membros das diversas direcções, tem pugnado
para que não desapareçam da sociedade portuguesa os valores privilegiados pelo seu patrono:
os valores do sentimento e da comoção, os valores do gregarismo e da generosidade, os valores
da partilha e da solidariedade, unidos e vinculados a um sentido transcendente orientador
dos povos na busca da justiça, da abastança e
do amor. É uma associação onde o Renato se
sente bem porque defendem ambos, ele e ela,
ser a razão menos importante que a paixão, o
calculismo na vida menos importante que a
fruição lúdica da vida, o interesse económico
menos importante que uma vida desinteressada
de bens materiais. Não há, em Portugal, outra
Associação tão desprendida de interesses políticos e materiais e tão aberta à pluralidade das
manifestações da existência.
2. Numa outra vertente da sua acção cívica, o
Renato foi um dos criadores do MIL: Movimento Internacional Lusófono, inicialmente
uma extensão dos valores da AAS aplicados aos
países da Lusofonia, possuindo hoje uma independência própria. Aqui o Renato também
está em casa, defendendo uma nova forma de
organização entre os povos, fundada na absoluta
igualdade institucional e vivencial, a contínua
partilha de recursos e actividades (obviando à
inexistência de países super-pobres – Guiné-Bissau, São Tomé e Timor), uma diplomacia de
paz e de justiça (o passaporte lusófono), todos
unidos numa concórdia sem ressentimentos,
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
criando uma zona territorial geográfica de união
fraterna (escolas e empregos de um país aberto a
todos os cidadãos lusófonos, que entre estes países circulariam livremente) que constituísse uma
espécie de “choque cultural” para o mundo.
3. A terceira vertente da sua acção cívica prende-se com a direcção da Nova Águia, partilhada
com Paulo Borges e Celeste Natário, e, recentemente, comigo próprio, em substituição de
Paulo Borges. Aqui, em conformidade com a sua
participação na AAS e no MIL, o Renato estabeleceu como horizonte da sua acção espiritual
e filosófica a renovação dos valores permanentes
da “Renascença Portuguesa”. O que significa
intentar reavivar os valores da “Renascença Portuguesa” no início do século XXI? Obedecendo
aos ditames filosóficos de Teixeira de Pascoaes,
significa uma única coisa, mas tão imensa que se
estabelece como horizonte teórico e prático de
vida: que o pensamento é superior à matéria e
o espírito ao corpo; ou, ainda, que sem transcendência espiritual de valores ligados à beleza,
ao bem e ao sagrado (mesmo à natureza como
sagrado) Portugal se transformará numa mera região geográfica da Comunidade Europeia, cheia
de sol, de turistas e de euros, mas coarctada do
essencial da vida que realiza os povos e os cidadãos. Não seremos já analfabetos e pobres, mas
cidadãos culturalmente ignorantes, ileteratos, robôs movidos a dinheiro, tão alegres exteriormente quanto vazios e infelizes interiormente. Significa isto, igualmente, que o homem europeu tem
de ser redimido de um capitalismo consumista
acéfalo, que produz máquinas económicas e corpos esbeltos, e reorientado para um comunitarismo moderno e urbano em que a arte e a cultura
tanto se tornem acontecimentos festivos e diários
como a compaixão pelos que sofrem ou necessitam se torne dominante. O presente alimenta-se
da mutilação do homem, unidimensionaliza-o numa estreita visão economicista; o futuro
consiste na libertação deste homem-máquina e
na assumpção de um homem pluridimensional,
aberto a todos os valores, vivenciando uma realização quotidiana assente na união entre o corpo
e o espírito – pensar, amar, trabalhar serão fundidos num único verbo: viver em plenitude. Esta
a mensagem de T. de Pascoaes, esta a mensagem
da Nova Águia, esta a compreensão geral da ac-
211
ção do Renato em prol do MIL – a necessária
pluridimensionalidade de valores força-o a resgatar a Europa juntando-lhe o sabor Lusófono, os
valores Lusófonos.
4. Finalmente, uma quarta vertente do Renato,
porventura a mais descuidada por evidente falta de tempo: a sua acção como investigador do
Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de
Lisboa. Ele é autor de um dos melhores estudos
sobre José Marinho (Fundamentos e Firmamentos do Pensamento Português Contemporâneo),
bem como de dezenas de estudos sobre a Filosofia em Portugal, dos quais destacamos os dois livros publicados sobre Agostinho da Silva, Visões
de Agostinho da Silva (2006) e Perspectivas sobre
Agostinho da Silva (2008), bem como o estudo
“Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa”, em parte publicado na revista Philosophica
da Faculdade de Letras de Lisboa13.
De qualquer modo, existe um trabalho subterrâneo, enquanto bolseiro de pós-doutoramento da
FCT, sobre “as três fases do pensamento de Agostinho da Silva”, que dará, no futuro, os seus primeiros frutos. De referir, igualmente, a obra Via
aberta: de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao Oriente (2009), onde se encontram os seus estudos mais
significativos sobre Filosofia em Portugal.
Nas suas intervenções filosóficas, o Renato tem
dado um particular enfoque à valorização da língua e da cultura como eixos configuradores do
pensamento português e, por acrescento civilizacional, da nova ordem política lusófona. Com
efeito, se a grande luta da geração de 1950/60
consistiu na inscrição da Europa no pensamento
português, a grande luta da geração do Renato
consiste em persuadir os diversos aparelhos de
Estado nacionais que, sem atropelo do sentimento de necessidade da Europa, a Lusofonia
deve ser inscrita com urgente prioridade nos
programas políticos tanto dos partidos portugueses quanto dos partidos nacionais dos países
lusófonos, a começar, evidentemente, pelo Brasil. Neste sentido, no caso da cultura portuguesa
e no caminho aberto por Agostinho da Silva, a
realização espiritual para que os livros do Renato apontam, e que A Via Lusófona 14 é óptimo
13
14
Agora disponível on-line: www.bibliografiafilosofica.webnode.com
Ed. Zéfiro, 2010.
212
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
exemplo, consistiria na criação de uma comunidade de língua portuguesa onde todos os povos
pudessem, de forma inteiramente livre, assumir,
de modo pleno, a especificidade da sua cultura.
De facto, Fundamentos e Firmamentos do Pensamento Português Contemporâneo. Uma perspectiva
a partir da visão de José Marinho, tese de doutoramento defendida pelo autor na Faculdade de
Letras de Lisboa em 2004, constitui-se, pela sua
intrinsecidade, como parte de um recente movimento cultural que, esparsamente, aqui e além
acrescentado por mais um título, caracteriza o
pensamento português de um novo horizonte
mental e de uma nova atitude filosófica à entrada do século XXI.
Com a inocência resgatada pela mentalidade
de uma nova geração, portadora de uma nova
cultura social, Renato Epifânio, contrariando o
passado canibalista do pensamento português,
regista na “Introdução” à sua tese, com iluminante e desconcertante clareza, que tudo o que
se escreve no corpo do seu livro, tendo como
suporte a visão de José Marinho, não vincula
uma verdade, menos a Verdade, mas apenas e
tão-só uma “perspectiva” sobre o pensamento português. Espantoso! À revelia da tradição
portuguesa, o autor não adverte o leitor para a
existência de uma revelação sagrada presente no
seu livro. Diferentemente, vincula a totalidade
da sua tese sobre o pensamento português contemporâneo ao estreito e frágil limite de uma
perspectiva, quase um “ponto de vista”. Na sua
simplicidade narrativa, a atitude de Renato Epifânio, não sendo uma revolução, é, no entanto,
a postulação expressa de uma nova atitude filosófica em Portugal.
Com efeito, o rasto ideológico que o pensamento português tem deixado no campo das
categorias culturais e das estruturas sociais tem
sido contaminado pelos pecados da violência,
do exclusivismo e do unicitarismo, numa palavra, do absolutismo. Cada corrente, cada tese,
cada autor, porventura por efeito de cristalização estrutural de uma mentalidade plenificantemente religiosa dominante em Portugal até aos
finais do século XVIII, postula-se como encontro soberano entre Verdade e Absoluto, deduzindo do seu estatuto magnificente a exclusão
de correntes, teses e autores contrários. Desde
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
a segunda metade do século XVI, porventura
desde a substituição dos mestres bordaleses pelos sacerdotes jesuítas no Colégio das Artes, em
Coimbra, quebrando o tímido afã humanista
de D. João III, a cultura portuguesa tem vivido
em estado de permanente canibalismo cultural. Com raras excepções, temos sido senhores
de um só pensamento e de um só objectivo. O
pensamento português, por muitos nomes que
tenha tido consoante os séculos, as influências e
os modos, tem-se identificado com a forma estrutural de um pensamento do Absoluto, cheio,
sólido, convergente, feito de uma só peça, de
base e cume exclusivistas, desconhecendo, senão
como efeito retórico, a angústia do inacabado,
da incompletude, a existencialidade visceral e
irracional do concreto, o rosto do outro como
limite do próprio. Com efeito, do rosto do outro temos apenas querido saber do que nele se
encontra de espelho iluminante do nosso. Canibalismo cultural significa, pois, esta sentida
necessidade de apostrofar a forma diferente, o
pensamento alheio, as teses divergentes, as teorias destoantes, condenando-as à negridão do
desrazoado, do desjuizado, do caótico, não raro
expressão do mal, figura humana do demónio
ou do irracional (proibição de livros do Index,
da Real Mesa Censória e da Comissão de Censura do Estado Novo, devassa do Tribunal da Inquisição, auto-de-fé, combate contra os hereges,
expulsão pombalina dos jesuítas, expulsão das
ordens religiosas no liberalismo, expropriação
de templos e espaços sagrados, perseguição carbonária, jacobina e republicana contra os jesuítas e a Igreja, conluio entre a Igreja e o Estado
Novo na perseguição e prisão de republicanos,
socialistas, “evangelistas” e comunistas). Com o
pensamento assim purgado, o objectivo só pode
ser um: a purificação de Portugal e a reconversão
do outro, quando não a sua anulação.
Porém, contrariando as expectativas das cassandras do absolutismo, Renato Epifânio não
abandona a construção da sua tese aos ventos
relativistas do perspectivismo, não raro mais
convenientes a modismos político-ideológicos
do que a fundamentações filosóficas. Do mesmo modo, Renato Epifânio não comunga de teses ecletistas, vasto caldeirão mental onde tudo
borbulha e todas as teses e teorias se igualizam,
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
todas se diminuindo segundo o estatuto de “a
cada pensador sua verdade, a cada teoria sua legitimidade”. Não é verdade: há teses superiores
e inferiores e há pensadores superiores e inferiores – por muito que respeitemos Vieira de Almeida, como professor e como cidadão, o seu
empírico-racionalismo de pendor lógico é, do
ponto de vista da criação, da fundamentação e
da originalidade, muito inferior à arquitectónica
existêncio-metafísica de José Marinho, como o
historiografismo-culturalista de pendor liberal
das décadas de 1920 a 40 e a vaga construção fenomenológica da década de 1950 de Joaquim de
Carvalho são muito inferiores, quanto à criação,
à fundamentação e à originalidade, ao criacionismo de Leonardo Coimbra. Diferentemente,
Renato Epifânio, comungando de um espírito
comum às recentes obras de José Enes, Fernando
Gil, António Braz Teixeira, José Esteves Pereira, Manuel Ferreira Patrício, José Gama, Pedro
Calafate, Viriato Soromenho-Marques, Celeste
Natário, José Eduardo Franco, ao ecumenismo
de Paulo Borges, ao humanismo cristão de Guilherme d’Oliveira Martins, mas também à obra
ímpar de Padre Manuel Antunes das décadas
de 1960 e 70, defende na sua tese de doutoramento uma visão culturalista para a filosofia
portuguesa, o que significa que, para além da
universalidade constitutiva de temas e conceitos
específicos da Filosofia enquanto habitus disciplinar e histórico, brilha sempre, como envolvimento indefinido, a pulsação estrutural e conjuntural da cultura de origem do filósofo e da
filosofia (genealogia espiritual e cultural, modas
ideológicas, quadros sociais, categorias mentais
historicamente privilegiadas, rasto de polémicas
culturais, tradição religiosa…). Neste sentido,
para Renato Epifânio, tanto quanto o legado
da história da filosofia e a situação problemática
em cada época da evolução interna das questões
filosóficas, o húmus da filosofia reside igualmente, de um modo manifesto ou velado, nas
categorias culturais de que ela é voluntária ou
involuntariamente portadora. Sustentando-se
na tese de Marinho de que a metafísica é insusceptível de progresso, Renato Epifânio defende,
se não nos enganamos, que a diferencialidade
teorética e noética de cada grande filosofia e de
cada grande autor reside tanto na carga cultural
213
(entre a qual se conta a inevitabilidade da adaptação da filosofia a novos resultados científicos,
estéticos, culturais e religiosos) transposta para o
reino do pensamento quanto na descoberta de
novas soluções lógicas, gnoseológicas e ontológicas intrinsecamente filosóficas.
Com efeito, fazendo um com a tese ora apresentada, os três ensaios constantes do anterior
livro de Renato Epifânio, Visões de Agostinho da
Silva15, postulam igualmente o enraizamento do
pensamento filosófico numa “situação” histórico-cultural específica. Neste sentido, segundo
Renato Epifânio, “a via da plena realização [humana opera-se] (…) pelo aprofundamento do
sentido de uma cultura [e] da mundividência
que lhe subjaz” (p. 58). Não negando a prevalência em Agostinho da Silva de uma “via para
a plena realização espiritual”, é porém no “aprofundamento das virtualidades de uma língua
[e, logo, de uma cultura] que o discurso filosófico pode emergir enquanto tal”. Deste modo,
o autor considera que a via filosófica proposta
por Agostinho da Silva emerge justamente no
momento histórico da “era do vazio” (Gilles
Lipovetsky), cúmulo de uma acentuada descristianização da sociedade, idade do niilismo e do
ateísmo, era da “assunção do Nada” no dizer de
José Marinho, à qual Agostinho da Silva intenta
dar resposta por via do resgate e aprofundamento da imagem arquetipal do Quinto Império
ou da Idade do Espírito Santo, um dos traços
fundamentais da cultura portuguesa. A reacção
de Agostinho da Silva é, assim, uma resposta
eminentemente espiritual, mas, segundo Renato Epifânio, ela é também, enquanto espiritual,
eminentemente e “primeiramente uma realização cultural” (p. 57). Neste sentido, o caminho
para a superação do vazio ontológico actualmente preponderante na Europa passaria, no
entender de Renato Epifânio, pelos “múltiplos
caminhos de realização espiritual: a priori tantos quantos o número de culturas”. Aprofundar
os cânones espirituais da cultura abriria assim
o horizonte de uma nova realização espiritual,
transcendendo o individualismo, o cepticismo
e o pessimismo hoje pertinentes e vinculativos.
No caso da cultura portuguesa e no caminho
aberto por Agostinho da Silva, esta realização
15
Ed. Zéfiro, 2006.
214
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
espiritual consistiria na retomada do pensamento sobre o Quinto Império ou a Idade do Espírito Santo, o estado ou o “espaço-tempo em que
todas as comunidades, todos os povos, possam,
de forma inteiramente livre, assumir, de modo
pleno, a sua cultura” (p. 58). Deste modo, Renato Epifânio estatui a obra de Agostinho da Silva
como a mais ingente reflexão sobre o “íntimo
sentido da cultura portuguesa” (p. 13), não só
no sentido teórico ou teorético, mas sobretudo no sentido prático ou práxico, enquanto
reabertura de caminho no horizonte de uma
ressurreição do ser universal do português como
mediador cultural. Neste sentido, mais do que a
de um filósofo teorético, a obra de Agostinho da
Silva é enformada, segundo o autor, de um novo
sentido para a cultura portuguesa, que, verdadeiramente, resgata toda a história existencial do
povo português, revelando-lhe, à beira do século
XXI, o seu genuíno estatuto de mediador universal entre culturas díspares. Do mesmo modo,
no artigo “O sentido da História: entre Agostinho da Silva e José Marinho”16, Renato Epifânio
vincula as teses metafísicas de Marinho a uma
radicação culturalista (pp. 256 – 257).
Sobre todas as interpretações, a defesa da tese de
doutoramento de Jorge Croce Rivera, A Doutrina do Nada. O Pensamento Meontológico de José
Marinho17, solidificou o cânone ontológico da
para o
Século XXI
leitura da obra de José Marinho. Renato Epifânio, de outro modo, lança na sua tese uma visão culturalista sobre o pensamento do mesmo
filósofo portuense. Neste sentido, o acto constitutivo do pensar, bem como as categorias de
Ser, Verdade, Metafísica, situam-se no interior
de um horizonte reflexivo que encontra na genealogia das figuras e dos conceitos tradicionais da cultura e do pensamento portugueses o
seu âmago e o seu húmus. Na sua tese, Croce
Rivera, dominando o todo do pensamento de
José Marinho, ostenta-o segundo um aparato
intragenético e intratemático, expondo o ingente diálogo de José Marinho consigo próprio
(merecedor de um romance); Renato Epifânio, diferentemente, desdobra o pensamento
de José Marinho segundo linhas de diálogo
emergidas a partir da genealogia espiritual dos
filósofos portugueses, de Pedro Amorim Viana
a Paulo Borges, radicando-o a uma “tradição”
(portuguesa, europeia) e a uma “situação” (cristã, ocidental), isto é, expõe o diálogo de José
Marinho com os outros.
Exaltar simultaneamente a singularidade do
pensamento de José Marinho e a tradição cultural e filosófica de que se diferencia e a que
responde, eis, em síntese, o que o estudioso encontrará na tese de Renato Epifânio.
In AA. VV., Agostinho da Silva e o Pensamento Luso-Brasileiro,
Lisboa, Âncora Editora e Associação Agostinho da Silva, 2006.
17
Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1998, policopiada.
16
Pedro Martins
P Ê G O D O A LTA R
Delmar Maia Gonçalves
RE PO U SAM
Repousam
em Mim
velhos Imbondeiros
comigo sentado
à beira de uma Oliveira.
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Do fundo da terra
o alto ar se anuncia
na flor do teu olhar
mal a tarde se aquieta
sobre o brando rio das garças,
manso bando, asas brancas,
canção em que esvoaças
se a hora declina o dia
e a lua te coroa o altar.
215
Maurícia Teles da Silva
1 3 DE FEV EREIRO
Nasceu Agostinho
forte renasce
a luz que ilumina e clareia
com elos de liberdade chama
se o fulgor de Espírito ateia
liberta e ama,
voa a mensagem
que ofereceu sabiamente
no Comum das Folhinhas
do Convento, Servidor,
ensinando a cada passo
a regra do Amor
fraterno como o queria
dobrando o Bojador,
o que salva e cria,
numa visão infinita
além Cabo só alveja
Paz e Vida a todos gratuita.
Salvé!
OUTROS VOOS
216
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
O PORTUGAL DE HOJE O HOMEM DE SEMPRE
1
Adriano Moreira
T
alvez o Portugal de hoje tenha chegado à entrada do terceiro milénio sem ter pressentido
que enfrentava, mais uma vez, o custo do passado
com a perplexidade de um futuro que escapa a
nossa débil capacidade de previsão. Não se trata
do pessimismo, ou do juízo pouco lisonjeiro, que
gerações passadas frequentemente viram enunciados por responsáveis nacionais sobre o povo ao
qual lhes aconteceu pertencer e governar.1
Lembremos, por todos, as conhecidas palavras
de Eça de Queirós, de uma geração que se via
com desgosto no espelho da Europa, e não se
impressionava com a gesta africana do seu tempo, ensombrado pelo ultimatum de Inglaterra.
O tempo de vésperas desta geração, e seja qual
for o juízo político sobre a forma de governo
que durou até 1974, divulgou outra narrativa
do passado vivido, implantou nas memórias valores históricos, suscitou a admiração possível
pela gesta lusíada, mas é certo que ao mesmo
tempo que implantava um teor de vida habitual
na sociedade civil, também pareceu orientar-se
pela convicção de que a circunstância mundial
seria igualmente dominada por tal modelo, com
riscos, ameaças, infrações militares por vezes
sem equivalente no passado, mas regressando
inevitavelmente à vida habitual.
Não foi assim que a história se desenvolveu, e
o hoje do país está inscrito numa conjuntura
mundial sem exemplo facilmente invocável.
Não mudou o facto de Portugal, dispondo de
um território pequeno e pobre, e de uma população sempre escassa em comparação com a
generalidade dos países europeus que tiveram na
Texto apresentado na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, no dia 28 de Maio de 2012, numa sessão promovida
pelo Grupo de Investigação “Raízes e Horizontes da Filosofia e
da Cultura em Portugal” (Instituto de Filosofia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto).
1
história do mundo responsabilidades equivalentes, sempre necessitou de um apoio externo, que
nesta entrada do milénio foi a União Europeia,
findo o terceiro e último império que dominou.
Mas em relação aos apoios do passado, como foram a Santa Sé e o Reino Unido, as fragilidades
são evidentes e altamente preocupantes.
Em primeiro lugar porque também a Europa,
na forma assumida de União, ficou ela própria
dependente de matérias-primas, de energias não
renováveis, até de produtos alimentares, que a inspiração mobilizadora da Conferência de Berlim,
de 1885, levara a submeter por um colonialismo
imperial que se cobriu de várias justificações valorativas, mas se movimentou tendo aqueles interesses como motor fundamental: nem a evangelização assumida pelos ibéricos, nem as luzes
prometidas pelos franceses, nem o pesado encargo de espalhar a civilização que proclamaram
os ingleses, afetaram aquele objetivo comum da
supremacia mundial e da suficiência assegurada.
Nunca acabaram em abundância de recursos os
vários impérios que foram pertença dos portugueses, nem o da Índia que acabou em Alcácer
Quibir com o Estado falido, nem o do Brasil
que acabou com a independência da colónia e
a falência da metrópole, nem o da África que
terminou com a chamada das legiões a Lisboa,
e poucas dezenas de anos mais tarde viu o país
levado à celebração da retirada ao mesmo tempo
que a ameaça de falência do Estado acompanha
a crise financeira e económica mundial, europeia, e nacional.
A emigração, umas vezes obrigada pelo Estado
para preencher os contingentes militares, mas
de regra impulsionada pelas condições de vida
sem qualidade que obrigam a procurar outros
futuros, ajudou a enfrentar as crises frequentes
de tesouraria. Foi assim com o Brasil, por um
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
século após a separação, e até que as condições
financeiras daquele país obrigaram o Presidente
Getúlio Vargas a proibir as remessas dos emigrantes para as famílias que aqui os esperavam
anos, e aqui se inicia a mudança da emigração
para a Europa, antes de a guerra colonial a intensificar com a designação, que se popularizou,
de emigração a salto.
Essa emigração, impulsionada em parte pela recusa da mobilização para a guerra de África, não
era tão ausente dos interesses políticos governamentais, como a invocação da guerra sugeriu.
De facto, a atenção das autoridades fiscalizadoras tinha um cuidado regulado pela situação de
mercado da mão-de-obra, e a emigração diminuía a gravidade do desemprego, e não deixava
de fornecer as remessas.
Nesta área da emigração tem um lugar separado
a que foi determinada por razões políticas, inspiradas em questões religiosas ou conceções de
regime político, como aconteceu com a expulsão
dos judeus no reinado de D. Manuel I, como
aconteceu na época em que os ideais da primavera das Nações, e as lutas entre liberais e absolutistas, movimentaram contingentes apreciáveis de partidários de cada uma das fações, e, no
século passado, assim aconteceu com os grupos
de objetores que não aceitavam combater ou de
dirigentes e aderentes de um novo mundo democratizado, ou descolonizado, ou sovietizado.
De qualquer modo, a vida habitual era carente
de recursos para um desafogo aceitável, os incidentes violentos da política foram cortes espaçados dessa aceitação da maneira de viver, e
de regra movimentados pelos grupos escassos, e
privilegiados, que disputavam o poder.
