OS APÓSTOLOS DA EDUCAÇÃO E O INSTITUTO PONTE NOVA Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento1/EHPS-PUCSP O Instituto Ponte Nova2 foi a primeira instituição de ensino secundário presbiteriana que se dedicou a formar professores e pastores na Bahia. Este estudo se deterá nos objetivos que levaram o missionário e engenheiro William Alfred Waddell a propor e fundar aquela instituição educacional, em 1906, verificando que elementos formadores de determinada conduta foram propostos por aquele modelo de educação bem como a materialização daquele projeto, partindo da.documentação confessional e institucional localizada até o momento3. Estudar a história do IPN, como ficou conhecido o colégio, na perspectiva da nova história cultural permite compreendê-la “como instituição que é produto histórico da intersecção da pluralidade de dispositivos de normatização e de práticas de apropriação; (...)” (Carvalho, 1999, p. 32). Dispositivos estes de organização do tempo e do espaço, dos saberes a ensinar, e das condutas a inculcar. A análise dos dispositivos por meio dos quais aqueles religiosos interviram sobre a escola, e, conseqüentemente, na conformação do corpo e da alma da criança, possibilita “penetrar na caixa preta escolar, apanhando-lhe os dispositivos de organização e o cotidiano de suas práticas” (Carvalho, 1998, p. 32) e reconstituir as normas que regeram as estratégias de imposição, apropriação e difusão daqueles saberes. A pesquisa nasceu da necessidade de estudar a história da educação presbiteriana por ter sido a primeira denominação protestante a organizar escolas secundárias no Nordeste, procurando compreender a importância que a Bahia tivera para aquele grupo religioso como locus de sua atuação educacional na região sob sua jurisdição e que tipo de instituição educacional era aquela instalada no sertão baiano (Nascimento, 2004). Mesmo estando em funcionamento durante quase um século na cidade baiana de Wagner, o IPN não tem sido objeto de estudo por parte da historiografia educacional brasileira. No período de 1871 a 1971, a Junta de Missões da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA), conhecida como Igreja Presbiteriana do Norte, enviou missionários e professores para a Bahia. Responsável pela implementação do trabalho evangélico e educacional naquele Estado, já atuava no Sudeste desde 1859, organizando, além de igrejas, instituições educacionais, das quais, a que mais se destaca tanto na historiografia educacional brasileira como na historiografia protestante, é o Mackenzie College, de São Paulo. Através da Missão Brasil, como ficou denominado seu órgão de missões estrangeiras no país, a PCUSA agiu não só no cenário religioso brasileiro, mas, principalmente no educacional, instalando uma rede de instituições educacionais no país, moldando almas, formando gerações de pessoas propagadoras do seu modelo educacional (Vilas-Bôas, 2001). Pela grande extensão territorial, em 1896, a Missão Brasil dividiu-se Missão Sul do Brasil, compreendendo os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina, e em Missão Central do Brasil, abrangendo Bahia, Sergipe, Goiás, Mato Grosso e, posteriormente o Norte de Minas Gerais4. OS APÓSTOLOS DA EDUCAÇÃO Os diversos grupos protestantes norte-americanos conhecidos por “denominações” organizaram-se em associações voluntárias e em igrejas desestatizadas, com a tarefa de cristianizar não somente a República norte-americana, mas o mundo. Aqueles puritanos caracterizaram-se não só por aquele sistema de organização das igrejas, como no estabelecimento de escolas para a formação acadêmica dos seus pastores. Um dos principais instrumentos norte-americanos de intervenção internacional nas áreas da religião e da educação foi a missão estrangeira. As missões eram organizações administrativas, muitas delas denominadas de Juntas, pertencentes “a várias comunidades e, ou são sociedades constituídas para o fim de manter a propaganda evangélica no país e no estrangeiro, ou são comissões oficiais criadas pela autoridade eclesiástica das comunidades para a propagação da fé” (Mendonça, 1995, p. 50, 51). Seus missionários, geralmente tinham se formado nos grandes centros teológicos e normais do norte dos Estados Unidos (Princeton, Harvard e Yale) ou nos do sul (Vanderbilt e Richmond) e eram portadores de um “protestantismo de civilização”, “convencidos de que possuíam as chaves da modernidade religiosa e econômica” (Bastian, 1994, p. 108). Eles foram os agentes propagadores “dos modelos protestantes na América Latina”, importantes também “na transmissão de modelos organizativos importados, e na apresentação, em seu país de origem, da realidade latino-americana”. Apresentavam-se como representantes de uma cultura mais adiantada, civilizada, podendo ser um pastor, um médico, um enfermeiro, um professor ou também, uma missionária, uma enfermeira ou uma instrutora (idem, p. 111, 112). O INSTITUTO PONTE NOVA Em 1896, William Alfred Waddell foi designado superintendente das escolas da Missão Central do Brasil, enviando ao Diretor da Escola Americana de São Paulo, Horace M. Lane, um plano que propunha as diretrizes administrativas daquelas instituições, no qual o presidente do Colégio Protestante (ou quando este estivesse ausente, o Decano) seria o superintendente das escolas da Missão Central, “com total autoridade sobre