SALAZAR E A CONSPIRAÇÃO DO OPUS DEI Oliver Ikor CARAVELAS O SÉCULO DE OURO DOS NAVEGADORES PORTUGUESES Tradução Cristina Belo Valérie de Mira Godinho 5 ANTÓNIO JOSÉ VILELA • PEDRO RAMOS BRANDÃO 4 SALAZAR E A CONSPIRAÇÃO DO OPUS DEI ÍNDICE Uma caravela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 1. A costa dos mouros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. O penitente do promontório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Ilhas como trampolins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. Costas de escravos, rios de ouro . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. Grão de paraíso, inferno da Mina . . . . . . . . . . . . . . . . . 6. Estrelas novas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7. Caravelas e caravanas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8. Mares fechados e Novo Mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9. O Cruzeiro dos proscritos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10. O outro velho mundo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11. A terra do pau-brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12. A terra redonda como uma esmeralda . . . . . . . . . . . . . 13. Os últimos passageiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 59 93 119 149 177 205 233 271 313 361 409 451 Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 481 7 ANTÓNIO JOSÉ VILELA • PEDRO RAMOS BRANDÃO 8 CARAVELAS 1 A COSTA DOS MOUROS Um judeu e um muçulmano presentes num quadro oficial que representa uma cerimónia religiosa e política onde um povo inteiro muito cristão, fortemente enquadrado pelo seu clérigo, comunga da mesma adoração de um santo, é isto que se revela excecional, sobretudo em pleno século XV. Se confiarmos na divisão prática, mas bastante imprecisa, da História em grandes períodos, encontramo-nos nesta altura numa área intermédia, indecisa, entre a Idade Média e o Renascimento. Constantinopla talvez já tenha sido tomada pelos turcos, a Igreja romana continua mergulhada, em Constança, nas suas querelas... bizantinas entre papas e antipapas e a Guerra dos Cem Anos está em vias de acabar. Como sempre, nestas alturas de indecisão, de dúvida, quando já não sabemos, por assim dizer, como resolver a situação, atacamos aqueles que não pensam, não vivem, nem rezam como nós e não passam de uma minoria. Desde logo e inevitavelmente, os judeus; de seguida, o inimigo hereditário que dominou durante muito tempo o país, e que ainda reina noutras partes da Península Ibérica, em Granada: o infiel, o mouro, o qual combatemos ao largo das costas marroquinas vizinhas e onde ocupamos, há quarenta anos, a fortaleza de Ceuta, a outra Coluna de Hércules, em frente a Gibraltar, chave do Mediterrâneo. O judeu e o mouro 25 CARAVELAS estão, apesar de tudo, bem presentes, exibindo descomplexadamente a sua diferença, mas integrados na sociedade portuguesa daquela época. O elmo e o Livro O mouro parece estar bastante à vontade, com o seu elmo oblongo, que reflete a aura de um dos santos; uma longa cabeleireira adelgaça ainda mais o seu belo rosto sonhador e vagamente sorridente sob a barba. De realçar que este cabeludo é o único guerreiro a usar elmo e o único leigo. Barba, cabeleira e elmo deviam ser para o pintor e seus contemporâneos as principais características «dos partidários de Maomé». Se Nuno Gonçalves o fez posar no seu bairro reservado, na sua mouraria, foi enquanto muçulmano. Os mouros tinham ali não só os seus lugares de culto, mesmo que o apelo à oração pelo muezim fosse proibido, mas também o seu representante, o seu alcaide, junto das Cortes, a assembleia portuguesa mais próxima do Parlamento inglês da época do que dos Estados Gerais franceses. O nosso belo tenebroso de elmo reluzente