O analfabetismo era dominante, a submissão às
instituições que assumiam a integração social –
a família, a Igreja, o serviço militar obrigatório
– mantinham a vigência das malhas do tecido
conjuntivo social.
A emigração, quer interna para as grandes cidades, quer externa, preferivelmente para países estrangeiros – Brasil, EUA – e não para as colónias
que a própria governação incluía restritivamente
nos destinos possíveis, não quebrava as solidariedades de origem, com expressão nas casas regionais, no sentido de um dia regressar, ou, para
os que constituíram as colónias portuguesas no
217
estrangeiro – Nova Inglaterra, Califórnia, Havai,
Brasil, a adoção de imagens de acento tónico variável em relação à origem, Terra de Nossa Senhora, Terra do Infante D. Henrique, Terra de
D. Afonso Henriques, Terra de Santo António,
e, nos últimos tempos, Terra do Almirante Gago
Coutinho e do Comandante Sacadura Cabral.
A revolução de 1974 alterou, em ritmo sem precedentes fáceis, esta maneira de estar no mundo
de um povo que deu novos mundos ao mundo.
Em primeiro lugar o método de participar nos
Impérios ocidentais estava esgotado, mas não a
necessidade de um apoio externo como sempre
aconteceu, e apenas o projeto europeu era a escolha possível.
Todavia, a relação do povo com o poder governativo era um processo exigido pela afirmada
democracia, mas com embaraços difíceis e demorados de ultrapassar.
A tradição mais profunda, nesta área, era a de
cadeia de comando, com intervenções específicas da sociedade civil: a primeira dinastia foi de
cadeia de comando, este absorvido na estratégia da reconquista; a segunda dinastia embora
proclamada de novo, foi de cadeia de comando,
com o Rei absorbido na expansão marítima; a
terceira dinastia foi de cadeia de comando por
Rei estrangeiro, contra o direito sobretudo derivado dos testamentos reais; a restauração exigiu
igual disciplina militar, seguida de um absolutismo de que Portugal foi significativo exemplo.
O fim do Terceiro Império, seguido pelo triunfo
liberal na metrópole, não significou democracia
no sentido da real participação do povo: é de
Camilo Castelo Branco, com A queda de um
Anjo, a definição de classe política, que ia buscar
à interioridade, submissa às hierarquias sociais,
a legitimidade com que se apresentava nos Parlamentos, e assim continuou com a atribulada
República, designadamente, e de maneira ainda
mais acentuada, com a Constituição de 1933,
de longa duração.
O regime finalmente instituído em 1974, que
conseguiu vencer o projeto soviético, de facto organizou também um regime de efetiva liberdade
de voto popular, mas concentrando o poder nos
partidos que escolhem os seus candidatos, e apenas
nessas listas se pode votar: as lideranças partidárias
são os verdadeiros protagonistas na luta pelo poder.
218
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
E foi deste modo que o Portugal pobre passou
à categoria de periférico, recebendo as furtivas
políticas europeias pelos efeitos, que durante
anos espalharam a imagem de uma Europa rica,
afluente, consumista.
É evidente que a qualidade de vida cresceu em
relação ao passado, que a escolaridade explodiu,
que alguns anos, até à viragem do milénio, aproximaram a vida do modelo das sociedades ricas
do norte, embora sempre com distância.
Mas tudo para finalmente Portugal se encontrar
mergulhado na crise económica e financeira do
início do terceiro milénio, abrangido pela fronteira da pobreza que ultrapassou o norte do Mediterrâneo, sabendo a duras penas que melhorara
a qualidade de vida não apoiada na sua produtividade e crescimento económico, mas com abusiva
utilização do crédito externo que coloca o Estado
na situação de Estado exíguo, com os cidadãos
esmagados pela obrigação de pagar a dívida soberana do Estado, as dívidas autárquicas, as dívidas
das parcerias público-privadas, os riscos sistémicos da banca nacional. Em suma, voltar à situação
de sociedade pobre, na dificuldade de não poder
ajuizar com probabilidade o fim desta submissão
a um fardo de gerações que para já, em vista dos
acordos com a chamada Troica, faz derivar o Estado exíguo para a situação de protetorado.
Não é a primeira vez que Portugal é governado por estrangeiros (Filipes), não é a primeira
vez que tem a imagem de submissão colonial a
um poder soberano estranho (Inglaterra), mas
é seguramente a primeira vez do regime que se
aproxima do protetorado.
Entre mais consequências, para além do que se
refere à soberania dentro de uma União que supõe igualdade de participação de soberanias todas
funcionais e cooperativas, acontece que a política
agrícola comum arruinou a agricultura e fez esquecer o conceito estratégico de reserva alimentar
nacional, que a interioridade se despovoou, que a
emigração voltou a comprovar a regra de que os
ricos exportam capitais e os pobres exportam gente. Assim acontece de novo, com a diferença de
que Portugal chegou à situação de ter os técnicos,
precisar dos técnicos, e não ter emprego para os
técnicos, na grave perspetiva de paragem do desenvolvimento e de queda da qualidade de vida.
Com a evidência de que no globalismo não exis-
para o
Século XXI
te periferia e que por isso os riscos de fratura
do projeto europeu ameaçam severamente a
capacidade de recuperação, e de viabilidade da
construção de um novo futuro que restitua, ou
impeça a queda da qualidade de vida com dignidade no mundo novo que está em gestação sem
imagem final detetável.
A leitura da conjuntura, além dos riscos que
respeitam à salvaguarda do projeto europeu,
acrescenta o enfraquecimento da solidariedade
Europa – América, e o facto de a nova emigração não deixar supor que ajudará, com remessas,
a restaurar o crédito do Estado.
Por cima de tudo, o espirito da juventude desesperançada, foi invadido pelo relativismo que enfraquece toda a Europa, e não deixa facilmente
ver que é o Ocidente que está em crise.
Tudo significa que os portugueses de hoje, como
os do passado, são habitantes de um país pobre,
que a pobreza foi agravada pela debilidade da
agricultura, e pelo agravamento do despovoamento, pela desvalorização da tarefa marítima, e
pela deterioração do tecido conjuntivo da sociedade civil, porque a este se juntou, sem articulação, a multidão de emigrantes.
Por isso é necessário restaurar o tecido valorativo
de sociedade, não apenas portuguesa, também
europeia e ocidental, conseguir lideranças fortes
que escasseiam em todo esse espaço, recuperar a
interioridade porque terra que não se pisa nem
cultiva não é nossa, e voltar ao mar e à sua plataforma continental, porque os factos mundiais
não consentem vazios de poder.
Não é apenas nesta área que a sociedade civil
mostra crescente entendimento de que lhe compete restaurar um Estado que a sirva sem inverter a relação. A história fornece exemplos dessa
capacidade, e não é legítimo fornecer-lhe um
exemplo de sinal contrário. O hoje aconteceu-nos sem grande participação cívica, porque a
política europeia furtiva foi dominante; daqui
não decorre que, percebidos os erros, o futuro
não volte a estar nas mãos legítimas, a dos portugueses de sempre.
Como ensinou Jaime Cortesão, o que melhor caracteriza o português de sempre é o sentido ecuménico, a igual dignidade de todos os seres humanos e suas culturas, sem distinção de latitudes
ou de etnias. Mantemos essa conceção do mundo
e da vida, mas a decisão da alternativa entre o fi-
219
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
car e o partir é igualmente de todos os tempos.
Quando D. João II, o Homem, interrompeu a
tarefa marítima foi para definir o conceito estratégico, com os recursos humanos, científicos, e financeiros, exigíveis para finalmente chegar à Índia
com a esquadra comandada por Vasco da Gama.
A dúvida mais profunda disse certamente respeito à questão de partir e levar para longe não
apenas a emigração, mas o Império. Talvez o
Velho do Restelo seja o símbolo do sentimento
contrário à expansão imperial, diríamos símbolo dos europeístas que o citam, habitualmente,
como resistente ao seu pensamento.
Mas fixemo-nos apenas no 3.º Império, o que
resultou da Conferência de Berlim, e fixemo-nos em Mouzinho de Albuquerque e em Antero de Quental, os símbolos da alternativa.
O primeiro, Mouzinho, herói de África, e dos
fiéis da Rainha, suicidou-se.
O segundo, o Santo Antero, que abordou o iberismo, que foi amado pelos vencidos da vida, o
grupo dos que, com dizia Eça, recebiam a Europa pelo comboio, amigos do Rei, também se
decidiu pelo suicídio.
País de suicidas, diria Unamuno, ao registar
também que era o único povo, que, perante as
adversidades, dizia – isto dá vontade de morrer.
E todavia, pequeno e pobre, imaginou o V Império, com raízes Bíblicas, tendo no Padre António Vieira o grande inspirador de um Império
mundial do Espirito guiado pelo Papa, e tendo
o Rei de Portugal, renascido este para a independência, D. João de Bragança, o poder temporal.
Ao primeiro exame surpreende que um povo
com a gesta dos Lusíadas tenha como referência de esperança um Rei vencido, e não um Rei
triunfador. Com a última versão em Agostinho
da Silva, que parecia antever a subida de Portugal ao Calvário, para renascer nas comunidades
unidas pela língua portuguesa e pela maneira de
Portugal estar no mundo.
Mas atrevo-me a leitura diferente, e tomar de
guia Bartolomeu Dias, que por três vezes embarcou para descobrir a rota da Índia, incluindo ter
vencido o Adamastor, e morreu no mar sem ter
conseguido o propósito: morreu tentando, não
morreu desistindo. E essa é a virtude do português de sempre: – se necessário, morrer tentando, mas não morrer desistindo.
DA IMPORTÂNCIA DA LUSOFONIA
1
António Gentil Martins
S
ou Médico, cidadão comum, não diplomado
em economia e finanças, não dado às políticas partidárias ou aos interesses envolvidos nos
processos eleitorais, independente e livre, solidário com a doutrina Social da Igreja, defendendo
a liberdade, a dignidade, a justiça, a família, a
coesão social, a paz, a solidariedade entre os povos e o respeito pelos direitos humanos.1
Nos intervalos das votações, vou procurando
trabalhar naquilo que sei, a lutar pelos princípios em que acredito, e a ajudar quem posso.
Texto apresentado da Sociedade de Geografia de Lisboa, no
dia 24 de Fevereiro de 2012, no âmbito do X Encontro Público da PASC: Plataforma Activa da Sociedade Civil, organizado
pelo MIL: Movimento Internacional Lusófono.
1
Periodicamente, na altura das eleições, limito-me a analisar propostas e programas, a tentar
conhecer os proponentes, e depois, em consciência, votar em quem me parece ter melhores
soluções para o meu País, que é, e será sempre
Portugal. Não sou, nunca fui, e penso que nunca serei candidato à imigração, embora tendo
tido propostas muito aliciantes, quer em Cirurgia Pediátrica quer em Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética.
A história da humanidade mostra-nos ser a
língua um factor fundamental para o entendimento entre as Pessoas e a coesão das sociedades
Humanas e não podemos esquecer que Portugal
tem 800 anos de história e se alargou a todo o
220
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
mundo há mais de 500. Também não se pode
esquecer o que foram as antigas colónias portuguesas e agora países independentes, pois mais
não eram do que um conjunto de reinos e tribos
dispersas, que se uniram fundamentalmente pela
língua comum. E se esses países foram capazes
de absorver populações oriundas de outros continentes, isso resultou da capacidade dos portugueses em aceitar a mistura de raças, de que o
Brasil é exemplo marcante. Basta comparar com
o que fizeram os ingleses e os holandeses.
A língua comum sempre foi elemento fundamental para o diálogo entre as Pessoas e as Instituições. Lá diz o velho ditado português que “é
a falar que a gente se entende”.
A língua portuguesa é hoje uma das mais faladas do globo, disseminada por múltiplos continentes, contando não só com os países onde é
língua oficial, como os denominados Países de
Língua Oficial Portuguesa, mas com todas as
comunidades espalhadas pelo mundo, ao ponto
de, em tempos idos e em jeito de graça, se ter
dito que Paris era a segunda cidade de Portugal.
São bem conhecidas, aliás, as comunidades
portuguesas espalhadas pelos quatro cantos do
Mundo, como a Venezuela, a África do Sul, os
Estados Unidos da América, o Luxemburgo, a
França e tantas outras.
E será significativo constatar que a ONUSIDA
decidiu editar alguns dos seus documentos mais
relevantes, também na língua portuguesa, sobretudo no momento em que a União Europeia
parece querer prescindir da nossa língua.
Olhando para a história da Europa devo confessar que é com extrema dificuldade que acredito e que me vejo parte integrante, do que mais
parece uma manta de retalhos, com múltiplas
línguas e culturas, e até mesmo interesses muitas vezes divergentes, em que algumas nações se
mostram tendencialmente dominantes, assim
relegando as mais frágeis para segundo plano,
e até utilizando-as, com frequência, pelo menos
aparentemente, em benefício próprio.
Há que lutar intransigentemente por Portugal,
mesmo se a Europa se tornar verdadeiramente
federada e não deixe de respeitar a legitimidade
todos e de cada um dos seus componentes. Continuo a ser um claro defensor da independência
de Portugal, que sempre soube, ao longo de 800
anos, lutar por ela.
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Aliás, não me restam dúvidas de que, se algum
feriado público tiver que ser abolido, como se
prevê, nunca poderá ser o do dia 1 de Dezembro, data da retoma da nossa independência, e
cujo valor, pelo menos para mim, é certamente
superior a qualquer outro, sejam eles porque se
mudou de regime político (como o 5 de Outubro ou o 25 de Abril), se comemora o dia do trabalhador (como o 1 de Maio) ou o aniversário
de Camões (como o 10 de Junho).
Não podemos esquecer que a Europa sempre
procurou dominar o mundo. Primeiro a Itália,
com o império Romano, depois Portugal e Espanha, na época dos descobrimentos, seguindo-se a Inglaterra no século XVIII, a França, com
Napoleão Bonaparte, depois a Alemanha, com a
1ª Grande Guerra e a ditadura Nazi, e finalmente a União Soviética. E agora temos a sensação
de que o espírito imperial não passou, muito
embora em contexto diferente e mais localizado, mas sempre os grandes dominando os mais
pequenos e mais fracos.
O que podemos assim esperar, no futuro, de
uma Europa dita Comunitária, na qual estamos
integrados com aparente benefício, mas que
parece bem longe dos objectivos altruístas dos
que idealizaram a União Europeia? E também
não podemos esquecer que, num mundo globalizado, só uma Europa verdadeiramente unida
se poderia equilibrar, nos anos futuros, com o
poder de economias como a Americana, a Chinesa ou mesmo a Indiana ou a Brasileira. Fica
a interrogação e a necessidade de um avaliar de
prioridades, muito embora isso não signifique
necessariamente abandonar a Europa (ou mesmo apenas o Euro), tanto mais que o que ali
acontecer não deixará de influenciar, drasticamente, o nosso País.
Mas, talvez por instinto, como defensor intransigente da família natural (pai, mãe e filhos, como elemento básico e estruturante de
qualquer sociedade), muito para além dos interesses meramente individuais e que hoje parecem ser infelizmente preponderantes, eu não
consigo esquecer que 500 anos de colonização
de outros povos, com os seus graves deméritos
mas também com alguns bem reconhecidos
méritos, não podem ter deixado de constituir
profundas marcas de cultura e humanismo,
que se manifestam, nomeadamente, ao vermos
o elevado grau de miscigenação e a enorme variedade de variantes étnicas, largamente existentes na actual Comunidade Lusófona.
É por isso que penso, que sendo Portugal, com
os seus defeitos e qualidades, como que o Pai
de filhos já crescidos e emancipados, mas indissoluvelmente interligados por laços de língua,
cultura, tradição e afectos, como são os actuais
Países de Língua Oficial Portuguesa, e sem menosprezar a legítima independência e autonomia destes, é á convergência lusófona que deve
ser dada, actualmente, a máxima prioridade,
para benefício de todos e de cada um, através da
colaboração e partilha sincera, honesta, fraterna
e descomplexada, de conhecimentos, trabalho
e mesmo recursos. Importa incrementar a convergência entre os Países e as regiões do espaço
lusófono não só no plano cultural, mas também
social, económico e mesmo político. É preciso
saber dar e receber. Todos sabemos que o mundo atravessa uma grave crise financeira. Mas se o
dinheiro é caro, é também verdade que a amizade, a compreensão, o carinho, o amor e a solidariedade, são baratos e ninguém tem justificação
para não os usar.
Façamos pois aos outros o que gostaríamos que nos
fizessem a nós, quando em dificuldade. E é assim
indispensável trabalhar, poupar e investir, aproveitando em pleno os recursos intelectuais e naturais.
Como bem dizia o MIL: Movimento Internacional Lusófono2, na sua Declaração sobre a última Cimeira Europeia, as Uniões políticas só
podem sustentar-se em comunidades histórico-culturais, em comunidades de afectos, porque
só nestas há verdadeira solidariedade e os valores
se poderão impor aos simples interesses económico-financeiros, que hoje, infelizmente, dominam o mundo.
Num mundo globalizado parece indispensável
que se associem os que possuem entre si os maiores laços comuns, partilhando experiências, e até
mesmo riqueza, nas suas várias modalidades.
E quanto ao plano cultural, virá a propósito dizer,
que continuo a escrever o português que aprendi,
o único que considero “verdadeiro”, e que não o
faço de acordo com o novo acordo ortográfico,
2
Ver: www.movimentolusofono.org
221
que gostaria até de ver abolido... E porque será
que, neste caso, parece não terem sido ouvidos
todos os membros da CPLP, e se procurou um
simples acordo entre dois dos seus componentes:
o Brasil e Portugal, com a agravante de que “o
mais recente” parece ter-se imposto “ao mais antigo”? Aliás bem se sabe que nem a França nem
a Inglaterra alteraram as suas línguas mãe, apesar
de também faladas em todo o globo.
Importa procurar erradicar a todos os níveis, e em
todas as Comunidades, a pobreza, a fome, o analfabetismo, as injustiças sociais, os preconceitos de
natureza racial, regional ou mesmo tribal, estes
últimos a que, felizmente, Portugal em grande
parte escapa, pela sua relativa homogeneidade.
Importa igualmente promover a educação, a
saúde, a habitação, o emprego, através de uma
colaboração disciplinada e responsável, livre
de ideologias redutoras, através da colaboração
do Estado com a Sociedade Civil, quer privada
quer de âmbito social, sempre no respeito das
liberdades e direitos humanos, segundo as regras
de uma verdadeira democracia, hoje em dia tantas vezes desvirtuada.
O Mar sempre foi uma das nossas prioridades e foi
sobretudo através dele que partimos à descoberta
do mundo. E, neste momento, nada custa pensar,
sobretudo se for aberto, como previsto, um novo
“Canal do Panamá”, que Portugal se possa vir a
transformar-se no porto atlântico de entrada da
Europa. Pela sua posição geográfica privilegiada,
Portugal pode facilitar a entrada de empresas do
resto do mundo, que desejem estabelecer-se, ou
simplesmente concorrer, na Europa. Estimular-se-ia e manter-se-ia, ao mesmo tempo, uma estratégia lusófona, com livre integração de Pessoas
e bens, facilitada pela grande orla marítima que
possuem os Países de Língua Oficial Portuguesa.
Portugal, sob a perspectiva da integração europeia deixou destruir grande parte do seu tecido produtivo, com relevo para a agricultura e a
pesca, e necessita hoje de se unir e de recuperar
a sua capacidade económica, ao mesmo tempo
que procura novos horizontes e colaborações. Se
até hoje o principal parceiro económico de Portugal têm sido os Países Europeus, agora numa
fase estagnação, certamente que no futuro Portugal só poderá beneficiar de países em franca
expansão, como sobretudo o Brasil, Angola ou
222
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
mesmo Moçambique, que descola da sua pobreza, sem falar já do constante progresso e estabilidade de Cabo Verde.
Se um dia tivesse de optar entre a Europa e a
Comunidades dos Países de Língua Oficial Portuguesa, não hesitaria na opção pela segunda. E
a verdade é que a mais recente evolução nos mostra, cada vez mais próxima, esta última opção.
A lusofonia, se a soubermos cultivar e aproveitar, oferecer-nos-á as melhores oportunidades,
nomeadamente no campo económico e estas
não deverão ser desaproveitadas, estabelecendo,
sempre que justificada, a celebração de acordos
económicos com a CPLP.
Como refere uma Declaração do MIL sobre a
última Cimeira Europeia, devem os portugueses
privilegiar, quando seja necessária a alienação
das suas empresas, que elas sejam adquiridas,
sempre que tal for possível, por outras empresas lusófonas. Como diz no seu livro Portugal
na Hora da Verdade, Álvaro dos Santos Pereira,
“ não temos que temer os investimentos angolanos, as aquisições Brasileiras ou as parcerias
Moçambicanas. Se as travarmos, estaremos a
desperdiçar uma das nossas maiores vantagens
comparativas, que é o nosso passado comum, a
nossa cultura e uma língua partilhada por povos
em quatro continentes. E diz ainda: “É cada vez
mais evidente que o grande dinamismo económico dos próximos anos estará mais em países
como Angola, Brasil e Moçambique do que no
Velho Continente. Portugal, para já, poderá
facultar sobretudo tecnologias e competências,
recebendo em troca sobretudo matérias-primas.
Portugal não pode deixar que os direitos esmaguem os deveres, E vale a pena recordar, parafraseando John Kennedy, que, em vez de cada um
perguntar o que o País pode fazer por ele, cada
um deve, sim, perguntar-se o que pode fazer
pelo seu País. A Sociedade Civil não pode deixar
de ser mais informada e participativa, se queremos manter a soberania nacional. Não podemos
esquecer o que Martin Luther King dizia: que
“mais importante do que o alarido de alguns, é a
indiferença dos que nada fazem e que Edmund
Burke, já no século dezoito, dizia que “para o
triunfo do mal, basta que os bons nada façam”.
Importará pois reforçar a acção comum em todas as áreas, nomeadamente a da Justiça, como
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
agora se procura sob a égide dos Ministérios da
Justiça dos Países da CPLP, que irão realizar em
breve mais uma Conferência conjunta. Isto sem
esquecer a colaboração realizada ao nível das
Nações Unidas, no quadro das alterações climáticas e do protocolo de Quioto.
Sabemos que a língua une e o desporto reforça: por isso passaram a ter lugar, bianualmente
os Jogos Desportivos dos Povos que utilizam a
língua portuguesa. E é assim que vemos uma
Delegação de Macau e outra de Goa entre as
participantes nesses Jogos, organizados pelos
respectivos Governos e com o apoio dos seus
Comités Olímpicos. Estes actuam no respeito
dos Princípios Fundamentais da Carta Olímpica, que procura o desenvolvimento harmonioso
do homem, corpo e espírito, a paz e a solidariedade entre os povos, a preservação da dignidade
humana e dos princípios fundamentais da ética.
No fundo, cada um procurando educar pelo
exemplo, dando sempre o seu melhor, de acordo com as suas capacidades, mas sempre com
isenção e lealdade. Em 2012 terão lugar novos
Jogos. É mais um caminho de colaboração e de
competição saudável, que importa fortalecer.
Até hoje apenas visitei 3 Países de expressão oficial portuguesa: Angola, Moçambique e Brasil.
Muito haverá ali ainda a fazer a um nível básico e
de saúde pública geral, nomeadamente no campo da água potável, dos esgotos, dos cuidados
básicos de Saúde, isto sobretudo nos dois primeiros. E é no campo da Saúde que referirei, o que
pode ser um dos grandes campos de útil colaboração entre Portugal e a Comunidade Lusófona.
Já em 1936 havia sido criada a denominada
Junta das Missões Geográficas e de Investigação Coloniais. No tempo “dito colonial” era
bem evidente a excelente acção, sobretudo na
prevenção das doenças endémicas, como a malária, a doença do sono ou a elefantíase, efectuada pela Escola de Medicina Tropical de Lisboa.
