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APAIXONADOS POR SHAKESPEARE:
FATO E FICÇÃO NAS MÚLTIPLAS FACES DO BARDO.
Liana de Camargo Leão1
The life of Shakespeare is a fine mystery, and I
tremble every day lest something should turn up.
Charles Dickens
The answer to the question “Why Shakespeare?”
must be “Who else is there?”
Harold Bloom
Em carta aos irmãos, em maio de 1819, o poeta John Keats confessa que gostaria de saber a posição
exata em que William Shakespeare se sentava para escrever; em Ulysses, James Joyce inclui um episódio no
qual Stephen Dedalus entretém uma plateia com o lado mais escandaloso da vida sexual do dramaturgo; no
romance Nada como o sol, Anthony Burgess também se volta para a vida e as aventuras amorosas do poeta,
relacionando-as, imaginativamente, à criação poética2. Em seu conto “La memoria de Shakespeare” (1983),
Jorge Luis Borges mostra como Sorgel, um pesquisador que escrevia a biografia do dramaturgo, ao aceitar a
memória de Shakespeare, perde sua própria memória e identidade. Comum a todas essas obras, a vontade de
conhecer a vida privada e a personalidade deste que é considerado pelo crítico Harold Bloom o centro do
cânone ocidental, o inventor da língua inglesa e da própria natureza humana. Neste ensaio, analisamos como
a duradoura e constante curiosidade da cultura ocidental por Shakespeare tem-se manifestado desde o início
do século XVIII, com o aparecimento da primeira biografia do poeta, escrita por Nicholas Rowe, até os
nossos dias, quando Shakespeare apaixonado recebe o Oscar de melhor filme de 1998 e mais outros sete
prêmios da academia.
Em busca de fatos
William Shakespeare morreu em 23 de abril de 1616. A primeira biografia do bardo de Stratford, no
entanto, aparece quase cem anos mais tarde, com a publicação de “Some Account of the Life, &c. of Mr.
William Shakespear”, de autoria de Nicholas Rowe, biografia essa que acompanha a edição crítica e ilustrada
das peças, The Works of Mr. William Shakespear; Revis'd and Corrected3. Antes do trabalho de Rowe, o nome de
1 Agradeço a leitura, as sugestões e os valiosos comentários das professoras Dra. Marlene Soares dos Santos (UFRJ) e Dra. Mail Marques
de Azevedo (UNIANDRADE). Todas as traduções são de minha responsabilidade.
2 O título do romance de Burgess remete à primeira linha do Soneto 130: "My mistress' eyes are nothing like the sun"; por toda a
narrativa, Burgess faz referências a outros sonetos, e, pelas vias indiretas do romance, tenta compreender a obra, o tempo e a biografia do
autor. Utilizando-se da técnica narrativa do fluxo da consciência, o romancista expõe os desejos, os pensamentos, os sonhos e a intensa
curiosidade de WS (é assim que Burgess se refere ao personagem) sobre a vida, as pessoas e a arte. Burgess especula livremente sobre o
período que vai da adolescência de WS em Stratford, seus primeiros anos em Londres, quando o teatro Globe é construído, e – saltando
o período áureo do dramaturgo – chega a 1616, ano da morte do poeta. Esta trajetória é recheada das muitas aventuras eróticas e
homoeróticas, e de um inesperado adultério: em um retorno à Stratford, o poeta descobre a esposa e seu irmão Richard em sua segunda
melhor cama, a qual ele, devotadamente, legará à Anne em testamento.
The Works of Mr. William Shakespear; Revis'd and Corrected é a primeira edição crítica e ilustrada das peças; em linhas gerais, Rowe seguiu o
quarto fólio de 1685, utilizando-se também de edições anteriores para restaurar passagens de Hamlet, Romeu e Julieta, Henrique V e Rei Lear.
Em 1714, outra edição foi lançada, desta vez com os poemas, e ainda com modificações importantes para as peças: modernizava a grafia,
a gramática e a pontuação, separando as peças em atos e cenas, fornecia indicações de entradas e saídas para os atores, e, ainda, incluía a
lista de dramatis personae.
3
2
Shakespeare é mencionado apenas em breves notas biográficas, surgidas 50 anos após sua morte4. Um largo
período de tempo, portanto, separa a existência de Shakespeare dos primeiros relatos biográficos.
Em 1709, quando Rowe publica seu trabalho, os familiares, amigos e contemporâneos de William
Shakespeare que poderiam fornecer informações sobre o poeta e seu teatro já estavam todos mortos. A maior
parte dos documentos existentes sobre o teatro elisabetano também já havia desaparecido devido a dois
fatores principais: a Guerra Civil, e a consequente proibição das atividades teatrais pelo governo puritano de
Oliver Cromwell, que via o teatro como um antro de corrupção, desordem e prostituição5; e o Grande
Incêndio de Londres, que, em 1666, destruiu cerca de dois terços dos edifícios da cidade, causando tanto o
desaparecimento tanto de manuscritos das peças guardados nos teatros quanto dos próprios edifícios
teatrais6. Diante dessas enormes dificuldades de se obter informações sobre a vida, a obra e o teatro de
Shakespeare, o relato de Rowe, apesar de seus defeitos e limitações, tornou-se referência importante, por
preservar dados que, de outro modo, estariam perdidos para sempre.
Mas, se cabe a Rowe a honra de ser o primeiro biógrafo do poeta, cabe-lhe também a glória
duvidosa de ter registrado as primeiras lendas a seu respeito. Sem consultar documentos nem registros
oficiais, Rowe baseou-se exclusivamente no relato de Thomas Betterton, membro da companhia teatral de
William Davenant, afilhado de Shakespeare7.
Betterton fora um dos maiores atores da segunda metade do século XVII e início do século XVIII,
celebrizado por suas interpretações de Hamlet. Em 1708, ao se aposentar, visita Stratford e, após consultar
brevemente os registros da igreja e da prefeitura, e de ouvir muitas histórias locais, repassou, em seu retorno a
Londres, tudo a Rowe.
Entre as histórias saborosas colhidas por Betterton e que Rowe reproduz sem checar-lhes a
veracidade, encontra-se uma sobre Falstaff: o cavaleiro gordo teria agradado tanto à rainha Elisabete que ela
ordenara ao dramaturgo que escrevesse uma nova peça em que ele aparecesse apaixonado; esta seria a origem
de As alegres comadres de Windsor, escrita, por isso mesmo, às pressas, em menos de quinze dias. Outra lenda
presente no relato de Rowe e hoje desacreditada diz que a crise financeira dos pais do poeta obrigara-o a
parar de estudar, o que segundo relata Rowe, explicaria o conhecimento deficiente de Shakespeare sobre o
grego e também o latim – de fato, hoje não se sabe o quanto o dramaturgo conhecia de grego8, mas sabe-se
que conhecia muito bem o latim, senão para os padrões de uma educação universitária em seu tempo, ao
menos o suficiente para se utilizar de vários textos latinos como fontes para suas peças9. Duas outras histórias
improváveis encontradas em Rowe contam que, quando jovem, Shakespeare teria se envolvido no roubo de
cervos10:
4 Antes de Rowe, Fuller, William Winstanley, Gerad Langbaine, Jeremy Collier, Edward Philips e Charles Giddon haviam mencionado o
poeta em pequenas notas biográficas.
5
Entre outras medidas tomadas pelos puritanos contra as atividades teatrais destaca-se a demolição do importante teatro Globe em 1644.
Somente no final do século XIX, com as pesquisas de William Powell, fundador da Elizabethan Stage Society, fica-se conhecendo os
aspectos físicos do teatro e do palco elisabetanos, que vêm lançar nova luz sobre a dramaturgia e a encenação das peças.
6
7 Segundo o folclore, Davenant não era apenas afilhado, mas filho natural do poeta com uma bela dama morena, Jennet, ou Jane, de
acordo com alguns, possivelmente, a famosa “Dark Lady” dos sonetos. É o próprio William Davenant e seu irmão Robert que fazem
circular insinuações acerca dessa paternidade.
8 A origem da informação de que Shakespeare conhecia pouco latim e grego está no famoso e dúbio elogio que lhe faz o dramaturgo
contemporâneo Ben Jonson, que escreve que Shakespeare conhecia “pouco latim e menos grego” (“small Latin, and less Greek”).
9 Não existem documentos que comprovem que Shakespeare frequentou a Grammar School – que corresponderia hoje ao ensino
fundamental e médio –, mas acredita-se que o tenha feito uma vez que a escola era grátis e seu pai era um próspero cidadão de Stratford,
chegando a ocupar o cargo público mais elevado da cidade. Na Grammar School, chamada King´s New School, William teria estudado
latim, a língua de Cícero, Virgílio, Terêncio, Sêneca, Plauto e Ovídio (o favorito do dramaturgo), cujos textos constituíam o cerne do
currículo; esses autores viriam a ser tornar importantes fontes para as peças de Shakespeare. Sobre as fontes de Shakespeare ver o
clássico e definitivo estudo de Geoffrey Bullough sobre o assunto, Narrative and Dramatic Sources of Shakespeare´s plays.
10 A lenda do ladrão de cervos é primeiro mencionada pelo pastor Richard Davies que, em 1616, escreveu: "Shakespeare was much given
to all unluckiness in stealing venison and rabbits, particularly from Sir Lucy who oft had him whipped and sometimes imprisoned and at
last mad him fly his native country to his great advancement”. ["Shakespeare não tinha sorte quando roubava cervos e coelhos,
especialmente quando os roubava de Sir Lucy que, com freqüência, o chicoteava, às vezes o prendia e, finalmente, o forçou a partir para
Londres, o que veio a ser muito bom para o dramaturgo."]. Conta-se, também que, posteriormente, o dramaturgo teria debochado de Sir
Thomas Lucy transformando-o no Justice Shallow de As alegres comadres de Windsor.
3
He had, by a Misfortune common enough to young Fellows, fallen into ill Company; and amongst them, some that made a
frequent practice of Deer-stealing, engag'd him with them more than once in robbing a Park that belong'd to Sir Thomas
Lucy of Cherlecot, near Stratford. For this he was prosecuted by that Gentleman, as he thought somewhat too severely; and
in order to revenge that ill Usage, he made a Ballad upon him. And tho' this, probably the first Essay of his Poetry, be lost,
yet it is said to have been so very bitter, that it redoubled the Prosecution against him to that degree, that he was oblig'd to
leave his Business and Family in Warwickshire, for some time, and shelter himself in London. (ROWE, edição eletrônica)11
Teria sido, segundo Rowe, este episódio que levou o poeta a partir para Londres, onde conseguiu,
como primeiro trabalho, o de cuidar de cavalos à porta do teatro – novamente, uma informação muito pouco
provável e sem qualquer respaldo documental.
Enfim, embora contenha grande quantidade de material folclórico sobre o dramaturgo, a biografia
de Rowe representa, por assim dizer, o marco zero nas biografias de Shakespeare que, desde então, têm
proliferado. Para os biógrafos imediatamente posteriores, Rowe se mostrou importante e nele se basearam
todos os outros relatos do século XVIII, entre os quais os de editores e estudiosos de renome como Lewis
Theobald, Alexander Pope, William Warburton, Samuel Johnson, George Steevens e Edmond Malone12. É
curioso observar, por exemplo, que o grande Dr. Johnson também se perdeu no difícil emaranhado de fato e
ficção, repetindo sem checar a história do roubo de cervos e do emprego de segurar cavalos à entrada do
teatro. Também Malone, sem ser qualquer respaldo documental, supunha que as referências à justiça
encontradas nas peças faziam crer que ele havia trabalhado como advogado.
