A DEMOCRACIA COMO “TAREFA PENDENTE”: CRIMINALIZAÇÃO DA
POBREZA E CAPITALISMO PERIFÉRICO
Rafael Oliveira dos Santos1
PROEALC/ CCS – UERJ
Introdução
Há uma espécie de consenso entre as tonalidades epistemologicamente mais
dissonantes existentes no interior das ciências humanas e sociais quando se reflete a
respeito das insuficiências de nossas democracias no tocante a positivação de direitos. Ou
seja, está posto, dentro deste amplo espectro teórico e analítico, que as instituições
republicanas e democráticas edificadas pelas sociedades civis latino-americanas revelamse, por assim dizer, incapazes de darem concretude aquilo que está prescrito na abstração
jurídica burguesa no que diz respeito a agenda democrática sob o ponto de vista liberal,
ainda que já tenhamos quase encerrado a primeira década do século XXI.
De modo que, num geral, prospecta-se sempre um diagnóstico negativo a respeito
de nossas democracias. Redutos intelectuais conservadores tendem a atribuir a
vulnerabilidade e debilidade crônica da qual nossas instituições padecem a uma espécie de
lacuna constitutiva da região – que se manifesta, por sua vez, nas esferas da política, do
direito, economia, inclusive, nas artes, moral entre outros. Ou seja, o que se diz na fala da
perspectiva oficialesca e parcamente científica da versão hegemônica quanto à referida
vulnerabilidade e debilidade latino-americana é que há algo, para além do desenvolvimento
histórico concreto na simbiose dialética que estabelece o nexo entre o objetivo e subjetivo
que edifica o real, na inexpressiva absorção de valores democráticos como liberdade e
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igualdade por parte de nossas elites locais bem como também de seu eco e empoderamento
junto às camadas populares e menos privilegiadas que compõe as sociedades nacionais
latino-americanas. Portanto, assim, pode-se dizer, então, do próprio conjunto da sociedade
civil em sua totalidade dicotômica e, conseqüentemente, em sua manifestação racionalizada
e formal enquanto Estado.
A alternativa investigativa sociológica conservadora, periférica ou central, informa
também que o atraso crônico da região ou sua incapacidade estrutural-sistêmica (quiçá,
espiritual) em assimilar os paradigmas civilizacionais eurocêntricos inaugurados pela classe
burguesa revolucionária se deve a uma grosseira apropriação, em certo sentido, segundo
este nicho das ciências sociais, quase que inevitável daquilo que demais relevante a
burguesia revolucionária legou à humanidade. Um grande equívoco, por assim dizer. Como
se, nossa degeneração social, nossa instabilidade política e nossa inviabilidade econômica,
crônicas e constantes na observância da história na América Latina, fosse um produto de
algo como uma idéia fora do lugar2 pura e simplesmente.
É claro que quando nos referimos a um amplo espectro teórico dentro das ciências
humanas e sociais latino-americanas temos em mente paradigmas e epistemes dissonantes
daquilo que sustenta a perspectiva analítica conservadora. Nesse sentido, acreditamos que,
toda e qualquer análise sociológica, que tenha por objeto de reflexão a realidade histórica
latino-americana, tendo por objetivo a apreensão teórica de suas particularidades e
singularidades, tenderá a ser fiel a alguns dos fundamentos que alicerçam aquela corrente
teórico-investigativa que teve por maior expoente Ruy Mauro Marini. Isto é, a teoria da
dependência, formatada e fundada também pelo brilhantismo intelectual de Vânia Bambirra
e Theotonio dos Santos, é herdeira do que, talvez, seja o maior legado deixado pelo
2
Roberto Schwarz, no clássico “As Idéias Fora do Lugar” (1981), pondera em sua investigação que
a inadequação ou incompreensão quanto aos valores liberais e modernos nas nações periféricas,
antigas colônias, é mera aparência. Uma vez que a inserção civilizacional destas na modernidade
burguesa é fundamentalmente instrumental-formal. Isto é, não lhes cabe, mais do que não ser
possível, assumir a modernidade como um arranjo mental com implicações necessárias no plano
do social – no âmbito dos direitos, por exemplo. Ou seja, a modernidade burguesa engendra
contradições que na dinâmica centro-periferia resulta na condição arcaica, feudal, pré-moderna da
periferia deste capital mundializado. De maneira que não há contradição antagônica, por assim
dizer. Uma vez que, numa perspectiva global ou total, é por meio desta assimetria ou hiato que a
modernidade burguesa é sustentada.