Ela era considerada como uma das melhores do
mundo, e Francisco Cambournac o seu mais
reconhecido e importante elemento. E o papel
e potencial da denominada Medicina Tropical,
não pode, hoje em dia, deixar de ser prioritariamente valorizado, embora sem esquecer que o
Curso de Medicina dado em Portugal, está completamente desajustado em relação às condições
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
da patologia e sanitárias, de muitos dos países de
língua oficial portuguesa.
Se não podemos esquecer, pelo seu valor, humano e técnico, a importante acção de tantos
missionários e Organizações Não Governamentais, como a Assistência Médica Internacional
(mais conhecida por AMI) ou a dos Médicos
do Mundo, e tantas outras Organizações, não
podemos esquecer que são, no fundo, acções
pontuais, e que, só por si, não podem modificar
este grave panorama geral, que exige a acção esclarecida e motivada dos Governantes.
Felizmente existem já acordos de cooperação,
com transferência de Doentes, entre Portugal e
os restantes Países de língua oficial portuguesa,
No entanto, para que isso não seja apenas um
acto simbólico ou um “fazer de conta”, torna-se
essencial agilizar os processos e remover burocracias para que, de facto, os doentes que têm
o privilégio de se deslocar a Portugal dos seus
Países de origem, o possam fazer a tempo e horas, nomeadamente quando se trata de casos de
cancro. Nesses casos, serão os Políticos que terão
a última palavra a dizer. E para essa solução não
podemos esquecer a ideia do passaporte lusófono que o MIL já sugeriu.
É bem conhecida a tendência dos Médicos dos
países de expressão portuguesa que vêm a Portugal fazer a sua Especialização, tentarem aqui
permanecer. Isso levou mesmo a que a Ordem dos Médicos propusesse, e bem, que em
Portugal só se faria a formação pós-graduada,
nomeadamente através das essenciais “Carreiras Médicas”, mas que os exames deveriam ser
feitos nos Países de origem, os únicos onde os
Títulos teriam validade.
Portugal tem hoje um nítido excesso de Faculdades de Medicina. Nada menos que 7 já activas
e bem estabelecidas (2 em Lisboa, 2 no Porto,
uma em Coimbra, uma na Beira Interior, outra em Braga), e ainda 2 em início de formação
(Aveiro e Algarve), para além das tentativas da
Universidade Católica. Isto quando uma Comissão Internacional indicou que 5 Escolas Médicas seriam suficientes para o nosso País.
Assim é de prever que, dentro de alguns anos,
tenhamos excesso de Médicos e desemprego,
grave não só porque o Curso de Medicina é talvez o mais caro de todo o ensino Universitário
223
(resultando assim que, verbas escassas, sejam mal
aproveitadas), mas sobretudo porque o excesso de
Médicos encarece as despesas com cuidados de
saúde, para além de habitualmente baixar o nível
desses mesmos cuidados. O excesso, claramente
irresponsável, consegue assim, quer financeira
quer humanamente, ser ainda muito mais nocivo
que uma ligeira falta.
Além disso, Portugal é já, dos Países Europeus, um
dos que têm um maior índice desses profissionais
em relação número de Doentes, embora mal
distribuídos e com um número excessivo de Especialistas e um insuficiente número de Médicos da Família.
Recordemos então a velha frase de que “mais
vale ensinar a pescar do que oferecer o peixe”,
sem esquecer que tais Cursos Médicos devem
ter um Currículo diferente, muito mais geral, e
sobretudo com ênfase no conhecimento da patologia tropical.
Então, porque não, mesmo que apenas temporariamente, mobilizar os candidatos a Professores,
para leccionarem nesses outros Países da Comunidade lusófona, assim satisfazendo a sua ânsia
de dedicação ao ensino da Medicina, e isto em
Países em que a escassez de profissionais de saúde é mais gritante?
Ou então, mas como segunda escolha, porque
não reorientar uma dessas novas Faculdades,
dotando-a de um Currículo próprio e adaptado,
para apoio aos alunos oriundos dos países africanos de expressão portuguesa?
Em Angola, em colaboração com a Universidade
Nova de Lisboa, penso que se estuda a concretização de novas faculdades de Medicina, para
além da única, actualmente existente em Luanda.
Mas nesta, a maioria dos Professores é de origem
Cubana, e portanto, ensinando os novos Médicos não em português mas em espanhol, o que eu
penso que é uma pena. Felizmente, foi já criado
em Cabo Verde, pela CPLP, um Centro de Formação Médica Especializada, o CFME, que possui já
o seu próprio Sítio na Rede e existe também um
Projecto para uma Comunidade Médica de Língua Portuguesa, igualmente a cargo do Secretariado Executivo da CPLP. E este ano de 2012, terá
já lugar um “Colóquio sobre as ciências tropicais,
nos períodos colonial e pós-colonial”.
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
(DECLARAÇÃO) A TI
António José Borges
(M. I. Instituição)
(Estimado Organismo)
Querida Língua Portuguesa:
Esta carta (que pode ser considerada de amor)
também é uma declaração de intenção: a de fidelidade, quer na satisfação da tua riqueza quer na
defesa dos ataques que contra Ti forem desferidos. É certo que «a língua não é nossa, também é
nossa» (Adriano Moreira), que És um organismo
vivo, que é o povo quem te alimenta, mas não é
verdade menor que rigor é primor. Neste sentido, no teu manuseio, como professor, investigador, tradutor e escritor, contemplarei sempre a
tradição que sustenta a modernidade.
Por limitação do espaço que me é concedido para
te escrever e porque tenho o tempo imprescindível para o exercício da brevidade, permite-me que
partilhe, de forma selectiva (e a melhor possível),
contigo algumas preocupações, nomeadamente,
e regozijos, necessariamente. Não ostento à categoria de paladino moral da defesa da tua pureza
nem a uma espécie de padre cátaro do exemplo
do que deves ser, mas não me permito o silêncio
quando está em causa a dignidade.
Ora, em concreto, deixa-me dizer-te que foi editado recentemente um livro, em que um dos autores (no caso autora) é uma amiga minha, por
sinal presidente da Sociedade da Língua Portuguesa, Elsa Rodrigues dos Santos (o outro autor
é D’Silvas Filho), que pretende também cuidar
de Ti: Grandes Dúvidas da Língua Portuguesa –
Como falar e escrever sem erros. Dividido em cinco partes, este é o género de livros que não deve
cair, como outros, no baú do esquecimento do
serviço nobre; deve, sim, ter a atenção da crítica
que servirá de mediadora com o leitor. Assim
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
será? Pois bem, desde já importa dar o meu contributo para tal, motivando o leitor desta carta/
crónica, dizendo que o livro tem três grandes
eixos construídos com o máximo rigor científico: a teoria da língua; a gramática, com todas
as disciplinas que lhe são aplicadas (são várias as
secções recheadas de exemplos apropriados); e,
por fim, uma análise ilustrativa do Novo Acordo
Ortográfico de 1990, com especial incidência
nas Normas Ortográficas Comparadas.
Assisti a alguns momentos do desenvolvimento
deste projecto que Te honra.
Quero que saibas que uma esmagadora maioria dos meus alunos está contra o Novo Acordo
Ortográfico, mas na verdade não tem o mínimo
conhecimento do que consta no AO. Donde, enquanto responsável pela sua educação e formação
quanto ao Português que usarão, também porque
esta decisão do Novo Acordo me parece irreversível, mas não inegociável, tenho transmitido a
todos que devem informar-se melhor para que as
suas críticas não sejam classificadas de ignorantes
e ignoradas. Quanto ao futuro muito próximo,
peço-lhes atenção à comunicação social e à literatura que comprarem, a qual ditará os mecanismos de assimilação. Reafirmo-lhes que para eles
não será tão difícil como para mim, pois ainda
são jovens, e que para os meus pais (seus avós)
será ainda mais difícil, até mesmo porque alguns
provavelmente jamais usarão no seu todo as novas regras. Portanto, embora quem tenha alma
não tenha calma, nem tudo é o que parece – e
esta observação é profundamente ambivalente.
Importa, digo sempre, a preocupação conTigo,
seja de que forma (não) for: com «pára e para»
tendo significados diferentes, bem como de ora
em diante com «para e para», que têm significados
distintos segundo o contexto, com ou sem a relativa
emancipação de certas raízes latinas, o meu amor
por Ti será sempre uma certeza. Aliás, sempre Te
escreverei com letras iniciais maiúsculas.
Muito recentemente, o antigo primeiro-ministro de Timor-Leste, o bastião da Tua resistência
na Ásia, declarou que «a Língua Portuguesa não
é do colonialismo mas Língua do povo», dando
assim mais um contributo para a Tua sustentabilidade naquelas paragens, isto além do que os
governos timorense e português têm feito em
cooperação, recusando que a geração criada durante a ocupação indonésia seja discriminada.
Ainda em relação a este país-irmão do sudeste
asiático, o seu parlamento nacional aprovou
(dois votos contra e uma abstenção!) em Junho
uma resolução para que as Nações Unidas e a
União Europeia, num prazo máximo de seis
meses, utilizem o Português ou o Tétum no relacionamento institucional com as autoridades
timorenses, à semelhança do que já acontece em
países como Angola, Moçambique ou Brasil,
de modo a que «haja uma comunicação fluida
e sem equívocos e facilitar o entendimento frutífero». Não se trata de uma decisão inflexível,
mas sim questão de justiça e lógica.
225
Trata-se de uma questão de dignificar a identidade
do povo timorense e Tua, minha estimada Língua,
que Te vemos assim cada vez mais disseminada pelo
mundo, numa espécie de ambição agostiniana.
A medida apenas peca por tardia e espera-se
vê-la aplicada às entidades privadas, nomeadamente ao comércio, uma vez que o parlamento
já tenciona que as discussões (espero que também as reuniões de gabinete) nas sessões sejam,
não raras vezes, em Português.
A razão nunca está só de um lado, ensina a diplomacia e a sensatez, mas se para além da estabilidade económica do reinado de D. Dinis (rara na esmagadora maioria dos períodos de governação da
história de Portugal) também foi nessa altura que
Te oficializámos, os séculos passados em que viajasTe pelo mundo e fosTe decisiva no início de uma
nova era para a humanidade podem ser encarados
como prolegómenos da honra que Te é devida.
Da minha parte e no que me aprouver, nada Te
faltará. Desejo que a eventual qualidade de Ti
usada neste texto seja o primeiro atestado (ensaio) do depoimento expresso.
Esta é a possível declaração possível a Ti.
Teu Amigo e admirador,
A GALIZA E A LUSOFONIA
Carlos Jorge Mota
A
prendemos na História e na Literatura que
a Língua Portuguesa é o resultado duma
lenta e gradual evolução do galaico-portucalense, língua falada em terra galaica e no Condado
Portucalense. Mas houve dois Condados Portucalenses, ou Condados de Portucale: o primeiro, fundado em 868 por Vimara Peres, após a
Presúria de Portucale (Porto), e cujo território se
situava entre Minho e Douro, incorporado depois, em 1071, no Reino da Galiza, cujo soberano era simultaneamente detentor dos Reinos
de Leão e das Astúrias; e o segundo, constituído
em 1095, em feudo de Afonso VI, Rei de Leão e
Castela, e oferecido ao burguinhês Henrique (de
Borgonha) que recebeu também a mão de sua
filha D. Teresa de Leão. Era constituído também
por territórios mais a sul, abrangendo já as áreas
de Viseu, de Lamego, de Coimbra e de Idanha.
Os Suevos, povos de origem germânica, chegados à Península Ibérica aquando das Invasões
Bárbaras, encabeçados por Hermerico, através
dum Pacto de ajuda recíproca (foedus) com os
Romanos, formam, no ano de 409, o Reino
da Galiza (Gallaecia) cuja capital era Bracara
Augusta, a atual Braga. Entretanto, chegados
os Alanos, tentam eliminar o Reino Suevo,
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
nomeadamente em lutas na atual cidade do Porto, mas infrutiferamente. Todavia, em 585, os
suevos não conseguem resistir aos Visigodos e
o seu reino é anexado por estes, que tinham a
sua capital em Toledo. A designação de Reino da
Galiza cessa só no Séc. XIX, com a dissolução da
Junta Superior, por Maria Cristina de Bourbon,
entretanto formada para defesa mais eficaz das
invasões dos exércitos napoleónicos.
Com estes pressupostos, historicamente comprovados, é legítimo nos questionarmos sobre qual a
língua antigamente falada no território que hoje
constitui Portugal. Óbvio que teria que ser o galego – considerando a Gallaecia de então e não a
Galiza atual. Consequentemente, o Português não
será mais do que um derivado da língua galega.
E os galegos que língua falam? Bom, aqui a
questão não é tão linear como as aparências nos
sugerem, pela proximidade temporal da época
franquista durante a qual, e apesar de Francisco
Franco ter nascido em Ferrol, na Galiza, só se
admitia a escolaridade da língua oficial espanhola – o castelhano.
Com efeito, considerando o forte fervor de nação
galega que perdura desde há muitos, muitíssimos,
anos, os galegos assumem-se como faladores
do galego de antanho, e não do galego oficial
instituído em 1979, que a capital, Madrid,
foi obrigada a autorizar, ao ser incorporada na
Constituição Espanhola de 1978 a autonomia
de Regiões, algumas das quais com o ensinamento da sua língua nativa. Só que esse galego
oficial não corresponde ao galego genuíno das
gentes galegas. O argumento utilizado foi subtil
… supostamente é para mais fácil aprendizagem
dessa língua pelos não autóctones, daí a maioria
dos termos serem acastelhanizados, logo, aculturados. A política a isso obriga e as verdadeiras
razões são facilmente entendíveis.
Só que muitos galegos – e não será um número nada despiciendo –, principalmente os mais
ligados às elites culturais, não aceitam passivamente essa situação e reivindicam, por meios
legais que consideram legítimos, a necessária
correção para a genuína origem da língua e lutam pela não permissão do seu abastardamento.
Daí, porque consideram ser uma via eficaz, terem requerido o Estatuto de Observador junto
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
da CPLP – Comunidade de Países de Língua
Portuguesa. Entretanto, adentro da própria Galiza, constituíram, em 6 de outubro de 2008, a
Academia Galega de Língua Portuguesa, e, em
2011, uma Fundação da AGLP. Na cerimónia
da constituição da AGLP, em Santiago de Compostela, estiveram presentes na mesa, e fizeram a
respetiva intervenção alusiva ao ato, o Prof. José-Martinho Montero Santalha, como anfitrião;
José Craveirinha, escritor moçambicano, que
aludiu ao facto de, na sua infância em Moçambique, sendo ele filho de português continental, da zona de Abrantes, a sua mãe dizer, com
frequência, que ele era um galego como o pai;
o Prof. Artur Anselmo, do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia de Ciências de
Lisboa; o Prof. João Malaca Casteleiro, da ACL;
o Prof. Doutor Carlos Reis, da Universidade
Aberta de Lisboa; o Professor Evanildo Bechara,
da Academia Brasileira de Letras.
No fim da cerimónia, foi tocado e cantado o
Hino Galego em cuja letra não se refere Galiza,
mas sim Nação de Breogán, figura celta mitológica a quem é atribuída a afirmação da nação
galega. A ele, Breogán, também se atribui a fundação da cidade transmontana de Bragança.
Em 5 de outubro de 2009, também em Santiago
de Compostela, realizou-se o I Seminário de Lexicologia da AGLP, durante o qual foi assinado um
Protocolo com a Universidade Aberta de Lisboa
e em que intervieram figuras proeminentes da
lusofonia, nomeadamente, por parte da AGLP,
o seu Presidente, Prof. José-Martinho Montero
Santalha, o Vice-Presidente, Prof. Isaac Alonso
Estraviz, e, por parte da Universidade Aberta de
Lisboa, o seu Reitor, Prof. Doutor Carlos Reis,
e o Pró-Reitor, Prof. Doutor Domingos Alves
Caeiro. Intervieram também o Prof. Artur Anselmo, do Instituto de Lexicologia e Lexicografia
da Academia de Ciências de Lisboa, o Prof. João
Malaca Casteleiro, da ACL, a Professora Maria
Francisca Xavier, da Universidade Nova de Lisboa, o Prof. Álvaro Iriarte Sanromán, da Universidade do Minho, o Professor Evanildo Bechara,
da Academia Brasileira de Letras, o Prof. Adriano Moreira, Vice-Presidente da ACL.
Em 25 de setembro de 2010 realizou-se o II Seminário onde foi figura destacada o Professor
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Carlos Amaral, Administrador da Priberam
Informática SA, que falou sobre a inclusão do
Léxico da Galiza nas ferramentas relativas ao uso
da língua portuguesa.
Tive já pessoalmente o privilégio de fazer uma intervenção oral, em janeiro deste ano, na Inauguração duma Exposição de lindos painéis alusivos
ao Cinquentenário da Fundação de Brasília, capital do Brasil, na Corunha, na Associação Cultural
Alexandre Bóveda, figura heróica que pagou com
a vida o seu forte galeguismo, “crime” pelo qual
foi fuzilado pelas tropas insurretas de Franco.
Em junho último tive também o privilégio de, no
acompanhamento dum grupo de escritores brasileiros, ser conduzido por amiguirmãos galegos
a Padrón, terra de Rosalia de Castro, e a Rianxo,
terra de Castelão, e sermos recebidos pelo respetivo Presidente da Câmara, por coincidência no
seu primeiro dia de funções autárquicas.
Fazendo nós uma reflexão sobre as verdadeiras
origens da nossa língua, constatamos que a dita
pronúncia do norte de Portugal não será mais
do que uma maior aproximação às suas origens,
de que se destaca algumas trocas de vês por bês (e
vice-versa) e a acentuação de om em vez de ão.
227
Mas uma curiosidade ressalta nesta apreciação
do om. No Brasil, terra para onde foi transportado o português (algum dele agora arcaico), perduram palavras terminadas em om em vez de ão,
de que serve exemplo o termo cupom em vez de
cupão (cupom fiscal), tal qual na Galiza de hoje.
A letra k pronuncia-se no Brasil cá, exatamente
como os galegos a dizem, enquanto que no resto
da lusofonia se fala capa.
Esta diversidade na unidade será, porventura,
a maior riqueza duma língua. E não adianta os
sulistas procurarem brindar os nortenhos com
as brincadeiras da pronúncia do norte, até porque lá, principalmente em Lisboa, há também
as suas caraterísticas muito específicas. Serve de
exemplo a pronunciação de ô em vez de ou: touro, ouro, mouro; á em vez de ai: baixa, caixa,
faixa; ai em vez de ei: feira, tinteiro, madeira; ié
em vez de é: fera, chapéu; e no grave erro gramatical de transformar palavras dissilábicas em
monossilábicas: rio, tio, desafio.
Face ao que precede sobre a Galiza e o galego,
não estará o título deste artigo invertido? Não
seria melhor escrever A Lusofonia e a Galiza?
DA FILOSOFIA PORTUGUESA
Jesus Carlos
Do Magistério da Filosofia Portuguesa
Uma cadeira pode ser vista como mera coisa
para se sentar, traves de madeira feita utilidade,
e uma mesa, como coisa para descansar os cotovelos, pousar copos e chávenas, e do mesmo
modo se pode entender paredes, portas e tectos
– quem não é do café, mais não compreenderá,
porque para pertencer ao café é preciso beber
primeiro um anjo antes de entrar; sim, um anjo
inteiro. É preciso degluti-lo, sem hesitação e
temor, aceitar o fogo, a brasa viva a descer da
garganta até ao âmago da alma.
Depois poder-se-á falar do que não é público,
dos nexos ocultos, do que os mestres transmitem, de como o café, as mesas, as cadeiras
se transformam num magistério eterno que
guarda a pátria; poder-se-á, porém com parcimónia, porque os testemunhos e os legados
são tesouros e os cofres não se podem abrir a
qualquer, porque em todas as épocas medram os
ladrões, os loquazes, os labrostas e os poltrões.
Desta ética secreta cuidam os discípulos, fidelidade absoluta, honra. Não é discípulo quem
quer, é discípulo todo aquele que dá provas,
pela obra e pelos actos – mas acima de tudo é
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
discípulo o que mantém vivo, imorredouro, o
crepitar do fogo ancestral dentro de si.
Da Filosofia Portuguesa
como Via para O Reino Do Espírito
Há um duplo paradoxo que assiste a todo o
ideário de uma filosofia nacional, seja qual for
a pátria de que se fale: a universalidade como
meta/física de todo o saber filosófico e o saber
filosófico como um ir fazendo-se em imanência.
Paradoxo, este, que não releva de um erro do
pensamento, mas da própria essência de todo o
pensar, dimensão humana em que o homem, no
uso da sua razão natural, almeja superar os limites temporais e circunstanciais da sua própria
racionalidade e inscrever no texto da história do
mundo uma transcendência: enquanto duração
para além deste espaço e deste tempo – aquela em
que a razão, pensando, é legislada pela ontologia do mundo, acima de parcelares sistemas e
pequenas ideologias, em que a humanidade se
digladia e perde.
Na aporia de questões complexas progride-se
assentando acordo em chão simples. Há uma Filosofia Portuguesa porque há uma Língua Portuguesa e, no paradoxo que referimos, é a língua
que nos permite esclarecer de que chão partimos. Nenhum linguista ou teórico da Literatura
colocaria em causa a existência de literaturas nacionais, ou seja, de uma visão do mundo circunstancial, inscrita nas possibilidades semânticas e
sintácticas de uma língua.
Na língua, em qualquer, se encontra o mesmo
paradoxo do pensar. Por um lado, a língua é
um modo do tempo histórico, perecível e parcial, matéria que serve o pensamento, na sua
existente expressão acidental. Por outro lado, a
língua é fala do ser, que abre a razão individual
à ontologia do mundo que a faz ser pensamento
e espírito: o Verbo, a língua como sopro vivo, o
perturbador Ruach criador.
Ao tomarmos a língua como matéria activa –
que, ao servir o pensamento, não pode senão
fazer-se ser, e esse fazer-se ser tornar-se a forma
do pensamento –, só poderemos esclarecer o
aparente paradoxo metafísico colocando-o
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
na diferença concreta entre âmbito nacional
e âmbito civilizacional de uma língua. É esse
âmbito civilizacional que acontece como universalidade mensurável. A Língua Portuguesa
é um modo nacional da Civilização Mediterrânica, nas suas componentes helénica, latina,
judia e islâmica. A etimologia o demonstra,
muito para além do campo estritamente semântico e até onde cada sema é uma coluna
modelar de uma civilização específica: ideias,
sentimentos, ciências, política, moral, estética… ou um epocal pendor para o espanto, o
temor, ou a confiança.
As filosofias nacionais existem porque as línguas nacionais existem, condicionando visões
do mundo, históricas, efémeras, e intrinsecamente tão perecíveis quanto as Culturas. Atenas não é mais e, em rigor, o que os Gregos
antigos pensaram, só é compreensível para nós
a partir do que reconhecemos na sua sabedoria
como ainda actual, na medida em que continua a ofertar respostas e questionamentos
ao nosso tempo histórico. Ou seja, a Filosofia
Grega, nacional e sua, conserva-se enquanto
pensar, para o homem contemporâneo, por
tudo o que, na sua substância própria, alcançou a universalidade. Contudo, esta universalidade não é o território metafísico de uma
verdade absoluta, mas uma extensão maior,
sígnica, simbólica e ideal, a que hoje chamamos Civilização Ocidental – como contributo
de diversas sabedorias nacionais que se fundiram numa sabedoria civilizacional.
A realidade de uma Língua Portuguesa (se outras provas não houvessem) é o garante da existência de uma Filosofia Portuguesa, enquanto
pensar específico, que compete com outras filosofias nacionais, no afã humano de determinar o que será a civilização do futuro. Porém,
no que concerne à Filosofia Portuguesa, podemos estar já certos do seu lugar na universalidade: porque há uma Civilização Portuguesa,
enquanto etapa da transformação da Civilização Mediterrânica na vindoura Civilização do
Mundo – que não aceitamos que seja a hegemonia da Civilização Ocidental, mas o Reino
do Espírito.
