I Tudo começou por causa de Teresa. Pelo menos, era o que Marco pensava, mais tarde, quando tentava entender o que tinha acontecido. É claro que Teresa não tinha nada a ver com aquilo, diretamente. Tinha sido só um caso. Bonito, intenso, é verdade, com muito envolvimento, mas já tinha ficado para trás há muito tempo. Só que a esta altura dos acontecimentos “nel mezzo dei cammin di nostra vita”, como aprendera no Dante, lá na escola da rua Farini, Marco já sabia muito bem que essa história de tempo, muito tempo, pouco, podia ser profundamente enganadora. Para ele, certamente era. Quantas vezes esquecia coisas recentes, classificava-as mentalmente na categoria de passado remoto e as jogava para o fundo do seu arquivo morto... E, no entanto, em sua cronologia particular, tinha a permanente companhia de lembranças muito mais antigas que estavam sempre a seu lado, vívidas, sensoriais. Como o cheiro do cotechino que a nonna cozinhava para fazer o caldo da pasta de todas as noites, quando ele era pequeno e voltava da escola. A velha cozinha cheia de vapor, as vidraças embaçadas esperando seus rabiscos com o dedo, as vozes femininas dominando a casa enquanto o pai não chegava. Tudo vivo até hoje dentro dele, tempo jamais perdido, alimento constante. Teresa não era a responsável direta por nada daquilo que estava acontecendo. Marco sabia bem. Mas não podia deixar de imaginar que tudo começara por causa dela. Afinal, fora a primeira brasileira que conhecera. E que o fascinara, com sua mistura de independência e afetividade. Fascínio mesmo, perigoso, capaz de abalar seu sólido casamento com Paola, jogar em crise a relação, ameaçar tudo o que vinham construindo há anos, o ninho macio em torno da pequena Nina, a imagem do casal perfeito, moderno, apaixonado (e que belo par!) que todos os amigos tinham. 10 Não valia a pena, e ele soubera discernir. Renunciara a Teresa e a seus olhos miúdos e vivos, Teresa e sua macia pele morena, Teresa e sua arredondada bundinha empinada, provável herança calipígia de alguma ancestral africana perdida numa senzala nordestina. O importante era Paola, era manter vivo um amor que se tecia em amizade e já resistira a tantos perigos. E Paola, como sempre, tinha sido generosa, compreensiva, disposta a esquecer tudo, a partir do momento em que ele terminou mesmo com Teresa. Nunca falou no assunto, não ficou cobrando o deslize do companheiro, não guardou ressentimento. Pelo menos, aparentemente. Os problemas que surgiram mais tarde e que acabaram levando ao fim do casamento eram outra história. Paola garantia que era só uma questão de crise pessoal, de insatisfação individual dela, de vontade de uma nova vida, de necessidade de espaços mais amplos, de desejo de crescimento longe dele, ah, que horror!, todos aqueles insuportáveis chavões no limite do feminismo, repetidos e repetidos à exaustão madrugadas adentro, semanas a fio, meses, escarafunchando o coração, esgravatando feridas, machucando tanto que, quando finalmente ele concordou com a separação, sentiu surpreendente alívio. Não que essa separação de Paola fosse para valer. Marco tinha certeza de que não era. Cada vez mais se convencia de que ela estava era querendo um tempo. Como se ele fosse dono do tempo, capaz de dar a uma pessoa algo sobre o qual não tinha controle nenhum. Mas o fato é que ele já se dera conta de que, nestes mais de dois anos em que não estavam mais vivendo juntos e em que ele, pelo menos uma vez por semana, propunha que se reconciliassem e Paola dizia que não, a realidade era que os dois nunca tinham realmente se separado. Pelo menos, não no sentido em que todos os casais que ele conhecia se separavam. Quer dizer, Paola tinha sempre um namorado ou companhia mais ou menos constante, que mudava a cada dois ou três meses. Ele tinha uma quantidade incalculável de amigas e conhecidas e ex-desconhecidas gravitando em torno de sua disponibilidade. Uma