talvez seja esse, ou talvez um suplente, um mensageiro, agente secreto nas guerras berberes, ou, por fim, um intérprete a bordo das caravelas, ao longo das costas africanas, por onde os indígenas, «mouros brancos» ou «mouros negros» continuavam a rezar a Alá em árabe. Quando, duzentos anos antes, os exércitos cristãos tinham conquistado definitivamente todo o país ao antigo ocupante muçulmano, presente há mais de cinco séculos e meio, as elites civis, militares e religiosas tinham conseguido escapar e refugiar-se numa terra do islão; outros não tiveram os meios para segui-los ou pagar o seu resgate se fossem feitos prisioneiros: eram apenas agricultores ou artesãos. 26 SALAZAR A E COSTA A CONSPIRAÇÃO DOS MOUROS DO OPUS DEI Passaram a viver da forma mais discreta possível, na sua Medina ou nos seus campos, se os possuíssem. Aliás, a comunidade muçulmana teve um papel, pelo menos aparentemente, pouco relevante na fundação de Portugal e muito discreto na sua expansão marítima. O mesmo não se passou com a comunidade judaica. Diásporas já estavam instaladas há muito tempo na Península Ibérica. Há inclusive uma lenda que relata que os primeiros chegaram no tempo do rei Salomão. Outra defende que foram dez tribos perdidas na altura da deportação para a Babilónia. Na realidade, acompanhavam os seus vizinhos de origem, os Fenícios, nas suas navegações antigas e, antes de rumarem aos mares nórdicos, na mira dos países do âmbar e do estanho, consideraram bem-vinda esta escala num estuário, na futura Lisboa, Alis Ubbo, ou algo parecido que podemos traduzir por «enseada amena». Mais do que quaisquer outros, os judeus sentem-se aqui em sua casa. Durante a sua muito longa história, os sefarditas da Hispânia sofreram, tanto ou mais do que os outros autóctones, as ocupações cartaginesa, romana, vândala, sueva, visigoda, árabe, berbere, finalmente «borgonhesa», com o seu séquito de pilhagens, de perseguições e de massacres. Mas os sucessivos invasores da Península Ibérica precisavam muito deles. Pois eles eram, na verdade, os conservadores do saber antigo, das ciências, da literatura, da filosofia. Como podia ser de outra forma? Independentemente do seu nível social, agricultores, pescadores, artesãos, comerciantes ou burgueses, todas as crianças judias aprendiam, logo após o desmame, a ler e a escrever, não apenas a língua sagrada, o hebraico, mas também o latim, talvez o grego e os dialetos locais, que transcreviam; esta escolarização, mesmo básica, e este multilinguismo davam-lhes, de qualquer maneira, mais vantagem sobre o resto de uma população, indígena ou exógena, analfabeta na sua 27 CARAVELAS quase totalidade. Neste século XV, é portanto uma elite intelectual que põe ao serviço das grandes descobertas portuguesas os seus conhecimentos em geografia, astronomia, medicina, botânica, história, sem esquecer as suas competências em matéria comercial e financeira. Também se tornaram peritos em processos de reprodução xilográfica de mapas, textos, gravuras. Na verdade, à semelhança dos seus correligionários, o judeu do sexto painel é obrigado a exibir um sinal distintivo, aquela estrela vermelha que vislumbramos ao de leve sobre o seu longo vestido preto. Contudo, é preciso ser-se atrevido para exibir desta forma a Tora, aberta diante dos Evangelhos do santo da esquerda. Muitas pessoas foram queimadas e serão queimadas por muito menos do que isso. Tal como os muçulmanos, os judeus têm igualmente os seus bairros reservados, as judiarias; Lisboa tem sete. Eles também têm os seus representantes nas Cortes, um religioso, o rabi-mor e os magistrados laicos, os ouvidores. Não seria de espantar que o digno quinquagenário de rosto austero, mas imberbe, do Políptico fosse um importante ouvidor. O poder em vigor não se interessa