229
OSSA & CINERES
João Pereira de Matos
Primeira Stanza
Galáxia circum-espiralar em tempo-catraca onde
tudo é força & fluxo. Seja. Mas o que nos torna
régios – ínfimos, é certo – no todo das cousas,
embora vastos na dimensão feérica, não é, justamente, o melancólico declinar d’um impossível
apogeu? Nos inumeráveis mares de luz navegamos cegos, calados e sem sossego porque o imóvel
é nulação e são os ritmos eternos, a ladaínha, o lamento dos d’aprazada morte o que ainda sustém.
Há sempre retorno, nunca começo, talvez nem fim.
O Outono nimbado de luz, pluviosa identidade
que entrevê o festim: carne e ossos e vísceras,
o círio descolorado, o arrás do que já foi. Só é
belo o que combina anátema e serenidade, furor
e desdém.
Segunda Stanza
De costas para a ruína porosa daquilo a que
apelidais de real murmuras a fórmula dos cinco
sentidos da existência: aquele do concreto anelar
em fluxo, o da máxima insanidade, ainda um tal
que promane de fruir a impermanência e, por
fim, o que irá santificar tudo aquilo que reste
difuso e o mais importante de todos: aquele que
manda louvar o inefável, hino feito de ruído oco
e alvar por além e aquém da palavra, ciência-vaga e cega e outra.
Terceira Stanza
Queria convir um mundo de pura melancolia, da vasta largueza do abandono, o poder do
murmúrio. Mas em esse orbe de sã harmonia –
como em todos que assim o são – falta o vário &
o múltiplo. Por isso vos peço que m’abris vossos
abismos em forma de labirinto por onde andar
perdido ou seja não só quando a luz retorna e
é noite, também nos vagos momentos onde o
relâmpago ilumina a negritude.
Passeai comigo.
Quarta Stanza
A força de um último, insciente amplexo. O
que começou junto e paritário a pouco & pouco s’aparta e afasta. A princípio, como é próprio
destas cousas, apenas a ínfima diferença. Olhando para trás torna-se evidente que já lá estava o
abismo mesmo que, então, um feroz escrutínio
não lograsse lobrigar o devir separação. De qualquer forma, dirão alguns que é obra do tempo,
outros preferem atribuir por causa a questão de
uma identidade genésica.
Mas é isto o vário, universos irreconciliáveis e totais e ainda que um ao outro s’orbitem só voltarão
ao uno aquando de sua inevitável dissolução.
Quinta Stanza
Encontrai o máximo comprazimento no paradoxo. Porque a negação do sentido é já o único
sentido; porque este é agora espelho do orbe e
tudo é especular; ainda porque é movimento, do
pensar no eixo de si próprio, e somos tu e eu,
insciente leitor, à sombra d’Heraclito e, finalmente, porque nos faz acreditar na divindade:
se algo é no cosmo que tanto ilude a ratio universal e também, no seu teratológico morfismo
indiciador e, dirão os mais afoitos, propiciador,
desse abscôndito deus que sorri ao desavindo.
Sexta Stanza
D’infinda-matriz um quantum d’identitária tenção
c’oa vária sensível maneira d’universal ruimento.
230
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Qu’esse aluir é uno e toca tudo e fere todos e
sendo, assim, dessa vasta largueza c’acolhe um
cosmo é, de certa feição, dessincrono com o ora
pois é sempre no porvir até ao derradeiro momento. E tal de tal sorte que quem o traz consigo o vê em diverso espéculo. Uns, pelo inverso
d’hialina alvorada, outros d’ouro &’ntardecer,
outros, mais ainda, naquele zénite solar de um
dia-pleno. Mas em coro por aquilo que já não é.
Séptima Stanza
Amar a máquina. Ruído-rumor & fúria. Anima-contínua, contém em si, em deus-todo-vapor a
perfeição-intensa: tudo se corrompe e também a
engrenagem: muda-calada, seu corpo imoto é já cadáver mas a mera hipótese do movimento (maquinal ventura) é porque em seu cerne acolhe o místico,
esse torpor ideal & infindo de moto-perpétuo.
Amar o Sol, beijar a máquina.
O primado da luz é movimento, de que adianta
o sangue incirculado?
Oitava Stanza
Sanctum, sanctum no uivo da noite; d’extática
ventura: um, o diverso, dois, o anverso, três, o
transverso; tecido e tecitura, insanidade e lisura
de lucidez: partilhando o espaço de um querer
comum, uno & único. Assim o dom de todos
os seres: cada cosmo partilhado & em comunicação, ajuntando a um todo um outro todo em
mais vasta maré de quanto haja e mais e maior
então é o mundo.
Podeis, dest’arte, contrapor um penúltimo horizonte de resistência à universal potestade da
sacra-dissolução.
(...e é na noite-mais-longa que com a luz se sonha).
Nona Stanza
Em noite e Inverno há essa vária aproximação
do decesso, limpo e suave como lisa ossatuara
do porvir, haja lucidez para ainda dizer em tom
coloquial: já aqui chegámos.
Décima Stanza
Vasto é o sentido que s’invente no afã doudo de todo
o sentido ter: horizonte mas sem limite, palavra chã
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
que tud’alcance, a vera linguagem dos homens
que em todas as línguas do orbe possa mitigar
quanta dor d’existir ora para amanhã soçobrar em
não ser, um hino que contenha a lamentação mas
possa ir mais longe, para quanto a vista abarque
ainda que mais não haja que amblióptica visão.
Seja; um querer, firme e não-estreito é o que se
pede ao poeta e que cante o vário e o indiviso, o
primeiro frorir e a última dissolução.
Décima Primeira Stanza
Tendes a morte nos ossos; &, da fria ossatura
(metal polido) rescende o medo queimando
como gelo; corroendo, radicular gangrena. E
tudo é noite.
Décima Segunda Stanza
Abominai o círculo, signo de quanto fechamento, limite, horizonte, prisão. Se há verbo é por
mor de liberdade e infinito.
Mas isso apena será se não retornares ao princípio.
E, bem assim, é p’la forma mais perfeita que
s’empobrece a perfeição.
Décima Quinta Stanza
Para além de toda a evidência haverá um recesso
de luz que t’espera?
Ah, se mesmo em panóptico vislumbre o mundo
é pleno de sombra e tudo o que fazes é andar em
círculo, cerrado no martírio de uma existência que
s’arrasta sem um único clarão que vivifique em
cald’alor, que proteja e projecte, enfim, que arda
com a fera chama que sabes arder e que vindique,
ainda que s’extinga e t’extinga em hecatombe.
Décima Sexta Stanza
Derrisão por ausência do múltiplo: não querer,
não sentir, não pensar. Eis a via suicidária: preenchimento por ausência, a insidiosa presença
da mesmidade, grande, branca & opaca; ortodoxia da existência onde sempr’impera qualquer Inverno, urbe negra, bucólica vastidão
d’espinhos também eles eivados de breu; essa,
do mesmo modo, a solenidade de quem usa tal
manto, ainda que esfarrapado e sujo é pleno &
puro porque o que haja de sempre igual a si
231
próprio rescende a fúnebre e se é morte o que
não varia o que seja de vida tem a irrisão própria
de toda a alegria, vária e mutável e leve e doida e
fresca e suave e irresponsável e outra.
Décima Séptima Stanza
Erguer em sistema o negrume, sondar o fundo do quanto da vida se renuncia; uma ideia-una, passível de quas’infinita variação na exacta
medida em que o deserto é também labirinto.
Mas porque não a narrativa d’esplendor, onde
a presença de quanta potestade essente rescende
a Primavera e isso é ternura e doce-alor, pulsão
profundamente telúrica que, no entanto, de tal
leveza que haja ascenso da terra? Talvez que a
escrita seja morte em verbo e a fixação espúria
desse esplendor do múltiplo mutável contenha a
insciente impiedade da palavra que ao cindir de
um todo de luz uma parte logo inventa & impõe uma sombra o que, dess’arte, faz irromper
nesse jardim a insuportável mutilação do que
perverte o que há de belo, de puro, de bom.
Décima Terceira Stanza
A entropia está em tudo; corrói-se mesmo a
ideia pura; que não sendo nem pode ser sem
seu quantum de ruinosa imperfeitude: primeira,
de raiz, co-natural ou d’essência; sequente, derivada ou de natureza segunda significada pelo
decaimento próprio e ínsito a cada cousa. Essa
primeira é cifra de mundo pois não consta notícia de consubstanciamento no orbe que s’exima
ao universal perecimento. Aquela, sequente &
segunda, é a eterna condição do tempo que, a
seu momento e vagar, aniquila & destrói.
Décima Quarta Stanza
A vida da vida: irrepresos força & furor. A dúvida
impõe-se: para quê loar a morte – que tudo reduz
ao uno e que, por tanto, é irmã ou talvez mãe
da miséria da forma – quando o variegado vário,
sempre de si diverso, permite a infinita declinação da palavra, um verbo, de cada vez todo novo?
Será então o medo – outro parente e dilecto afim
– de tanta riqueza, transbordante riqueza? Pois tal
abundância é um jeito outro de chegar ao indizível.
LUSITÂNIA SACRA
Joaquim Domingues
J
osé Joaquim Lopes Praça teve um percurso singular; nascido em Castedo, Alijó, no
meio rural transmontano, ascendeu a catedrático coimbrão e veio a privar com a família
real, como professor do filho herdeiro de D.
Carlos, o príncipe Luís Filipe, assassinado com
o pai, em 1908. Em Braga fora colega e amigo
do distinto sacerdote e latinista Martins Capela, tendo ele mesmo pensado seguir também a
carreira eclesiástica, motivo pelo qual frequentou durante alguns anos a Faculdade de Teologia. Ainda estudante, publicou a pioneira História da Filosofia em Portugal nas suas relações com
o movimento geral da Filosofia (Coimbra, 1868),
que Pinharanda Gomes reeditou em 1974, com
importantes notas e aditamentos.
Graças aos desvelos de D. Maria Margarida
Nunes Mexia de Mendia, sua bisneta, estão reeditados os volumes A Mulher e a Vida, Direito
Constitucional Português (em dois tomos) e publicados alguns inéditos, bem como um estudo
biográfico. Um tanto esquecidos permanecem
dois trabalhos académicos que testemunham,
melhor talvez que quaisquer outros, como as suas
atenções se centravam nos aspectos mais elevados e decisivos da vida colectiva. Saídos ambos
em Coimbra, são eles o Ensaio sobre o Padroado
Português, dissertação inaugural para o acto de
conclusões magnas, de 1869, e Das Liberdades da
Igreja Portuguesa, com o antetítulo O Catolicismo
e as Nações Católicas, dissertação para o concurso
ao magistério da Faculdade de Direito, de 1881.
232
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
O título deste último parecerá talvez estranho a
quem não tenha presente certa feição da história
eclesiástica, mormente dos séculos XVII a XIX,
quando o tema foi largamente tratado, sobretudo
em França, motivo pelo qual há quem o reduza
ao rótulo de galicanismo. Contudo, mesmo entre
nós, a questão das relações entre o poder político
e o religioso tinha sido recorrente motivo de desinteligências ao longo dos séculos, atestadas desde
o reinado de D. Afonso Henriques, no episódio
que Alexandre Herculano, atento a questões tais,
ficcionou sob o título de ‘O bispo negro’, nas
Lendas e Narrativas. No entanto, que só após a
criação da Congregação para a Propagação da Fé,
em 1622, pelo Papa Gregório XV, em pleno período filipino, ela se agudizou; tendo a questão do
Padroado passado a constituir o principal motivo
das tensões entre Portugal e a Santa Sé, conforme
opinava Lopes Praça em 1869.
Assim, doze anos depois, ao escolher o tema Das
Liberdades da Igreja Portuguesa, ele tinha a perfeita consciência de quanto urgia restabelecer as
relações entre o Estado e a Igreja sob os mais claros princípios. Centrou então as suas reflexões
nos cerca de cem anos contados desde a segunda metade do século XVIII, por certo a sua fase
mais complexa, de cujas vicissitudes sentimos
ainda hoje os efeitos, se bem creio. Sobretudo
em Coimbra, seria ainda à data bem evidente
que, em muitos aspectos, mas em especial no espírito que presidia às instituições, continuavam
a dominar as directrizes impostas desde Pombal,
por quem o jovem professor manifestava grande
apreço, embora criticando-lhe a parcialidade.
Voltando ao título da dissertação de 1881,
cumpre assinalar que ele parafraseia o de alguns
textos da correspondente literatura francesa, de
que tenho presente uma versão manuscrita anónima, dos finais do século XVIII ou inícios do
XIX, intitulada Exposição da Doutrina da Igreja
Gallicana, a Respeito das pertenções da Corte de
Roma. Primeira parte; contemporânea, porém
distinta, da Exposição da Doutrina da Igreja Galicana, pelo Snr. De Marsais, mencionada por
D. Gabriel de Sousa, no prestimoso volume
acerca dos Escritores Beneditinos naturais da Cidade do Porto (Porto, 1997, p. 195), como devida à pena de Fr. Joaquim de S. José Oliveira,
que a teria já concluída em 1803. O livro de
César Chesneau, senhor du Marsais, saído postumamente em 1757, retomava, ampliando-a, a
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
doutrina expendida por Pierre Pithou no breve
tomo Les Libertés de l’Église Galicane, oferecido
em 1594 ao rei Henrique IV.
Se era compreensível esse recurso a uma bibliografia prestigiada, o certo é que, como afirma Lopes
Praça, mesmo “os propugnadores da liberdade
da Igreja francesa, entendem que essas liberdades, ou antes os princípios que lhes servem de
base, nada têm que seja especial à França; ao contrário, dizem expressamente que tais princípios
constituem o direito comum de todas as igrejas e
de todas as nações” (pp. 14-15). Nem poderia ser
de outro modo; ainda que as formas concretas
que revestiram ao longo dos tempos e em função dos lugares não devam ser desprezadas, pois
documentam o modo como foram entendidos
esses princípios no curso da “linha mais ou menos flutuante” de uma relação em que, conforme
a história mostra, a disciplina da Igreja “se tem
acomodado, quanto possível, a bem diversas situações” (pp. 104 e 105). Razão pela qual destaca
“os trabalhos teológicos e canónicos do notável
e conhecido escritor português António Pereira
de Figueiredo”, cuja Tentativa Teológica deve ser
considerada “um monumento respeitável entre
os monumentos que possamos apresentar em favor das liberdades da Igreja portuguesa” (pp. 30
e 33). Com efeito, defende aí doutrina que, para
lá das dispensas matrimoniais, visa devolver aos
bispos “a faculdade de poderem prover ou dispensar em todos os casos papais, quando assim
o pedir a necessidade ou utilidade dos súbditos”.
O que tem implicações de bem maior monta do
que as que o professor conimbricense teria em
mente ao afirmar: “As liberdades das igrejas nacionais manifestam-se nas resistências tácitas e
explícitas que as nações católicas, sem deixarem
de o ser, opuseram à concentração da autoridade
eclesiástica, quando essas resistências tinham a
seu favor ou os antigos cânones, ou os costumes
e observâncias canónicas, nos diversos capítulos
da disciplina eclesiástica.” (p. 28) Com efeito, se
mais do que os efeitos documentáveis, importam os princípios em função dos quais Pereira de
Figueiredo defendia que se devolvessem aos bispos os poderes de que, por esta ou aquela razão,
tinham sido privados, o conceito a repristinar
seria o das igrejas episcopais ou diocesanas e não
o das igrejas nacionais. Salvo se um conjunto de
dioceses se constituísse como tal, atendendo às
afinidades entre os respectivos fiéis; o que não
teria estado na mente dos governantes, já que “a
palavra liberdades não soava dum modo agradável aos ouvidos do absolutismo ilustrado”, que
as transformava “em prerrogativas da coroa, em
corolários do poder absoluto” (p. 106).
*
A questão não é de somenos e só se compreende que tenha sido elidida quase da memória colectiva precisamente porque a reivindicação das
liberdades da Igreja portuguesa apareceu historicamente associada a uma notória vertente política; contrariando a apregoada separação entre os
domínios temporal e espiritual, cavalo de batalha
do pombalismo. Lopes Praça, que colocara como
epígrafe do seu livro a conhecida passagem de
São Lucas (XX, 25): Ait illis: Redite ergo quae sunt
Caesaris Caesari et quae sunt Dei Deo – Diz-lhes
[Jesus]: Dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus, esclarece que a ideia corrente sob
o governo pombalino era a de que “Deus por tal
forma distinguiu os dois poderes, real e pontifício, […] que cada um deles é no seu género supremo e independente do outro”. Sem embargo
do que “Os reis podem e devem usar do gládio
material, isto é, da autoridade e severidade das
suas leis, não só para conservar a república, mas
também para defender a religião; no que se compreende, não só a defesa e execução dos cânones,
mas também a extirpação e punição dos abusos
ainda eclesiásticos” (pp. 55 e 56).
Tão assimétrico entendimento da relação entre o
Estado e a Igreja teria de conduzir forçosamente, em vez do equilíbrio, ao predomínio daquele, numa tardia e funesta inversão do que teria
sucedido outrora. Confinado a um mal definido
domínio espiritual, pago pelo erário público,
provido nos benefícios e dignidades pelo poder
político, o clero tenderia a decair numa espécie
de funcionalismo público, mais ou menos conformado, conforme o denunciou o P.e Sena Freitas. Situação cujo absurdo se revela gritante se
tivermos presente que uma parcela considerável
dos políticos burgueses era, ostensiva ou encapotadamente, anticlerical…
A ideia de que as liberdades das igrejas nacionais
se configuravam nas “resistências às alterações da
disciplina eclesiástica operadas progressivamente no sentido da centralização dos poderes” [por
parte de Roma…], agradava aliás à burguesia
233
anticlerical, na certeza de quanto lhe convinha
dividir para reinar. Com efeito, a força da Igreja não resulta do que separa, ainda que seja a
legítima resistência, mas do que une, como a
etimologia garante, fazendo equivaler a noção
às de assembleia ou de congregação. Pelo que
a constituição da Igreja portuguesa só seria eficiente como resultado de um movimento interior; nunca como a realização de um projecto
suscitado a partir de fora, por muito sedutor que
fosse ou parecesse ser.
Se já na segunda metade do século XVIII parecia
frustrada a intenção de harmonizar ao mais alto
nível os poderes político e religioso, um século
depois a dificuldade permanecia, pois, conforme
observava o autor Das Liberdades da Igreja Portuguesa (p. 57), “será difícil achar na moderna legislação constitucional qualquer providência em
ordem a submeter o clero à lei comum, que não
tenha as suas raízes no movimento empreendido
e realizado sob o impulso enérgico e audacioso
do Marquês de Pombal”. Compreende-se por
isso que o puro liberalismo professado desde o
Ensaio sobre o Padroado Português, fazendo-o crer
que “A liberdade cura as exagerações dos privilégios” (p. 57), como em geral todos os males
sociais, o levasse a buscar noutro plano a solução
do problema. Entendia ele que, “em vista dos
princípios e da verdade, o sistema americano é o
preferível e o único aceitável”; isto é: “Liberdade
para a Igreja nos negócios espirituais e puramente eclesiásticos, inteira liberdade para o Estado
nos negócios temporais, tal é a nossa divisa, decerto a mais favorável de todas à verdade e aos
progressos da Humanidade.” (pp. 56 e 59)
Tinha então apenas vinte e cinco anos e queixava-se do pouco tempo concedido para tratar questões de tal melindre; ainda assim salta à vista a
contradição entre a proclamação de que “o emblema do futuro é – A Igreja livre no Estado livre”
(p. 121) e o modo como objectava a Silvestre Pinheiro Ferreira. Discordando dos argumentos do
“distinto escritor” contra a nomeação política dos
titulares dos cargos eclesiásticos, replicava “não
ser exacto que os empregados no serviço da Igreja
não tenham com as instituições políticas outras
relações que não sejam as de serem pagos pelo
tesouro público. Cabem-lhes funções políticas
e administrativas da maior importância.” Acrescentando que “a história em 1835 demonstrava
superabundantemente que os governos liberais
234
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
eram insustentáveis sem a intervenção do Estado
no regímen da disciplina eclesiástica” (p. 99).
Está claro que ninguém foge ao seu tempo e Lopes Praça teve a lucidez de distinguir entre a que
entendia ser a solução ideal e a que as circunstâncias permitiam, se não impunham. O que o
embaraçava sobretudo, como se depreende de
mais de uma passagem, era a distinção entre o
espiritual e o temporal; pressuposto de toda a
questão, quer nas vicissitudes históricas que invoca, quer no plano teórico para que aponta.
Ora, a bem ver, ainda que fosse possível teorizar
em termos inequívocos acerca do âmbito próprio e dos limites de cada um, pouco se adiantaria em termos efectivos, tão certo é que, real
e objectivamente, eles são indiscerníveis e até
insubsistentes um sem o outro.
Resulta assim evidente que ao vincar a separação dos dois poderes – mesmo sob a fórmula
simpática de A Igreja livre no Estado livre –, se
está a advogar, conscientemente ou não, a constituição do Estado à luz de um poder espiritual
distinto e, portanto, alternativo ao da Igreja. A
quem o não admitir por princípio, lá estão os
factos a mostrar-lho; pois, como o idealista, mas
bem intencionado Lopes Praça teve de reconhecer, nem as funções eclesiásticas deixam de ter
impacto social e político, nem as políticas subsistem sem interferir, de algum modo, naquelas.
Razão pela qual, melhor do que pretender ignorar ou desmentir a realidade, será pensar e agir
em harmonia com ela; a não ser que uma razão
mais poderosa obrigue a sustentar o insustentável, como tantas vezes acontece…
Numa tão bela como vera tirada, afirma Lopes Praça que “A liberdade, no seu sentido mais elevado,
é a faculdade, o meio de realizar a justiça. Numa
sociedade constituída regularmente a justiça está
traduzida na lei e nós seremos livres satisfazendo o
dever moral de cumprir a lei.” (Das Liberdades da
Igreja Portuguesa, p. 71) Porém, se “A justiça manda dar a cada um o que lhe pertence” (Ensaio sobre
o Padroado Português, p. 158), como será possível
saber o que, na verdade, pertence a cada um sem o
recurso a uma autoridade espiritual?!
Julgo que a grande revolução por que Portugal
passou desde há muitos séculos a esta parte consistiu em dissociar o poder espiritual do Estado
do poder espiritual da Igreja, como se as duas ordens fossem paralelas e idealmente autónomas;
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
contra a doutrina tradicional de que são interdependentes, cooperantes e convergentes para
o mesmo fim; qual o que todo o cristão quotidianamente roga ao Pai: que venha a nós o seu
Reino! D. João V, homem assaz consciente da
sua condição de pecador para aspirar a um bem
superior, terá sido o último dos nossos monarcas
a pensar e agir nessa perspectiva; em termos hoje
difíceis de compreender, dada a profunda alteração das circunstâncias. Se Lopes Praça pensava
já no ciclo iniciado pelo marquês de Pombal, o
Padre António Pereira de Figueiredo, contemporâneo da revolução, mas formado bem antes,
ainda se movia no quadro mental subtilmente desenhado pelo rei Magnânimo, pelo que a
motivação essencial da sua obra teológica radica
num projecto que o professor conimbricense
mal podia divisar, para lá do véu que a doutrinação liberal lançara sobre a realidade portuguesa.