Se há muitas lacunas na informação existente sobre Shakespeare, é igualmente verdade que estas são
muito mais pronunciadas em relação a outros autores e peças renascentistas, mesmo os mais famosos. Como
explica Bill Bryson na biografia Shakespeare: o mundo é um palco (2008), de muitas peças, não se conhece com
certeza nem mesmo a autoria; de muitos dramaturgos sabe-se, infelizmente, muito pouco:
Thomas Dekker foi um de seus [do período elisabetano] principais dramaturgos, mas pouco sabemos de sua vida além de que
nasceu em Londres, foi um prolífico escritor e estava sempre cheio de dívidas. Ben Jonson foi ainda mais famoso, mas muitos
detalhes mais importantes de sua vida o ano em que nasceu e o local de nascimento, a identidade de seus pais, quantos
filhos teve continuam desconhecidos ou incertos. De Inigo Jones, o grande arquiteto e cenógrafo, não se dispõe de um
único fato concreto de qualquer tipo para os primeiros trinta anos de sua vida além de que ele com toda a certeza existia em
algum lugar.
[...]
Uma das peças mais famosas da época foi Arden de Faversham, que ninguém sabe quem escreveu. Quando a identidade do
autor é conhecida, essa informação é muitas vezes maravilhosamente fortuita. Thomas Kyd escreveu a peça de maior sucesso
de sua época, A tragédia espanhola, mas só sabemos disso por causa de uma referência de passagem a sua autoria num
documento escrito uns vinte anos depois de sua morte (e depois perdido durante quase duzentos anos) (BRYSON, 2008, p.
24-25).
Hoje, sabemos mais sobre Shakespeare, seu teatro e sua obra que sobre qualquer outro dramaturgo
de seu tempo, a tal ponto que o dramaturgo se tornou “uma obsessão acadêmica” (BRYSON, 2008, p. 27):
Depois de quatrocentos anos de intensas buscas, os pesquisadores descobriram cerca de cem documentos relativos a William
Shakespeare e sua família imediata registros de batismo, escrituras, comprovantes de impostos, certidões de casamento,
11 [“Devido à má sorte comum entre os jovens, ele caiu em más companhias; e entre estas, algumas que costumavam roubar cervos, e o
levaram, mais de uma vez, a roubar em terras que pertenciam a Sir Thomas Lucy de Cherlecot, região perto de Stratford. Por isso ele foi
acusado por um Cavalheiro, e, Segundo ele, com demasiada severidade; a para se vingar da acusação severa, ele compôs uma balada
sobre o dito cavalheiro. E essa é, provavelmente, sua incursão poética, ainda perdida, mas considerada como tão amarga que teve como
consequencia a duplicação da acusação contra ele, em tão grau que ele foi obrigado a deixar seus negócios e família em Warwickshire,
durante certo tempo, e se abrigar em Londres.”]
12 O crítico e editor irlandês Edmond Malone foi o maior especialista em Shakespeare do século XVIII, pioneiro em seus esforços para
estabelecer a cronologia das peças; publicou, em 1778, An Attempt to Ascertain the Order in Which the Plays of Shakespeare Were Written, ao
qual se seguiram outros volumes suplementares. Malone também publicou um trabalho importante sobre o drama inglês, Historical
Account of the Rise and Progress of the English Stage, and of the Economy and Usages of the Ancient Theatres in England (1800) e preparou uma edição
da obra de Shakespeare em 11 volumes, publicada em 1790.
4
ordens de prisão, registros judiciais (muitos registros judiciais
p. 15).
era uma época litigiosa) e assim por diante (BRYSON, 2008,
A obsessão por Shakespeare, explica Bryson, se deve ao fato dos registros documentais serem de
natureza impessoal: a maioria dos documentos é de ordem oficial – registros de batismo, de casamento e de
óbito, testamentos, processos legais, contabilidade das companhias teatrais, pagamento por apresentação na
corte, entre outros – e, portanto, abarcam sua vida jurídica e financeira. Permanecem inexplorados os mundos
mental e afetivo do autor:
Conseqüentemente, resta um enorme território que não conhecemos a respeito de William Shakespeare, em grande parte de
natureza fundamental. Não sabemos, por exemplo, exatamente quantas peças escreveu ou em que ordem as escreveu.
Podemos deduzir alguma coisa do que leu, mas não sabemos onde obtinha os livros ou o que fazia com eles quando
terminava de lê-los.
[...]
Nem um único bilhete, carta ou página de manuscrito sobrevive. [...] Não temos nenhuma descrição dele registrada enquanto
era vivo.
[...]
Não sabemos se ele alguma vez saiu da Inglaterra. Não sabemos quem eram os seus principais companheiros ou como se
divertia. Sua sexualidade é um mistério insondável. São poucos os dias de sua vida em que temos certeza absoluta do local
onde se encontrava. Não temos absolutamente nenhum registro de seu paradeiro durante os críticos oito anos em que deixou
a esposa e os três filhos pequenos em Stratford e se transformou, com uma rapidez quase impossível, em autor teatral de
sucesso em Londres. Na época em que ele é mencionado por escrito pela primeira vez como autor teatral, em 1592, já tinha
vivido mais da metade de sua vida (BRYSON, 2008, p.15-17).
O componente ficcional permanece, assim, presente e vivo mesmo nas biografias e estudos mais
sérios, como se a própria ficção se negasse a abandonar o seu maior criador. O que Rowe inaugura com a
primeira biografia, portanto, não é somente a tentativa de resgatar a vida de Shakespeare, mas um verdadeiro
movimento de ficcionalização da figura sempre enigmática do poeta.
É perfeitamente compreensível que a tarefa de recuperar a vida de alguém que viveu há mais de
quatro séculos dificilmente escape de uma grande dose de imaginação: hipóteses mais ou menos embasadas,
lendas, anedotas estarão sempre presentes. Em relação a Shakespeare, isso é especialmente pronunciado
porque há um período, entre o nascimento dos gêmeos, em 1585, e o ano de 1592, chamado de “os anos
perdidos” (“the lost years”), sobre o qual não se sabe absolutamente nada.
A falta de informações sobre sua vida pessoal e mental, aliada a uma obra de extraordinário vigor,
com personagens que escapam dos palcos e das páginas, ganhando, por assim dizer, vida própria na
imaginação de espectadores e leitores, alimentam o que se convencionou chamar de mito shakespeariano: se
não se consegue retratar a contento o homem, os últimos quatro séculos têm tentado, incansavelmente,
construir, em torno dele, um mito.
Prova de que tradição oral e folclore se tornaram em si mesmos aspectos relevantes é o fato de que
uma das mais respeitadas biografias de Shakespeare do século XX, trabalho de referência para os
pesquisadores, inclua um capítulo que trata especificamente do mito: em William Shakespeare: a Study of Facts
and Problems (1930), o eminente professor E. K. Chambers elenca anedotas e historietas folclóricas sobre o
dramaturgo em uma seção apropriadamente intitulada “The Shakespeare-Mythos”.
Nem todos os biógrafos e críticos separam, como faz Chambers, fato e ficção, o que há
efetivamente sobre o dramaturgo e as conjecturas que podem ser feitas a seu respeito. Mesmo a estudiosa
inglesa Caroline Spurgeon, que realizou um exaustivo e pioneiro trabalho sobre as imagens usadas pelo poeta
em A imagística de Shakespeare e o que ela nos revela13, não escapa, especialmente na primeira parte de seu trabalho,
13 Publicado em inglês em 1935 e traduzido em 2006 no Brasil, o trabalho de Spurgeon, feito em uma época em que o computador e seus
programas de localização e de contagem de palavras não existiam, é monumental, tendo consumido anos de minuciosa pesquisa.
Spurgeon localiza e elenca as imagens
entenda-se as símiles e metáforas
organizando-as em categorias: imagens de animais, de
movimento, do corpo humano, de esportes, de astronomia, entre outras categorias. São essas imagens que o poeta utiliza para construir
seus temas e personagens. A análise de Spurgeon também é comparativa, ajudando enormemente os especialistas em drama renascentista
inglês a diferenciar as imagens de Shakespeare daquelas utilizadas por autores contemporâneos, como Christopher Marlowe, Francis
Bacon, Thomas Dekker e Ben Jonson.
5
do reino das especulações – apropriadamente intitulada “A revelação do homem”. Neste capítulo Spurgeon
adentra o perigoso território da conjectura e interpreta as imagens do poeta como indícios de sua vida
privada: por meio das imagens, segundo Spurgeon, pode-se saber mais sobre a relação de Shakespeare com
seus pais, com sua cidade natal, sobre seus gostos e interesses pessoais, enfim, sobre o seu temperamento e
personalidade.
Houve uma verdadeira explosão de biografias de Shakespeare nas últimas décadas; entre as mais
notáveis encontram-se: Shakespeare: the Poet in his World (1978), de M. C. Bradbrook; Shakespeare: a Writer’s
Progress (1986), de Philip Edwards; William Shakespeare: a Documentary Life (1975), de Samuel Schoenbaum;
Shakespeare: uma vida (1998), de Park Honan; Shakespeare: a Dramatic Life (1994), de Stanley Wells; Will in the
World: how Shakespeare became Shakespeare (2004), de Stephen Greenblatt; Shakespeare: the Biography
(2005), de Peter Ackroyd; A Year in the Life of William Shakespeare: 1599 (2005), de James Shapiro; The Lodger
Shakespeare; His Life on Silver Street (2008), de Charles Nicholl; e Shakespeare: o mundo é um palco (2008), de
Bill Bryson. Algumas, como a de Bradbrook e a de Philip Edwards, são mais tradicionais e procuram traçar
um pequeno painel da vida do dramaturgo para melhor discutir seu desenvolvimento como dramaturgo.
Outras, como a de James Shapiro e a de Charles Nicholl não são propriamente biografias; concentram-se em
determinado ano ou aspecto da época, reinterpretando o que já se sabe sobre o poeta à luz de outras
informações periféricas sobre a vida de seus vizinhos, amigos ou contemporâneos; Shapiro, por exemplo, se
detém no ano de 1599, importante porque é neste período que Shakespeare dá um salto decisivo em termos
de linguagem poética e escreve Henrique V, Júlio César e Como quiserem, e, logo depois, Hamlet. Outras ainda
vasculham arquivos e documentos que, apesar de não tratarem de modo direto da vida de Shakespeare,
iluminam aspectos de sua época.
Tomemos como exemplo o trabalho de Stephen Greenblatt, que apesar de renomado historiador da
renascença inglesa, também não escapa do território da conjectura. Ele recorre, confessamente, à
ficcionalização, ao estabelecer relações entre a vida, a obra e a época de Shakespeare: de maneira inventiva,
move-se com graça e destreza, e também com muita imaginação, nas fronteiras escorregadias da história, da
crítica literária e da ficção. Partindo de fatos, mas sem abrir mão de especulações, Greenblatt se pergunta, por
exemplo, se o desejo de ascensão social do poeta teria origem no revés financeiro sofrido por seu pai; indaga
se os sonetos indicariam um possível triângulo amoroso; também se detém sobre o impacto da morte do filho
Hamnet, aos onze anos, em relação à composição de Hamlet; e comenta o casamento, segundo ele, “infeliz”
do poeta como possivelmente o que teria determinado a sua visão amarga do amor. Até mesmo o epitáfio de
Shakespeare serve de matéria especulativa para o historiador: ao escrever “Cursed be he that moves my
bones” (“Maldito seja aquele que mexer em meus ossos”), o poeta indicaria que não desejava que sua esposa,
Anne Hathaway, fosse enterrada com ele. O historiador também relaciona as pessoas que Shakespeare teria
conhecido com as personagens que inventou, buscando, desse modo, modelos na vida real para as criações
literárias: Falstaff, segundo Greenblatt, teria sido inspirado em Robert Greene, o escritor contemporâneo que
acusou o dramaturgo de plágio14.