apenas pelas competências de uns e outros. Os pesados encargos fiscais recaem nas duas minorias, daí os odiosos e ridículos «trinta dinheiros» de Judas que os judeus deviam pagar anualmente ao episcopado. Assim sendo, alguns convertiam-se, aparentemente, pois continuavam a praticar os seus rituais e os costumes em segredo, um segredo conhecido de todos, que agrada a todos, exceto aos párocos, rabinos e imãs. Se a Igreja Católica aceita, durante mais de meio século, que no mesmo país coexistam as duas outras religiões do Livro, tal não se deve a um qualquer espírito de tolerância que nunca a asfixiou, e que nunca a asfixiará, deve-se sim ao poder político que o exige e trava as fervorosas ações evangé28 A COSTA DOS MOUROS licas que atiçam a fé. Judeus e mouros são indispensáveis ao grande projeto marítimo de Portugal. Quando já não for assim, então a situação piorará muito... Entretanto, nesta representação pictórica sui generis de uma nação constituída e consciente de si mesma, da sua missão, de uma nação no momento da partida, o judeu e o mouro ocupam o seu lugar, durante este século de ouro português, este século dos Descobrimentos. O final da Rota da Seda Basta um simples olhar pelo mapa e a evidência salta à vista: Portugal só pode ter vocação marítima. Este longo retângulo de cerca de mil quilómetros de comprimento por aproximadamente duzentos quilómetros de largura tem toda a sua costa ocidental e a sua base meridional banhadas pelo Atlântico. Deve sempre desconfiar-se das evidências: a costa oeste apenas possui dois portos seguros, o estuário do Tejo, ou seja, Lisboa, e, na foz do Sado, Setúbal, situado cinquenta quilómetros a sul, demasiado próximo para não ter duplo uso; o Porto, a norte, com a desvantagem de estar sujeito à saída do Douro, uma barra difícil de ultrapassar. Em contrapartida, na costa sul, no Algarve, os bons ancoradouros são mais do que muitos e concorrem entre si. É, de resto, aí que a aventura vai começar. Assim sendo, porquê Portugal e não somente o Algarve, apenas Lagos, como uma nova Atenas, uma Veneza atlântica? Os antepassados do belo barbudo sombrio de elmo oblongo talvez conhecessem a resposta. Em 711, as tropas muçulmanas pisam Gibraltar e, em menos de quatro anos, ocupam praticamente toda a Península Ibérica, exceto algumas partes nos Pirenéus. Uma guerra-relâmpago fulgurante que demonstrou 29 CARAVELAS que as populações locais, ainda romanizadas, e cansadas da barbárie visigoda muito cristã, acolheram-nas com alguma simpatia. A ocupação árabe durará mais de quinhentos anos. Ocupação... A palavra talvez não seja a mais adequada para uma presença de meio milénio. Quanto aos árabes, com a exceção nos primeiros tempos dos dirigentes vindos de Damas, eram sobretudo os vizinhos magrebinos, os berberes, os mouros com quem os pescadores da costa sul deviam cruzar com frequência no braço de mar que os separava do Norte do atual Marrocos. O futuro Portugal encontra-se então na extremidade ocidental de uma longa e vasta rota comercial e cultural leste-oeste ligando os confins da China ao... Algarve, Algharb, o Oeste, em árabe. De Cantão, pela Índia, Pérsia, Bagdade, Damas, Alexandria e Córdova, uma enorme vaga de civilizações multiformes e multimilenares vem para aqui morrer, enquanto no Norte, catedrais ou não, cruzadas ou não, a cristandade se refugiou durante aqueles cinco séculos, nos caóticos conflitos internos. Desta vaga, Portugal apenas conhece a derradeira crista, mas daí saberá tirar o melhor partido. No seu solo erguem-se moinhos de vento, água, marés, os seus pântanos transformam-se em arrozais irrigados por parafusos de Arquimedes e os seus matagais passam a laranjais. Mas ainda e sobretudo é dos mares da China e do oceano Índico que chegam técnicas pouco úteis