pensamento marxista clássico. Ou seja, o comprometimento teórico na realização de uma
estrutura de análise fundada apenas no dogmatismo do método3 cuja meta é estabelecer os
nexos dialéticos entre a totalidade do processo histórico sem que se perca a capacidade de
mediá-los com a dinâmica irrefreável do mesmo. Não permitindo, portanto, que os fatos se
sujeitem ao enquadramento enviesado de uma abordagem pouco científica e em nada
dialético-materialista. Tomando assim a problemática da insuficiência democrática como
uma espécie de “tarefa pendente” positivada aqui pela manifestação local e periférica do
capital que se mundializa.
Ou seja, quando se pondera que há uma lacuna entre a abstração jurídica burguesa e
sua perspectiva do direito e a efetivação da mesma no tocante a concretização do edifício
democrático, ainda sob os cânones liberais, na América Latina, tomamos tal quadro como
uma realização ontológica do capital. Que matiza singularidades diversas mas
coerentemente dialetizadas quando tomado universalmente. De modo que não há “lacuna” e
sim continuidade entre aquilo que prescreve a democracia burguesa e aquilo que, inclusive,
não se realiza materialmente na sociedade civil que administra esta substância democrática
– fundamentalmente aquilo no tocante aos direitos. Isto é, o subdesenvolvimento é a forma
histórica que o capital assumi na América Latina. De modo que a inconsistência
democrática de nossos arranjos políticos institucionais são uma espécie de subproduto deste
quadro mais ampliado bem como o próprio empoderamento da democracia como um
construto social em nossas sociedade civis – inclusive em seus segmentos mais organizados
e progressistas.
De um cenário como este nada poderia ser mais adverso, na mesma medida em que
é necessário, do que a mobilização popular em busca do reconhecimento e garantia de
direitos. Sustentamos aqui, em consonância referendados no legado teórico de Ruy Mauro
Marini, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Atílio Boron, entre outros, que todas as
tendências mais despóticas constitutivas da sociedade burguesa se revelam na América
Latina quando o capital se vê pressionado pelo imperativo retórico do direito liberal.
3
“Em questões de marxismo, a ortodoxia se refere exclusivamente ao método”, Georg Lukács,
História e consciência de classe, Rio de Janeiro, Elfos, 1989, p.8.
A agenda democrática sob os cânones liberais e os imperativos do capital na América
Latina contemporânea
(...) As nações emergentes, tal como o Brasil, da catástrofe humana dos
quatro séculos da condição de colônias escravistas do capital mercantil
entre os séculos XVI e XIX, crescente e subseqüentemente subordinadas
às formas do capital manufatureiro, industrial e financeiro, não
escaparam à condição de permanecerem espectros do capitalismo da
miséria (...) (LIMA FILHO, 2007, 160).
Tomamos o contemporâneo como uma espécie de presentificação do passado. Isto
é, quando tomamos uma dada realidade histórica no sentido de apreendê-la cientificamente
entendemos que tal empresa se realizará na medida em que a análise proposta tomar o
processo histórico pregresso desta dada realidade. De modo que, nesse sentido, estaremos,
portanto, metando absorver justamente aquela unidade total e contraditória entre o material
e o simbólico, entre o objetivo e o subjetivo, que dialeticamente conformam e edificam uma
realidade histórica. As expressões destas, por sua vez, no campo da política, democracia,
cultura, arte, economia são compreensíveis quando tomadas tais referências metodológicas.