14 O famoso comentário de Robert Greene, publicado no panfleto Groatsworth of Wit, Bought with a Million of Repentance (Um tostão de
sabedoria comprado com um milhão de arrependimentos) (1592), que hoje se encontra na Folger Library, em Washington, serve como prova de
que Shakespeare já estava em Londres em 1592, era ator, escrevia peças e possivelmente já gozava de sucesso financeiro, a ponto de
Greene, que então passava por enormes dificuldades econômicas, atacá-lo. Escreve Greene: “ there is an upstart Crow, beautified with
our feathers, that with his Tygers hart wrapt in a Players hyde supposes he is as well able to bombast out a blanke verse as the best of you:
and being an absolute Johannes fac totum, is in his owne conceit the onely Shake-scene in a countrie” [“há uma gralha emergente,
embelezada com nossa plumagem, que, com seu coração de tigre envolto em pele de ator, pressupõe-se que seja bem capaz de escrever um verso
branco de forma bombástica, como o melhor de vocês: e sendo um absoluto Johannes factotum é, em sua própria opinião, o único
Sacode-cenas do país]. “Shake-scene” remete ao nome do dramaturgo e a seu ofício. A menção a “coração de tigre envolto em pele de
ator“ é uma paródia de uma linha da peça de Shakespeare, Henrique VI, parte 3, onde se lê "Ó coração de tigre envolto em pele de
mulher!” (I.4.137). A passagem “uma gralha emergente, embelezada com nossa plumagem” é uma referência à fábula de Esopo em que
um corvo se passa por um pavão, e tem sido interpretada tanto como uma acusação de plágio como uma indicação de que Shakespeare
não havia frequentado a universidade, diferentemente dos outros dramaturgos elisabetanos. Como se pode depreender das explicações
acima, Robert Greene, em seu amargo comentário, do qual inclusive se arrependeria depois, pouco guarda do humor festivo e brincalhão
de Falstaff.
6
“Mais verdade, e menos arte” (“More matter, with less art”) é o que pede a Rainha Gertrudes ao
conselheiro Polônio, tão afeito à retórica (Hamlet, II.2). Invertendo a famosa frase, “mais arte, e menos
verdade” é o que nos têm legado, desde Rowe, as inúmeras biografias desse homem de mil faces.
David Garrick e o Jubileu de Stratford
O ano de 1769 pode ser considerado como o marco zero do turismo literário a Stratford,
promovendo um substancial aumento de interesse na biografia e na cidade natal do poeta. Com um atraso de
cinco anos em relação ao bicentenário do nascimento de Shakespeare, membros da corporação da cidade,
junto com David Garrick – considerado por muitos como o maior ator inglês de todos os tempos –,
organizaram “um jubileu em honra à memória de Shakespeare”, que comemorava o poeta como supremo
criador de personagens, o “deus de nossa idolatria”, conforme os versos da ode composta por Garrick.
Em Stratford, às margens do Avon, foi construído um anfiteatro octogonal de madeira, a Rotunda –
local onde hoje está situado o “Memorial Theatre” –, com capacidade para abrigar as mil pessoas aguardadas
para os três dias de festejos. De Londres acorreram cerca de dois mil visitantes que demandavam estadia e
alimentação muito acima da capacidade das hospedarias locais.
Na manhã de cinco de setembro de 176915 os sinos da cidade acordaram os visitantes para um café
da manhã que iniciaria as celebrações em torno do maior dramaturgo de língua inglesa, filho mais ilustre de
Stratford. Tudo era motivo para comemoração, até mesmo a lenda de Shakespeare ter sido o ladrão de
cervos: ele é cantado como “o Ladrão dos ladrões, o ladrão de Warwickshire”. Na Igreja de Holy Trinity, seu
busto é reverenciado com guirlandas e poemas. Liderando um cortejo de admiradores pelas ruas da cidade,
David Garrick faz uma pausa em frente ao lugar do nascimento do poeta, na Rua Henley, e recita uma das
várias odes que havia composto em homenagem ao poeta:
Here Nature nurs´d her darling boy,
From whom all care and sorrow fly,
Whose harp the nurses strung:
From heart to heart, let joy rebound,
Now, now, we tread enchanted ground,
Here Shakespeare walk´d and sung! (IN: PIERCE, 2004, p. 7)16
O ponto alto do primeiro dia de festividades era a inauguração de um monumento ao poeta –
escultura para a qual o próprio Garrick havia servido de modelo. Em luvas brancas, em uma provável alusão à
profissão de luveiro do pai do poeta, Garrick recita uma outra ode ao dramaturgo, esta anteriormente
apresentada em Londres para o Rei e a Rainha. Na plateia, misturam-se membros da nobreza, atores e
admiradores do dramaturgo e de Garrick; estão ausentes, entretanto, intelectuais e estudiosos, mesmo aqueles
aguardados pela estima que nutriam por Garrick, tais como Samuel Foote, George Steevens e, a figura mais
esperada que todas as outras, Dr. Johnson, conterrâneo do grande ator. Mesmo a ausência destes nomes
literários não conseguiu diminuir o brilho do evento: fitas e medalhas comemorativas, desenhadas pelo
próprio Garrick, são distribuídas para o público; canções como “Sweet Willy-O” e “The lad of all lads was a
Warwickshire Lad”, da autoria de Garrick são entoadas; e, finalmente, um baile com muita música e queima
de fogos fecha com chave de outro o primeiro dia.
15 Note-se que nem o ano, nem o mês e nem o dia tinham referência com a data comemorada, que seria 23 de abril de 1764, bicentenário
do nascimento do poeta, supostamente o motivo da comemoração.
16 [“Aqui a Natureza alimentou seu filho querido,
De quem preocupação e dor fugiram,
Cuja harpa as amas tocaram:
De coração leve, deixemos a alegria soar,
Agora, agora, percorremos solo encantado,
Por aqui Shakespeare andou e cantou.”]
7
Para o dia seguinte, havia se planejado um desfile de mais de cem personagens, uma outra queima de
fogos, um jantar e um baile à fantasia. Infelizmente, uma chuva torrencial interrompeu algumas atividades:
são canceladas a queima de fogos e o desfile – os trajes para os cem personagens do desfile tinham sido
emprestados do teatro Drury Lane e precisavam retornar em boas condições. O baile, entretanto, acaba
acontecendo apesar da chuva e do vento.
No terceiro dia, a chuva forte não dá sinais de amainar; mesmo assim, mantém-se na programação
uma corrida de cavalos – “The Garrick Cup”. Apenas cinco animais conseguem cruzar a reta de chegada,
ainda que com água até o joelho. Várias outras atividades precisam ser canceladas, e antecipa-se o fim do
Jubileu para as quatro da tarde. Ironicamente, pouco depois, as chuvas cessam.
Na imprensa londrina, o Jubileu – que, pela intensa participação do ator fica conhecido como o
Jubileu de Garrick, e não de Stratford ou de Shakespeare – é muito satirizado, principalmente pelo fato de
sequer uma linha das peças ou poemas ter sido mencionada, como deixa claro a descrição do evento pelo ator
Samuel Foote:
A Jubillee, as it has lately appeared, is a public invitation, urged by puffing, to go post, without horses, to an obscure
bourough… to celebrate a great poet (whose own works had made him immortal), by an ode without poetry, music without
melody, dinners without victuals, and lodgings without beds; a masquerade, where half the people appeared bare-faced; a
horserace, up to the knees in water; fireworks extinguished as soon as they were lighted, and a gingerbread amphitheatre,
which, like a house of cards, tumbled to pieces as soon as it was finished. (SCHOENBAUM, 1991, p. 104)17
A despeito das críticas e do prejuízo de cerca de duas mil libras que a cidade de Stratford e Garrick,
coprodutor, tiveram – Garrick, aliás, gentilmente assumiu toda a dívida, liberando a cidade de qualquer ônus
–, o evento é, um mês depois, recriado no Royal Theatre Drury Lane, em Londres: o espetáculo The Jubilee,
que agora podia, com segurança para os trajes, incluir o desfile de personagens, obtém enorme sucesso, e as
apresentações, em número próximo de cem, recompensam amplamente o investimento. Durante o século
XIX, a encenação do espetáculo O jubileu continua a constar em diversos programas teatrais18.
Para os estudiosos de Shakespeare e para o mundo teatral da Inglaterra o nome de David Garrick19
ficou para sempre ligado ao do dramaturgo, não só pelo vigor de suas interpretações, de que aqui não
tratamos, mas devido à criação desse grande Jubileu comemorativo que deu origem ao culto à cidade natal do
poeta e à fabricação de relíquias relacionadas à Shakespeare, fenômeno este hoje encampado pela indústria
cultural. É a partir desse momento que as preocupações em se preservar as construções ligadas ao dramaturgo
se estabelecem firmemente – produziu-se inclusive uma gravura da propriedade New Place, casa comprada
pelo poeta. Além disso, precisa-se notar que o Jubileu renova o interesse pelo poeta, que, curiosamente,
adquire, nos anos seguintes, expressões inusitadas: a partir de 1785, surge a famosa controvérsia sobre a
autoria; e, em 1793, acontece a maior das fraudes de documentos relacionados à vida e à obra do bardo.
As fraudes de William-Henry Ireland
Garrick inaugurou a peregrinação à cidade-natal de Shakespeare; depois dele, vários outros
admiradores do bardo visitaram Stratford, inclusive o desenhista, gravador e membro honorário da Academia
Real Britânica Samuel Ireland. Em 1793, Ireland viaja a Stratford com o objetivo de preparar um volume de
17 [“Um jubileu, como recentemente anunciado, convidando o público, e pedindo que viajem logo, sem cavalos, para uma região
obscura... para celebrar um grande poeta (cuja obra o tornou imortal), com uma ode sem poesia, música sem melodia, jantares sem carne
e hospedarias sem leitos; uma mascarada, onde metade das pessoas estavam de cara lavada; uma corrida, com água até os joelhos; fogos
que se extinguiam assim que eram acesos e um anfiteatro de biscoito, que, como um castelo de cartas, ruiu em pedaços assim que ficou
pronto.”]
18 Ver, por exemplo, um dos programas teatrais do século XIX contido em Catherine Alexander, Shakespeare: The Life, The Works, The
Treasures. Great Britain, Simon & Schuster, 2007.
19 Quando David Garrick falece, em 1779, recebe honras de estadista; está enterrado na Catedral de Westminster, aos pés da estátua de
William Shakespeare.
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ilustrações – Picturesque Views on the Upper, or Warwickshire Avon (1795). Acompanha-o seu filho, o jovem de
dezoito anos, William-Henry.
Pai e filho têm como cicerone John Jordan, conhecido na cidade como o poeta de Stratford; Jordan
era uma espécie de guia oficial da cidade: levava os visitantes a lugares associados a Shakespeare, contava-lhes
histórias sobre o dramaturgo, algumas das quais inventadas por ele mesmo, e lhes oferecia “relíquias”, entre
as quais assinaturas do poeta.
