Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura “Quem é Sandra?” Narrativa testemunhal face à violência do não-reconhecimento1 Ana Liési Thurler2 Para Sandra Arantes do Nascimento3, neste V Seminário Internacional Mulher e Literatura, que homenageia escritoras negras. A narrativa de Sandra em A filha que o rei não quis testemunha um problema sociológico ainda candente no cenário brasileiro das relações sociais de sexo: o não reconhecimento paterno, com o agravante de ser também uma das faces do racismo em nosso país. Seu relato testemunha também a intersecção de desigualdades e discriminações por sexo, raça e classe, ainda grandes no país. 1. “Quem é Sandra?” Essa interrogação, plena de ambigüidades, foi lançada pelo pai, em entrevista concedida em outubro de 1996, respondendo a uma jornalista, que lhe perguntara se votaria em Sandra, sua filha, já juridicamente reconhecida e, naquela oportunidade, candidata à Câmara de Vereadores de Santos (SP)4. Dois anos mais tarde, a filha registrará em seu livro: “Para a jornalista Valéria França foi “uma ironia”. Para mim, foi nada menos que um insulto — algo que não combinaria jamais com alguém que porta o status de 1 Esta comunicação integrou a Mesa Redonda Literatura em Diálogos Interdisciplinares. Feminismo, Violência e Libertação, coordenada pela Dra. Elga Pérez Laborde (TEL/UnB), com participações das Dras Ana Liési Thurler (GP Vozes Femininas/UnB), Maria Jandyra C. Cunha (FAC/UnB) e Zélia Monteiro Bora (UFPb). 2 Doutora em Sociologia, integrante do GP Vozes Femininas, Universidade de Brasília. End. eletr. [email protected]. 3 Neste artigo adotarei essa forma abreviada, por ela escolhida para assumir a autoria do livro A filha que o rei não quis. Seu nome completo é Sandra Regina Machado Arantes do Nascimento Felinto. 4 Sandra conquistou dois mandatos na Câmara de Vereadores de Santos, pelo Partido Social Cristão. Candidatou-se a Assembléia Legislativa de São Paulo. Em 2002, teve mais de 30 mil votos e em 2006, teve mais de 19 mil votos. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura ministro da República”5. Alguns fractais biográficos6 — do reconhecimento, da sociedade brasileira, dos protagonistas — se revelam aí. A pergunta lançada pelo pai aos jornalistas reafirma o não reconhecimento social e afetivo da filha, desqualificando o protagonismo dela na vida pública, então em plena campanha eleitoral. a. Biografias se multiplicam Biografias têm se diversificado. Foram produzidas biografias ousadas, temperadas com arrogância, talvez — biografias de Deus (MILES e SIQUEIRA, 2009) e do diabo (COUSTE, 1996), “a biografia”, biografias definitivas (SERVICE, 2006), biografias essenciais (DELGADO, 2001). Mas, também mais humildemente, foram produzidas, muitas “uma biografia” (HERRERA, 2006), biografias literárias (LOYOLA, 2006), culturais (GIUCCI e LARRETA, 2007), sentimentais (BORGES e ORDONEZ, 2009), intelectuais (CESAROTTO e LEITE, 2001), políticas (ENGLUND, 2005). Biografias autorizadas e não autorizadas (SADER, 2010). Biografias de cidades (JONES, GUERRA e VOLCATO, 2008), da fome (NOTHOMB, 2006), do medo (GONZALEZ DURO, 2007), do câncer (MUKHERJEE, 2011)7. Perrot analisando a produção de textos de mulheres — autobiografias, cartas, diários e outros — destaca o caso de George Sand (1804-1876): “George Sand em Histoire de ma vie, uma autobiografia extraordinária, muito pouco íntima, mas muito pessoal, escrita entre 1847 e 1854, pretende contar a história de sua família ao longo de três gerações, toda individualidade sendo aí o produto do tempo e das transmissões operadas pela família, verdadeiro “lugar da memória” para Sand.”8 5 ARANTES DO NASCIMENTO, Sandra e BRUNELLI, Walter. A filha que o rei não quis. São Paulo: Tape Laser Produções e Edições Artísticas Ltda, 1998, p. 128. 6 Expressão cunhada por Felipe Pena. (PENA, Felipe. Teoria da biografia sem fim. Rio de Janeiro: Mauad, 2004). 7 O oncologista indiano Siddhartha Mukherjee recebeu este ano o prêmio Pulitzer por sua obra The Emperor of All Maladies. A Biography of Cancer (New York: Simon & Schuster, 2011). 8 PERROT, Michelle. 2007. Minha história das mulheres. Trad. Ângela M. S. Côrrea. São Paulo:Contexto, 2007, p. 28. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Em A filha que o rei não quis, legado deixado por Sandra Arantes do Nascimento (24.08.1964/27.10.2006), a autora se situa distante dos propósitos de Sand: não quer fazer uma autobiografia, menos ainda se estender por gerações. O ponto fulcral de seu relato está em partilhar seu desejo de reconhecimento pelo pai, a busca pessoal e judicial por esse reconhecimento, a conquista parcial desse reconhecimento estritamente no nível legal em 1996, a espera pela concretização do sonho do reconhecimento social e afetivo por esse pai. Reconhecimento que nunca chegou. b. Que biografou Sandra? Por que biografou Sandra? Sandra biografou o não-reconhecimento paterno, recusando a recomendação bíblica feita às mulheres de guardarem silêncio. Ao biografar o não reconhecimento ela faz uma clara opção pela palavra, fundamental na estruturação da subjetividade, na constituição do sujeito político. Na literatura, ficções e biografias produziram, alimentaram, questionaram o imaginário e as representações sobre as mulheres. A maioria dos filósofos propôs um dever-ser para as mulheres (COLLIN et al., 2000). Sob as ciências sociais, pesquisadoras desvelam as relações sociais de gênero (CHABAUD-RYCHTER et al., 2010). Sandra tomou a palavra, constituiu-se como protagonista, quebrando o preceito religioso: “A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito que a mulher ensine nem use de autoridade sobre marido, mas que permaneça em silêncio”.9 E ela apresenta suas razões: “Escrever a minha história (...) tornou-se para mim mais do que um sonho. É um desejo de dizer com minhas palavras o que os jornalistas retrataram à medida que o processo judicial pelo reconhecimento de paternidade ia se desenrolando”10 9 10 Paulo, I Timóteo, 2:11-12. ARANTES DO NASCIMENTO e BRUNELLI, 1998, p. 16. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Sandra revela consciência de que direito ao reconhecimento paterno é um direito humano, desejando encorajar pessoas a lutarem por esse direito de cidadania. “Jamais pensei em fazer desta obra um instrumento de ataque, mas somente um retrato fiel da minha vida, ao mesmo tempo embutindo nele uma mensagem de encorajamento a todos quantos vivem o mesmo drama do desprezo paternal que eu. Trata-se de um direito humano que qualquer pessoa deve reivindicar”11 Ela se mantém em sintonia com Dinah Silveira de Queiroz que, vinte anos antes, em 16.06.1977, na CPI da Mulher no Congresso Nacional12, declarava: “... reivindico para nosso país, leis mais justas, de aplicação mais rápida, mais fáceis e viáveis, na comprovação da paternidade das crianças que nascem sem o direito de ter o nome do pai numa carteira de identidade.”13 Reconhecimento é um direito, insiste Sandra, comparando sua situação a de outras crianças filhas do desprezo: “... Estas lembranças me sensibilizam em relação a tantas crianças carentes de seus pais, de amor, de afeto, de atenção. Crianças filhas do desprezo que, na sua necessidade de dependência plena da figura forte e amparadora dos pais, vivem ao léu, esperando que alguma migalha caia da mesa de quem tem pão...”14 Por volta dos sete anos soube, pela mãe15, ser filha de Edson Arantes do Nascimento. E ela relata: “Para mim, não fez diferença saber que era 11 Idem, ibidem. 12 A CPI da Mulher atuou entre março e setembro de 1977. Foi constituída por 22 membros (11 senadores e 11 deputados) e teve a participação de uma só parlamentar mulher, a Deputada Lygia Lessa Bastos, Relatora da CPI. 13 14 SENADO FEDERAL, 1978, p. 88. ARANTES DO NASCIMENTO e BRUNELLI, 1998, p. 55. 15 Sobre a mãe declara: “pela força que teve em lutar sozinha para me criar, devoto a minha mãe muito carinho e gratidão”. Idem, p. 47. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura filha de Pelé. O que importava mesmo era saber que tinha um pai!”16 Saber ter um pai não a poupou de desconfortos e constrangimentos e, durante a adolescência, respondia evasivamente quando interrogada: “não tenho pai” ou “meus pais são separados”.17 Com esperança de “poder se aproximar dele, dizer-lhe que era sua filha e receber suas calorosas boas-vindas, (..) abraçá-lo,”18 Sandra adolescente “seguia” o pai pela cidade de Santos. E pergunta: “Será que ele sabia da minha procura? Talvez não. Os seguranças dos clubes, restaurantes ou recintos reservados onde meu pai se encontrava, certamente jamais o fizeram saber que alguém dizendo ser sua filha procurava por ele do lado de fora.”19 As portas se mantiveram fechadas, a carta que enviou ficou sem resposta. Tentou telefonemas. A resposta do pai: “Manda ela procurar os direitos dela. Inclusive, eu pago o advogado para ela.”20 Seguindo a recomendação do pai, ingressou na Justiça em 27.05.1991, aos 26 anos. Cinco anos após — em 05.05.1996 — recebeu no Cartório de Guarujá a nova Certidão de Nascimento, com a filiação paterna estabelecida e o sobrenome do pai.21 Antes da aprovação da lei da Paternidade (lei 8.560, de 29.12.1992), a Constituição já estabelecia a igualdade entre filhos/as nascidos/as no casamento ou fora dele, proibindo quaisquer designações discriminatórias. A lei da paternidade veio regulamentar o § 6º, do artigo 227, da Constituição de 1988. São inúmeros os casos de pessoas buscando durante longos anos 16 Idem, p. 53. 18 Idem, ibidem. 17 A documentarista Susanna Lira, diretora do filme Nada sobre meu pai, já no século XXI se apresenta em situações públicas, e mesmo em situações formais, como “sem reconhecimento paterno”, como essa condição compondo sua identidade. Ela deseja provocar as pessoas a falarem sobre essa questão inquietante para todas. 19 20 21 Idem, p. 55. Idem, p. 57. Pelé que recorreu 13 vezes e ainda recorreria em 24.09.1996. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura na Justiça, sem sucesso, o reconhecimento paterno. Em 2010, veio a público a demanda ao vice-presidente da República, de uma educadora mineira por reconhecimento paterno, arrastando-se por mais de dez anos. O juiz José Antônio de Oliveira Cordeiro — da Comarca de Caratinga, onde nasceu e vive a demandante por reconhecimento, Rosemary de Morais, filha de Francisca Nicolina de Moraes —, em sua decisão afirmou: “Se virar moda que uma ação de paternidade demore mais de dez anos, é bem possível que a paternidade seja questão a ser excluída do Poder Judiciário”.22 Mães brasileiras, humilhantemente, buscam durante dez, quinze anos o reconhecimento da paternidade de suas crianças23, quadro que se constitui em uma forma a mais de violência contra as mulheres, recaindo especialmente sobre mulheres não brancas. Em abril deste ano chegou ao STF recurso de pedido de teste para reconhecimento da paternidade (RE 363.889) de processo que se iniciou em 1989, quando o demandante foi representado pela mãe, pois estava com sete anos. Na oportunidade o processo foi extinto, em face de a mãe não ter recursos para arcar com o pagamento do exame em DNA. O ministro Dias Toffoli votou favoravelmente à reabertura do processo e o ministro Luiz Fux pediu vista do caso em que o reconhecimento paterno é buscado há mais de vinte anos.24 2. História de Sandra: o Brasil entre os séculos XX e XXI A história de Sandra de busca por reconhecimento paterno é uma história de muitos/as brasileiros/as. Ela conquistou o reconhecimento paterno jurídico, no século XX, mas ainda no século XXI temos histórias semelhantes de mulheres que buscam sem êxito, durante anos, reconhecimento paterno de seus filhos, de suas maternidades. O coração de seu livro é a busca de superar plenamente o não reconhecimento paterno, na interpretação de Devreux, “um fato social total” (THURLER, 2009:23-30). Saindo do silêncio, 22 JUSBRASIL, 2010. 24 CONJUR, 2011. 23 Marli Márcia da Silva, presidenta da Associação Pernambucana de Mães Solteiras (APEMAS), em entrevistas, relatou-me que, em seus vinte anos de experiência nessa associação, muitíssimos casos de busca por reconhecimento paterno se arrastam, sem êxito, durante longos anos. A maioria das mães que recorrem a essa Associação é não-branca e pobre. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Sandra contribuiu para incorporarmos essa questão à história de nossa sociedade. “A história é o que acontece, a sequência dos fatos, das mudanças, das revoluções, das acumulações que tecem o devir das sociedades. Mas é também o relato que se faz de tudo isso” (PERROT, 2007:16).Aqui, Sandra Arantes do Nascimento tomou a palavra e se constituiu como sujeito do relato.25 Foi um longo percurso até as mulheres abrirem espaço na história como sujeito. Construída pelos homens, o espaço público, de onde as mulheres eram mantidas ausentes, era considerado o objeto legítimo da história. E assim, mesmo como objetos, as mulheres permaneceram nas sombras dos relatos masculinos. a. Igualdades formais, desigualdades reais Com a experiência da desigualdade na frátria, em um país com uma Constituição que anuncia a igualdade de direitos e qualificações entre os/as filhos/as e proibe designações discriminatórias relativas à filiação, a narrativa de Sandra biografa o não reconhecimento paterno, visibilizando desigualdades na vida real brasileira. “Continuo sendo uma filha, como os outros filhos biologicamente o são, com a diferença de que sou aquela que está do lado de fora da janela da casa do pai. Aquela que não tem o direito de sentar-se à mesa com ele, de falar com os outros irmãos”26 Sobre práticas discriminatórias, a Constituição faz silêncio. Práticas igualitaristas serão conquistas da sociedade, em uma cultura em que a desigualdade entre irmãos está já no texto bíblico, como um estigma 25 Confirma essa condição de Sandra como sujeito da narrativa, o depoimento de Walter Brunelli: “Como redator das palavras de Sandra, restringi-me a por no papel os seus depoimentos e a jamais emitir o meu parecer sobre o assunto. Sandra é uma pessoa bastante amadurecida e tem facilidade para expressar o que realmente pensa e sente.” ARANTES DO NASCIMENTO e BRUNELLI, 1998, p. 10. 26 Idem, p. 15. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura essencialista. Caim e Abel representam um, o irmão destrutivo e não digno do amor do pai, outro, o irmão eleito pelo pai. No século XIX, Charles Baudelaire retoma esse tema, tratando esses irmãos inaugurais como constituidores de duas “raças” apartadas como, ainda na atualidade, os irmãos merecedores do acolhimento e o reconhecimento do pai e os outros, nada merecedores: “Raça de Abel, frui, come e dorme, Deus te sorri bondosamente. Raça de Caim, no lodo informe Roja-te e morre amargamente. (...) Raça de Caim, teu suplício Quando afinal há de ter fim? Raça de Abel, tuas sementes E teus rebanhos férteis são; Raça de Caim, teus parcos dentes Rangem de fome e privação! Raça de Abel, teu ventre aquece Junto à lareira patriarcal (....)”27 Sandra sentiu — e soube — não pertencer à raça de Abel. b. Não-reconhecimento paterno: manifestação do racismo brasileiro. Mães negras e suas crianças, com freqüência, são ignoradas por homens brancos e mesmo por homens negros, em uma manifestação do racismo brasileiro. Homens brancos e homens negros acolhem e reconhecem 27 Trata-se do poema CXIX, Abel e Caim, do qual extrai alguns versos. BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad. Ivan Nóbrega Junqueira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985, p. 419 e 421. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura com menor resistência filhos/as tidos/as com mulheres brancas. Mais uma expressão de nosso racismo que, na interpretação do antropólogo Kabengele Munanga, “é um crime perfeito”. Em entrevista a revista Fórum, ele declara: “Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer maneira.”28 Com uma profusão de dados atuais, o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2009-2010 (PAIXÃO et al., 2010) confirma a persistência do racismo em nossa sociedade. Diante de números da área do trabalho e acesso a serviços básicos de saúde à Previdência, nosso caro mito da democracia racial não sobrevive. São reveladoras as desigualdades de raça e gênero expressas, por exemplo, no pagamento de benefícios pela Previdência Social: às mulheres negras o valor médio é de R$ 562,64, às mulheres brancas esse valor é de R$ 832,02 e aos homens brancos essa média sobe para R$ 1.187,17. É nesse quadro de estratificações por raça e classe que se insere o fenômeno do não reconhecimento paterno no Brasil. Sandra é uma mulher negra e pobre. 3. Esperanças O não reconhecimento da paternidade é um fenômeno político, decorrendo também da desigual distribuição de poder entre homens e mulheres nos espaços públicos, na esfera privada e, mesmo, no interior das relações do casal. A narrativa testemunhal de Sandra — ao lado de pesquisas qualitativas, de relatos de histórias de vida — confirma que o 28 MUNANGA Kabengele. Nosso racismo é um crime perfeito. Entrevista a Revista Fórum, agosto de 2011. Disponível em http://tinyurl.com/6fjwkal, acesso em 09.09.2011. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura reconhecimento em todas as suas formas — e, aqui, especificamente o reconhecimento paterno —, contribui para o fortalecimento da autoestima e uma formação positiva da identidade. O Brasil tem ainda índices significativos de não reconhecimento paterno. Iniciativas vêm sendo adotadas para reduzir esses números. Uma mudança substantiva nesse quadro requer a superação das desigualdades entre mães negras e mães não-negras, entre mães não casadas e mães casadas, entre crianças nascidas fora do casamento e crianças nascidas no casamento, entre pais não maridos da mãe e pais maridos da mãe. Requer enfrentar o desafio de levar para a vida real o ainda abstrato “princípio” de igualdade. a. Processos sociais apontam transformações. Observando o comportamento de ícones no esporte brasileiro diante da questão do reconhecimento da paternidade, verificamos a intersecção geracional. Neymar, Ronaldo e Pelé representam três diferentes gerações e representam também escolhas diferentes, indicando que se transformações culturais não são fáceis, são possíveis. “Através desta nota venho confirmar a informação de que me tornarei pai ainda este ano. (...) Concluo pedindo a Deus que abençoe a vida da nossa criança!! Ela será muito bem vinda e já tem todo o nosso carinho e amor”. Assim Neymar da Silva Santos Júnior — Neymar, a estrela do Santos —, em 12.05.2011, anunciava em seu site oficial, que seria pai.29 Ronaldo Luís Nazário de Lima — Ronaldo, o Fenômeno —, em 08.12.2010, reconheceu a paternidade do menino Alexander, 5 anos. Então, postou no Twitter: “Alex é meu filho, irmão de mais três crianças lindas como ele. E me terá sempre como pai para todos os prazeres e deveres.” Segundo matéria de O Sul, “quando encontrou pela primeira vez a criança e viu a semelhança física com Ronald, seu primogênito de 10 anos, se pronunciou 29 Algumas matérias veiculando a notícia que se propagou rapidamente pelas redes sociais: Neymar será pai de um menino. Disponível em: <http://tinyurl.com/3lcsjpa>. Acesso em 13.06.2011. Neymar revela na TV que será pai de um menino e diz ser difícil substituir Ronaldo. Disponível em: <http://tinyurl.com/3pp8mya>. Acesso em 20.06.2011. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura antes mesmo da divulgação do teste de DNA.”30 O acolhimento de Neymar e de Ronaldo a suas crianças se opõe à resistência de Edson Arantes do Nascimento ao reconhecimento social e afetivo da filha, reconhecendo-a legalmente em maio de 1996, somente por determinação judicial após forte resistência mediante recorrências à Justiça. Certamente o comportamento de Pelé manifesta complexidades e contradições da sociedade brasileira que, nos limites deste trabalho, não cabe examinar. A comparação das escolhas de Neymar (nascido em 1982, com 19 anos), Ronaldo (nascido em 1976, com 34 anos) e de Pelé (nascido em 1940, com 70 anos) coloca a paternidade com sua historicidade, em intersecção com a questão geracional. Possibilita-nos vislumbrar, em andamento na sociedade brasileira, um processo — sem linearidades — de desnaturalização do não-reconhecimento paterno (legal, afetivo, social) e de associação de paternidades com mais cidadania e mais democracia. b. Sonho persistente de Sandra Sandra contou com a proteção e os cuidados da mãe, Anísia Machado, e herdou a determinação e a disposição de luta do pai, Edson Arantes do Nascimento. Lutou muito pelo reconhecimento do pai e declarou: “apesar de todas as dificuldades, sou otimista. Acredito que um dia meu pai, Edson, abrirá os braços para mim”31. Conquistou o reconhecimento jurídico em 1996. Nos dez anos que ainda teve de vida, aguardou sempre alguma iniciativa afetiva que nunca veio. Mas seu livro-depoimento conclui com esperança: “Quem sabe chegará o dia em que o telefone vai tocar!”32 Não tocou. 30 31 32 SOBINO, Alex. O gol que Pelé não fez. Em O Sul, Porto Alegre, 27.12.2010. ARANTES DO NASCIMENTO E BRUNELLI, 1998, p.22. Id., p.143. 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