Isto é o que preconizamos. Isto é que assumimos em consonância com aquilo que há
de mais consistente e arrojado no campo das ciências sociais e humanas. Com isso
entendemos que a realização da agenda democrática, ainda que liberal, na América Latina é
incongruente com aquilo que estipula para si o capital enquanto sistema global total. Ou
seja, sob o ponto de vista histórico é insustentável a equação entre democracia e capital na
América Latina ainda que esta venha apresentar-se, em aparência, em outras regiões do
planeta. E não se trata aqui de formular a tese, amputada, em que o mau funcionamento de
nossas economias é que inviabiliza o amadurecimento de nossas democracias – de maneira
que se alcançarmos os níveis de desenvolvimento das economias capitalistas avançadas,
aquelas autônomas presentes no centro deste sistema, estaríamos próximos de alcançar os
mesmos índices de desenvolvimento social, bem como a tão almejada estabilidades
institucional etc.
Não. Não se trata disso. Debilidade democrática e economia em desenvolvimento
nada mais é que o uma falsa polaridade. Ao contrário, por exemplo, se pensarmos na
dialética da luta de classes estabelecida pelos nexos desenvolvidos por Ruy Mauro Marini
tal quadro é absolutamente normal – dentro da estrutura sistêmica do capital em escala
global e seus desenvolvimento desigual e combinado. Pois
(...) os interesses da chamada „burguesia nacional não tinham
contradições suficientes com os do imperialismo e nem sequer do
latifúndio, para que pudessem estabelecer uma aliança com os
trabalhadores da cidade e do campo, centrada num modelo de
desenvolvimento econômico em ruptura com o grande capital
internacional e com a propriedade monopolizada da terra (...) (SADER,
2009, p.31)
Se em outras realidades históricas, na Europa do século XVIII por exemplo, a classe
revolucionária a levar à cabo as bandeiras mais candentes dos “tempos democráticos”
(TOCQUEVILLE, 2008) foi a burguesia, em oposição ao arranjo político, social e
econômico controlado por sua classe antagônica, o mesmo itinerário histórico não se
verificou na América Latina – tomada como refém pelo capital. Tal particularidade
histórica já havia sido decodificada pelo apuro intelectual de Florestan Fernandes em A
Revolução Burguesa no Brasil (1976). Neste trabalho aponta a contingência do caráter
absolutamente conservador de nossas sociedades burguesas, pois estas foram paridas
fundamentalmente sem anular aquilo que havia de mais atrasado e arcaico nas relações
sociais locais. Uma vez que o ethos burguês aqui se edifica numa espécie de “modernização
conservadora” na qual enraízam-se as práticas econômicas orientadas pelo princípio
burguês da acumulação contudo sem a contra-partida societária que se verifica nas
sociedades burguesas onde operam as categorias de liberdade e igualdade liberais, situadas
no centro do sistema mundo inaugurado pelo tempo do capital. O que se deu dada a forma
pela qual toda a América Latina, inclusive o Brasil, claro, foram lançadas no sistema
mundo – burguês: subordinados às dinâmicas e imperativos do capital.
Assim, os imperativos do capital que de alguma submergem ou diluíssem nas
experiências democráticas das sociedades burguesas centrais se revelam aqui sem maiores
pudores. As contradições entre democracia, ainda que liberal, e capital são incontornáveis
na América Latina uma vez que o capital aqui se aflora em integralidade. O que é
absolutamente necessário para que este se apresente não na periferia mas sim no centro
avançado como viável do ponto de vista civilizacional. Não há descontinuidade nestes dois
processos.
A
contradição
existente
entre
essas
duas
dicotômicas
expressões
(subdesenvolvimento e desenvolvimento) diz respeito a um mesmo movimento total –
absolutamente verificável política e economicamente.
(...) desenvolvimento e subdesenvolvimento são fenômenos
qualitativamente diferenciados e ligados tanto pelo antagonismo como
pela complementaridade, ou seja, que, embora sejam situações
antagônicas, os dois fenômenos pertencem à mesma lógica/ dinâmica de
acumulação de capital em escala mundial (...). (CARCANHOLO, 2009,
p.252).