para a navegação costeira no Mediterrâneo: a bússola, o astrolábio, que instituem a navegação astronómica, um leme de popa designado «cadaste» e as velas com antenas, quadradas ou triangulares em função das necessidades, que permitem avançar independentemente da direção do vento, à bolina. Nasce na Península Ibérica uma sociedade refinada chamada «arábico-andaluza», que deixou a sua marca um pouco por toda a parte em Espanha. Em contrapartida, Portugal, o 30 A COSTA DOS MOUROS final da rota, o beco sem saída oceânico, fica à margem, longe dos lares centrais desta civilização virada para o Mediterrâneo, para o Oriente de onde ela vem. Aliás, naquela época, Portugal não existia. Nada o evocava e nada, de facto, jamais o evocara. Nem os agrimensores romanos tinham dado a sua forma atual à província da Lusitânia. À exceção do Sul, do Algarve, ainda e sempre. Regra geral, ao longo do litoral atlântico, sob o domínio muçulmano, encontramos uma cultura mais rude do que com Córdova e Granada, com as suas fortalezas pesadas que dominam do alto das suas colinas cidades com ares de medinas; exprime-se no vocabulário, sobretudo marítimo, na toponímia, e nesta arte especificamente portuguesa, os panéis de azulejos que ornamentam os palácios, as igrejas e decoram hoje padarias, restaurantes, fachadas de casas e até estações de metropolitano. Nem tudo é cor-de-rosa, longe disso, na Hispânia muçulmana, mas que página da História se tinge desta cor? Regiões constituem-se em reinos independentes, novos mestres desembarcam vindos do Norte de África e derrubam os antigos. Judeus e cristãos sofrem então as consequências da restauração de uma ordem islâmica que só existiu na cabeça daqueles que a promulgam. Depois as coisas assentam. A cultura, a civilização «moçárabe», numa palavra só referia-se aos não-árabes «que viviam como os árabes», atinge o seu auge nas artes, nas técnicas e na literatura. Os judeus servem de elo, de liga para este melting pot, de cimento ao edifício moçárabe, apesar de ou talvez graças à sua vontade de nada renegar da sua longa história, sempre tendo um papel preponderante na vida social, cultural, económica e política: até houve um judeu grande vizir do califa de Córdova. Quanto aos cristãos moçárabes, a sua comunidade é menos estruturada, menos coerente. Os seus raros membros eclesiásticos parecia desempenharem 31 CARAVELAS um papel de embaixadores dos pequenos reinos nos Pirenéus, junto dos califas e dos emires, mais do que representantes da sua religião num mesmo grupo. Seja lá o que for que se tenha dito a partir da historiografia católica e depois nacionalista, quando os conquistadores pisaram Gibraltar no século VIII, o cristianismo não teve tempo de se implantar nas profundezas da população, sobretudo nas margens atlânticas. Se o dono da propriedade, o chefe da aldeia, da tribo, se convertesse, os demais seguiam-no, conservando sempre em segredo os seus cultos e rituais pagãos. As conversões ao islão fizeram-se da mesma forma e com boa vontade, na medida em que isto dispensava do pagamento das taxas que incumbiam às minorias religiosas. Longe da hierarquia, num tempo em que os cismas e heresias proliferavam a norte, os cristãos moçárabes distanciam-se da ortodoxia romana; à semelhança dos seus homólogos orientais, continuam a seguir as liturgias antigas. E é Roma que se afasta deles. Assim, na Ibéria muçulmana a questão religiosa é mais ou menos regulada ao sabor do tempo, sinagogas e igrejas deviam pagar tributo para celebrar o seu culto. Apesar disso, as comunidades misturam-se cultural, linguística, política e maritalmente, no dia a dia. Este «modelo» é por vezes imitado nos enclaves cristãos do Norte, como o demonstra o rei de Aragão que se intitulava «príncipe das três religiões». Com