coisa espantosa. Nunca imaginara que pudesse haver tanta mulher disposta sempre a sair com ele. O diabo era o desencontro depois. Por culpa dele, sabia. Dele, Marco, que nunca conseguia ir muito adiante disso. Saíam, jantavam, tomavam vinho, às vezes dançavam ou iam a uma festa, uma ou outra vez ia a um 11 teatro, concerto ou cinema com uma delas, quase sempre iam para a cama, mas ele não tinha a menor vontade de prorrogar as coisas, repetir os encontros, construir nada mais duradouro. Talvez por pura preguiça, inércia. Absoluta falta de saco para se revelar, abrir o seu banco de dados pessoal, mostrar quem era e o que pensava. Contar casos do passado na faculdade, os bastidores do dia a dia na revista, explicar o contexto de cada amigo a que se referia, evocar lembranças de infância, falar no pai ferroviário, na avó costureira, na prensa de fazer azeite no quintal do tio Renato, no imenso armário cheio de velhas roupas e chapéus de antes da guerra que a tia Ottavia guardava como relíquia familiar... Paola já sabia disso tudo, conhecia todos esses itens, era capaz de classificá-los, guardar cada um em sua pasta ou escaninho correto e recorrer ao detalhe exato no momento adequado — ou identificar em que conjunto de informações determinada atitude de Marco se baseava. Era preciso muito investimento de tempo para que um dia outra mulher dominasse tudo isso e ele pudesse apenas relaxar ao lado dela, e deixar as coisas fluírem, como acontecia com Paola. E ele não achava que valesse a pena perder horas e dias transmitindo tudo isso, abrindo os caminhos que levavam às camadas mais fundas de si mesmo. No fundo, era mesmo porque tinha certeza de que ele e Paola iam voltar um para o outro. Enquanto isso não acontecia, era melhor aproveitar a vida de solteiro e se divertir um pouco. Um brinquedo. Um jogo que ele jogava bem, cada vez com mais experiência e atenção aos diferentes matizes. Além do mais, não dava para ter a menor dúvida. Marco sentia que Paola, no fundo, também vivia essa separação como provisória. Tanto assim, que telefonava para ele quase diariamente, vinha sempre até a porta dar uma palavrinha quando ele passava de manhã para levar Nina ao colégio, continuava fazendo as compras de supermercado para o ex-marido, cedia-lhe a faxineira a cada quinze dias, anotava os recados telefônicos que recebia em seu antigo número, ajudava-o a fazer as malas quando viajava e sempre o esperava no aeroporto ou na estação quando vinha de volta. Por isso, ele nem se dera ao trabalho de procurar um lugar para morar. Era tão difícil encontrar apartamento em Roma atualmente... Simplesmente se instalou no escritório. Ti- 12 nha uma pequena geladeira em sua sala, uma cafeteira elétrica que ligava na tomada do banheiro onde mandara instalar uma ducha, e dormia no sofá da antessala. Isto é, quando dormia “em casa”, o que era raro, em meio a tantas viagens e tantas amigas. O único trabalho que teve foi esvaziar uma das portas da estante fechada para guardar umas roupas. Poucas, que a maioria ficava mesmo em casa de Paola, e ele ia apenas renovando o recheio do móvel, ao sabor das estações e circunstâncias imediatas. Estava meio acampado, reconhecia, mas não achava isso nada ruim. Estava junto do computador e de seus livros e teipes. Nunca se sentira tão à vontade para escrever, dono do seu espaço e do seu tempo, desde que não fosse nas horas de expediente. O sócio era um amigão e não se incomodava. Mais que isso, dava a maior força. — Não se preocupe, Marco — dizia Carlo. — Isso é uma sorte para a gente. É ótimo para a revista ter alguém permanentemente presente no escritório. E se você ainda faz questão de pagar pessoalmente uma parte das contas e taxas, é um bom negócio para a empresa... Marco achava que, no fundo, a solidariedade do amigo talvez tivesse uma boa mescla de condescendência, piedade e, quem sabe?, uma ponta de inveja ou de admiração pela vida