Ao passear com os Ireland por Stratford e seus arredores, Jordan aproveita a oportunidade de lhes
vender um banco de madeira em que, segundo ele, o poeta e Anne Hathaway teriam namorado, bem como
outros pequenos objetos esculpidos na madeira proveniente de uma macieira sob a qual Shakespeare teria se
recostado e adormecido quando em viagem de sua cidade natal a Londres20. Samuel Ireland, um colecionador
de documentos e objetos antigos, retorna à capital recompensado.
De acordo com a estudiosa Patricia Pierce em The Great Shakespeare Fraud: The Strange, True Story of
William-Henry Ireland (2004), Samuel e William-Henry não tinham uma relação muito próxima. O pai,
decepcionado com a expulsão do filho de escolas inglesas e francesas, não via no rapaz nenhum talento
especial; o filho, por sua vez, sonhava em ganhar a afeição do pai. Ao retornar de Stratford, sob o impacto do
apreço que seu pai nutria por Shakespeare, William-Henry sai em busca de objetos e documentos que
houvessem pertencido ao poeta; infelizmente, suas buscas são improdutivas.
Talvez em um espírito de brincadeira, ou mais provavelmente, como supõe Patrícia Pierce “movido
inicialmente não pela expectativa de ganhos financeiros, mas simplesmente para ganhar o amor e o respeito
de seu pai” (PIERCE, 2004, p. xiii), William-Henry presenteia seu pai com um “documento” sobre o poeta:
trata-se de um contrato de locação do teatro Blackfriars no qual aparecia a assinatura de Shakespeare.
Para produzir essa fraude, William-Henry tivera que aprender a fazer uma tinta que se assemelhava
às tinturas usadas na impressão de livros elisabetanos e ainda conseguir folhas de papel antigas; depois, copia
a assinatura de Shakespeare de um dos fac-símiles a que teve acesso na biblioteca paterna. Em todas as suas
futuras falsificações, o rapaz utilizaria métodos semelhantes.
Samuel Ireland fica encantado com o “achado” que, surpreendentemente, é aceito como verdadeiro,
sem qualquer questionamento mesmo por parte de estudiosos e intelectuais. É preciso dizer que as
circunstâncias favoreciam William-Henry: o culto a Shakespeare já estava estabelecido, especialmente depois
do Jubileu de Garrick; os estudos shakespearianos ainda eram incipientes, e existia grande expectativa de
algum dia se encontrar objetos, documentos, cartas, manuscritos de peças e mesmo novas obras pertencentes
ao poeta e que lhe revelassem a personalidade ou aspectos de sua vida privada e profissional.
Impulsionado pelo sucesso de sua primeira falsificação, William-Henry inicia, então, a mais
audaciosa produção de “documentos” sobre a vida e a obra de Shakespeare de que se tem notícia. Entre as
falsificações estão: notas promissórias para John Heminge e acordos financeiros com Henry Condell, atores e
companheiros de Shakespeare que viriam em 1623 a publicar o Primeiro fólio; uma declaração na qual
Shakespeare diz ser protestante; várias cartas escritas à mão para atores companheiros do teatro Globe, para
membros da nobreza e para a esposa, Anne Hathaway – a carta para a esposa era acompanhada de um poema
e uma mecha de cabelos –; cartas trocadas entre o dramaturgo e a rainha Elisabete, e entre o dramaturgo e o
conde de Southampton; uma lista dos livros que Shakespeare possuía; um desenho de Shakespeare como
Bassânio, personagem de O mercador de Veneza; versos que o poeta dedicara a Francis Drake; desenhos e
documentos referentes ao teatro Globe; manuscritos originais de Hamlet e de Rei Lear; livros com anotações
de Shakespeare feitas à mão; duas novas peças, Vortigern e Henry II; e até mesmo um documento que atestava
haver uma dívida de gratidão de Shakespeare para com os ancestrais de Samuel Ireland, os quais o haviam
salvado de um afogamento, de modo que o dramaturgo legava à família Ireland e seus descendentes todos os
seus direitos literários (ver PIERCE, 2004, p. 199-200).
Divulgadas nos jornais da época como grandes descobertas, os documentos causam comoção entre
pessoas de todas as esferas, desde o público leigo até figuras importantes como o príncipe de Gales, membros
20 Notar que a árvore não é a famosa Mulberry Tree, segundo a lenda, plantada pelo próprio poeta em seu jardim, e que também teria
dado origem a infinitas relíquias comercializadas durante o Jubileu de Garrick, mas outra árvore, a Crab Apple Tree.
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da nobreza, políticos, dramaturgos e intelectuais – cite-se, por exemplo, o poeta laureado H.J. Pye, o primeiro
ministro William Pitt, o dramaturgo Richard Sheridan e o estudioso Joseph Warton (PIERCE, 2004, p. ix-xi;
xiv). Orgulhoso de seu filho, ou possivelmente apenas dos “achados”, e para dar oportunidade ao público de
ver de perto o acervo, Samuel Ireland abre as portas de sua residência na Rua Norfolk. São tantos os que
desejam ver os novos documentos que é necessário distribuir senhas e marcar horários para as visitas.
Neste clima festivo, poucos são os que duvidam da autenticidade dos “documentos”; no calor da
hora, não houve nem tempo nem oportunidade para que os especialistas os examinassem. Assim, o recémencontrado manuscrito de Rei Lear é grandemente comemorado; todas as variações que o novo texto
apresenta em relação ao texto do fólio são consideradas como melhorias de estilo, ainda que bastasse um
exame rápido dessas diferenças para se constatar que o manuscrito não passava da mais grosseira falsificação.
É sintomático o fato de que até mesmo o eminente advogado e diarista James Boswell, amigo e
biógrafo de Dr. Johnson, tenha se rendido ao clima de comemoração: animado por um gole de brandy e
seguido por uma turba de curiosos, Boswell admira os novos achados na residência de Ireland, e, diante dos
documentos, se ajoelha e os beija, agradecendo a Deus por ter vivido aquele dia e acrescentando que agora
poderia morrer feliz; ele falece três meses depois.
A audácia do jovem William-Henry, aliada ao orgulho de seu pai e ao momento de celebração por
parte do público são responsáveis pela publicação dos “novos achados” no volume Miscellaneous Papers and
Legal Instruments under the Hand and Seal of William Shakespeare (1795). A publicação, no entanto, tem um efeito
contrário ao que esperava Samuel Ireland: ao invés de perpetuar as descobertas, o livro permite que os
estudiosos – que até então tinham evitado visitar a residência de Ireland com temor de ter a reputação
comprometida – examinem o material recém-descoberto.
Em 31 de março de 1796, o editor Edmond Malone, a maior autoridade do século XVIII sobre o
dramaturgo, finalmente publica seu tão aguardado veredicto: nas 424 páginas de An Inquiry into the authenticity
of certain Miscellaneous Papers and Legal Instruments published Dec. 24, MDCCXCV. And attributed to Shakspeare,
Queen Elizabeth, and Henry, Earl of Southampton desmonta a fraude, apontando, entre outras falhas, discrepâncias
entre a ortografia dos documentos de William-Henry e a ortografia de outros documentos elisabetanos, bem
como inconsistências de datas.
Com todos os 500 exemplares de seu livro vendidos em dois dias, Malone não só desmascara os
achados de William-Henry, mas impede a temporada da tão aguardada “nova peça” de Shakespeare, Vortigern
and Rowena, que tinha tido seus direitos de produção adquiridos pelo famoso dramaturgo irlandês Richard
Sheridan. E, não fosse pela presença do príncipe de Gales na estreia da peça, esta teria sido inclusive
cancelada. Após uma única apresentação, e diante das manifestações do público, do mal-estar entre os atores,
e, sobretudo, com medo de arruaças e conturbações sociais que poderiam advir de novas apresentações – o
teatro era um importantíssimo termômetro social –, o espetáculo é definitivamente cancelado.
William-Henry confessa as fraudes para seu pai, que surpreendentemente se recusa em acreditar no
filho: não o considerava com talento suficiente para produzir tais falsificações. Para livrar o pai de qualquer
envolvimento nas fraudes, William-Henry decide escrever sua própria versão dos fatos, An Authentic Account of
the Shaksperian Manuscripts (1796), em que afirma ser o único autor das falsificações. Samuel Ireland rompe
relações com o filho e publica a sua versão dos acontecimentos em Mr. Ireland's Vindication of His Conduct
Respecting the Publication of the Supposed Shakspeare Mss (1796). Quatro anos depois, ainda de relações rompidas
com William-Henry, Samuel Ireland falece, mal visto na sociedade, mas convicto da autenticidade dos
achados.
Alguns anos após a morte do pai, William-Henry publica um novo volume, The Confessions of WilliamHenry Ireland (1805), no qual não só reafirma que seu pai não tivera qualquer envolvimento nas falsificações,
mas justifica seus erros como desvios de juventude; pede, também, desculpas à sociedade, fazendo votos para
que suas novas produções literárias não sejam prejudicadas por essa “aventura”:
First, I solemnly declare that my father was perfectly unacquainted with the whole affair, believing the papers most firmly the
productions of Shakspear. Secondly, That I am myself both the author and writer, and have had no aid or assistance from any
soul living, and that I should never have gone so far, but that the world praised the papers so much, and thereby flattered my
vanity. Thirdly,That any publication which may appear tending to prove the manuscripts genuine, or contradict what is here
stated, is false; this being the true account.
W. H. Ireland.
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Here then I conclude, most sincerely regretting any offence I may have given the world, or any particular individual, trusting
at the same time, they will deem the whole the act of a boy, without any evil or bad intention, but hurried on thoughtless of
any danger that awaited to ensnare him. Should I attempt another play, or any other stage performance, I shall hope the
public will lay aside all prejudice my conduct may have deserved, and grant me that kind indulgence which is the certain
inmate of every Englishman's bosom. (IRELAND, texto eletrônico)21
A nova confissão é de pouca valia para a carreira literária de William-Henry. Hostilizado pela
sociedade londrina, ele muda-se para a França, onde permanece por mais de uma década, vivendo em estado
de penúria. Em seu retorno à Inglaterra, anos depois, publica uma segunda edição da peça Vortigern and
Rowena, que, afinal, era obra de sua autoria, mas não consegue nem fama, nem sucesso financeiro. Em 1835,
pobre e esquecido, falece.
O episódio dos documentos forjados foi, sem dúvida, o ponto-alto da carreira literária de WilliamHenry Ireland22; suas falsificações estão entre os casos mais ousados de fraude em toda a história da literatura,
e atestam a crescente importância cultural de Shakespeare no ocidente.
A controvérsia sobre a autoria
Ainda de outra maneira as últimas décadas do século XVIII provam seu fascínio por Shakespeare.
Em 1785, depois de examinar coleções privadas de cartas e documentos pertencentes a moradores da região
de Stratford e arredores, em busca de informações ou referências a Shakespeare, bem como de tentar localizar
livros que teriam pertencido ao poeta, o reverendo James Wilmont, que residia a pouca distância da cidadenatal do poeta, explica seu insucesso com uma teoria fantástica: Shakespeare é apenas um nome fictício criado
para mascarar a verdadeira identidade do autor das peças, Sir Francis Bacon, que teria destruído os
manuscritos das peças para que nada o associasse a ofício tão mal visto. Iniciou-se, assim, secretamente, no
coração de Warwickshire, a poucos quilômetros da cidade natal do poeta, a famosa controvérsia sobre a
autoria23.