o seu bom conhecimento das ciências e das técnicas da época, a abertura ao outro e, sobretudo, a consciência de um mundo imenso, a civilização moçárabe tinha tudo para ir à descoberta. Para partir, apenas lhe faltava o apetite de aventura. Esta civilização não tem fome. 32 A COSTA DOS MOUROS Os entraves da cruzada O apetite virá do Norte. Divididos e muitas vezes opostos em reinos e condados, os retiros cristãos beneficiam amiúde das divisões muçulmanas, das taifas. Vitórias, derrotas, incursão, invasão, retirada, escaramuças ou grandes batalhas, tréguas ou alianças... Sun Tzu e Clausewitz ficariam confusos, mesmo que a tendência a longo prazo seja a dos avanços cristãos para sul. Em boa verdade, não existe uma estratégia global. O que existe, em contrapartida, como noutras partes da futura Europa, são os feudos, grandes ou pequenos, influentes ou fracos e interligados por juramentos de vassalagem que se acumulam, se misturam e se contradizem. Aconteceu que um rei de Castela se tornou fiel a um califa de Córdova, antes que um dos seus sucessores se tornasse suserano. Depois vem o tempo das Cruzadas. Os reizinhos dos Pirenéus não têm meios para participar nelas, mas consideram-nas uma boa opção para enviar a sua nobreza ávida de terras que assim pode saciar o seu apetite algures longe dos seus quadradinhos de terra. Muito mais longe a norte, o influente duque da Borgonha, filho de um dos primeiros reis capetianos, calcula que para casar uma das suas filhas mais novas a pouco custo, o rei de Aragão seria o genro ideal. Subitamente vê-se livre dos filhos mais novos e mais turbulentos da sua abundante descendência e respetiva clientela. Os «burgúndios» não vêm sozinhos, mas sim com monges de Cluny, discípulos de São Bernardo que irão insuflar o espírito da cruzada. Quem também atravessa os Pirenéus são os filhos de famílias da Aquitânia, Auvergne, da região de Toulouse ou da Provença que não podem pagar a viagem até Jerusalém. Sonham com as proezas do Cid e em talhar um domínio à medida das suas ambições. É sob o comando de outro benjamim, mas este de sangue real, 33 CARAVELAS que somente recebeu um pequeno e pobre condado mais ou menos galego, que a Reconquista se expandirá ao longo da costa oeste da Península Ibérica. Apesar de tudo, este período durará dois séculos e meio e inspirará canções de gesta e romances de cavalaria, com os seus heróis assassinos de mouros, Mata-Mouros. Os monges-soldados, a ordem dos Templários e a do Hospital vêm ajudar. A seguir os Normandos, que saíram de Inglaterra rumo à Terra Santa, desviam-se para ajudar a tomar Lisboa. Uma parte ficará e criará raízes. O conde de Portugal ganha então o título de rei, para grande desfeita dos seus homólogos hispânicos, sobretudo do de Castela, cuja progressão é mais lenta e conhece mais resistências da parte dos reinos muçulmanos muito melhor estruturados que no litoral atlântico. Em 1250, o Algarve é conquistado e Portugal fica com as fronteiras que possui ainda hoje. A frente já estava estabilizada há muito tempo em cada um dos lados do rio Tejo; portanto, o jovem reino lida com o Sul mais profundamente impregnado pelo islão e pela cultura moçárabe do que o Norte, facilmente cristianizado, onde até a cidade de Fátima, com o nome da filha do Profeta, se tinha submetido sem dificuldade à Virgem Maria. Quantas Damas Brancas, Vivianas ou Morganas, tinham aparecido, muito antes delas, à entrada das grutas desta região rude e pobre? A fusão vai, porém, acontecer rapidamente, pelo menos para esta época de ritmo lento. Mais do que a questão religiosa, regulada pelo novo poder que conferia aos judeus e muçulmanos estatutos particulares ao aliar obrigações e privilégios, põe-se sobretudo o problema de uma linguagem comum, sendo a língua