Exige-se, na verdade, um esforço sério para
abordar compreensivamente uma obra cuja crítica por via de regra tem abundado em equívocos e má-fé; pois, em vez do pensamento expresso
do autor da Tentativa Teológica, tem visado o
homem, acoimado de pena alugada e reduzido
a mero epígono do famigerado Febrónio. Ora é
de elementar justiça lembrar que, entre a vasta,
valiosa e diversificada obra publicada e inédita,
o catálogo dos seus escritos, publicado em 1800,
menciona, só entre os títulos atinentes ao tema,
os dois tomos dedicados a João Gerson (pp. 3940), a Resposta Apologética ao Padre Gabriel Galindo (p. 55) e o Apêndice e Ilustração da Tentativa
Teológica (p. 55), todos de 1768; a Demonstração
Teológica, Canónica e Histórica (pp. 56-57) e a
Dissertatio Historica et Theologica de Gestis et
Scriptis Gregorii Papae VII adversum Henricum
IV Imperatorem (p. 40), ambos de 1769; e ainda
a Análise da Profissão de Fé do Santo Padre Pio IV,
de 1791 (p. 61). Muitas centenas de páginas, algumas com mais de uma edição e traduções em
latim, castelhano, francês, italiano, inglês e alemão; mas também objecto de controvérsia, que
se prolongou pelo século XIX, tanto na Europa
como na América, atestando a valia de uma das
mais relevantes personalidades do século XVIII.
Para encurtar razões acerca da sua ortodoxia,
basta lembrar que a trilogia iniciada com a Tentativa Teológica – dedicada “Aos Excelentíssimos
e Reverendíssimos Senhores Bispos e Arcebispos
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
do Reino de Portugal e seus Domínios” –, a que
se seguiu o respectivo Apêndice e Ilustração, teve
o último tomo – que o autor considerava “a
obra mais trabalhada e mais farta de erudição de
todas as que em este género tenho publicado”
(p. 57 do Catálogo) – dedicado a D. Gaspar de
Bragança, Arcebispo de Braga, a cujas expensas
se imprimiu. O título é por demais explícito:
Demonstração Teológica, Canónica e Histórica do
direito dos Metropolitanos de Portugal para confirmarem e mandarem sagrar os Bispos sufragâneos nomeados por Sua Majestade e do direito dos
Bispos de cada província para confirmarem e sagrarem os seus respectivos Metropolitanos, também
nomeados por sua Majestade, ainda fora do caso
de ruptura com a Corte de Roma. Impresso em
Lisboa, em 1769, “Com licença da Real Mesa
Censória”, não consta que tivesse sido incluído
no Índice dos Livros Proibidos, ao contrário do
que sucederia, ainda que temporariamente, com
a Análise da Profissão de Fé do Santo Padre Pio IV.
Uma obra desta envergadura, porém, ainda que
não esteja imune a circunstancialismos vários,
implica a personalidade do autor no que ela tem
de mais elevado, íntimo e sério, pelo que mal avisado andará quem a queira confinar às caducas
disputas do imperfeito pretérito e menospreze
o seu valor actual. Aliás, enquanto foi vivo, não
obstante o prestígio nacional e internacional que
lhe granjeou, esse labor especulativo de pouco
aproveitou ao P.e António Pereira de Figueiredo, antes algumas amarguras lhe custou. Mas se
houve desacerto com a sazão propícia às ideias que
defendeu, nem o mérito lhe falece, nem a nossa dívida diminui para com quem elegeu como pólo
dos seus trabalhos a Lusitania Sacra, título feliz
do escrito a que dedicou o melhor dos seus últimos cuidados, mas permanece inédito, mais de
dois séculos passados sobre a sua morte.
Ora, a patente desproporção entre o alto valor
da obra teológica de António Pereira de Figueiredo e o pequeníssimo proveito que dela resultou para o País, quer em sua vida, quer de então
para cá, resulta, creio, de, ao invés de interessar
ao projecto pombalino, constituir antes o fecho
da abóbada da política joanina. Daí nem sequer
os admiradores de Sebastião José de Carvalho e
Melo lhe reconhecerem o interesse, como aconteceria se militasse em prol da subordinação do
poder espiritual ao temporal. Em contrapartida,
235
se o facto de a Igreja nunca ter formalmente condenado os seus escritos o iliba de qualquer desvio
doutrinal, importa reconhecer que a obra tem
sido malquistada, suspeitando-a de jansenismo,
de galicanismo e de febronismo; acusações que
cairiam sob o mesmo argumento do silêncio da
hierarquia, para já não falar das missivas aprovadoras de alguns bispos seus contemporâneos.
Se de então para cá os meios eclesiásticos não
têm escondido a falta de simpatia por quem foi
decerto o mais notável teólogo português do seu
tempo, só pode ser porque, no novo ciclo histórico, não podem, não sabem ou não querem
dar razão de uma doutrina que entendem ter
perdido actualidade. O que julgo confirmar a
hipótese de ela ser nem mais nem menos do que
a justificação canónica da criação do Patriarcado
de Lisboa, na qual D. João V fez tal dispêndio
de argumentos, de energias e de bens que, sem
atinar nas razões que o teriam movido, muitos
atribuíram ao mero gosto pelo fausto. A explicação acabou por servir a ambas as partes, já que a
partir da segunda metade do século XVIII nem
o poder religioso nem o político almejavam que
em Lisboa se erguesse uma segunda Roma; razão pela qual deixaram cair no esquecimento a
obra de quem justificara esse projecto.
A qualquer um pareceria mal empregado esforço imaginar o que teria acontecido se, em vez do
rumo que tomou a partir de 1755, o País tivesse
logrado que, a par de um monarca sábio e poderoso, fosse dirigido por um patriarca sábio e
piedoso, ambos apostados, ainda que em planos
diferentes, no mesmo fito. E contudo houve um
poeta que, a seu modo, intuiu o quanto importava que a Igreja e o Estado fossem as duas faces
complementares por via das quais o génio português realizasse enfim a sua vocação universal;
na qual tanto esperava que redigiu até um guia
para o efeito, a Arte de Ser Português. Queimado
pelas tropas napoleónicas o solar da família, é
de crer que não fosse na biblioteca familiar, mas
em Coimbra, nas aulas de Lopes Praça, que Teixeira de Pascoaes ouvisse pela primeira vez encarecer a personalidade e a obra do P.e António
Pereira de Figueiredo; de quem Bruno lhe falaria
no entanto em termos justificativos da especial
menção que lhes faz na derradeira nota daquele
livro; cuja leitura tanto me intrigou e à qual estas linhas pretendem ser um mero comentário.
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
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DEBATES E SILÊNCIOS EM REDOR
DE UM IDIOMA QUE TAMBÉM É NOSSO
Joaquim Miguel Patrício
1. Avultam dois espaços geográficos e geopolíticos em que a língua portuguesa se integra: a
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e
a União Europeia. Na CPLP é a luz que alumia
e ilumina. Nela ressai a componente linguística
e a matriz cultural comum, correspondendo à
sua imagem de marca. Na UE sobressai a componente económica e monetária. De génese europeia e essencialmente implantada, nos nossos
dias, fora da Europa, afirma-se, cada vez mais,
como não europeia, se tivermos como critério
variacional a organização do espaço em que é
falada (variação diatópica ou geográfica). A
sua defesa nesses espaços originou, em Portugal,
uma diferença marcante entre o debate e celeuma gerados quanto ao Acordo Ortográfico, por
confronto com o silenciamento e indiferença
em torno da aceitação pelo governo português
da sua não inclusão no regime europeu de patentes. Não é intenção deste texto esgrimir argumentos em favor ou desfavor de “acordistas”
ou “antiacordistas”, em benefício ou prejuízo de
defensores de um plurilinguismo restrito ou da
igualdade linguística na UE, mas não deixa de
surpreender a desassombrada e salutar discordância de pontos de vista favoráveis ou contrários ao AO, em contraste com a tranquilidade e
mudez quase sigilosa de “antiacordistas” e “acordistas” sobre a exclusão do português do Acordo
da Patente Europeia.
2. Sempre existiram divergências publicamente
notórias quanto ao AO, que tentaremos resumir,
tendo presente que ninguém é dono da língua,
pelo que nem os que estão a favor ou contra podem avocar maior ou menor legitimidade. Para
uns, muito mais que uma questão “técnico-linguística”, é uma “questão político-estratégica”
realista, pondo de lado uma visão concorrencial
mesquinha e comercialeira, em face da globalização e emergência do Brasil como grande
potência, pelo que, sem AO, o mundo acabaria
por seguir com naturalidade a norma brasileira. Importante será uniformizar o essencial no
plano da norma escrita, valendo como instrumento estratégico orientado para o exterior, que
tende a olhar a nossa língua mais como idioma
de fragmentação que de exportação. Para outros, tem por base duas realidades consolidadas, a portuguesa e a brasileira, excluindo
a africana e asiática, o que não faz sentido por
ser inevitável a existência de variedades geográficas de um idioma comum, não sendo necessário
um acordo entre os oito que compõem o núcleo
central e duro da CPLP. Outros, por sua vez,
vêem pela negativa uma influência da ortografia brasileira (ou portuguesa), pensando alguns
puristas que devem ser apenas ou primordialmente os portugueses (ou brasileiros) a decidir
sobre uma língua também comum a outros. Há
quem entenda justificar-se apenas num vocabulário científico e técnico. Sem esquecer, para
muitos, imperfeições, defeitos, necessidades de
aperfeiçoamento, incluindo a rejeição deste AO
(através do qual traímos a nossa língua, segundo alguns) ou a sua alteração (melhor que nada,
segundo outros), por maioria de razão se os políticos decidem que a ortografia é demasiado importante para ser deixada apenas aos linguistas.
Além de que se é verdade que a universalidade,
a escala planetária e o estatuto internacional de
uma língua é assegurado por todos os seus falantes, sem discriminação, não é menos verdade
que mesmo o Brasil, por si só, seria um único
país com muitos falantes e poucos fora do seu
território, o que seria insuficiente para um idioma transcontinental e transnacional.
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
3. Na União, por sua vez, fala-se de línguas
dominantes e dominadas, embora o regime
linguístico aí vigente se baseie no princípio da
igualdade linguística, consagrando um regime
de pluralismo linguístico geral, em que os países que a compõem vêem reconhecidas as suas
línguas oficiais como comunitárias. A esta igualdade linguística de direito, vem-se sobrepondo,
na prática, a afirmação de um clube trilingue
(inglês, francês e alemão), bilingue e, por vezes,
monolingue, com a subsequente secundarização
de facto dos demais idiomas, entre eles o nosso.
Tal secundarização factual, a manter-se, levará,
de seguida, a uma secundarização de direito,
que pode ocorrer pela substituição do princípio
da unanimidade pelo da maioria qualificada, ou
por uma usucapião pacífica das línguas, invocando-se a falta de operacionalidade derivada
dos custos do plurilinguismo. Foi neste contexto que avançou recentemente o denominado
Acordo de Londres, no âmbito da Convenção
da Patente Europeia (Convenção de Munique),
visando uma cooperação reforçada das patentes,
privilegiando o inglês, francês e alemão. Exigia-se que todas as patentes em vigor em Portugal fossem traduzidas para português, tendo ao
dispor o texto completo de qualquer patente
vigente entre nós, sem custo e na nossa língua,
o que deixará de acontecer ao termos aderido
ao aludido Acordo (ao invés de Espanha), de
adesão livre, que passou despercebido, quase
clandestino, para a quase totalidade da imprensa
nacional e esmagadora maioria dos portugueses.
4. O quase-silêncio no que toca à aceitação da
nova patente “anglo-franco-alemã”, em oposição com a vivacidade, liberdade de expressão
e de opinião quanto ao AO (podendo falar-se,
por vezes, numa fúria anti-acordo ortográfico,
nunca relevando a mesma sanha em relação à
convenção da patente europeia), é deveras manifesto. Em favor da cooperação reforçada no
domínio da patente europeia unitária, falou-se,
entre nós, ser a patente da UE um imperativo
nacional, não ofensiva da nossa língua, sendo
e continuando a ser o nosso idioma um desígnio nacional, reforçando tal cooperação a defesa e
competividade das empresas, que gastam fortunas
237
na tradução das patentes para várias línguas. O
que trará enormes benefícios para a inovação na
UE, dado que uma patente europeia custa, em
média, dez vezes mais que uma norte-americana
ou japonesa.
Em desfavor, argumentou-se
que o português não pode ser visto numa visão
intra-europeia ou eurocêntrica, onde estatisticamente somos poucos, mas sim como língua de
comunicação global, como terceira língua europeia universal e quinta ou sexta a nível mundial,
rejeitando a periferia na Europa e assumindo a
sua centralidade internacional. Como terceiro
idioma europeu global em número de falantes,
à frente do francês, alemão, italiano, polaco e
russo, insere-se nos idiomas europeus de comunicação global, como o inglês, francês e espanhol, realçando o seu valor externo. Na lusofonia Portugal é o país que, na UE, tem maior
responsabilidade em afirmar a língua comum,
sob pena de, a prazo, os que a partilham se sentirem legitimados nos seus espaços geo-naturais
e estratégicos a igual desresponsabilização. Além
de tal adesão ferir o português como língua oficial constitucionalmente consagrada, passando
o trilinguismo europeu a ser idioma oficial no
âmbito da propriedade industrial, ignorando-se
o nosso como língua de ciência e de tecnologia,
excluindo a mais-valia da obrigatoriedade da
tradução portuguesa para a economia nacional.
Mal por mal, e a transigir-se pontualmente, melhor seria aceitar o inglês como língua veicular
contemporânea, que franceses e alemães não
aceitaram, com a nossa cumplicidade. A esta
ausência de estratégia do Estado Português chamou José Ribeiro e Castro eurolusocídio.
5. Pergunta-se: porquê esta desproporção de debates e omissões em redor de uma língua que
também é nossa e não apenas nossa? Incluindo a
comunicação social em geral, intelectuais, académicos, linguistas, cidadãos comuns, entes governamentais? Uma conclusão sobressai: se é verdade
que a língua portuguesa não está em questão no
espaço da comunidade dos países lusófonos tem,
em contra-partida, um laboratório geo-político
de que já é refém como cobaia: a Europa da UE.
Toda a cooperação é interessada, no sentido de eficaz, trabalhada. Se o não for não
238
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
há cooperação. Que dizer à não sensibilização e
ausência de informação da sociedade civil para
facilitar uma cooperação cultural lusófona? Por
que não há estratégia, em termos de língua, na
UE, incluindo prévia consulta na CPLP? Será
que a própria existência de não estratégia não
será uma estratégia? Com que fim? Para sermos
tidos como um “bom aluno”, em temáticas onde
somos portadores de uma inquestionável mais-valia? Ou seremos portadores de um complexo
de inferioridade linguística em sede de UE, ao
invés do que aparenta suceder, com frequência,
no espaço lusófono? Para não falarmos na ausência de tenacidade no combate em afrontas à
nossa língua: por exemplo, o recurso galopante
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
239
e imponderado a expressões inglesas como briefing, call center, coffee break, crash, design, eurobonds, golden shares, marketing, party, shopping,
spread, show, sponsor, take-away, upgrade, etc, denominação apenas em inglês de uma fundação
e centro de investigação internacional sediada e
fundada em Portugal (na sua sede e morada em
Lisboa), omissão quase constante pela maioria
das nossas elites e políticos do nosso idioma em
reuniões e organizações internacionais, inclusive
no nosso país em encontros e conferências com
parceiros de outros países, mesmo tendo como
destinatário o povo português. Enfim, tudo indicia que quando não há estratégia é porque se
quer não ter estratégia.
ENTRE A AFIRMAÇÃO DE NÓS E A NEGAÇÃO DOS OUTROS:
COMPLEXO MITICO DA IDENTIDADE NACIONAL PORTUGUESA
José Eduardo Franco
«Como todos os organismos sociais, uma nação é um sistema que cria espontaneamente
certas defesas contra essa forma de agressão
contra a sua identidade, mas o espontaneísmo, aqui como no resto, é insuficiente. É uma
função de um conhecimento do essencial, daquilo que não podemos abandonar sem mutilação próxima ou futura, que as escolhas decisivas para o nosso destino devem ser feitas.»
Eduardo Lourenço,
O Labirinto da Saudade
«Os mitos de uma ascendência comum e de
uma história partilhada, muito menos moldados pela tradição oral indígena que pelas
ideias clássicas do que caracteriza um povo,
disfarçavam a descontinuidade e a heterogeneidade radical que caracterizava a antiguidade tardia (…). Quando os nacionalistas
contemporâneos apelam à história, a sua noção de história é estática: olham para o momento da primeira tomada de posse da terra,
momento em que o “seu povo” estabeleceu
o seu território sagrado e a sua identidade
nacional. Trata-se precisamente da antítese do que é a história. A história dos povos
europeus na antiguidade tardia não é a história de um momento primordial, mas sim,
pelo contrário, de um processo contínuo.»
Patrick J. Geary, O Mito das Nações
A
formação da ideia de identidade nacional
articula-se na modelação de um complexo
mítico que envolve a marcação clara de pontos
ideográficos de afirmação e distinção, de pontos
de negação, de pontos espelhos de atração e de
pontos de fuga. Neste nosso excurso breve sobre a deriva cultural de construção do discurso
identitário português descortinaremos, através
da sua voz intelectual, os traços desse desenho
imaginário que constituem os referentes mitificados dos contornos afectivos da nossa comunidade imaginada como nacional.
A elaboração cultural do que chamamos o
complexo mítico da identidade nacionalizante
portuguesa teve lugar na Modernidade com especial incidência entre os séculos XV-XVIII.
Discursos de vários géneros (literário, poético, historiográfico, geográfico, etc.) estabeleceram este complexo mitificante em que hoje
nos revemos enquanto povo, quer de forma declarada e consciente, quer de forma latente no
inconsciente colectivo, mas que se vai revelando
subliminarmente de muitos modos.
A mitificação das origens, os feitos engradecidos
epicamente, a sobrevalorização de uma idade de
ouro e a visão utópica de uma destinação teleologicamente predita para erguer o Quinto Império do Mundo constituem as quatros dimensões,
os quatro pontos de afirmação de sentido distintivos. O anticastelhanismo, o anti-islamismo, o
antissemitismo e o antijesuitismo constituem os
pontos de negação modelados por um discurso
propagandístico intenso com implicações condicionantes da leitura da nossa história e dos nossos
projetos de viabilidade enquanto país. A ideia
Europa, cada vez mais mitificada com o avançar
da modernidade e das nossas perdas, funcionará como espelho, palco, meta e modelo, onde
procurámos legitimação, reconhecimento credenciado, além de, a dada altura, se torna meta/paradigma crítica do nosso “atraso” e do nosso desejo
de progresso nunca satisfatoriamente alcançado. Os
diferentes espaços do império em expansão (Norte de África, Costa Atlântica africana e Oriente; e
depois os não perdidos (Brasil, primeiro, África
depois) serão os nossos pontos de fuga, saídas
almejadas para superar as crises e encontrar uma
nova viabilidade para o Portugal.
A afirmação de uma identidade nacional, como
ilustra bem o processo de ideografização da nação portuguesa, é feita, no plano da construção
de um imaginário nacional articulado e significativo, com recurso a processos mitificantes de
afirmação firmados em referentes de leitura e de
compreensão da trajetória histórica da comunidade nacional como comunidade de destino
com origens lídimas e paradigmáticas.
O investimento cultural de pontos de afirmação
é, pois, acompanhado por processos de negação,
também mitificados, que funcionam como pólos negativos de oposição/rejeição (pontos de negação), de pontos idealizados de fuga, assim como
da referência a um horizonte comparatista, que
chamamos ponto de espelho para avaliação/legitimação, funcionando em linguagem freudiana
como uma espécie de super-ego da nação.
Deste modo, propomos um quadro teórico operativo
para realizar uma análise aplicada ao caso da formação da ideia da nacionalidade portuguesa, propondo
240
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
aqui o que consideramos ser os quatro processos
mitificantes de afirmação de uma nacionalidade compaginados com referentes negativos de
diferenciação ao longo do percurso de consolidação política e cultural da nação portuguesa,
nomeadamente o castelhano e o mouro através
da corrente anticastelhana e anti-islamica, numa
primeira fase, e depois o judeu e o jesuíta através
do antisemitismo e do antijesuitismo, correntes
que responsabilizaram este “outro” diferente de
nós como inimigo de uma ideia de afirmação
de um dado projeto para Portugal. As defesas
referidas na passagem em epígrafe de Eduardo
Lourenço não são apenas reflexo do processo
identitário já criado, elas são também modeladoras desse mesmo processo de criação de uma
cultura que estabelece uma ideia-cânone do nosso trajeto histórico enquanto povo. Com efeito,
a construção da unidade implica necessariamente a identificação da alteridade concorrente, que
bem definida e caracterizada permite melhor
prevenir e combater.
É, por isso, que o processo de afirmação cultural
das identidades nacionais caminha de mãos dados com o processo político. A consolidação política é fundada e legitimada no quadro ideográfico
construído que promove social e psico-colectivamente a resistência e o combate aos polos negativos, cuja ameaça figurada pelo cultural torna-se
mobilizadora para a sua erradicação e controlo.
Edificado o Reino de Portugal com um território bem recortado e governado com autonomia
mantida desde o século XII, conquistando terras
dominadas pelo poder islâmico e ganhado a sua
maioridade política defendendo-se da cobiça castelhana de quem se tinha separado, o país estava,
no crepúsculo da idade Média, capaz de se abalançar noutras gestas que o levariam a pensar-se e a definir-se como povo com uma identidade peculiar.
O século XV e XVI criaram condições propícias para a elaboração cultural de uma identidade proto-nacionalizante no reino de Portugal.
Primeiro, a euforia colectiva sentida, vivida e
expressa na construção de discursos identitários
no decurso do processo de expansão portuguesa e da construção de um império marítimo
representado como o primeiro grande império
da modernidade e o maior de sempre, embora de existência fugaz. O sentimento de exultação rapidamente dá lugar a outra experiência
extrema vivida colectivamente, uma experiência
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
traumática e crepuscular experimentada com a
interrupção de um tempo cantado como glorioso com a perda da independência pela assunção
ao trono português de Filipe II de Espanha.
O período de 60 anos de subjugação espanhola
constituiu um tempo fértil em que se gerou uma
cultura de resistência fortemente nacionalizante.
Vingou então aquele que se tornou a corrente
ideológica distintiva do nacionalismo português: o Sebastianismo. Quer o sebastianismo ortodoxo que acreditava no regresso de D. Sebastião in persona, quer o sebastianismo heterodoxo
que acreditava na vinda de um rei Restaurador,
um alter Sebastianus, de que D. Sebastião era a
prefiguração, à maneira bíblica, promoveram a
esperança de que a missão de Portugal espantosamente realizada no tempo dos Descobrimentos estava ainda inacabada. Desde Fernando
Oliveira no final do século XVI até Vieira na
segunda metade do século XVII que a dimensão
teológica de identidade portuguesa se estabelece.
Mitifica-se o futuro de Portugal pela confecção da
utopia do Quinto Império que caberia a Portugal realizar como forma de plenificar a sua missão de cristificar o mundo todo.
O século XVII e XVIII permitem consubstanciar
culturalmente e confirmar de forma bem expressiva todos os pontos do complexo da identidade nacionalizante de Portugal. Reduzidas cada vez mais
as possibilidades de reforçar uma presença vantajosa da administração política e económica da Coroa
portuguesa no Oriente cada vez mais cobiçado
pelas potências europeias emergentes, Portugal
vira-se para o Brasil, como novo ponto de fuga, colocando cada vez mais nesta colónia a esperança da
viabilização como país e como império. O açúcar e
o metal precioso que começam a ser cada vez mais
explorados dão novo alento ao esforço colonial que
agora foca o seu olhar a ocidente do Reino.
Com a assunção da governação pombalina, embora o Brasil se mantenha como lugar da oportunidade fundamental, torna-se clara a necessidade
que o país enfrentava de reformas estruturais
quer na metrópole, quer na sua rede imperial.