Em atenção à comunidade vizinha, o reverendo, entretanto, não publica nem sequer uma única linha
sobre o assunto; suas ideias circulam apenas entre os amigos. Mais, tarde, quando estava próximo dos oitenta
anos, ordena que os escritos sejam queimados. Sua teoria, porém, ainda seria disseminada em uma obscura
associação de estudiosos em uma pequena cidade dos Estados Unidos. Em 1805, o estadunidense James
Corton Cowell visita a região de Warwickshire e conversa com o reverendo Wilmont. De volta aos Estados
Unidos, Cowell apresenta a hipótese baconiana à Sociedade Filosófica de Ipswich, sem, entretanto, revelar a
fonte; em uma segunda conferência para mesma sociedade, Cowell dá os créditos ao Reverendo, não sem
21 [“Primeiro, eu declaro solenemente que meu pai ignorava toda a empreitada e acreditava que os documentos haviam sido escritos por
Shakspear. Segundo, declaro que eu fui tanto o autor como o escritor dos documentos, e não tive qualquer ajuda ou colaboração de
nenhuma alma viva, e que eu nunca teria ido tão longe a não ser pelos elogios com que o mundo recebeu os papéis, deste modo
adulando minha vaidade. Terceiro, declaro que qualquer publicação que possa surgir com o intento de provar que os manuscritos são
genuínos, ou de contradizer o que aqui está declarado, é falsa; esta sendo a verdadeira história dos manuscritos.
W. H. Ireland.
Assim aqui termino, lamentando sinceramente qualquer ofensa que eu possa ter causado ao mundo, ou a qualquer indivíduo em
particular, acreditando também que o público considerará todo o episódio como um ato de menino, sem maldade ou má intenção, ato
impensado que não considerou os perigos que o aguardavam. Se no futuro eu escrever outra peça, ou outro entretenimento teatral,
espero que o público deixe de lado todo o preconceito que minha conduta possa merecer, e me agracie com a caridosa indulgência que é,
com certeza, inata ao coração de todo inglês.”]
22 Em 2004, o escritor inglês Peter Ackroyd transforma William-Henry em um dos personagens de seu romance The Lambs of London, no
qual Ireland encontra outros dois importantes estudiosos de Shakespeare, os irmãos Mary e Charles Lamb, que viriam a publicar uma
edição das peças recontadas para crianças.
23 Sobre a controvérsia da autoria, conferir: H.N. Gibson, The Shakespeare Claimants: A Critical Survey of the Four Principal Theories
Concerning the Authorship of the Shakespearean Plays (London: Methuen, 1962) , onde o autor analisa e descarta os argumentos em
favor de Bacon, Oxford, Derby e Marlowe. Outros autores que tratam o assunto são: Irvin Leigh Matus em Shakespeare, In Fact (New
York: Continuum, 1994); John Michell em Who Wrote Shakespeare? (London: Thames and Hudson, 1996); e Samuel Schoenbaum em
Shakespeare's Lives (Oxford: Clarendon Press, 1991).
11
antes extrair dos presentes o juramento de guardar segredo. E, de fato, a teoria baconiana de Wilmont
permanece desconhecida do público até 1932, quando são descobertas as transcrições das comunicações
feitas em Ipswich.
Além da teoria baconiana de Wilmont, uma teoria similar foi aventada em um romance sem
qualquer importância literária sobre aventuras no mar. Em 1848, o Coronel Joseph C. Hart, oficial da guarda
americana e cônsul nas Ilhas Canárias, publica The Romance of Yachting; o tema central nada tem haver com
Shakespeare mas, em uma das muitas tergiversações do romance, o autor aborda a biografia de Shakespeare
ou, mais precisamente, o folclore em torno do bardo. Hart sustenta que os pais do poeta eram pobres e
analfabetos; que William abandonou a esposa e teve muitas amantes; e que fora ladrão de cervos e, depois, de
peças. Ou seja, Hart se aventura por águas desconhecidas, divulga lendas, sugere que Shakespeare não teria
sido autor das peças e se exime de nomear quem seria, então, o verdadeiro autor.
A primeira vez que uma teoria sobre Shakespeare não ser o autor das peças vem a público se dá
ainda no século XIX, em 1857, com a publicação de um livro de quase setecentas páginas de extensa, confusa
e disparatada argumentação – The Philosophy of the Plays of Shakespeare Unfolded; a publicação tem a seu favor o
prefácio, de autoria do respeitado escritor Nathaniel Hawthorne, que quase que imediatamente se arrepende
de tê-lo escrito. Hawthorne fora persuadido por sua jovem, bela e obstinada conterrânea, Delia Bacon, moça
de origem humilde, que nascera em um trailler no interior dos Estados Unidos. É irônico que as origens
humildes de Delia sejam justamente o ponto nevrálgico de sua desconfiança quanto a Shakespeare ser o autor
das peças; segundo ela, ele não passava de “um homem ignorante, vulgar e mal-nascido, que nunca, em sua
vida, respirou a atmosfera social presente nas peças”, um simples “ator itinerante”, um “ladrão de cervos”; o
nome de Shakespeare, em suma, escondia outra identidade, que Delia se abstém de nomear, mas que, se o
leitor deduzir, é o filósofo Francis Bacon. É preciso acrescentar que Delia não possuía qualquer relação de
parentesco com Bacon, apesar de, por diversas vezes, ter sugerido que seria sua descendente.
O episódio mais singular envolvendo Delia deu-se na ocasião em que, em visita à Stratford, ela
permaneceu na Igreja de Holy Trinity, depois que os turistas haviam partido, com a intenção de violar o
túmulo de Shakespeare e provar que ali não estava enterrado um homem, mas uma série de documentos que
comprovariam que ele nunca existiu e que revelariam o verdadeiro autor das peças. Delia, de fato, passou a
noite toda na Igreja, mas, não se sabe por que, desistiu de seu intento. Talvez seja revelador o fato de que ela
terminou seus dias em um asilo para os mentalmente instáveis.
Delia Bacon é a mais famosa entre os primeiros a propor publicamente e por escrito que
Shakespeare não passava de um mito; ela explicita a crença preconceituosa de que apenas alguém mais nobre,
mais bem nascido e com educação superior poderia ter escrito tal obra. Infelizmente, sua hipótese recebe vida
nova a partir do final do século XIX e início do século XX, período tido como a Idade de Ouro das teorias
anti-Stratford; nesta época a polêmica ganha páginas de jornais e revistas, promove debates, e chega a criar
agremiações – a Sociedade Baconiana é fundada em 1885, iniciando, sete anos depois, a publicação de um
periódico dedicado à causa. Outros candidatos são aventados como autor, entre os quais, o dramaturgo
Christopher Marlowe, os condes de Oxford e de Essex e ninguém menos que a própria rainha Elisabete.
Note-se que todos eles são nobres ou graduados de universidades, perpetuando o preconceito contra um
ator, nascido no interior da Inglaterra, filho de luveiro, oriundo das classes médias e de educação,
supostamente, deficiente.
O grande argumento partilhado pelos antisstratfordianos até hoje continua a ser o fato de que
alguém com perfil tão modesto e que não tenha frequentado uma universidade tenha sido capaz de escrever
obra tão monumental, com referências à literatura clássica, a países estrangeiros, à vida na corte e ao mundo
da aristocracia. É preciso destacar que para os estudiosos de Shakespeare, a educação do autor na ótima
Grammar School de Stratford, que incluía em seu currículo o estudo do latim, da literatura clássica, da
retórica e da oratória, e onde eram mestres ex-graduados da universidade de Oxford, bem como sua vida na
Londres cosmopolita do século XVI são suficientes para explicar o uso de tantas fontes em sua obra; vale
lembrar, também, que é tarefa árdua explicar a origem de um gênio. Em todo o caso, se Shakespeare não era
Shakespeare, por que a razão as páginas de rosto das primeiras edições das peças e dos poemas, inclusive o
próprio Primeiro fólio (1623), identificariam um homem de nome William Shakespeare como seu autor? E o
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que motivaria escritores respeitados contemporâneos como Richard Barnfield (1574-1627), John Weever
(1586-1632), John Webster (c.1579-1634), Ben Jonson (1572-1637), Gabriel Harvey (c.1550-1631) e Francis
Meres (1565-1647) a dedicarem versos e a saudarem uma figura inexistente?
Mas, a despeito destas considerações e da descoberta de documentos, do aumento do número de
biografias e do desenvolvimento dos estudos críticos, isto não se mostrou suficiente para evitar as
especulações quanto à autoria. Mais que isso, estas dúvidas, infelizmente, em um momento ou outro, também
contaminaram algumas mentes brilhantes.
Em 1888, na revista November Boughs, Walt Whitman, por exemplo, escreveu: "só um daqueles
condes sanguinários, eles próprios tão abundantes nas peças, ou alguém de berço, poderia ser o verdadeiro
autor dessa obra impressionante, maior, em muitos aspectos que qualquer outra na literatura. [...] Eu duvido
firmemente de que seja Shakespeare. Quero dizer o homem de Avon, o ator”. Em 1909, Mark Twain
discutiu, no ensaio Is Shakespeare dead, a suposta falta de provas da existência do autor, argumentando,
erroneamente, que eram abundantes as informações sobre outros escritores célebres: “Não é estranho,
quando se pensa sobre o assunto, que se possa listar todos os ingleses, irlandeses, e escoceses célebres da
época Tudor até a modernidade – uma lista que contém cerca de 500 nomes – […] e que se possa conhecer
os detalhes da vida de todos eles? Todos, exceto um – o mais famoso, o mais renomado, sem dúvida o mais
ilustre: Shakespeare!” (TWAIN, edição eletrônica). Henry James, em carta de 1903, dizia-se “assombrado pela
convicção de que o divino William – o homem de Stratford – é a maior e mais bem sucedida fraude já
praticada no mundo”. Em 1927, Sigmund Freud, após a leitura de Shakespeare Identified (1920), do obscuro J.
Thomas Looney (“looney” traduzido para o português seria algo como “maluco” ou “aloprado”) escreveu:
“Para mim, é inteiramente inconcebível que Shakespeare obtivesse tudo de segunda mão – a neurose de
Hamlet, a loucura de Lear, a ousadia de Macbeth e o caráter de Lady Macbeth, o ciúme de Otelo, etc.”
(Freud, 1927, p. 130)24; Freud aceitou a hipótese de que o autor das peças deveria ser o conde de Oxford,
ideia que Orson Welles encampou, alguns anos depois: “Eu creio que Oxford escreveu a obra de
Shakespeare" (TYNAN, 1953, p. 32). Oxford, entretanto, é bom lembrar, morreu em 1604, portanto antes de
ter escrito mais de uma dezena das peças atribuídas a Shakespeare, entre as quais Rei Lear, (1605-1606),
Macbeth (1606) e Antônio e Cleópatra (1606-1607). Também o genial Charles Chaplin, como Shakespeare, de
origem humilde – Chaplin era filho de um cantor de music hall e de uma atriz – declarou em sua Autobiografia:
"Na obra dos grandes gênios, de alguma forma, se revelam suas origens humildes, que de forma alguma
aparecem em Shakespeare... Eu não me preocupo com quem escreveu as obras de Shakespeare… mas não
acredito que tenha sido o menino de Stratford. Quem quer que tenha escrito as peças, tinha uma atitude
aristocrática” (CHAPLIN, 1964, p. 364).