administrativa e religiosa o latim a norte e o árabe a sul. Quanto às línguas ditas vulgares, podemos ter uma ideia, para o Sul, através da transcrição feita por 34 A COSTA DOS MOUROS eruditos e poetas judeus, o djudeamo* uma espécie de yiddish ibérico. A língua romana vernacular da região do Porto, um ramo do galego, irá impor-se sozinha e até com grande facilidade na medida em que é a língua das canções populares bem como de alguns poemas redigidos por monarcas que se entretêm a escrever. Outra escolha pertinente, e sobretudo determinante para o futuro, é a da capital, Lisboa. Os novos senhores poderiam ter-se acantonado nas suas cidadelas históricas de Braga, Porto ou Coimbra, onde foi fundada a primeira universidade portuguesa, mas desta forma mostram que, apesar da barreira criada pelo Tejo, o Sul e o Norte estão dali em diante indefetivelmente ligados numa mesma nação. E sobretudo, esta escolha, feita por cavaleiros que nunca pisaram o convés de um navio, irá orientar definitivamente Portugal para o Atlântico. Em 1348, enquanto o processo de feudalidade arranca, com três séculos de atraso em relação ao resto do mundo cristão, o território tende a fragmentar-se; uma catástrofe, que poderia ter riscado a Europa do mapa, irá pelo contrário dinamizar Portugal. A Peste Negra mata mais de um terço da população. Nos campos desertificados, passa a preferir-se as culturas da vinha, da oliveira e do sobreiro, em vez dos cereais, pois estas precisam de menos mão de obra. Pescadores e pilotos inventam técnicas para voltar ao mar com tripulações reduzidas. À sua maneira, a pulga do rato contribuiu para a invenção das caravelas. ————————— * O ladino, evocado mais vezes, é na realidade um «decalque» do hebraico, reproduzindo sintaxe e gramática da língua sagrada sobre uma língua romana arcaica, tornando-se ela própria sagrada. Só depois das expulsões dos judeus da Península Ibérica é que o ladino designará a língua falada dos sefarditas. 35 CARAVELAS Um pequeno país? Nem por isso... «Um império tão grande! Tantos mares cruzados, tantos perigos ultrapassados, tantas descobertas! É extraordinário, sendo um país tão pequeno!» Pode dizer-se que é um milagre. Será Portugal verdadeiramente um país pequeno? Quem pensaria extasiar-se desta forma a propósito de Veneza, que numa certa altura expandira a sua lagoa do mar Negro para o delta do Nilo? Quem qualificaria os Países Baixos de «países pequenos», sendo que no século XVII as Províncias Unidas detêm toda a Indonésia e distribuíram as feitorias na costa leste americana? E o que dizer dos impérios da Antiguidade que se desenvolveram a partir de uma cidadela? Contudo, não há nada a fazer, o «país pequeno» é Portugal. A data habitualmente admitida para o início da expansão marítima lusitana é 1415. O mesmo ano da famosa batalha de Azincourt em que a nobreza francesa é derrotada pelos arqueiros ingleses, ou melhor, galeses, auxiliados por alguns cavaleiros portugueses. Até podemos questionar-nos se o termo «francês» não será, nestas circunstâncias, um pouco abusivo e se, quer no Artois, onde ocorre a dita batalha, como na Lorena, onde nascerá Joana d’Arc, quanto mais na Aquitânia ou na Normandia inglesas, nos ducados da Bretanha e da Borgonha, ou no reino da Provença, e mesmo em Paris dominada pelos Armagnac, a grande maioria da população tem consciência de ser francesa e, por conseguinte, não o é. Nem vale a pena aventurar-se na outra margem do Reno para lá encontrar no Sacro Império Romano-Germânico qualquer coisa que evoque a Alemanha dos nossos dias nesta fragmentação de episcopados, de principados, de vilas francas... A Espanha não existe, mesmo que dois antigos reinos pirenaicos ganhem cada vez mais importância, Castela e Aragão, progredindo para o de Granada, ainda 36