celibatária e descompromissada que levava. Mas era útil e mantinha o esquema, tão prático. Além do que, era gostoso morar no centro. Não depender de automóvel no quotidiano. Voltar para casa de noite caminhando pelas ruas desertas. Desviar-se um pouco do caminho para passar numa piazza simpática. Contemplar uma coluna ou uma fonte. Perceber as fachadas das igrejas e dos palácios como cenários potenciais. Olhar umas ruínas com olhos de turista. Enfim, embora essa nova fase de seu casamento com Paola não tivesse sido escolhida por ele, a verdade é que era obrigado a reconhecer que se adaptara bem às circunstâncias. Nos raros momentos em que se sentia sozinho, ia buscar Nina para ficar com ele. A filha o encantava e lhe fazia a melhor das companhias, com seu jeitinho interessado e tagarela, sua meiguice suave, seu amor ciumento que implicava com todas as amigas do pai. Isso tudo ajudava Marco a viver a espera. Porque, evidentemente, era só um tempo de espera, embora nada tivesse 13 sido explicitado. Mas era preciso ter calma e esperar que Paola se encontrasse, devia estar tão perdida, coitada! E quando ela atravessasse esse momento confuso em que estava, cheia de independências, autonomias, seus próprios espaços e buscas de si mesma, ia descobrir que não podia viver sem ele e ia chamá-lo para casa de novo. Sem a menor dúvida. Era só saber esperar. Às vezes Marco se impacientava um pouco. Já tinha dado umas quatro ou cinco prensas em Paola para resolver logo; ela sempre escapulia, negava que tivesse qualquer intenção de reatar. Aí ele tinha um recurso infalível. Era só fazer jogo duro. Sumia um pouco, não atendia ao telefone, nunca tinha tempo para encontrá-la, apanhava e deixava Nina na esquina da rua, sem dar margem a conversas. Paola não aguentava mais que alguns dias. Acabava aparecendo no escritório, perturbada, algumas vezes chorosa, outras sedutora, chamava-o para jantar, acabavam trepando, e voltava a ser como antes. Quer dizer, como bem antes, não. Como depois da separação, mas antes de ele ficar arredio. E ele acabava achando que não era mau negócio. Afinal, estava tendo umas longas férias conjugais, do tipo das fantasias com que todo marido sonha escondido. Por que não aproveitar? Era só uma questão de tempo. Tempo, tempo, sempre o tempo. Marco tinha uma amiga metida a entender de astrologia. Disse que ele era de Capricórnio e duplamente regido por Saturno. Ele não entendia muito bem essas coisas. Mas ela insistia em dizer que Saturno o marcava e que isso explicava muitas coisas. — Marco soturno, marca de Saturno — ela brincava. Ele não se achava soturno. Só um pouco reservado, fugindo um pouco, às vezes sujeito a depressões. Mas sempre reagia, pé no chão, se erguendo com cuidado, levantando a moral com atitudes práticas, concretas. Era só dar tempo. O tempo estava sempre a seu favor. Sentia que, quanto mais velho e mais experiente, mais sábio e interessante ficava. Agora, perto dos quarenta, percebia que nunca se sentira tão bem consigo mesmo, tão preparado para a vida, tão cheio de determinação e energia que podiam ser bem canalizadas e não apenas desperdiçadas a esmo. Não tinha nenhuma nostalgia da juventude, nenhuma saudade do rapaz ingênuo e atabalhoado que fora aos vinte anos. Ou aos trinta, quando se envolvera com Teresa. 14 Teresa... Só podia ser por causa dela. Porque ela era brasileira. E tinha deixado nele uma vontade enorme de conhecer o Brasil. Agora, com o número especial da revista sobre artesanato, surgira a oportunidade. Já que alguém tinha que ir à América do Sul, por que não ele? E já que ia fazer um trabalho de pesquisa e procurar contatos no México, na Guatemala e no Peru, por que não fazer o mesmo no Brasil? Só porque o Brasil não tem um artesanato tão notável como os países andinos? Ora, não seria interessante estudar o caso brasileiro exatamente por isso? Que diferença haveria entre os indígenas da planície