A liderança do Marquês de Pombal assume esse
desafio à luz da doutrina política do absolutismo
esclarecido. O discurso político reformista deste
governo do reinado de D. José I acaba por recorrer
e reforçar significativamente os pontos estruturantes do nosso complexo identitário.
Pombal, através dos preâmbulos das suas leis,
dos seus tratados, dos seus relatórios, como de
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
outros diversos documentos de propaganda,
reforça os pontos de afirmação de Portugal: um
reino com uma raiz sagrada que realizou feitos
inigualáveis, cuja idade de ouro se torna referência sempre revisitada e cantada, e que não pode
deter-se perante a assunção das novas potências
europeias, mas deve reformar-se para completar
a obra planetária ainda incompleta.
O Brasil continua a ser o grande ponto de fuga, a
melhor parte do império para sustentar a metrópole no tempo de Pombal. Com efeito, o Brasil
é de modo eloquente visado como colónia especial na intervenção reformista pombalina. Embora os territórios do império ultramarino não
sejam descurados, ao Brasil é encarado como um
território gigante que importa unificar do ponto
de vista de uma administração estatizante, em
que a língua portuguesa é tornada geralmente
obrigatória como fator estratégico de coesão. Se
hoje o vastíssimo território brasileiro ainda continua unificado do ponto de vista de uma federação política que mantém o Brasil como uma
nação integral deve-se, pensamos nós, a esta
medida pombalina de reforma administrativa
do território de forma estatizante e colocando
todos os povos do Brasil a falar a uma só língua.
Por seu lado, nunca como no tempo de Pombal a
Europa foi tomada como um ponto de espelho tão
obsessivamente referenciada no discurso reformista da Estado. A Europa mitifica-se como espelho,
como ponto de atração e de comparação: torna-se
modelo de civilização e progresso para julgar o atraso de Portugal e a meta a que Portugal deveria chegar para superar o seu estado de quebrantamento.
As mesmas reformas pombalinas precisam ao
mesmo tempo de identificar um ponto de negação
para justificar a urgência da mudança e concitar
as vontades no mesmo ideário de transformação. O Antijesuitismo substitui-se no tempo de
Pombal plenamente aos velhos antis, nomeadamente ao antissemitismo que conhece a morte
social e política com o mesmo governo de Sebastião José de Carvalho e Melo. A Inquisição e
a corrente antissemita cristã-velha tinha servido
um ideário de sociedade cristã monolítica e fechada que o iluminismo veio por em causa. Os
Judeus funcionavam como esse negativo de um
projeto social que fez Portugal arrepiar caminho
em relação ao que se passava no plano de uma
abertura europeia à tolerância e ao convívio com
a diversidade religiosa e étnica.
241
Agora é a Companhia de Jesus constituída como
o grande inimigo. Os Jesuítas são responsabilizados em praticamente toda a documentação
reformista pombalina, seja legislativa, seja de
diagnóstico, seja propagandística, como os responsáveis pela degeneração e obscurantismo do
país. À luz da causalidade diabólica nunca como
no tempo de Pombal o Estado investiu numa
propaganda tão intensa e tão sistemática para
identificar um ponto de negação do nosso
complexo identitário, que funcionou como
estratégia propagandística para justificar reformas tão fortes. Por vezes ao antijesuitismo Pombal
associou o antibritanismo, elegendo os ingleses
como oponentes refundação de Portugal que se
queria operar, mas os Jesuítas acabam por esmagar
em termos de referência imaginária negativa.
Deste modo, com o Marquês de Pombal e a sua
ideografia de Portugal que queria reconstruir um
país de face nova, capaz de ombrear com a dita
Europa polida e civilizada, acabam por utilizar e
re-atualizar, de forma bastante operativa, o complexo mítico da identidade nacionalizante portuguesa ao serviço de um projeto político iluminista
e de uma nova ideia de homem e de sociedade.
Este complexo, que o nosso esquema apresentado permitiu visualizar de uma forma mais clara
e sintética, acaba por se repetir, metamorfoseando-se em alguns dos pontos nos séculos seguintes em diálogo/conflito com os diferentes
projetos para Portugal. O complexo mítico da
identidade nacional portuguesa resiste ainda
hoje como complexo subjacente a muitas análises e formas de olhar e dizer Portugal.
É certo que o processo de elaboração cultural
dos complexos míticos encerra uma mensagem,
como pensava Roland Barthes: “o mito é uma
fala escolhida pela história (….). Esta fala é uma
mensagem”1. Esta mensagem adquire no caso
da construção da identidade nacional uma dimensão quase religiosa. Na medida em que toda
a doutrinação em torno da fidelidade à pátria/
nação entendida como lugar de nascimento,
que politicamente assume a dimensão mais lata
de nação exige uma dedicação até à entrega da
vida ao serviço desta fidelidade como forma de
“redenção social”, o mito da nação acaba por explorar o poder da mitificação ao extremo da sua
capacidade de afectação e de remissão.
1
BARTHES, Roland, Mitologias, Lisboa, Ed. 70, 2007, p. 262.
242
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
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O SENTIDO DA RELIGIÃO NUMA
SOCIEDADE DE MULTICULTURALIDADE RELIGIOSA
Sam Cyrous
F
alar em religião é falar de um “sistema de
classificação e organização do mundo envolvente”, utilizado para “lidar com problemas
que outros sistemas, como a ciência, não são capazes de resolver, ou, então, cujas respostas são
mais difíceis de entender e não têm um ganho
psicológico imediato” (Batalha, 2005, Antropologia…, p. 257), constituindo, “sem dúvida
alguma, uma das expressões mais antigas e universais da alma humana” (Jung, 1999, Psicologia
e Religião, p. 7).
A verdadeira religião é a ligação ao transcendente, é a capacidade de perguntar para além do
visível, é conseguir ter pés práticos enquanto se
trilha um verdadeiro caminho existencial, reconhecendo que a totalidade das escrituras sagradas
do mundo — através de suas metáforas e simbologias — não falam de soluções mágicas mas
de um processo contínuo de desenvolvimento de
um mundo físico, criado por uma Força Superior, dando-Lhe o nome que se queira dar.
Assim, Religião é a atitude ante a vida, uma experiência universalmente disponível, autenticada apenas “aí aonde é existencial, isto é, aí onde
o homem não é de forma alguma impulsionado”
(Frankl, 2002, La Presencia Ignorada de Dios, p.
79) ou compelido por agências e forças externas.
O seu papel tem sido tão marcante na história humana que o exemplo mais usual é o da evolução de
um povo nómada, bárbaro e disperso das Arábias,
sob o efeito dos ensinamentos de Maomé, sendo
capaz de construir um grandioso império:
(...) a chegada dos árabes ao Ocidente, naquela que é agora a Espanha, e como em um curto período de tempo eles lá estabeleceram uma
civilização bem desenvolvida, e que elevado
grau de excelência seu sistema administrativo e
conhecimento alcançaram, e quão solidamente
estabelecidos e bem ajustados eram suas escolas
e instituições de ensino superior, onde ciências
e filosofia, artes e ofícios, eram ensinados; que
elevado nível de liderança eles atingiram nas
artes da civilização e quantas crianças das principais famílias da Europa foram enviadas para
frequentar as escolas de Córdoba e Granada,
Sevilha e Toledo, para adquirir as ciências e artes da vida civilizada. Ele registra até mesmo
que um europeu chamado Gerbert chegou ao
Ocidente e matriculou-se na Universidade de
Córdoba, em território árabe, lá estudou artes
e ciências, e após seu retorno à Europa atingiu
tal proeminência que finalmente foi elevado à
liderança da Igreja Católica, e tornou-se o Papa
(‘Abdu’l-Bahá, 2003, O Segredo da Civilização
Divina, pp. 110-111).
Esse papel edificante da religião foi-se mantendo até que, após a Segunda Guerra Mundial, a
Humanidade sentiu-se devastada — como que
tendo chegado a“O dia em que enrolaremos o
céu como rolo de pergaminho” (Alcorão, 21:104)
— a tal ponto que começou a procurar soluções
nas ciências exatas e sociais, através de movimentos preocupados com auto-realização e o
desenvolvimento do potencial humano. Assim,
a religião tornou-se um bem desnecessário ao
consumo das massas, sendo a felicidade o resultado de melhor saúde, melhor alimentação,
melhor instrução, enfim, melhores condições de
vida. Enquanto essa visão não é incorreta, é uma
visão reducionista e materialista do Cosmos, e
esse reducionismo é a nova Religião mundial!
Em contra-partida, os meios de comunicação
enchem-se de análises distorcidas do fenómeno religioso, dogmas teológicos são colocados
em causa, literatura de ataque e contra-ataque
é criada e a antipatia religiosa dissemina-se,
sem jamais ter-se conseguido uma qualquer
forma de encontrar um substituto capaz de
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
auto-disciplinar e restaurar o compromisso por
um comportamento moral.
Como consequência, o fortalecimento do ego
torna-se moeda de câmbio comercial, a perversão de direitos civis básicos um bem comum, e
o valor que se dá aos eventos e as palavras varia
de pessoa a pessoa, numa falsa indulgência na
qual tudo é possível, vivendo-se a “ditadura do
Relativismo”, como diria Bento XVI:
Se então havia uma ditadura do racionalismo,
agora há em muitos ambientes uma espécie de
ditadura do relativismo. (5 de Agosto de 2009).
E assim estabelece-se um vazio existencial e espiritual coletivo, pois ao mesmo tempo que esse
afastamento ocorre, mais e mais se almeja a paz
internacional, procura-se o estabelecimento da
justiça, discutem-se questões como o ambiente e
a igualdade de género. Questões tão centrais ao
ser humano que são discutidas desde uma ou outra perspectiva social, política, biológica e psicológica, mas sempre omitindo a esfera do noético.
Surge, então, um sentimento de ambivalência que
— apesar de ser comum a crença de que a ambivalência faz parte da essência humana — conduz
à indeterminação associada a oscilações constantes
podendo fazer da tomada a escolha de piores decisões na hora certa (Vohs e co., Journal of Pers. Soc.
Psychology, 2008, 94(5): 883-98), preocupando-se
com o secundário ao invés de se preocupar com o
essencial. Sobre este assunto, diz Buda:
É como se um homem fosse trespassado por uma
flecha venenosa, e seus amigos, companheiros, ou
relações próximas lhe enviassem um cirurgião;
mas então o homem diria: “não deixarei que a
flecha me seja retirada, até que saiba de quem foi
a pessoa que me feriu: se é um nobre, um padre,
um cidadão ou um servo”; ou: “qual é o seu nome,
e a que família pertence”; ou: “se ele é alto, ou
baixo, ou de estatura média”. Veramente, tal homem morreria, antes de poder aprender tudo isso.
Verdadeiramente, o sistema mundial corrói-se.
As finanças e a economia global digladiam-se
por sua sobrevivência, enquanto não se consegue
estabelecer um sistema sustentável que garanta
a sobrevivência da biodiversidade do planeta.
Cimeiras e reuniões são uma constante, num
mundo onde as palavras parecem perder cada vez
mais significado e, nas palavras de Bahá’u’lláh:
243
Sua doença aproxima-se da etapa do desespero
completo, desde que ao Médico verdadeiro é vedado administrar o remédio, enquanto aqueles
sem habilidade são vistos com favor (Seleção dos
Escritos, XVI).
Mas não é apenas a religiosidade que é colocada em causa, a autoridade do estado, o conhecimento académico e científico, e os meios de
estabelecimento de ordem e justiça foram abalados. As migrações, as relações internacionais,
os meios de comunicação social, o desenvolvimento tecnológico são tantos que pessoas de
diversas micro e macro culturas são expostas a
outras relações que lhes atordoam e alienam,
mas que também ajudam ao seu crescimento.
A revista especializada The Economist publicava,
em Junho de 2009, um artigo que demonstrava
a relação entre o desenvolvimento de soluções
criativas e as relações entre as culturas, e como
dessa relação entre pólos aparentemente tão distantes que surge uma nova procura de sentido.
Os valores mais básicos são colocados em causa,
mas tal não impede que o anelo em compreender a finalidade da própria existência seja cada
vez mais intenso.
E como fazê-lo sem o apoio da religião? Pois,
como diria Frankl “ser religioso significa perguntar-se apaixonadamente pelo sentido de nossa
existência” e “o ser humano é, por si mesmo,
um ser orientado ao sentido (...) quer queira
ou não, o reconheça ou não, o homem crê num
sentido desde que começa a respirar” (op.cit.,
pp. 92-93, p. 91).
O sentido é como um muro que, uma vez transposto, não se pode voltar atrás. E por isso a humanidade assusta-se com questões tais como
o hercúleo estabelecimento de uma educação
universal, estudo de células estaminais, desenvolvimento atómico, identidade sexual, stress
ecológico, uso inapropriado de recursos financeiros, saúde universalizada: questões sociais que
tornam necessárias decisões morais. E como se
de uma única entidade se tratasse — a Humanidade —, desenvolve-se um comportamento
agressivo manifesto em incontáveis conflitos, resultantes de ressentimentos contidos a partir de
atitudes defensivas que surgem da alienação e incapacidade de decidir por um caminho ou outro.
E qual é o papel da Religião ante tais dilemas?
244
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Antes de se compreender a influência curadora
que a Religião pode ter, é necessário estabelecer
uma nova compreensão do propósito religioso,
naquele que seria o tempo previsto por Kant
(2005, Textos Seletos) como a época esclarecida
(aufklärung), quando todos estão naquela situação “na qual em matéria religiosa sejam capazes
de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem”,
saindo da sua menoridade e compreendendo a
necessidade de conseguir decidir e servir-se de si
mesmos (p. 69). Só através da razão e da crítica
é que se pode “cortar pela raiz o materialismo, o
fatalismo, o ateísmo, a descrença do livre-pensamento, o fanatismo, e a superstição, que podem
tornar-se prejudiciais a toda a gente e, afinal,
também o idealismo e o ceticismo” (p. 39).
Assim, a Religião organizada deve buscar em si
mesma a coragem e a capacidade de reavaliar
preconceitos existentes herdados de um passado conhecido ou não, impedindo que os ódios
sectários originados por interpretações erróneas
continuem a ameaçar indiscriminadamente todas as zonas do planeta.
Deve-se deixar de trivializar a Religião — a
ponto de ser utilizada como método de burla
ou astúcia política ou mesmo de opressão —,
a presunção e arrogância teológica devem ser
eliminadas — e as elites deixarem de instituir
determinadas ideias como dogmas inamovíveis apesar de não existir nenhum fundamento
nas Escrituras ou no raciocínio lógico coerente
—, e a usurpação da autoridade — através de
interpretações literais e jogos de imagens —,
substituindo esse modelo pelo equilíbrio entre
a religiosidade pessoal e comunitária. Como na
parábola bíblica abaixo, alguns consideram serem mais capazes e mais merecedores de glória
que o Senhor das Vinhas:
Houve um homem, pai de família, que plantou
uma vinha, e circundou-a de um valado, e construiu nela um lagar, e edificou uma torre, e arrendou-a a uns lavradores, e ausentou-se para longe.
E, chegando o tempo dos frutos, enviou os seus
servos aos lavradores, para receber os seus frutos.
E os lavradores, apoderando-se dos servos, feriram
um, mataram outro, e apedrejaram outro.
Depois enviou outros servos, em maior número
do que os primeiros; e eles fizeram-lhes o mesmo.
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
E, por último, enviou-lhes seu filho, dizendo: Terão respeito a meu filho. Mas os lavradores, vendo
o filho, disseram entre si: Este é o herdeiro; vinde,
matemo-lo, e apoderemo-nos da sua herança. E,
lançando mão dele, o arrastaram para fora da vinha, e o mataram.
Quando, pois, vier o senhor da vinha, que fará
àqueles lavradores? Dizem-lhe eles: Dará afrontosa morte aos maus, e arrendará a vinha a outros
lavradores, que a seu tempo lhe dêem os frutos.
(Mateus, 21:33-40)
Os lavradores não podem considerar-se proprietários de algo que não lhes pertence, da mesma
forma que alguns doutos não podem considerar serem donos da totalidade do conhecimento religioso, eliminando pensamentos distintos
do seu. O homem verdadeiramente religioso é
aquele que compreende “que a liberdade de tal
decisão foi desejada, querida por Deus; de facto,
até esse ponto o homem é livre, foi feito livre
por seu Criador” (Frankl, op. cit., p. 60).
Mas com tantas diferenças, é necessário que se
compreenda que as diversas práticas e normas
religiosas não implicam uma verdadeira antagonia religiosa, e que mais que características transitórias, existem aspectos eternos na Religião,
que podem ser sintetizados na ideia de Regra
de Ouro decretada pelo Parlamento Mundial de
Religiões em 1993: amor e respeito aos outros
através da ideia transversal a todas as variantes
religiosas de que não se deve fazer aos outros o
que não se deseja para si mesmo.
As escrituras não mudaram; os princípios morais que contêm nada perderam de sua validade. Ninguém que sinceramente faça perguntas
ao Céu, caso se realmente persistir, deixará de
ouvir uma voz em resposta nos Salmos ou nos
Upanishads. Quem quer que possua uma relação com a Realidade que transcenda a esta
realidade material, será tocado em seu coração
pelas palavras nas quais Jesus ou Buda fala tão
intimamente sobre ela. As visões apocalípticas
do Alcorão continuam a proporcionar convincente garantia aos seus leitores de que a realização
da justiça é fundamental ao propósito Divino.
Tampouco, em seus aspectos essenciais, as vidas
dos heróis e santos parecem menos significativas do que o foram quando vividas há séculos
atrás. Para muitas pessoas religiosas, portanto,
o mais doloroso aspecto da crise atual da civilização é que a busca da verdade não se volveu
confiantemente para os caminhos religiosos conhecidos (Centro Mundial Bahá’í, 2005, Uma
Fé em Comum, pp. 12-13).
O erro lógico muitas vezes ocorre quando se
considera que a unidade é o resultado para a resolução de problemas, quando, na verdade, é o
seu revés válido: a unidade deve ser estabelecida
para que os problemas possam ser resolvidos.
Apenas mediante um tal prisma, consegue-se
tirar vantagem da ideia de meta e do início comum permeando o Talmúd, o Evangelho e o
Alcorão, para citar alguns.
A um nível mais profundo, poder-se-ia falar em
religiosidade inconsciente (Frankl, op. cit.) ou de
uma função religiosa humana, com a finalidade
explícita de “preservar o equilíbrio psíquico do
homem” (Jung, 1999, Presente e Futuro, p. 12).
E, da mesma forma que o alfabeto é o mesmo
para tantos idiomas distintos, a Religião é uma
só, mas escreve-se de diversas formas.
É portanto uma ideia ultrapassada considerar que
Moisés, Zoroastro, Buda, Jesus, Bahá’u’lláh ou a
sucessão de Avatares que inspiraram os escritos
hindus retratam religiões totalmente distintas; o
que de facto existem são educadores divinos cuja
presença converteu-se em força instigadora de sociedades cada vez mais conscientes e avançadas.
Tampouco é correto condenar a Religião por,
nalguma de suas variantes, não ter tratado de
245
temas sociais específicos de eras subsequentes. A
Religião não pode tratar de temas futuros, nem
tampouco alterar o passado, mas, sim, trabalhar
o aqui-e-agora mostrando-se capaz de preparar
para aquele futuro prescrito, pois “cada época
necessita modelos de cura que respondam à sua
auto-concepção histórica” (Ludewig, 1998, Terapia Sistémica, p. 28) e não modelos de cura
aplicáveis em épocas precedentes.
O papel da Religião é, em suma, auxiliar os seus
aderentes a se considerarem membros da raça
humana, através de uma identidade que determine a sua meta e o sentido de suas vidas.
Um estudo justo e imparcial das tradições religiosas implica o estudo dos seus testemunhos
históricos de acordo com as ideias que ensinam,
os tipos de personalidade que produziram e os
tipos de sociedade que lhes encontram associados (Ling, 1994, História das Religiões, p. 20).
É então que se pode ver a substituição do vazio moral e existencial do século que precedeu
a este e o estabelecimento de uma maturidade
na qual as relações deixam de ser coisificantes
e passam a ser dignificantes; é nesse momento
que a Religião adquire o seu sentido real de re-ligar a humanidade àqueles valores de transcendência: quando os heróis e os santos de uma
ou outra religião convertem-se nos santos e heróis de todas as etapas humanas, e quando os
êxitos de um momento se convertem nos êxitos
de toda a história.
OS RISCOS DO DISCURSO NOSTÁLGICO DA ESCOLA
Sérgio Quaresma
A
relação entre a sociedade e a escola (re)
constrói-se em múltiplos discursos, deixando antever ambíguas e contrastantes visões
sobre as finalidades do sistema educativo. Nóvoa (2001) enumera cinco discursos atuais sobre a escola: 1. O discurso da autoridade; 2. O
discurso da liberdade (liberdade de escolha); 3.
O discurso da responsabilidade (prestação de
contas e barómetro de qualidade); 4. O discurso do elitismo (valorização do ensino); e 5. O
discurso da saudade (pedagogização dos problemas políticos e sociais).
Apesar do discurso retórico incidir sobre a «renovação da confiança da sociedade na escola» e
na crescente e constante atribuição de responsabilidades relativas aos múltiplos aspetos da
246
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
diversidade da escola de massas (integração de
alunos com necessidades educativas especiais,
educação para a paz e para a solidariedade, educação sexual, educação para a cidadania, educação
ambiental, educação para o empreendorismo...), na prática, a escola e os profissionais de
educação estão cada vez mais sobre o julgamento crítico, não raras vezes sendo alvo de uma
ideologia que tende a responsabilizar os atores
locais pelo insucesso do próprio sistema. Nesta coexistência de discursos sobre a escola, tem
ganhado preponderância o discurso da responsabilidade (prestação de contas e barómetro de
qualidade), dominado pelas imagens nostálgicas da “qualidade da escola do meu tempo”! Na
verdade, a relação que a atual retórica educativa
faz de um conjunto de noções naturalizadas
como «concorrência, competitividade, adaptação à procura, modelo de empresa, livre escolha»,
com o elogio do estabelecimento escolar e da
iniciativa local, mais não faz do que desresponsabilizar o sistema pelos seus efeitos globais e
transferir para a escola múltiplas e complexas
responsabilidades que estão para lá das capacidades de gestão de uma organização que, no
presente, é obrigada a articular a instrução dos
alunos e a educação dos futuros cidadãos. Inevitavelmente, esta pressão de responsabilização
da Escola sobre os resultados dos alunos, tendo
por pano de fundo um contexto de julgamento social, cria nesta uma dependência na sua
estratégia (in)formativa que passa a centrar-se
na prestação de contas e na aproximação entre
os resultados de exame e a sua dinâmica pedagógica, secundarizando temáticas curriculares
essenciais para a construção do perfil de aluno
no nível secundário e, cada vez de forma mais
emergente, no ensino básico. Nesta preferência
pela quantificação, enquanto manifestação paradigmática de ciência rigorosa, está oculta uma
ideologia da avaliação que se traduz numericamente e que pretende tornar o ranking ocupado pela escola num critério neutro e rigoroso.
Se atendermos, ainda, a que os resultados dos
exames têm “uma alta sensibilidade política” em
todos os países (West, & Crighton, 1999), não
podemos, pois, desvalorizar este fenómeno, nomeadamente no papel desempenhado pelos media. Se
para o
Século XXI
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
à superfície, os media têm como missão principal a informação de dados importantes ao grande público, para lá da superfície, a sua função é,
porém, mais complicada. Não só se torna cada
vez mais difícil delimitar a notícia da reportagem de investigação, o artigo de opinião do
entretenimento e dos interesses dos grupos de
pressão, como, ao misturar este tipo de artigos
e ao ter dificuldade em abordar e compreender
a complexidade das decisões curriculares – no
geral, os média não só criam expetativas irrealistas
no público sobre a educação, como dão audiências
a expetativas irrealistas que o público possui –,
os media inviabilizam a sua tradicional função
educativa para toda a sociedade, dificultando a construção de juízos críticos informados,
mas não deixando de exercer uma forte pressão
curricular sobre os políticos, os governantes, o
sistema educativo, as escolas e os professores.