Inacreditável, porém, é o fato de que ainda hoje, depois da comprovação irrefutável de que
Shakespeare existiu e escreveu as obras a ele atribuídas, atores renomados, que se consagraram em papéis
shakespearianos, como Sir John Gielgud e Sir Derek Jacobi, ainda duvidem da capacidade de um ator, um
colega de profissão, ser um escritor genial. Em 1996, Sir John Gielgud, quando presidiu o World Shakespeare
Congress, assinou a seguinte declaração: "We, the undersigned, petition the Shakespeare Association of
America, in light of ongoing research, to engage actively in a comprehensive, objective and sustained
investigation of the authorship of the Shakespeare Canon, particularly as it relates to the claim of Edward de
Vere, 17th Earl of Oxford." (texto eletrônico)25. Petição similar foi assinada em 2007 por Sir Derek Jacobi;
anteriormente, em entrevista ao jornal The Washington Times, publicada em 25 de abril de 1997, Jacobi se
perguntava: "De onde surgiu Shakespeare? De onde veio todo esse conhecimento, eloqüência e verdade?
Suspeito enormemente do cavalheiro de Stratford-on-Avon. Estou convencido de que nosso dramaturgo não
24 Mais sobre o assunto no artigo de Norman Holland, “Freud on Shakespeare” PMLA, vol. 75, No. 3 (Jun., 1960), p. 163-173. Ver
também Freud, S. (1925). An Autobiographical Study. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud,
Volume XX (1925-1926).
25 ["Nós, abaixo assinados, fazemos uma petição para a Associação Norte-Americana de Shakespeare, à luz de pesquisas em andamento,
se engaje ativamente em uma investigação longa, abrangente e objetiva sobre a autoria do cânone shakespeariano, particularmente em
relação a reivindicação que concerne Edward de Vere, décimo sétimo conde de Oxford."]
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era aquele homem. Essa opinião é muito impopular entre os habitantes de Stratford, eu sei, que tiram seu
sustento da lenda sobre a cidade-natal de Shakespeare ser Stratford. Eu não acredito que ele seja o autor das
peças.”
Cabe lembrar que, fora as exceções acima, a partir da segunda metade do século XX, com o grande
desenvolvimento dos estudos shakespearianos, a controvérsia sobre a autoria tem se limitado ao mundo dos
curiosos e das mentes excêntricas.
Talvez – e aqui penso no público leigo – as especulações sobre a vida do poeta e as dúvidas acerca
da autoria sejam até mesmo compreensíveis se lembrarmos que nos restam seis diferentes assinaturas de
Shakespeare
Wm Shakspe, Willm Shaksp, Willm Shakspere, William Shakespe, William Shakspere e
William Shakspeare , nenhuma igual à grafia adotada hoje. Também contribui para a aura de mistério em
torno do dramaturgo o fato de até hoje não se conhecer quase nada sobre sua vida particular, especialmente
no período referido como “os anos perdidos” e de, tampouco, se saber a causa de sua morte – uma das
lendas sobre a morte do dramaturgo, propagada próprio vigário de Stratford, em 1611, insinua que uma febre
contraída em consequência de uma alegre bebedeira com os amigos Drayton e Ben Jonson é que matou o
dramaturgo. Mais ainda, não sabemos nem mesmo o dia exato de seu nascimento: sabe-se que ele foi batizado
em 26 de abril de 1564; mas, até que ponto, a celebração de seu aniversário em um arbitrário e conveniente
23 de abril – mesmo dia e mês em que, 52 anos depois, ele viria a falecer, e, coincidentemente, dia de São
Jorge, santo padroeiro da Inglaterra – não representa um convite irresistível à fabricação de ficções?
Retratos
A partir do século XVIII, Shakespeare passa a ser tema constante das artes plásticas, bem como a
exercer grande atração para os falsificadores de quadros. Muitas imagens têm surgido desde então, mas
apenas três são autênticas, isto é, retratam o poeta e foram realizadas na época em que ele viveu. Todas as
demais ou são fraudes intencionais ou são recriações artísticas. De todo o modo, sejam as imagens falsas ou
verdadeiras, retratos feitos na época elisabetana ou recriações posteriores, atestam sem dúvida o apreço das
artes plásticas pelo dramaturgo.
Duas das três imagens verdadeiras possuem pouco mérito artístico: a efígie na Igreja da Santíssima
Trindade de Stratford e a gravura de Martin Droeshout. Comissionada pela família do poeta ao artesão
Gheerart Janssen, que provavelmente conhecera Shakespeare em vida, uma vez que residira e trabalhara nas
imediações do teatro Globe em Londres, a efígie foi feita a partir da máscara mortuária do poeta. Em tamanho
natural e colorida, teve suas cores retocadas em 1749 e, depois, em 1773, foi caiada por ordem de Edmond
Malone, que acreditava, erroneamente, que o branco era a cor original do busto. Essas duas mudanças de
tonalidade da escultura ocasionaram uma grande perda do que se supõe que poderia haver de expressão facial
na obra, uma vez que a cor complementava o trabalho estético. Feita a partir da efígie, a gravura Droeshout é
a imagem mais conhecida do poeta. Estas duas primeiras imagens são, portanto, autênticas e fiéis à aparência
física de Shakespeare, uma vez que foram trabalhos encomendados por seus familiares, amigos e
contemporâneos.
A terceira imagem, o famoso retrato Chandos, que no século XIX inaugurou o acervo da National
Gallery de Londres, é aceito pela grande maioria dos especialistas como verdadeiro26, mas não há meios de se
obter provas conclusivas. Foi pintado em 1610 e seria, portanto, o único retrato do poeta feito em vida.
Em favor de sua autenticidade, está a hipótese de que tenha pertencido a William Davenant, afilhado
de Shakespeare. A autoria do Chandos é incerta: o pintor poderia ter sido o ator Richard Burbage, amigo e
sócio de Shakespeare na companhia teatral “The Lord Chamberlain’s Men”; ou talvez uma figura pouco
conhecida, o também ator e pintor John ou Joseph Taylor. Em todo o caso, a tela retrata um homem de
meia-idade, trajado de negro, com o colarinho da camisa branca desamarrado, e – essa é a assinatura do
26 O Chandos teve também quem duvidasse de sua autenticidade e discordasse de seus méritos artísticos. No século XVIII, o editor
George Steevens, por exemplo, declarou: “Nosso autor exibe a compleição de um judeu, ou melhor, de um limpador de chaminés com
icterícia”.
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Chandos – com um brinco de ouro na orelha esquerda, o que indicaria, segundo a estudiosa Tanya Cooper,
curadora dos retratos de século XVI da National Gallery, um espírito audacioso e rebelde. Ainda segundo
Cooper, o retrato tem a seu favor o fato de que a tela é comprovadamente do período elisabetano-jaimesco,
de que os trajes, inclusive o brinco e o tipo de colarinho, eram os usados à época, e de que o retratado se
parece muito com as duas outras imagens autênticas do poeta.
Além destas três imagens, há muitos outros retratos de Shakespeare, que se dividem basicamente em
três categorias: os baseados de modo honesto nas imagens originais, e considerados, portanto, recriações
artísticas; as falsificações intencionais que surgiram ao longo dos séculos com o propósito de se passarem por
retratos verdadeiros; e as obras descobertas de tempos em tempos sobre as quais não se sabe ao certo a
origem e que se transformam em matéria de especulação jornalística e até acadêmica.
A primeira falsificação famosa que pretendeu se passar por um retrato de Shakespeare foi o Felton,
que enganou até mesmo o respeitado George Steevens – ele teria afirmado que se tratava do único retrato
verdadeiro feito em vida do poeta. Contra a autenticidade do retrato se colocaram Edmond Malone e
William-Henry Ireland – ironicamente o maior dos forjadores de documentos referentes a Shakespeare. Em
1824, James Boaden publicou o primeiro estudo sobre os retratos de Shakespeare, sanando as dúvidas sobre
o Felton e comprovando que, embora a obra pertencesse ao período elisabetano, havia sofrido alterações
com o propósito espúrio de acentuar a semelhança com o dramaturgo. Mesmo depois do veredicto de
Boaden, as especulações sobre o retrato não cessaram: o pintor Abraham Wivell levantou a hipótese de que o
retrato era obra de Richard Burbage, argumentando que se tratava de Shakespeare, aos 33 anos, quando
estava de luto pela morte de seu filho Hamnet – isto explicaria sua fisionomia melancólica. Finalmente, no
início do século XX, M. H. Spielmann confirmou o Felton, definitivamente, como uma mera falsificação.
Outra falsificação surgida no século XVIII é o retrato Janseen, de autoria anônima, mas atribuído,
erroneamente, a Cornelius Janseen. Esse retrato foi tido como obra autêntica em parte graças ao modo
discreto como veio a público: não o quadro a óleo, mas uma simples gravura, que ilustrava a edição de 1770
do Rei Lear. É interessante observar a pequena inscrição sobre a cabeça do retratado, onde se lê “Ut Magus”,
ou seja, “como um mago”, foi interpretada na época como um elogio à arte de Shakespeare. Mais tarde ficou
comprovado que, apesar de ter sido pintado no período jacobino, o retrato havia recebido retoques com o
intuito de acentuar a semelhança do modelo com Shakespeare; no século XX, finalmente, a figura ricamente
trajada foi identificada como a de outro poeta, bem menos famoso, Sir Thomas Overbury. A inscrição “Ut
Magus” passou a ter, assim, um significado extra: de modo mágico, tal qual um mago que se transforma, o
Janssen é um retrato de dois poetas.
Outros casos célebres de falsificação são o retrato Flower e o retrato Burbage. O Flower foi tido,
durante o século XIX, como pintado na época de Shakespeare; hoje se sabe que foi feito entre 1818 e 1840.
O Burbage ganhou essa denominação quando o crítico William Hazlitt atribuiu sua autoria a Richard
Burbage; uma inscrição atrás do quadro informava que Shakespeare posara para o retrato pouco antes de
morrer, informação corroborada por um poema abaixo da imagem, onde se lê:
How speake thatte Browe soe pensive yet serene
The lucide Teare juste startynge to thyne Eyne
Dost thou nowe dwelle onne Romeo´s ill starr´d love?
Or doth the tortures Moore thy passion move?
None so. Alasse! no more shalle phantasie´s Creature
Adumbrate or enshroude the poet´s features
To realle Illes his frame nowe falles a Preye
He feels approach ether Ev´ninge of Lyfe´s Daye
And e´er another Dawne arise to cheere
Lyfe´s busie Sonnes: may droppe poore Wil Shakspere.
15
Sic cecinit Cygnus Avoniae et Obiit 23 Aprilis 1616 Æts:5227
Novamente, como no caso do Felton, a biografia do poeta serviu para avalizar a autenticidade do
quadro: não seria agora a morte do filho, mas o momento em que o dramaturgo se encontrava às portas de
sua própria morte que responderia pela expressão melancólica de seu olhar; tal interpretação era
perfeitamente corroborada pelo poema.
O retrato Grafton é outra imagem muito conhecida do poeta e, a despeito de ter sido pintado no
período elisabetano, ficou comprovado que recebeu alterações para sugerir que o modelo era Shakespeare. As
inscrições de cada lado da imagem informam que o quadro foi pintado em 1588, quando o modelo tinha 24
anos, ou seja, a idade exata de William Shakespeare na época ou, mais provavelmente, de um exato
contemporâneo seu, já que é de todo improvável que o jovem Shakespeare, aos 24 anos, pai de gêmeos
recém-nascidos e em busca de fortuna, pudesse se vestir com trajes tão suntuosos e, especialmente, em cor
vermelha, permitida então apenas aos membros da nobreza. Além disso, a indicação W + S encontrada no
verso da pintura foi comprovada como uma adição do século XIX.