e os da montanha? Que contrastes no exame das marcas culturais que deixaram em seus respectivos países? De que maneira a influência africana acentuou o desenvolvimento da música e da dança e contribuiu para que se desprezassem as artes visuais e o olhar em detrimento do som e do ouvido? De que modo a riqueza da arte plumária brasileira e a fina qualidade da cestaria nativa acabaram se perdendo na aculturação? Até que ponto a tradição colonial e escravocrata impôs um padrão de classe dominante que desvalorizou os frutos do trabalho manual e relegou ao desprezo absoluto qualquer objeto que não fosse feito em materiais considerados nobres? E, no caso de essa hipótese ser verdadeira, como explicar a diferença de comportamento dos colonizadores portugueses em relação a seus colegas espanhóis do outro lado das fronteiras? Tantas perguntas, tantas questões interessantes a elucidar. Não só do ponto de vista histórico, analisando explicações passadas, mas também em termos mais contemporâneos, focalizando aspectos mercadológicos, como a influência do turismo e da fabricação estereotipada de souvenirs pseudoartesanais. Enfim, com a maior facilidade, Marco conseguira vender ao conselho editorial da revista a ideia de que seria indispensável que sua viagem pela América Latina incluísse também o Brasil. Até mesmo pelo tamanho do país, era só olhar o mapa... Foi eloquente e convincente. E vitorioso. Ninguém nem discutiu. Mas, no fundo, ele se sentia levemente constrangido. Sabia que todas as justificativas que inventara eram pretexto. E que, na verdade, ele queria mesmo era conhecer a terra de Teresa, velho sonho. 15 Não precisava mentir para si próprio. E não mentia. Tudo o que queria era conhecer o país, ver a luz, ouvir os sons, sentir os cheiros, conviver com a gente que alimentara toda a vida de Teresa e de que ele ouvira falar com tanta intensidade afetiva que aprendera a amar de longe, junto com a língua que aos poucos fora entendendo e depois falando. Tinha que ir ao Brasil. Pelo país mesmo e não por qualquer possível fantasia em relação à ex-namorada. Aliás, ela nem mesmo estaria no Brasil nessa época, e ele sabia. Agora estava casada e vivia com o marido diplomata num consulado em algum ponto da África. Águas passadas. Marco não estava atrás de se banhar nelas. Já lhe tinham feito todo o bem e todo o mal que podiam. O que desejava agora eram terras presentes. À sua espera, há tanto tempo, do outro lado do Atlântico que seu conterrâneo Colombo ajudara a revelar ao mundo há quase cinco séculos. Agora seria a vez dele. O país não o desapontou. Foi como encontrar um velho conhecido, mas cheio de boas surpresas. Teresa tinha lhe falado muito do Nordeste, dos mercados, das praias, mas nenhuma descrição poderia ter recriado o gosto das frutas, a temperatura da água clara, o murmúrio da brisa nas palmas dos coqueiros, o riso acolhedor das pessoas. Estava preparado para a Feira de Caruaru, mas não podia avaliar que fosse tão grande, que pudesse existir um lugar como aquele indescritível ponto de encontro dos vendedores de pássaros, com sua profusão de cantos. Ou que a teimosia da infância numa vida dura pudesse ser tão forte ao ponto de levar tantos homens-feitos a passarem a vida desmanchando latas usadas de óleo para criar minúsculos parques de diversões com todos os seus carrosséis, balanços e rodas-gigantes coloridas, de puro brinquedo. Foi sucumbindo à magia da terra e da gente. Em poucos dias, mal conseguia tomar suas anotações a sério, lembrar de fotografar e gravar entrevistas. Tinha escrúpulos. Sentia vergonha de estar invadindo os outros, preferia deixar para registrar tudo de memória, quando voltasse ao quarto do hotel. E se entregava para ser carregado, levado pelas sensações, igualzinho a como aprendera a fazer, descendo numa prancha pelas ondas, na praia cearense aonde um jornalista amigo o levara de jipe, ao lado de inacreditáveis cidades de palha, capazes de derrubar qualquer hipótese sobre a inexistência de um artesanato brasileiro. 