Quando, por exemplo, os resultados dos exames
nacionais são utilizados para o estabelecimento
de rankings entre as escolas do país, os resultados
são percecionados como um importante indicador daquilo que é valorizado na educação. Neste
caso, o resultado dos exames têm importantes,
talvez mesmo inesperadas, consequências, tendendo a insistir em tudo o que tenha uma natureza controversa e deste modo ampliando algumas pressões menos benéficas sobre as escolas.
Frequentemente, os resultados dos exames são
utilizados por grupos de interesses especiais não
raras vezes para pressionar figuras influentes do
governo ou da comunidade a fim de integrar na
agenda política e/ou governativa temas e debates
do seu interesse.
Esta influência dos mass media na forma como
é «construída» a visão social da educação e a
crítica ao «pedagogismo» têm sido, aliás, muito
referenciadas pelos investigadores:
“O recente debate nos media sobre os rankings
das escolas mostra isso mesmo, pois, ao identificar as aprendizagens que os alunos realizam com
o que os exames medem, reduziu a avaliação à
certificação dos resultados, «esquecendo» que
só uma pequena parte das aprendizagens é avaliada pelos exames. Da sobrevalorização destes
resulta a utilização do teste como método quase
exclusivo de avaliação, pois é ele que prepara o
exame, desse modo reproduzindo e perpetuando práticas de avaliação que limitam e condicionam o desenvolvimento de outras competências
e aprendizagens dos alunos, num círculo vicioso
que é difícil romper” (Fernandes, 2002).
Já antes, a nível nacional, Nóvoa (1995) falara
de um “sentimento generalizado de desconfiança em relação às competências e à qualidade do
trabalho dos professores, alimentado por círculos intelectuais e políticos que dispõem de um
importante poder simbólico nas atuais culturas
de informação” e de um “tempo em que voltou
a ser de bom-tom troçar dos pedagogos” (Nóvoa, 2001); e Alves (1999), a propósito da “celebração da excelência dos exames e de todos os
dispositivos de seleção e de exclusão”, criticara a
“cegueira da análise de muitos dos nossos encartados comentadores mediáticos”. Hammeline
(2000), em relação a França, denuncia as críticas
que são feitas ao «pedagogismo» e “o «tormento»
de que é vítima, em França, um pensador militante como Philippe Meirieu”1; e Sarup (1991)
alerta para a hegemonia das “linguagens interpretativas” dos meios de comunicação de massas
sobre o mundo real e a estratégia de “dominar a
vida cultural”. Esta não é, contudo, uma realidade nova. Goodson (1997) relembra a campanha
do Times, na década de 1850, incluída numa
“reação que levou ao desmantelamento da ciência das coisas comuns” em favor da “ «ciência
laboratorial pura» ”, mais próxima da natureza
da escola de elites.
Porém, esta ação dos mass media na educação,
nomeadamente a tónica nos desempenhos dos
Em Portugal, como já Nóvoa (2001) referiu, o «ataque» à
«pedagogia» e aos «pedagogos» atingiu um «clímax» com a
problemática dos resultados dos exames nacionais que levou à
publicação, por exemplo, de Os Filhos de Rousseau, de Filomena
Mónica (1997), a qual a propósito do «eduquês», a “linguagem
dos professores e pedagogos”, dizia: “Como lembrou Vasco
Pulido Valente, a linguagem a que os professores e os pedagogos nos habituaram é tão essencial à sobrevivência do actual
sistema educativo quanto o «comunistês» o foi na sustentação
do regime soviético. Em ambos os casos, trata-se de esconder
o real por detrás das palavras. Esta terminologia é semelhante
ao Newspeak, de que Orwell nos falava no Apêndice a 1984
(veja-se sobretudo a versão C). Sempre que um ditador, uma
elite iluminada ou um corpo profissional possuem algo que não
querem partilhar com a população, inventam uma linguagem
cujo objetivo é esconder os seus desígnios. O «eduquês» nasceu
para que nos não apercebamos de que os peritos em Educação
ignoram o que fazer num sistema à beira do abismo”.
1
247
alunos, apesar de fragilizar o espaço de exercício
da arte e da reflexão docentes, deve ser integrada
numa estratégia que ultrapassa o próprio poder
central, abrangendo interesses e lobbies que recorrentemente emergem como defensores da
oferta de um serviço público de educação que
privilegie a escolha da escola pelos pais/encarregados de educação, muitas vezes um eufemismo
relativo aos clientes da escola privada! Na verdade, a tónica nos exames e no ranking das escolas, ao ser, essencialmente, “uma estratégia para
controlar as condições sob as quais é construído
o conhecimento prático dos professores”, pode
conduzir à sua “eliminação” e à subordinação e
à estandardização burocrática do desempenho
educativo. Se partirmos do pressuposto de que
a autonomia pode conduzir “à diversidade, à inovação e ao fortalecimento do poder dos professores” (Hargreaves, 1998), não se pode esquecer
que quando ela é implementada num sistema
de forte controlo burocrático sobre o currículo
e sobre a avaliação, em vez de levar à devolução
do poder de decisão e de se tornar numa via de
auto-capacitação, ela passa a ser “um canal de
culpabilização”. Nesta cultura de avaliação que,
“por se ocupar exclusivamente da eficácia dos
produtos, tende a encarar as dificuldades e os
problemas como manifestações de incompetência” (Correia, 2000), os professores, tidos como
“heróis” num determinado contexto discursivo,
na prática, são fácil e superficialmente apontados
como “vilões” e responsabilizados pelo insucesso
dos seus alunos. Nesta duplicidade «performativa» entre a vilania e a heroicidade, os professores
ora são apontados como a raiz dos problemas
ora são tidos como a fonte da sua solução, sendo
comum que políticas que tentem promover o
desempenho académico tratem punitivamente
os professores através da introdução de controlos externos, facilmente implementáveis e associados simbolicamente ao rigor e à “objetividade” – por exemplo, os exames – em vez de apostarem nas grandes mudanças que permitissem
melhorar os conhecimentos e as competências
dos alunos, bem mais difíceis de consensualizar
e levar a cabo no mundo aberto e variado que
são as escolas que enfrentam os desafios da sociedade da informação e do conhecimento.
248
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Perante esta complexidade, face à incerteza, às
múltiplas reformas educativas, à divergência
entre o tempo eleitoral dos políticos e o tempo
mais longo dos resultados em educação, a emergente centralidade dos exames – que começaram
no 12º ano, envolveram o 11º ano, desceram ao
9º ano e, de modo inesperado e rápido, surgiram no 6º e 4º anos da escolaridade neste ano
letivo de 2011/2012 – têm mantido a avaliação
enredada num campo de forças irreconciliáveis,
levando a que esta (i) sofresse uma retração na
abertura holística e anti-positivista que se vinha
processando desde a década de 60’ do século
XX, e, consequentemente, (ii) se transformasse
num instrumento político, com influências nas
práticas educativas, mas com elevados riscos de
uma utilização abusiva, disfarçados no mito do
ideal racional da “pureza da informação” e do
“uso racional” da informação. Não será por acaso que alguns estudiosos sugerem que este retrocesso na teoria e prática avaliativas deve ser
integrado na dinâmica mais geral das mudanças
políticas neoliberais e neoconservadoras e/ou na
crise do Estado-Providência, que, em muitos
casos, promovem a criação de um novo “apartheid educacional” (Apple, 1993) em detrimento da inclusão e do direito de todos ao acesso
e ao sucesso escolares da LBSE… e hoje ainda
mais premente face ao alargamento da escolaridade obrigatória até aos dezoito anos – Lei n.º
85/2009, de 27 de Agosto.
Perante a centralidade emergente no discurso
político da “excelência” e dos “indicadores internacionais”, à política de avaliação é atribuída
um potencial persuasivo e exortatório. Numa
visão racional e otimista, a posse de informação
e análise da realidade educativa através da avaliação dos alunos e das escolas levariam à ação e
colmatariam as “falhas” responsáveis pelo “insucesso” verificado. No entanto, para lá deste lado
positivo da persuasão, esconde-se a sua “face negativa”, expressa na “propaganda” e na “endoutrinação” que, na sua forma extrema, é intencionalmente manipuladora, privando as pessoas da
sua capacidade de pensar de modo independente e de questionar conceitos «naturalizados» de
qualidade, indicador, justiça e equidade.
Apenas o reconhecimento de que “os indicadores
não são simplesmente um claro reconhecimento
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
dos factos” (Kingdon, 1984) – e que, devido
precisamente às suas enormes implicações, as
suas interpretações tornam-se objeto de debates
intensamente mergulhados em valores sociais e
políticos – e a superação da lógica do “salão de
beleza”2, promoverão uma prestação de contas
mais próxima da dinâmica ecológica da escola
e evitarão os efeitos nefastos que a evidência
empírica tem apontado à «escolha» das escolas»
e à publicitação de «tabelas classificativas» dos
exames nacionais, nomeadamente: (1º) a criação de um novo “apartheid educacional” e uma
progressiva polarização da educação em função
de fatores sociais, étnicos e de recursos, beneficiando os alunos da classe média e desperdiçando os talentos de alunos oriundos dos meios
socioculturais mais distanciados do saber e da
cultura escolarmente valorizados; (2º) a valorização da capacidade do potencial consumidor
para optar entre vários produtos em detrimento da capacidade do cidadão para participar e
contribuir para a construção colaborativa do
projeto de escola e de um ensino solidário e
emancipador; (3º) a ausência de diversificação
da oferta educativa; (4º) a inibição do desenvolvimento profissional e organizativo; e (5º)
dificuldades na melhoria da eficácia da escola
e no alargamento significativo das oportunidades educativas.
Também Apple (1997), considerado por muitos
como um dos maiores especialistas mundiais na
área do currículo e da sociologia da educação,
integra as medidas de implementação de currículos nacionais e de avaliação nacional e a ênfase
crescente nos planos de privatização e de «escolha» no movimento social, político e cultural da
restauração da Nova Direita (neoconservadores
e neoliberais), sobretudo após a crise económica
da década de 70’ do século XX. Para Apple, o
aparelho conceptual e ideológico conservador
tem mobilizado eficazmente um grande apoio
das massas, de tal modo que o “objetivo social
Utilizando esta metáfora, Bowles (2000), defendendo a competição ao mesmo tempo que contesta a avaliação de resultados, afirma: “A ideia global de fazer todas as nossas seleções
com base apenas nos resultados de testes é como a avaliação de
um salão de beleza com base em como é a aparência das pessoas
quando elas saem, sem se verificar como elas estavam quando
entraram no salão”.
2
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
democrático de expandir a igualdade de oportunidades (por si só uma reforma bastante limitada) perdeu muito da sua potência política
e da sua capacidade para mobilizar as pessoas.
O «pânico» relativo à decadência dos padrões
e ao analfabetismo, os receios de violência nas
escolas, a preocupação pela destruição dos valores familiares e da religiosidade, todos tiveram
um efeito. Estes receios são exacerbados, e utilizados, pelos grupos dominantes na política e
na economia que conseguiram mudar o debate
sobre a educação (e tudo o que seja social) para
o seu próprio terreno, o terreno da «tradição»,
estandardização, produtividade e necessidades industriais”. Aproximando os objetivos da educação
dos objetivos da economia e da previdência social, este movimento obedece, ainda segundo
este autor, a um compromisso ideológico que
transfere para a escola e para os professores a responsabilidade, entre outras, da crise económica,
social e cultural, daqui resultando um conjunto
de consequências que beneficiará uma minoria,
na medida em que “um sistema de currículos
nacionais e avaliação nacional não poderá ajudar, mas sim a ratificar e exacerbar as diferenças
de género, raça e classe”.
Na verdade, se, teoricamente, a prestação de
contas parece ser bastante razoável, pedindo
aos professores e às escolas que assumam as responsabilidades da sua ação; já uma abordagem
mais aprofundada torna irracional e irrealista a
responsabilização total e completa dos professores e das escolas por aquilo que os seus alunos
aprendem. Não só porque há muitas variáveis
que aqueles não controlam, como os valores
das famílias dos alunos e o tipo de investimento
que fazem no trabalho escolar até aos próprios
problemas orçamentais da escola e a sua (in)
capacidade de disponibilizar recursos de apoio
aos alunos são fatores de (in)sucesso que uma
abordagem sistémica à aprendizagem não pode
descurar. No campo curricular, esta pressão,
nomeadamente quando associada a recompensas e/ou a punições, tem um efeito autoritário
ainda mais prescritivo sobre o currículo e o ensino podendo levar mesmo a uma redução do
«que» e do «como» ensinar, centrando-o em pequenas, simples e não problemáticas unidades de
249
conteúdos, especialmente aquelas que são mais
facilmente testadas. Neste sentido, em vez de estar ao serviço da aprendizagem, do ensino e do
currículo, sobretudo ao serviço do sujeito aprendente, serão os exames, e não o currículo prescrito nem o currículo praticado, quem determinará o currículo real, controlando o processo de desenvolvimento curricular e justificando
muitas das decisões e dos comportamentos de
professores e alunos. Entre a hiper-responsabilização dos professores e das escolas em relação
à prática pedagógica e à qualidade do ensino
e o princípio da relativa «irresponsabilidade»
dos professores em relação à prática, ganharemos todos, sobretudo os alunos e o sistema
educativo, se aprofundarmos a consciencialização de que a prática educativa é uma prática
histórica e social, integrando a ação educativa
num sistema de práticas educativas aninhadas
com fortes influências mais gerais – políticas,
económicas, culturais.
Neste processo de retroação, a avaliação externa
do rendimento dos alunos, nomeadamente os
exames nacionais, torna-se um fim em si mesma, atuando como uma pressão modeladora da
prática curricular, não deixando de condicionar
o desempenho profissional dos professores e a
capacidade das escolas de protagonizarem um
desenvolvimento curricular mais coerente e justo. Longe de se manter como um meio ou um
instrumento de regulação e aperfeiçoamento do
processo de ensino-aprendizagem, a avaliação
do rendimento dos alunos, nomeadamente a
avaliação sumativa externa, passa a polarizar, de
forma quase exclusiva, tanto as atividades de ensino dos professores como as tarefas de aprendizagem dos alunos. Esta enfatização da prestação
de contas na retórica política da «modernização»
e da «qualidade» do sistema educativo, ao passar a atribuir à avaliação do rendimento escolar
dos alunos um papel tão “excessivo, em termos
extensivos, e obsessivos, em termos intensivos”,
torna-a numa “ameaça grave de alienação do
sistema educativo relativamente às finalidades
consignadas na Lei de Bases” (Abreu, 1991), nomeadamente no tocante ao «direito ao sucesso
educativo»... de todos os alunos.
250
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
Sob a máscara da equidade, da justiça social e
da meritocracia, a avaliação do rendimento dos
alunos, nomeadamente os exames, constitui-se
como um filtro social, associando, demasiado
facilmente, o rendimento escolar à qualidade
do sistema educativo, o que, consequentemente, faz aumentar a pressão para sucumbir a um
currículo orientado pelos exames e conduz, inevitavelmente, a uma “corrupção da validade”
do próprio exame, reduzindo os espaços para
a inovação curricular e para a ação profissional
dos professores. Ao centrar-se mais nos conteúdos «facilmente avaliados» do que nos conteúdos “educativamente justificados”, os exames
menosprezam os espaços de iniciativa e de juízo
profissional dos professores, submetendo-os a
um currículo prescrito que deixa cada vez menos espaço para a arte e a sabedoria dos profissionais que diariamente enfrentam situações
complexas e dilemáticas que exigem, mais do
que as tradicionais respostas uniformes, técnicas e burocráticas, estratégias local e singularmente relevantes e justas de forma a combater
a exclusão e a promover o sucesso. A qualidade
das aprendizagens e o juízo de valor sobre as
estratégias educativas implementadas devem
ser consensualmente gerados entre a escola e a
comunidade. Querer transpor (pre)conceitos
e fundamentos legítimos nas escola de elites –
para «alguns» – para a atual escola de massas
para o
Século XXI
– para «todos»… até aos dezoito anos de idade
– exige uma mudança de paradigma… quer na
ação pedagógica quer na decisão política quer
no julgamento social sobre a esfera educativa!
Por tudo isto, mais do que manter a realidade
presente, a razoabilidade sugere o sentido do
compromisso: a compatibilização entre a avaliação externa e a avaliação interna. A primeira
como estratégia de prestação de contas à Administração e à comunidade: «ser vista» implica o
fim da sua «invisibilidade institucional». A segunda, ao produzir informação relevante sobre
a escola, promoverá uma estratégia antecipatória
dos processos de mudança endógena necessários
ao desenvolvimento curricular, profissional e organizacional – “ver” com os seus próprios olhos
implica o fim de uma «cegueira institucional».
Mais do que revoadas reformistas, discursos retóricos e narrativas passadistas sobre a Escola
e a Educação é Essencial (i) a confiança da
sociedade nos profissionais de ensino e nas escolas – que diariamente enfrentam a complexidade e a incerteza da realidade –, (ii) o diálogo
entre exames nacionais e práticas pedagógicas
locais e (iii) o compromisso entre a prestação
de conta, que os exames nacionais podem melhorar, e a autonomia da escola e dos seus profissionais na construção de respostas significativas
e inclusivas aos projetos de vida dos alunos e
das suas famílias.
Maria Luísa Francisco
IMPU L S O I N I C I A L
Ribeiro Canotilho
PO NT O ASSENTE
Eu não esbanjo Poesia
A esmo, porque do seu
Tempo, há que anotar quiçá,
O oportuno, envolvente
E repercutido realce
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Partituras continuas
densamente ouvidas
em tardes quentes
no impulso do Verão
esse impulso inicial
que abre caminhos
por entre noites fluviais
de luares escondidos
loendros perfumados
num pacto secreto de manhãs floridas
de sóis já nascidos.
251
Victor Oliveira Mateus
9h1 5
O homem senta-se a uma das mesas da esplanada
Esplanada fria nesta manhã igualmente fria
O homem ajeita o seu boné sebento,
o casaco pingão, as suas calças já sem cor
nesta manhã igualmente sem cor
O homem tira do bolso um pequeno transístor:
limpa-o delicadamente com a manga gordurosa,
afaga-o, escuta deliciado aquelas vozes roufenhas,
as intraduzíveis ressonâncias
O homem fala com o transístor
Gesticula
Repete com insistência algumas expressões
A principio olha-nos com alguma altivez,
mas logo se desmarca para nos esquecer
O homem do boné sebento e apaixonado
pelo seu transístor
foi de hoje minha primeira lição.
NOTICIÁGUIO
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NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
Quem me viu chegar, já me viu partir no velho
opel a tremer de peças gastas, transformado em
tartaruga rodoviária, armado no melhor carro
do mundo, com o melhor condutor do mundo. As estradas da Terra são vias de compreensão
do todo, onde cores, pessoas e paisagens vão tomando conta do coração na enorme satisfação
de percorrer com destino ou sem destino tanto
faz. Quem percorre a Terra percorre a Terra, a
intenção nem sempre clara mas o velho dizer
será verdadeiro caminhante: não há caminho; o
caminho faz-se ao caminhar.
E a caminhar continuaremos e o sentido deverá
sempre de ser um e uno, O De Fazer Bem.
A todos os que vi e não vi a minha gratidão
cedeu, gratuitamente, os direitos de difusão de
excertos dos seus célebres programas televisivos,
exemplo máximo de como o Saber da História
pode e deve ser partilhado.
ALFREDO RIBEIRO DOS SANTOS (1917-2012)
Prestigiado Médico e Homem de Cultura, faleceu,
no dia 28 de Agosto, Alfredo Ribeiro dos Santos.
Autor de várias obras de referência – nomeadamente: A Renascença Portuguesa: um movimento
cultural portuense (1990); Jaime Cortesão: um dos
grandes de Portugal (1996); Perfil de Leonardo
Coimbra (1998); História Literária do Porto (2009).
Membro do Conselho de Direcção da Nova Águia:
Revista de Cultura para o Século XXI, nela colaborou no seu quinto número, tendo estado presente
em várias sessões, desde logo na primeira sessão de
apresentação da Revista, decorrida no dia 19 de
Maio de 2008, na Fundação Escultor José Rodrigues, onde foi um dos oradores convidados.1
LUIZ ANTÓNIO BARRETO (1944-2012)
Grande amigo de Portugal, faleceu no passado dia 12 de Abril. Intelectual sergipano, com
vasta obra publicada e actividade política relevante na área da cultura e da educação do seu
estado natal, foi um dos fundadores do Insituto
de Filosofia Luso-Brasileira. A ele se deve a organização e o apoio de vários Colóquios Antero
de Quental realizados no Brasil em alternância
com os Colóquios Tobias Barreto que têm lugar
em Portugal. Profundo conhecedor da obra e do
pensamento de Tobias Barreto dirigiu a publicação da edição das suas Obras Completas.
NANDA LOPES (1963-2012)
JOSÉ HERMANO SARAIVA (1919-2012)
Insigne Historiador e Divulgador da Cultura
Portuguesa, José Hermano Saraiva faleceu no
dia 20 de Julho, aos 92 anos de idade. Foi, para
além de tudo o mais, Membro do Conselho de
Direcção da Nova Águia: Revista de Cultura
para o Século XXI e Sócio Honorário do MIL:
Movimento Internacional Lusófono, ao qual
Publicaremos no próximo nº um texto seu sobre a vida e obra
de Veiga Pires.
1
Maria Fernanda Vinhó Lopes, que assinou Nanda Lopes, publicou Viver (1989), O Reflexo
dos Deuses (1991), Amor ou o Mito da Vida
(1994), Terra Navegável (1996) e Drama Carnavalesco (1996). Conviveu com Agostinho da Silva
na derradeira década da vida deste e com Aldegice
Machado da Rosa. Em 1993, com uma bolsa de
Agostinho da Silva, partiu para a Alemanha para
frequentar o ensino de Rudolfo Steiner, onde anos
depois, com um trabalho sobre as Festas do Espírito
Santo, obteve um diploma que lhe permitiu leccionar nas escolas Waldorf. Maria Fernanda Vinhó
Lopes nasceu em Lisboa, no ano de 1963, e acaba
de falecer a 29 de Junho de 2012, Inglaterra, onde
exercia docência numa escola Waldorf. Foi um es-
253
pírito que se elevou sobre a turbulência do mundo
como o nenúfar se eleva para florescer sobre o lodo
sujo das águas. Por especial cuidado da sua amiga
de sempre Aldegice Machado da Rosa, aqui damos
o derradeiro texto que legou.
Num ápice de tempo sem tempo os últimos
sete meses foram passados entre a idílica costa
da lagoa de Óbidos e a escola com as suas salas
vizinhas ao palácio Marquês da Fronteira em
Lisboa. Uma linguagem nova para mim depois
de quase 10 anos em terras britânicas, uma linguagem que foi suavizada pela descoberta das
crianças e o seu mundo, as suas maneiras, a sua
cultura mas sobretudo a sua dedicação e amor à
professora, que aconteceu ter sido eu. Mas fui eu
que aprendi; as crianças do primeiro ano foram
os mestres do meu tempo, as alegrias da minha
existência simples e complexa.
Sentada no meu jardim em Brighton, vejo os
pássaros e os Downs que circundam a paisagem
deste south east e pergunto-me como posso relacionar estes dois mundos, como voar entre os
dois num voo equilibrado. Talvez os voos humanos sejam sempre, sempre de carácter imprevisível, dado todas as circunstâncias da vida a
que de uma forma ou outra estamos sujeitos, ao
percurso das nossas imigrações conciliadas com
os tempos e a dos nossos filhos conciliadas com
o tempo deles, as intempéries deste mundo que
se movimenta ao que me parece rápido de mais
deixando vazios de compreensão.