Um caso de engano acadêmico surgiu com o retrato Ashbourne. Em 1931, após consultar vários
especialistas, a Folger Shakespeare Library de Washington D.C. adquiriu a obra, que até hoje lá se encontra.
Uma inscrição do lado esquerdo do quadro – hoje comprovada como uma modificação posterior à data da
pintura com o intuito de falsificar a identidade do retratado – informa que o modelo tinha 47 anos em 1611, a
idade exata de Shakespeare na época. Logo, surgiram suspeitas sobre o retrato; foi apontado como candidato
mais provável a modelo Hugh Hamersley, um dos prefeitos de Londres e contemporâneo de Shakespeare.
Em 2001, a estudiosa Barbara Burris, em análise detalhada do figurino e auxiliada por exames de raio x,
conseguiu datar com precisão a obra como sendo de 1580, e não de 1611, desacreditando ao mesmo tempo
Hamersley e Shakespeare como modelos, e sugerindo, ao invés, o conde de Oxford, este, coincidentemente,
um dos mais famosos candidatos a autor das peças. Burris indicou alterações como a diminuição da manga do
casaco, o aumento na linha do cabelo e o apagamento das iniciais do pintor holandês Cornelius Ketel – que
teria pintado Oxford em outras ocasiões –, todas realizadas com a intenção de forjar mais um retrato de
Shakespeare.
Ainda em 2001, foi encontrado um novo retrato de Shakespeare, reavivando discussões acadêmicas
e de leigos sobre o verdadeiro rosto do dramaturgo. A repórter Stephanie Nolan descobriu, na casa de um
canadense, o senhor Lloyd Sullivan, o retrato que veio a ser conhecido como Sanders. O proprietário herdada
a pintura de um antepassado seu, contemporâneo e colega de Shakespeare na companhia teatral, o pintor e
ator John Sanders. Depois de vários testes, confirmou-se que a obra fora pintada na época elisabetanajaimesca, porém não retratava o dramaturgo; na melhor das hipóteses – aventada pelo shakespeariano
Jonathan Bate – o modelo seria outro dramaturgo da época, John Fletcher.
Além dos retratos de Shakespeare – verdadeiros ou falsos –, desde o século XVIII surgiram
inúmeras imagens relacionadas à sua obra, a maioria das quais destinadas à formação do acervo da Galeria
Boydell. A ideia da criação da galeria surgiu em 1786, durante um jantar, em que John Boydell lançou um
projeto de ilustração das obras de Shakespeare. Renomados pintores e também outros em início de carreira
foram convidados a produzir telas, que mais tarde seriam reproduzidas em gravuras; encontram-se entre os
artistas Sir Joshua Reynolds, Benjamin West, George Romney, Robert Smirke, William Hamilton, Richard
Westall, Francis Wheatley e Henry Fuseli. Infelizmente, a produção de pinturas e sua reprodução em gravuras
27 [“Como fala essa fronte tão pensativa e tão serena
A lágrima lúcida apenas nascida de seus olhos
Pensas agora no amor mal fadado de Romeu
Ou são as torturas do Mouro que movem sua paixão?
Nada disso. Ai, ai. Não serão mais as fantasias das criaturas
Que adumbram ou são a mortalha das feições do poeta
Dores reais as suas feições agora caem presas
Ele sente a chegada do entardecer de sua jornada
E outro amanhecer chega para alegrar
A vida do atarefado filho: assim cai o pobre Will Shakspere.”]
16
foi iniciada, porém, sem nunca se completar. O grande empecilho deveu-se à retração do mercado de arte
continental, em grande parte causada pela Revolução Francesa. Financeiramente, o empreendimento de
Boydell fracassou e causou sua falência; como consequência, o acervo da galeria acabou se dispersando, para
fazer frente aos prejuízos.
O sonho de Boydell, entretanto, permaneceu presente na cultura moderna: em maio de 2006, a
National Portrait Gallery de Londres promoveu uma exposição intitulada “Retratos de Shakespeare”,
exibindo quarenta e duas obras, entre gravuras, litografias e óleos, a maioria realizada para a Galeria de
Boydell.
Nas artes visuais Shakespeare se tornou, como vimos acima, um homem de muitas faces.
Filmes: o jovem Shakespeare, apaixonado
Desde os seus primórdios, o cinema tem se voltado para Shakespeare. São mais de 400 os filmes
mudos dedicados às peças do autor e, dentro desse universo, temos notícia de alguns que se ocuparam
também do homem, do criador por detrás das peças. Em 1907, na França, Georges Méliès (1861-1938)
produz La Mort de Jules César (em inglês, Shakespeare Writing Julius Caesar), com duração de 8 minutos. De
acordo com a sinopse e as referências que sobreviveram à película, hoje perdida, o filme girava em torno da
composição da peça Júlio César, que, no enredo criado por Méliès, teria se originado de um sonho do
dramaturgo. Poucos anos depois, em 1913, na Itália, Baldassare Negroni produziu Una tragedia alla Corte di
Sicilia: o filme se abre com o Bardo lendo para um círculo de amigos a peça O conto de inverno, que, em seguida,
transforma-se no enredo do filme. Esses dois filmes pioneiros podem ser considerados os precursores mais
antigos do filme Shakespeare apaixonado: todos os três buscam traçar um retrato do dramaturgo, relacionando
sua vida e obra.
Sucesso de público e de bilheteria, ganhador de oito estatuetas do Oscar, Shakespeare apaixonado é
hoje a mais conhecida ficcionalização da vida do dramaturgo. A suposição, a invenção, a brincadeira são os
trilhos por onde caminha o filme. A cena de abertura e os intertítulos iniciais dão uma boa ideia do panorama
histórico que o filme nos traz:
INTERIOR DO TEATRO ROSE. DE DIA. CÉU.
Sobre o qual as palavras “LONDRES – VERÃO DE 1593” aparecem.
Letreiro: Nos dias gloriosos do teatro elisabetano duas casas competiam por autores e platéia. No norte da cidade estava o
Teatro Curtain, casa do ator inglês mais famoso, Richard Burbage. Do outro lado do rio ficava o teatro competidor,
construído por Philip Henslowe, um empresário com problemas de caixa.... o teatro Rose.... Gradativamente um prédio é
revelado. O teatro Rose, com três andares, exposto ao tempo e vazio. No chão, impresso de modo rudimentar, um anúncio –
rasgado, manchado, sem data. No anúncio, lê-se:
7 E 8 DE SETEMBRO AO MEIO-DIA. SENHOR EDWARD ALLEYN E OS HOMENS DO LORD ADMIRAL NO
TEATRO ROSE, BANKSIDE: A LAMENTÁVEL TRAGÉDIA DO USURÁRIO VINGADO. (NORMAN;
STOPPARD, 1998, p. 1).
O ano explorado é 1593, quando a peste assola Londres, causando o fechamento dos teatros
públicos por medo do crescimento da epidemia. Em meio à cuidadosa recriação do ambiente teatral
elisabetano, a qual poderia levar os espectadores menos informados a crer que se trata de um retrato
fidedigno da época, o filme inclui elementos anacrônicos e outros originários do folclore em torno do autor.
Por exemplo, a peça acima mencionada, A lamentável tragédia do usurário vingado, não pertence à
dramaturgia do período; pode-se considerar que ela remete às peças “inventadas” pelo falsificador WilliamHenry Ireland. Por outro lado, embora seja uma “adição” ao repertório elisabetano, A lamentável tragédia do
usurário vingado faz referência a uma obra de Shakespeare, O mercador de Veneza: tal qual a vingança de Shylock,
a vingança do usurário Hugh Fennyman ameaça a integridade física do empresário teatral Philip Henslowe.
Como é de se esperar em um trabalho de ficção, os roteiristas tratam o material histórico de maneira
livre, inventiva, como ponto de partida para contar a estória. O melhor exemplo disso é o episódio em que a
rainha Elisabete assiste a um espetáculo no teatro público. Historicamente, sabe-se que a rainha nunca
frequentou teatros públicos – era o teatro que vinha até a sua corte. Há, entretanto, uma lenda, propalada por
17
Richard Ryan no século XIX, que fala de uma ida da soberana ao teatro público28. No filme, para resolver o
impasse criado pelo mestre de cerimônias da rainha, o senhor Tilney, que invade o palco, proibindo o
espetáculo devido à presença de uma mulher entre os atores – lembremos que o teatro elisabetano era feito
exclusivamente por atores de sexo masculino e que os papéis femininos eram interpretados por rapazes –,
Elisabete, que assistia incógnita à peça, revela sua identidade e corrobora a versão dos atores de que não há
mulheres no palco:
Tilney (grita, triunfante):
Estão presos em nome da rainha Elisabete!
A platéia se cala. Burbage deixa a platéia e pula para o palco.
Burbage:
Presos? Quem, senhor Tilney?
Tilney:
Todo mundo! Os atores da companhia do Lorde Almirante, da companhia do Lorde Chamberlain e todos os que
não respeitarem a autoridade com que sua Majestade me investiu.
Burbage:
Não respeitarem? O senhor fechou o teatro Rose – eu não o reabri. […]
Tilney (Ele aponta um dedo acusatório na direção de Viola):
Aquela mulher é mulher!
Tilney:
Vou ver todos vocês atrás das grades! Em nome de Sua Majestade, a rainha Elisabete...
Voz:
Senhor Tilney!
Ali está a própria rainha Elisabete que desce da platéia, retirando a capa e o capuz. É uma visão estupenda […]
Rainha:
Não use meu nome em vão, ou vai gastá-lo demais. (…) Como a Rainha da Inglaterra não freqüenta exibições
públicas licenciosas, alguma coisa aqui está fora dos eixos. Venha aqui, mestre Kent. Deixe-me vê-lo de perto.
Viola se adianta e está a ponto de fazer uma reverência masculina quando o olhar da rainha a adverte e ela transforma o gesto em mesura feminina.
Sim, a ilusão é fantástica e seu erro, senhor Tilney, pode ser facilmente perdoado. Eu conheço um pouco sobre o
que é ser mulher em uma profissão de homem, sim, por Deus, eu conheço este assunto. Pode ir, mestre Kent.
(NORMAN; STOPPARD, 1998, p. 146-148)
O filme faz inúmeras referências a obras shakespearianas: não só Romeu e Julieta e os sonetos, mas
também Dois cavaleiros de Verona, Antônio e Cleópatra e Noite de reis. Cria-se um jogo em que o espectador
conhecedor da obra é desafiado a reconhecer citações e alusões bem como é convidado a especular sobre o
quanto há de verdade na “vida” do jovem Shakespeare como representada no filme.
A título de exemplo, vejamos como se constroem os personagens do filme. Há alguns que são
calcados em figuras históricas: além de Henslowe e do próprio Shakespeare, a rainha Elisabete, os
dramaturgos Christopher Marlowe e John Webster29, os atores Richard Burbage e Edward Alleyn, e outros
atores da companhia teatral de que Shakespeare era parte, como bobo Will Kempe, Henry Condell, John
Hemmings, George Bryan e Augustine Philips – eles estão listados no Primeiro fólio e aparecem na lista de
personagens ao final do roteiro (NORMAN; STOPPARD, 1998, p. 158-159). Há personagens inteiramente
inventados: o usurário Hugh Fennyman, a protagonista Viola de Lesseps, moça por quem Will se apaixona, e
Lorde Wessex, noivo de Viola. A linha divisória entre personagens com contornos históricos e aqueles
inteiramente inventados não é, entretanto, precisa já que os primeiros recebem contornos ficcionais muito
particulares. O que está em jogo no filme não é recuperar figuras históricas, mas recriar artisticamente, o
período elisabetano, entrelaçando a obra dramática a uma suposta biografia do dramaturgo.