16 Mais para o sul, as coisas mudaram, evidentemente, em matéria de clima, paisagem, ritmo de vida. Mas por dentro era a mesma força. Marco foi percebendo a unidade do país, por baixo daquela diversidade aparente. Algo que não era apenas da língua, e que era difícil de explicar. Encantou-se com São Paulo, com todos os seus ecos italianos de comendadores e imigrantes, seus desafios empolgantes, sua eficiência competente, seu profissionalismo latino, seu tropical cosmopolitismo. Aninhou-se nas cidades coloniais mineiras, mergulhado no silêncio de seus noturnos perfis enladeirados. E, finalmente, capitulou por completo. Entrou em órbita no Rio de Janeiro, ofuscado pela luz, zonzo com a beleza das montanhas junto ao mar, chocado com a miséria dos mendigos à sombra dos prédios de luxo, hipnotizado pelas mulheres bronzeadas de andar sensual, assustado com a violência de todas as histórias de assaltos que ouvia, espantado com o caos urbano, siderado pela irresponsabilidade da alegria jovem e perigosa que a cidade parecia respirar o tempo todo. Desistiu de tentar analisar. Viveu a cidade, os amigos que fez, as mulheres que conheceu. Em poucos dias, acabou tudo. O tempo, mais uma vez. Era hora de ir embora, despedir-se de tudo, voltar ao trabalho. Tinha à sua frente pouco menos de uma semana de rotina romana de início de outono, com agenda sobrecarregada. E, em seguida, outra viagem, tão diferente, a um país do leste, cinzento, pesado, burocrático. Por causa dessa viagem, Marco acabou recebendo um pedido de última hora, de Nicolau, um arquiteto que conhecera no Rio e de quem tinha ficado tão amigo que acabara saindo do hotel para ficar em casa dele. — Será que você podia me fazer um favor? Aliás, não é para mim, é para Mariana, uma amiga nossa. Ela está com um probleminha e talvez você possa ajudar, não sei. É coisa pequena, não dá muito trabalho, negócio de uma reserva de hotel, sei lá. É melhor você falar com ela pelo telefone. Ele falou. O próprio Nicolau ligou para ela, numa conversa introdutória, lá de uma casa onde tinham ido passar o dia, na montanha, em plena floresta tropical, onde morava uma artista plástica amiga do arquiteto. Mariana ia viajar daí a poucas semanas, ia para o mesmo país do leste aonde Marco ia, a mesma 17 cidade... E estava tendo um problema com a agência de viagem, não conseguia ter a confirmação de sua reserva de hotel. Estava um pouco preocupada: — Estou indo a trabalho, não conheço ninguém lá, não falo a língua. Depois que eu chegar, eu me viro, sei o que quero fazer e quem devo procurar. Mas tenho medo de não ter para onde ir. E como o Nicolau falou que você ia justamente para lá alguns dias antes de mim, pensei em lhe pedir esse favor... — Pois não, às ordens... Mas do que é exatamente que você precisa? Fosse o que fosse, tinha que fazer. Por causa de Nicolau. Nunca imaginara ser acolhido com tanta hospitalidade por alguém a quem nem conhecia dias antes. Tinha que retribuir. — Será que dava para você telefonar para o hotel quando chegar lá e confirmar minha reserva? Só para garantir... A agência de viagem não está tendo resposta pelo telex e eu ando meio aflita... — Claro, não se preocupe. Faço até melhor. De Roma mesmo, eu providencio isso, é mais fácil do que daqui. Peço a minha secretária e ela resolve tudo. Pode ficar tranquila. — Não precisa ter tanto trabalho. — Não é trabalho. Ela vai ter que fazer o mesmo para mim. Anotou o nome dela, as datas da reserva e o nome do hotel. Guardou na carteira, deu à secretária quando chegou em Roma e não pensou mais no assunto. Tinha tanta coisa a fazer... A chegada de volta à Itália foi complicada. Queria escrever logo, fixar definitivamente as impressões da viagem, não podia começar a misturar agora o material da América Latina ainda por redigir com a nova papelada