“PRÉMIO DE ENSAIO FILOSÓFICO
DALILA LELLO PEREIRA DA COSTA”
Os Professores de Filosofia da Escola Secundária de Paredes, entraram no mundo mágico de
Dalila Lello Pereira da Costa no ano lectivo de
2007-2008, naquilo que se tornaria uma peregrinação espiritual de amizade mantida com regularidade até aos dias do fim. Parecia-nos uma
figura que tinha saído de Os Portuenses Ilustres,
de Sampaio Bruno, que nos falava de Leonardo Coimbra, de Guerra Junqueiro, do Rei D.
Carlos, de Teixeira de Pascoaes, uma figura,
dizíamos, que se extasiava a escutar o Professor
Luís ao piano, ora apontava a uma peça de Soares dos Reis, ora remexia em velhas fotografias
com histórias. A saudade2 do mundo era mesmo
“uma filosofia do Tempo e da Eternidade” e nós
testemunhamos por diversas vezes esse estado de
espírito, num convívio discreto em tardes aprazíveis e íntimas.
Dalila, doutora Dalila, como nós3 sempre a tratávamos, era, talvez, o último símbolo da aristocracia intelectual portuense, uma alma de artista sitiada por livros arrumados com uma ordem misDalila L. Pereira da Costa, A Nova Atlântida, Lello & Irmão,
1977, p. 72.
3
Sugerimos em tempos que um doutoramento honoris causa
fosse concedido a Dalila Lello Pereira da Costa e a Pinharanda
Gomes. Era o mínimo que a universidade, pública ou particular, poderia fazer.
2
254
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
teriosa, quase todos com extensas dedicatórias,
sem perder o sentido telúrico no bosque harmonioso em que se transformara o seu jardim aromático. Mas, essa sageza podia ser cartografada por
outras leituras4, “leituras de mestres da vida, mais
do que de mestres do pensamento, pedindo-lhes
então um rumo certo na vida, uma picada na sua
floresta escura e desordenada. A todos, para além
de séculos e milénios e no desconhecimento de
suas faces, mesmo de meus contemporâneos de
então, toda a minha gratidão”. Numa das nossas visitas confidenciou-nos que estava a reler Os
Maias, de Eça de Queirós, “há mais de cinquenta
anos que não pego neste livro”.
A estrada larga da hermenêutica e das palavras
consagradas conduziu-a a um novo profetismo5
centrado na individualidade e numa antropologia indagadora do sentido desta tensão essencial:
“Tudo existe já em nós. Todos os meios de nos
transcendermos e transcender este mundo; tudo
existe como potência dentro de nós, e que só
pede, espera sua utilização, subida à luz. Pela liberdade e pelo amor, a nós dados na graça, como
apelo e dom. Mas liberdade como amor, são forças poderosíssimas, forças da natureza sagrada,
e o que é necessário perante elas, é não termos
medo, vê-las, usá-las com coragem: o que elas
nos pedem é à medida do que nos dão. Vê-las e
usá-las como uma energia. Perigosa e salvadora.
Mas uma terra de paz, digna de ser vivida, só se
poderá aqui conquistar sobre essas duas forças
primogénitas do paraíso”.
Atenta à vida e às coisas do mundo, interpelava-nos com radical bonomia sobre os problemas
educacionais, sobre a escola, sobre o destino de
Portugal, sobre o Brasil, sobre a lusofonia, convocando para esse diálogo, as ideias de alguns
amigos, nomeadamente, José Marinho, Agostinho da Silva ou António Quadros. Acreditava6
que a “Europa agora de alma morta, será vivificada e ressurecta pela alma portuguesa, e mais
latamente, galaica, a que no seu seio guardou
fielmente os mitos da alma europeia, como forças reintegradoras; mitos que em si, essa outra
Dalila L. Pereira da Costa, Os Instantes nas Estações da Vida,
Lello Editores, 1999, p. 62.
5
Dalila L. Pereira da Costa, Os Jardins da Alvorada, Lello &
Irmão, 1981, p. 13.
6
Dalila L. Pereira da Costa, As Margens Sacralizadas do Douro
Através de Vários Cultos, Lello Editores, 2006, p. 95.
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
alma negou sob a força destruidora da razão
absolutilizada do cartesianismo e mormente do
iluminismo”, questionando-se sobretudo porque
é que Portugal deixou de ser “um dos centros espirituais do Ocidente”7, não obstante poder ter
“uma missão de mestrado perante a Europa e o
mundo ; face à entropia geral se reapossuindo
sua Tradição, criar em si as condições duma vera
alma, aberta ao universalismo e a ele dando seu
contributo específico e precioso: já criado desde
o fundo dos tempos”8. Mas, era-lhe difícil compaginar a Europa do dinheiro, da mercadoria e
de todas as alienações com a serenidade clássica
de uma outra Europa geradora dos valores da latinidade, da filosofia e da espiritualidade.
Estava sumamente preocupada com a erosão dos
valores, com os desvarios da governação, com a
decadência da Escola e com o destino da juventude9, “é a esta juventude actual, que irá todo o
meu respeito de fervor e de esperança. Não pelo
que conseguiu já de realizado, mas pelo que ela
tem desejado. Pela sua sede dum outro mundo e
não-conformidade com este de agora”.
Lamentava, de igual modo, que as principais
figuras da cultura e do pensamento português
fossem praticamente ignoradas e que esse mesmo desconhecimento fosse cultivado na Escola.
Na intuição sibilina de Agostinho da Silva10, a
pátria “vai atravessar desertos e muita tribo hostil”, o que se tornou evidente atentas as derivas
de uma contemporaneidade pouco exigente,
desleixada, quiçá subserviente ao efémero de todas as relativizações.
Foi deste modo singelo que surgiu a ideia de
associarmos ao Prémio de Ensaio Filosófico entretanto instituído pelos Professores de Filosofia, o
nome de Dalila Lello Pereira da Costa na qualidade de Patrona, sendo doravante o Prémio de
Ensaio Filosófico Dalila Lello Pereira da Costa, na
Escola Secundária de Paredes. Não foi fácil o seu
assentimento, tomava-a “como uma honra imerecida”, sugerindo, mesmo, o nome de António
Quadros. Durante muito tempo, a modéstia, a
Dalila L. Pereira da Costa, A Nau e o Graal, Lello & Irmão,
1978, p. 153.
8
Dalila L. Pereira da Costa, Dos Mundos Contíguos, Lello Editores, 1999, p. 164.
9
Os Jardins da Alvorada, idem, p. 9.
10
Dalila L. Pereira da Costa, Ladainha de Setúbal, Lello & Irmão, 1989, prefácio de Agostinho da Silva, p. 9.
7
4
para o
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
simplicidade e o pudor impediram a concretização desse objectivo. Um dia, porém, surpreendeu-nos, aceitando ser a Patrona do Prémio. Foi
um dia de júbilo para nós.
Regulamento do Prémio
Artigo 1º – Descrição
O Prémio de Ensaio Filosófico Dalila Lello
Pereira da Costa, Prémio Anual de Filosofia,
é uma iniciativa dos Professores do Grupo de
Filosofia da Escola Secundária de Paredes e é
destinado às Alunas e Alunos deste Estabelecimento de Ensino.
Artigo 2º – Patrona
A Patrona deste Prémio é a Filósofa Dalila
Lello Pereira da Costa.
Artigo 3º – Objectivo
O Prémio de Ensaio Filosófico Dalila Lello Pereira da Costa tem como objectivo incentivar o
gosto pela Filosofia, elegendo o melhor ensaio
apresentado o concurso, sobre um tema filosófico previamente publicitado.
Artigo 4º – Tema a Concurso
Compete ao Júri do Prémio especificar o tema
filosófico a concurso.
Artigo 5º – Condições de Admissão
Serão admitidos ao Prémio de Ensaio Filosófico Dalila Lello Pereira da Costa quaisquer
ensaios desde que:
Sejam originais redigidos em língua portuguesa, com a menção da bibliografia citada;
Tenham um autor único e que seja Aluno/a da
Escola Secundária de Paredes, a frequentar o
ensino secundário;
Não ultrapassem as 1000 palavras (cerca de
três páginas impressas / tipo de letra Times
New Roman / tamanho 12 / a espaço e meio).
Artigo 6º – Apresentação de Candidatura
A apresentação das candidaturas ao Prémio de
Ensaio Filosófico Dalila Lello Pereira da Costa
deverá ser feita junto de um Professor de Filosofia, do modo seguinte:
Em envelope fechado;
O nome do autor, o ano e a turma devem ser
indicados apenas dentro do envelope; no rosto do envelope será escrito o pseudónimo; o
nome em caso algum deverá constar no corpo
do texto a concurso, que deverá ser assinado
com o pseudónimo.
255
Artigo 7º – Júri
O Júri será constituído pelos Professores do
Grupo de Filosofia e por outros Professores
convidados.
Artigo 8º – O Prémio
O Prémio de Ensaio Filosófico Dalila Lello Pereira da Costa:
Será unitário, podendo, no entanto, o Júri deliberar atribuir menções honrosas;
Será constituído pela atribuição de um Cheque-Livro para o vencedor, pela atribuição de
um diploma e pela publicação do ensaio vencedor na Revista Papel de Parede(s), da Escola
Secundária de Paredes ;
Poderá não ser atribuído, sempre que o Júri
assim o delibere.
O Prémio é usualmente publicitado na comunidade escolar por ocasião do Dia Mundial da
Filosofia, na terceira quinta-feira de Novembro, de acordo com as directivas da UNESCO.
Os Temas a concurso foram os seguintes:
1ª edição: 2008/2009: “Progressos Científicos
e Tecnológicos e Valores Morais e Éticos: conflitos ou complementaridades?”;
2ª edição: 2009/2010: Leonardo Coimbra: “O
homem não é uma inutilidade num mundo
feito, mas o obreiro de um mundo a fazer”;
3ª edição: 2010/2011: Dalila Lello Pereira da
Costa: “Mas liberdade como amor, são forças
poderosíssimas, forças da natureza sagrada, e
o que é necessário perante elas, é não termos
medo, vê-las, usá-las com coragem : o que elas
nos pedem é à medida do que nos dão. Vê-las e
usá-las como uma energia. Perigosa e salvadora. Mas uma terra de paz, digna de ser vivida
só se poderá aqui conquistar sobre essas duas
forças primogénitas do paraíso”;
4ª edição: 2011/2012: Delfim Santos: “A filosofia não é uma actividade descuidada que
caminha, amando a vida, sem saber para onde
vai. A filosofia não é apenas amiga do saber, ela
é igualmente saber e o grau de profundidade
deste saber pretende ser maior do que o conseguido por intermédio de outras formas de
conhecimento”.
Os Professores de Filosofia da Escola Secundária de Paredes
[António Aresta, Clara Leão, Dalila Duarte,
João Capote, Luís Ribeiro, Manuela Pacheco,
Mário Cruz e Virgínia Lopes].
256
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
20 ANOS DO INSTITUTO DE
FILOSOFIA LUSO-BRASILEIRA
CENTRO DE ESTUDOS PINHARANDA GOMES
Este Centro, situado na Biblioteca Municipal
do Sabugal, foi inaugurado no pretérito dia 9 de
Junho, e integra a doação que P. Gomes fez ao
concelho, através da Câmara Municipal, da sua
biblioteca particular (cerca de 5.000 volumes,
com maior relevo para a cultura portuguesa, a filosofia, a religião e a teologia) e de uma colecção
de imagens populares de santos, e de outras lembranças pessoais. Na sessão inaugural, usaram
da palavra, além do Presidente da Câmara, Eng.
António Robalo, e, em nome de Miguel Real,
que enviou a “oração de sapiência”, o coordenador do acto inaugural, Dr. Norberto Manso;
os escritores João Bigotte Chorão, Paulo Leitão,
os professores Renato Epifânio (em representação da NOVA ÁGUIA, do MIL: Movimento
Internacional Lusófono e do IFLB: Instituto de
Filosofia Luso-Brasileira) e José Eduardo Franco
(em representação do CLEPUL: Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), e o
bispo da Guarda, D. Manuel Felício. Alguns dos
assistentes quiseram também dar o seu testemunho acerca do evento.
Os livros conservados no Centro encontram-se à leitura, no local, nas horas normais de expediente, em
condições de acessibilidade e sossego, esperando-se
que as instituições escolares dos níveis secundário e
superior das Beiras aproveitem a proximidade.
O Instituto de Filosofia Luso-Brasileira é uma
das mais prestigiadas instituições filosóficas do
mundo lusófono, tendo sido criado, por escritura pública, a 15 de Julho de 1992. Ao longo
destes vinte anos, para além de múltiplas iniciativas, promoveu, a sós e em parceira, os seguintes eventos:
I Colóquio Tobias Barreto (1990)
I Colóquio Antero de Quental (1991)
II Colóquio Tobias Barreto (1992)
II Colóquio Antero de Quental (1993)
I Colóquio “Introdução à Filosofia da Saudade” (1993)
Colóquio sobre Sampaio Bruno (1993)
III Colóquio Tobias Barreto (1994)
II Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade (1995)
III Colóquio Antero de Quental (1995)
IV Colóquio Tobias Barreto (1996)
Colóquio sobre Silvestre Pinheiro Ferreira (1997)
Colóquio sobre o pensamento de Afonso Botelho (1997)
IV Colóquio Antero de Quental (1997)
V Colóquio Tobias Barreto (1998)
V Colóquio Antero de Quental (1999)
VI Colóquio Antero de Quental (2000)
VI Colóquio Tobias Barreto (2001)
Colóquio Comemorativo do 10º aniversário do
IFLB (2002)
Colóquio “Pensamento Político Luso-Brasileiro” (2002)
VII (a) Colóquio Antero de Quental (2002)
VII Colóquio Tobias Barreto (2004)
VII (b) Colóquio Antero de Quental (2006)
VIIII Colóquio Tobias Barreto (2007)
III Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade (2008)
Colóquio sobre a Obra de António José de Brito (2008)
VIII Colóquio Antero de Quental (2009)
Colóquio sobre a Obra de Eduardo Abranches de
Soveral (2009)
Colóquio “A Escola de Braga e a Formação Humanística: Tradição e Inovação” (2009)
Colóquio “O Movimento Fenomenológico Português” (2009)
IX Colóquio Tobias Barreto: “Miguel Reale e o pensamento luso-brasileiro” (2010)
Colóquio “A Obra e o Pensamento de António Telmo” (2011)
Colóquio “A Obra e o Pensamento de Eudoro de
Sousa” (2011)
IX Colóquio Antero de Quental (2011)
IV Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade (2011)
Para mais informações: www.iflb.webnode.com
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
CONGRESSO “PENSAMENTO, MEMORIA E
CRIAÇÃO NO PRIMEIRO CENTENARIO DA
RENASCENÇA PORTUGUESA (1912-2012)”
29-30 de Novembro/ 1 de Dezembro
O Congresso tem por objectivo congregar especialistas de diversas áreas do saber, da Filosofia
e da Literatura à História, Direito e Economia,
interessados na investigação do que foram a revista A Águia, o Movimento da Renascença Portuguesa, o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes e
o Criacionismo de Leonardo Coimbra, tanto no
contexto epocal que os viu nascer quanto na projecção do seu legado cultural até aos dias de hoje.
Organização: Grupo de Investigação “Raízes e
Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal
(Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto), Universidade Católica
Portuguesa (CEFi: Centro de Estudos de Filosofia), Faculdade de Teologia do Centro Regional
do Porto da Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Filosofia do Centro Regional
de Braga da Universidade Católica Portuguesa
(CEFH: Centro de Estudos Filosófico-Humanísticos), Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa (Centro de História), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa (Centro de História da Cultura), Universidade de Évora (Centro de Estudos em Letras),
Universidade do Minho (Instituto de Letras e Ciências Humanas), Universidade de Santiago de
Compostela (Departamento de Lógica e Filosofia
Moral), Universidade Complutense de Madrid,
Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, Instituto de
Literatura Comparada – Margarida Losa, Centro Inter-Universitário de Estudos Camonianos,
Centro Nacional de Cultura e Associação de Filosofia e Culturas de Língua Portuguesa.
Apoios: Câmara Municipal do Porto, Câmara Municipal de Amarante, Mota-Engil, FCT,
Reitoria da Universidade do Porto, BPI, Revista
Nova Águia.
Comissão Organizadora: António Braz Teixeira, Manuel Cândido Pimentel, Maria Celeste
Natário, Maria Luísa Malato, Renato Epifânio e
Samuel Dimas.
Para mais informações: www.ifilosofia.up.pt
257
I CONGRESSO DA CIDADANIA LUSÓFONA
Com quase 300 milhões de falantes, a língua
portuguesa é a quinta mais falada no mundo, a
terceira mais falada no hemisfério ocidental e a
mais falada no hemisfério sul da Terra. Daí todo
o peso geoestratrégico da Comunidade Lusófona, que, em termos demográficos, continua em
expansão. Ela estende-se a todos os continentes
e projecta-se muito para além dos 8 países da
CPLP: Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, dadas as muitas regiões, pelo mundo
fora, com ligações histórico-culturais à nossa
língua. Daí, também, toda a importância das
diversas diásporas lusófonas.
Infelizmente, os diversos Governos – falamos,
desde logo, de Portugal – parecem não ter ainda
compreendido todo o potencial desta Comunidade, potencial não apenas linguístico-cultural, mas também social, económico e político.
Aquele que deveria ser o nosso grande desígnio
estratégico – o reforço dos laços com os restantes
países e regiões do espaço lusófono – continua a
ser, entre nós, apenas um desígnio retórico, com
poucas ou nenhumas consequências. Prova de
que, cada vez mais, os Governos só sabem governar para o curto prazo.
Nessa medida, cabe pois à Sociedade Civil afirmar esse grande desígnio estratégico. Liberta do
pequeno cálculo político-partidário, que tudo
torna refém das eleições que se seguem, a Sociedade Civil tem assim a obrigação de abrir
horizontes de médio-longo prazo, dessa forma
influenciando, no bom sentido, os diversos Governos. Se estes, cada vez mais, se caracterizam
pela miopia estratégica, a Sociedade Civil não
deve ter medo de apresentar propostas que, a
priori, podem parecer, às mentes mais formatas
pelo discurso político-mediático dominante,
como utópicas. É esse, desde logo, o caso da
Comunidade Lusófona. Ela é ainda, em grande
medida, uma Utopia, importa reconhecê-lo.
Isso acontece, sobretudo, porque a Comunidade Lusófona não se assume nem se afirma como
tal: como uma Comunidade. Não há, com efeito, ainda, uma consciência lusófona. Enquanto
ela não existir a montante, todas as entidades
político-diplomáticas que possamos criar a jusante não terão raízes sólidas. Essa é, desde logo,
258
NOVA ÁGUIA – R e v i s t a
de
Cultura
a nosso ver, a razão do pouco sucesso da CPLP:
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa,
já com mais de 15 anos existência. Apesar do
muito empenho das pessoas que nela trabalham,
o caminho trilhado é ainda curto. Porque não
há, com efeito, a montante, essa consciência,
esse sentido de uma cidadania lusófona.
Todos nós, como pode ser a todo o momento
comprovado, ora nos definimos como cidadãos
dos países em que nascemos e/ou em que vivemos, ora como “cidadãos do mundo”. Poucos
há, muito poucos, que se afirmam como “cidadãos lusófonos”. E aqueles que o fazem são olhados ainda com alguma estranheza, senão mesmo
com perplexidade. No dia em que isso mudar,
em que muitos dos falantes desta Comunidade
se afirmarem como “cidadãos lusófonos”, então a Comunidade Lusófona deixará
de ser uma utopia e passará a
ser uma realidade: não apenas linguístico-cultural, mas
também social, económica e
política. Eis, pois, a grande
tarefa da Sociedade Civil,
em Portugal e nos demais
países e regiões do espaço
da lusofonia: difundir este
conceito de “cidadania lusófona”.
Esse é, desde logo, o propósito maior do I Congresso da Cidadania Lusófona: difundir esse
conceito, fazendo com que cada vez mais pessoas se afirmem como “cidadãos lusófonos”. Porque essa é, como defendemos, uma tarefa que
só a Sociedade Civil pode cumprir, queremos,
ao mesmo tempo, neste Congresso, promover
a sua afirmação, fazendo o diagnóstico sobre o
estado da Sociedade Civil em todos os países e
regiões do espaço lusófono, tendo em conta os
diversos factores que condicionam a sua devida
afirmação. Isto porque, obviamente, o estado da
Sociedade Civil não é mesmo em todos os países e regiões do espaço lusófono. Nessa medida,
importa pois fazer esse diagnóstico, por representantes da Sociedade Civil de cada um desses
países e regiões do espaço da lusofonia.
Por tudo isso, a Comissão Coordenadora deste
Congresso procurará escolher criteriosamente as
para o
Século XXI
Nº 10 – 2º Semestre 2012
Associações da Sociedade Civil que nele participarão, de modo a que esse diagnóstico possa ser
o mais fundamentado possível. Ao mesmo tempo, procuraremos agregar todas essas Associações numa Plataforma de Associações Lusófonas
(PALUS) – no âmbito desta, procuraremos também criar plataformas sectoriais, que agreguem
as Associações da Sociedade Civil de todo o
Espaço Lusófono conforme a área de interesses
de cada uma delas. Dessa forma, lançar-se-ão as
bases de uma Sociedade Civil à escala lusófona,
de cariz trans-nacional. Do mesmo modo que
importa que todos os cidadãos deste espaço se
afirmem como “cidadãos lusófonos”, também as
Sociedades Civis de todos estes países e regiões
tudo terão a ganhar se se afirmarem em rede, em
convergência – em suma, se
se afirmarem como a Sociedade Civil Lusófona.
Após ter promovido um
Encontro Público sobre “A
Importância da Lusofonia
– para Portugal e para os
restantes países e regiões do
espaço lusófono”, realizado
na Sociedade de Geografia
de Lisboa no dia 24 de Fevereiro de 2012, a PASC: Plataforma Activa da Sociedade
Civil, que congrega cerca de
três dezenas de Associações da Sociedade Civil
em Portugal, promove mais esta iniciativa, coordenada pelo MIL: Movimento Internacional,
movimento cultural e cívico que, expressamente
apoiado por algumas das mais relevantes personalidades da nossa Sociedade Civil, defende
o reforço dos laços entre os países e regiões do
espaço lusófono – a todos os níveis: cultural, social, económico e político –, assim procurando
cumprir o sonho de Agostinho da Silva: a criação de uma verdadeira comunidade lusófona,
numa base de liberdade e fraternidade.
Renato Epifânio
Presidente da Comissão Coordenadora do Congresso
Para mais informações:
www.cidadanialusofona.webnode.com
Leonardo Coimbra: Nos 100 Anos d’O Criacionismo
SOBRE O FILME “TRAMPOLIM DO FORTE”
Este filme do realizador baiano João Rodrigo
Mattos, premiado na última edição do FESTin, revela-se uma página cinematográfica de
vivências autênticas. As suas imagens sugerem-nos a metáfora da caverna de Platão, mais propriamente a sétima parte do diálogo República,
porém o que vimos como pessoas são destinos
humanos em desenvolvimento. Longe da interpretação melodramática de “criança sem infância”, assistimos à construção de uma nota otimista dos “homens pequenos” que lavam a sua
liberdade com lágrimas e, para se protegerem,
mergulham na grande lágrima do mundo. O
trampolim como que constitui a ligação entre as
duas lágrimas que se lavam reciprocamente, da
mesma maneira como o palco das personagens
que projetam no céu a dança, a alegria, a amizade, numa palavra, a pureza humana. O peso
histórico da existência humana, o forte, é a base
sólida na preparação do salto para o futuro.
A inocência e o talento dos atores unem os seus
diferentes papeis ao destino da personagem
principal, da amizade sincera e profunda, da
aventura, 
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Nova Águia 010