Os roteiristas também trabalham com sugestões de correspondências entre os personagens do filme
e àqueles criados pelo bardo. Os melhores exemplos vêm da recriação da peça Romeu e Julieta: Viola de
Lesseps corresponde a Julieta Capuleto e Will Shakespeare a Romeu Montéquio; a história de amor entre eles
é fortemente calcada no enredo da peça. Will, como Romeu, inicialmente se crê apaixonado por Rosalina –
no filme Rosalina é a amante de Richard Burbage – até encontrar seu verdadeiro amor. Vale lembrar que
Viola é o nome da protagonista de Noite de reis, próxima peça escrita por Shakespeare.
O encontro entre os jovens amantes se dá, não em um baile à fantasia, mas no teatro, no tablado de
madeira em que a fantasia imita a vida: em uma audição para o papel de Romeu, Viola se traveste de rapaz e
adota o nome de Thomas Kent; diferentemente de todos os outros aspirantes a um papel na nova peça, que
recitam a famosa passagem do Doutor Fausto de Christopher Marlowe – “Is this the face that launched a
28
Cf. Tucker Brooke, “Shakespeare´s Queen”, Essays on Shakespeare and Other Elisabeteans, 1948.
É instigante descobrir que o menino perverso que denuncia os amantes, e é obcecado por sangue e morte, é o futuro poeta e
dramaturgo John Webster.
29
18
thousand ships, And burnt the topless towers of Illium? Sweet Helen, make me immortal with a kiss!” [“Foi
este o rosto que lançou ao mar mil barcos. E às altas torres de Tróia lançou fogo? Doce Helena, faz-me
imortal com um beijo”] –, Viola/ Thomas Kent escolhe um trecho de Dois cavaleiros de Verona – “What light is
light, if Sylvia be not seen?”. [“Que luz é luz, se Sílvia não está presente?”]. Ao ouvir seus versos declamados
com paixão por Viola/ Thomas Kent, o poeta, que vivia um bloqueio criativo, recupera a autoestima e volta a
escrever. O filme mostra que a jovem Viola ama os versos antes de amar o homem, e o poeta, ao amar Viola,
recupera seu dom: amor e criação literária são, assim, irremediavelmente ligados.
Como em Romeu e Julieta, a paixão dos jovens é proibida; só lhes é dado um breve interlúdio de
felicidade, durante o qual Will escreve, transformando a vida em arte: cenas de Romeu e Julieta “acontecem”
entre Will e Viola; ou, dito de outra forma, a vida alimenta o palco e este espelha a vida.
O romance entre Will e Viola não tem um final feliz: como o casal Romeu e Julieta, sua história “de
amor negado” termina, não com a morte dos amantes, mas com sua separação, “com lágrimas e uma
viagem”, com diz a rainha no filme:
Rainha:
Como, Lorde Wessex! Já perdeu a esposa?
Lorde Wessex: De fato, Majestade, me falta a noiva. Como é que isso vai terminar?
Rainha:
Como terminam as histórias quando o amor é negado – com lágrimas e uma viagem. Aqueles a quem Deus uniu
em matrimônio, nem eu posso separar. (NORMAN; STOPPARD, 1998, p. 149-150)
O desfecho deste amor estava escrito – não nas estrelas –, mas na biografia do poeta, que era casado
quando foi para Londres. Além disso, os jovens pertencem a mundos diferentes – ele, ao teatro, ela, à corte.
Em Romeu e Julieta o amor mal-fadado serve para denunciar os males da guerra civil; em Shakespeare apaixonado
o amor é o alimento da arte: é o poder do amor que libera o jovem Will para voos mais altos, para além da
poesia de Dois cavalheiros de Verona; é a potência inspiradora do amor, subversivo e revolucionário como o
próprio teatro elisabetano, que transforma Will em poeta do amor eterno.
A rainha faz o grande elogio a Shakespeare quando diz que a peça do jovem Will foi capaz de
responder ao desafio proposto por ela mesma em uma festa no palácio de Greenwich: a peça de Will foi
capaz de revelar “a verdadeira face e natureza do amor” (NORMAN; STOPPARD, 1998, p. 150).
O filme também brinca com o culto à cidade-natal do poeta: no quarto de Will há uma caneca,
espécie de “relíquia” produzida pela indústria cultural, onde está escrito “A present from Stratford-uponAvon”. Além da caneca, há também uma caveira, ícone de Hamlet, peça que no universo temporal do filme
ainda não havia sido escrita. Em meio aos muitos objetos atulhados no pequeno quarto e a vários rascunhos
amassados, encontramos Will tentando, freneticamente e sem sucesso, escrever: a cena parodia a famosa frase
de Ben Jonson que afirma que o poeta “nunca errou sequer uma linha” [“He never blotted out a line”].
Quando a câmera se aproxima do personagem e focaliza as folhas de papel, há uma surpresa para o
espectador: Will não está tentando escrever uma peça, mas apenas treinando sua assinatura.
Assim, Shakespeare apaixonado satiriza a bardolatria e desmistifica a vida do poeta, revelando-a em
seus aspectos mais prosaicos: Will é um jovem pobre e ambicioso que luta pela sobrevivência. Um dos
diálogos iniciais do filme trata exatamente da fama de Shakespeare, que, na época, ainda não estava
consolidada: o usurário Fennyman e o empresário teatral Henslowe discutem o pagamento de uma dívida;
assim que o empresário descobre que a peça que permitirá que Henslowe lhe pague a dívida está sendo escrita
por Shakespeare, manda que torturem Henslowe ainda mais, pois o nome do dramaturgo nada significava
para ele:
Fennyman: Onde vai conseguir...
Frees: ...dezesseis libras, cinco xelins e nove pence...
Fennyman: ...incluindo os juros, em três semanas?
Henslowe:
Tenho uma nova peça maravilhosa.
Fennyman: Ponha seus pés no fogo.
Henslowe:
É uma comédia!
Fennyman: Corte o nariz.
Henslowe:
É uma nova comédia, escrita por William Shakespeare!
Fennyman: E suas orelhas. (NORMAN; STOPPARD, 1998, p. 2-3).
19
Shakespeare apaixonado também alude à controvérsia sobre a autoria: mostra que Marlowe é quem
sugere o título da peça, bem como seu argumento central e, ainda, cria Mercúcio, um dos mais fascinantes
personagens de todo o cânone.
Will: Soube que você escreveu uma nova peça, para o Curtain.
Marlowe: Não é nova. É o meu Doutor Fausto.
Will: Eu adoro as suas primeiras peças. “Foi esse o rosto que lançou mil navios ao mar e incendiou as altas torres de Tróia?
Doce Helena, com um beijo me torne imortal!”
Marlowe: Estou quase terminando outra peça, muito melhor que essa. O massacre em Paris.
Will: Um bom título.
Marlowe: Qual é o título da sua peça?
Will: Romeu e Ethel, a filha do pirata. [Will suspira]. Sim, eu sei.
Marlowe: Qual é a história?
Will: Bem, tem um pirata... [Will confessa] Na verdade, ainda não escrevi nem uma palavra.
Marlowe: Romeu é ... italiano. Sempre pronto para se apaixonar.
Will: É. Muito bom. Até que ele encontra...
Marlowe: Ethel.
Will: Você acha?
Marlowe: A filha de seu inimigo.
Will (pensativamente): A filha de seu inimigo.
Marlowe: O melhor amigo de Romeu é morto em duelo por um irmão ou parente de Ethel. Seu nome é Mercúcio.
Will: Mercúcio... um bom nome. (NORMAN & STOPPARD, 1998, p. 30)
Em suma, Shakespeare apaixonado trabalha com história e ficção, com fato e falsificação, com mito e
verdade. O filme se situa em um momento anterior ao reconhecimento público de Shakespeare como grande
dramaturgo, e estabelece correspondências pouco prováveis, mas instigantes e divertidas, entre sua vida e
obra. Elege o amor, um dos temas mais caros ao dramaturgo, como centro da narrativa e o situa no contexto
da biografia do poeta, especulando sem qualquer base histórica, sobre como sua vida sentimental teria
interferido e mesmo determinado sua obra.
Em muitos aspectos, o filme se aproxima das formas pelas quais, desde o século XVIII, a cultura
ocidental tem reverenciado o autor. Como o trabalho pioneiro de Nicholas Rowe e as biografias posteriores,
o filme tenta recuperar o teatro e a Londres de Shakespeare, elegendo um ano específico da vida do poeta e
traçando um perfil fascinante, ainda que pouco fiel, do jovem em início de carreira; como as fraudes de
William-Henry Ireland, o filme “inventa” novos fatos sobre a biografia de Shakespeare; como o Jubileu de
Stratford, o tom do filme é festivo e celebratório; como as várias pinturas que ao longo dos séculos retrataram
o dramaturgo, o filme propõe um novo rosto para o poeta do amor eterno, um rosto jovem, bonito e
romântico; como as teorias dos antisstratfordianos, o filme entretém a ideia de que Christopher Marlowe
contribuiu decisivamente para a criação de Romeu e Julieta. Também se pode aproximar o filme das biografias
mais recentes que, condenadas a reciclar o que já se sabe sobre o bardo, tendem a se concentrar em um
determinado período de sua vida, procurando recuperar o contexto cultural em que vivia o poeta e
ficcionalizando o que não se pode saber.
O enorme sucesso de Shakespeare apaixonado confirma, assim, a nossa eterna curiosidade por
Shakespeare ao nos oferecer mais uma face do dramaturgo: fictícia, como muitas pinturas; forjada, como os
“achados” de Ireland; factual, como as biografias; e apaixonante, como a obra do autor. Como escreveu Jorge
Luis Borges a respeito do dramaturgo, ''ninguém nunca foi tantos homens diferentes quanto este homem. [...]
ele era tudo e nada''. Para os apaixonados por Shakespeare, assim como para seus leitores, biógrafos,
forjadores, críticos, pintores, romancistas e cineastas, a frase de Borges não poderia ser mais verdadeira.
Referências
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20
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WHITMAN, Walt. November Boughs, 1888 (edição eletrônica, projeto Guttenberg).
Referências eletrônicas
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Sobre o panfleto de Robert Greene: <http://ise.uvic.ca/Library/SLT/intro/introcite.html>
Sobre William-Henry Ireland e as fraudes: <http://andromeda.rutgers.edu/jlynch/Texts/ireland.html>
Sobre Nicholas Rowe e a edição eletrônica de “An Account of the Life and Writings of the Author” e de The
Works of Mr. William Shakespear; revis'd and Corrected:
<http://infomotions.com/etexts/gutenberg/dirs/1/6/2/7/16275/16275.htm>
Sobre Mark Twain: <http://mark-twain.classic-literature.co.uk/is-shakespeare-dead/ebook-page-28.asp>
Sobre a controvérsia da autoria: <http://www.doubtaboutwill.org/declaration>
Sobre os editores de Shakespeare: <http://shakespeare.palomar.edu/Editors/Steevens.htm>
Sobre os retratos de Shakespeare: <http://www.npg.org.uk/live/index.asp> e <http://www.williamshakespeare.info/william-shakespeare-pictures.htm>
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