que ia trazer, sobre o que ainda lhe faltava do artesanato da Europa Oriental. Ao mesmo tempo, estava morrendo de saudades de Nina e queria ficar um pouco com a filha, compensar as semanas que passara longe, se preparar para a nova separação. E tinha Paola, sempre presente, confundindo sua cabeça. Tinha ido buscá-lo no aeroporto, como sempre, dirigindo o carro dele. E dando explicações: — Nina não aguentava esperar mais. Tinha que te ver assim que você chegasse. Então eu vim com ela. E achei que você 18 ia gostar de encontrar o carro aqui. Aliás, aproveitei que você estava fora e pedi ao mecânico para dar uma boa revisão nele. Estava precisando muito. Parece que tinha um problema no platinado. Ou no distribuidor, não lembro bem... — Ótimo, Paola. Como sempre, você pensa em tudo. — Vocês devem estar querendo ficar juntos, matar a saudade. Fiz um jantar para você lá em casa. Imagino que esteja sentindo falta de uma comida caseira. E um bom vinho... Claro, ela sempre sabia. E ainda fez o prato predileto dele. Depois, veio a oferta para desarrumar as malas e separar logo a roupa que precisasse lavar, já ficava na casa dela mesmo, aproveitava para pregar botão numa camisa. Mais tarde, com a diferença de fuso horário e a longa viagem de avião, o cansaço foi tomando conta e ele concordou em dormir por lá. Evidentemente, transaram. E teve café na cama bem tarde no dia seguinte, um domingo, trazido pela filha, toda feliz. Vida boa. Dava vontade de aproveitar e ficar. Marco sempre achara mesmo que isso ia acontecer. Era só uma questão de tempo. Mais dia, menos dia, eles voltavam. Talvez já fosse a hora. Bastou sugerir para desabar uma tempestade. Marco não aprendia. Nunca. Confundia as coisas. Sempre. Paola não queria mais saber dele. Só porque tinha sido delicada e hospitaleira com um amigo voltando de viagem, em consideração à filha, não queria dizer que estivesse disposta a se submeter novamente aos caprichos de um marido dominador, machista, que não lhe deixava espaço para ser ela mesma, que não admitia que ela tivesse sua própria vida, que não entendia que ela não gostava dele, não queria saber dele, não... Ah, Santo Deus! Ele já ouvira essa cantilena tantas vezes, dispensava o replay... Também, quem mandou se distrair e ser burro; não avaliara as circunstâncias direito? Foi se meter na boca do lobo e ainda ficou querendo alisar o pelo do bicho? Como era mesmo aquela expressão divertida que aquele sujeito dissera lá em Pernambuco? Cutucar a onça com vara curta... Marco sabia que Paola ia voltar para ele. Um dia. Mas, pelo jeito, ainda levava tempo para chegar esse dia. Tinha que dar tempo ao tempo. Mais uma vez. 19 O incidente, porém, perturbou. Cortou o clima gostoso da chegada. Interrompeu a sensação feliz de estar meio pairando num encantamento, que o acompanhara durante toda a viagem. Anuviou a cabeça, dificultou para encontrar a atmosfera adequada do que queria escrever para a matéria da revista. Atrapalhou mesmo. Acabou adiando a data do fechamento do número especial sobre artesanato. Conversou com os colegas. Mostrou que podia entregar apenas alguns cadernos agora, mas que havia ainda uma folga no calendário e, no fim das contas, não haveria atraso algum se ele se desse mais alguns dias para escrever sobre a América Latina e adiasse em uma semana o embarque para a etapa europeia que ainda faltava para completar todo o trabalho. Só então conseguiu sentar para escrever direito. E só depois de algumas noites, quando já estava acabando, é que se lembrou de que, se queria viajar daí a dois dias, tinha que ir buscar o visto no consulado pessoalmente. Já estava quase na hora da repartição fechar. Ainda bem que era pertinho. Saiu do escritório como estava, meio correndo pela rua, de sandália mesmo (e sem meias, moda brasileira que acabava de adotar), apesar do ar fresco de fim de setembro que já anunciava o outono. Não podia perder a hora.