De modo que a margem de ação de exercício da democracia nos capitalismos
desenvolvidos são maiores, digamos assim, porque o capital efetivamente se realiza sob o
ponto de vista global avançando implacavelmente sob os recursos físicos, naturais, sociais e
públicos dos capitalismos subdesenvolvidos, aqueles verificáveis nas periferias do capital
mundializado. Na América Latina, portanto, cenário historicamente privilegiado da
efetivação das políticas de desafogo do capital, a sociedade burguesa se apresenta com seus
contornos mais conservadores. Seja pela nossa experiência arcaica pregressa seja pelo
despotismo estrutural do capital.
Conclusão
O regime das igualdades na periferia do capital: a criminalização da pobreza
A história demonstra que sem luta não há conquista. Sem batalha social não há
vitória social. Que sem organização e mobilização política não se avança rumo à
democracia. Isto foi o recado da classe revolucionária burguesa na França de 1789 –
seguido por outras vanguardas históricas nos séculos que se passaram. Porém, a guinada
conservadora desta sugere que outras revoluções não se fazem mais necessárias uma vez
que da sua administração histórica, por assim dizer, os seres humanos jamais vivenciaram
tanta liberdade, tanta igualdade e tanto conforto material. Horizonte este ideológico que, em
nossa compreensão, antes de ser instrumental é inevitável. Dada mesma forma que, por
exemplo, as monarquias absolutistas no Antigo Regime enxergavam sua irrefreável
destruição como grupo organizado e autocentrado como um sinal dos tempos bíblicos.
Nesse tocante tanto Domenico Losurdo em a Contra-História do Liberalismo
(2006) quanto como T. H. Marshall em Cidadania e Classe Social (1950), ainda que
sustentados por epistemes distintas, alcançam o caráter histórico daquilo que tomamos
como democrático – ou seja, o quanto as lutas sociais democratizam as democracias
vivenciadas ao longo destes dois séculos de insurreições populares. Contudo, a necessidade
do capital em realizar-se globalmente na região faz com que este avance sob os recursos e
sujeitos locais. De modo que todo e qualquer indício de organização popular na América
Latina no sentido de se construir e/ ou garantir direitos, ainda que sem necessariamente se
toque na questão da propriedade burguesa, ou seja, sob a hegemonia da perspectiva liberal
do que é direito, é à priori aqui tratada como um atento ao status quo, por assim dizer. O
caráter autocrático e patriarcal inviabiliza a verbalização de categorias como direito,
público, universal. Daí explica-se o porque de movimentos sociais serem desqualificados.
Entende-se do porque a demonização deles e a criminalização daqueles que sequer ainda se
organizaram ou projetaram e positivaram uma negação a ordem dada. A espoliação antes de
ser uma categoria econômica é política. Retira-se ulteriormente a possibilidade de opor-se.
Na América Latina ou se resigna ou se indigna, com menciona Darcy Ribeiro. Na América
Latina do século XXI o Estado é, mais do que nunca, o comitê Executivo da Burguesia
como enunciaram Marx e Engels. Pois aqui o ranço despótico medieval, não superado e/ ou
rejeitado pela sociedade burguesa, revela-se em totalidade. Porque aqui na América Latina
toma-se como refém aquilo que é vivenciado no centro desse capital mundializado: a
possibilidade de exercer direitos. De maneira que quem não reage rasteja. E na América
Latina as forças conservadoras, locais e globais, articuladas sob a lógica do capital, resistem
“(...) às reformas com a tenacidade com que se combate as verdadeiras revoluções sociais
(...)” (BORON, 1994, p.176).
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental; Nas trilhas do
materialismo histórico. São Paulo, Boitempo, 2004.
BORON, Atilio A. . A Coruja de Minerva – Mercado contra democracia no
capitalismo contemporâneo. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
BORON, Atilio A. . Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. São Paulo:
Paz e Terra, 1994.
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci, um estudo sobre seu pensamento político: Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2007.
SADER, Emir; SANTOS, Theotonio dos (coordenadores); Martins, Carlos Eduardo;
Valencia, Adrían Sotelo (organizadores). A América Latina e os desafios da
globalização, ensaios dedicados a Ruy Mauro Marini: Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio; São
Paulo, Boitempo, 2009.
STÉDILE, João Pedro; TRASPADINI, Roberta (organização). Ruy Mauro Marini, Vida
e obra: São Paulo, Expressão Popular, 2005.
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