as mesmas”; designaria seus diretores e pessoalmente inspecionaria os trabalhos deles para que as escolas mantivessem a qualidade; apresentaria à Missão um relatório anual das atividades das escolas, demonstrando se as estimativas propostas para o período foram alcançadas. Já os professores contratados pelo escritório da Missão não teriam direito a voto nas questões referentes às escolas, mas, o missionário residente seria consultado em todas as questões que afetassem o relacionamento entre a escola e a população (Minutes of the Meetings of the Central Brazil Mission, 1897-1912. Reunião realizada em 19/01/1898). Em meados de 1900, Waddell abriu um internato feminino na escola de São Félix, provavelmente, a principal da Missão Central naquele momento. A proposta para a escola era que, além do primário, seriam oferecidos os cursos secundário e industrial. O prédio que deveria ser construído estava projetado em dois andares, acompanhando as linhas arquitetônicas da Escola Americana de São Paulo. No andar térreo funcionaria o externato misto e, no andar superior, o internato das meninas. A planta baixa do externato trazia a divisão das salas de aulas para turmas mistas, com a capacidade de alunos e a localização das séries; a do internato explicitava a quantidade e dimensões dos quartos. Em 1901, ficara decidido pela direção da Missão que seria adicionado ao programa daquela instituição um curso de Pedagogia para formar professores brasileiros, o qual ficaria sob a responsabilidade da missionária-professora Margareth Bell Axtell (Minutes of the Meetings of the Central Brazil Mission, 1897-1912. Reuniões realizadas em 17/01/1901 e dez/1901). Sancha Galvão, uma das três alunas internas daquele ano, descreveu o colégio quando ele ainda funcionava num antigo sobrado, possuindo “enormes salas, bem ornamentadas e com boa mobília – paredes com quadros negros, mapas, quadros instrutivos e carteiras duplas”. Cada classe possuía uma professora e uma censora, a qual ficava andando entre as carteiras, observando o que os alunos precisavam. Para falar alguma coisa, o aluno levantava a mão e recebia a autorização. Dos livros adotados, Sancha lembrava-se do livro de leitura, Coração, de Raimundo de Amicis. Aos domingos, todos iam aos cultos, na cidade de Cachoeira (Galvão, 1993, p. 45, 46). Em 1904, Waddell apresentou um plano educacional, sistematizando os tipos de instituições educacionais que a Missão deveria estabelecer. As escolas paroquiais primárias seriam pagas em grande parte ou integralmente pelos seus benfeitores. As escolas missionárias seriam abertas na residência do missionário ou em outros pontos que oferecessem uma oportunidade especial para que as jovens “professoras-evangelistas” pudessem “influenciar e desenvolver grupos de novos convertidos”, os quais deveriam prover a maior parte do sustento financeiro do seu “campo”. Já a Escola Central deveria treinar professores para essas outras escolas. Outro ponto fundamental para ele era o estabelecimento de internatos, de “necessidade imediata se quisessem salvar para a Igreja as crianças de melhores classes sociais” que estavam chegando (Minutes of the Meetings of the Central Brazil Mission, 19041938. Reunião realizada em 19/12/1904). No mesmo relatório, Waddell propunha um novo tipo de instituição educacional, distinta da Escola Americana de São Paulo, mais compatível à realidade do hinterland brasileiro e às necessidades da Missão - uma escola rural formadora dos professores e pastores para suas instituições. Provavelmente, ele inspirou-se em algumas iniciativas tomadas por outros missionários norte-americanos anteriormente. Em 1869, George Nash Morton e Edward Lane, pastores da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (PCUS), conhecida como Igreja Presbiteriana do Sul, organizaram o Colégio Internacional, de preparatórios “segundo os princípios da liberdade de consciência e de culto e da metodologia norte-americana”, e, dentre as disciplinas oferecidas constavam “química analítica, industrial e agrícola, (...)”. Desta forma, “as classes agrícolas e comerciais encontrariam oportunidades de aprender a substituir ‘a rotina, a força numérica, e a agiotagem, pelo arado, pelo cultivador, pela economia e a honradez” (Hilsdorf, 1986, p. 191, 192). John Beatty Howell, missionário da PCUSA, idealizou e concretizou um novo tipo de escola na década de 1880, na cidade paulista de Jaú: adquiriu uma propriedade a poucos quilômetros dessa vila, na localidade denominada Ortigal ou Capim Fino, onde criou, em 1887, um instituto bíblico ou colégio agrícola. Devido à escassez de pastores, esse novo tipo de escola visava preparar jovens para trabalharem como catequistas ou pregadores em suas igrejas locais e incluía treinamento profissional em agricultura. Começou com doze rapazes, que pagavam seus estudos com trabalho agrícola (Matos, 2004, p. 84). A documentação confessional permite afirmar que o plano de Waddell fora aprovado, pois a Escola de São Félix foi designada a Escola Central da Missão. No entanto, apesar dos livros de atas da Missão não revelarem o motivo que levou Waddell a transferir o projeto para a cidade de Wagner, Galvão assinalou que a causa fora a falta de um manancial de água no local (Galvão, 1993, p. 48). Davis (1943) também registrou em seu survey que o novo local fora escolhido por Waddell “por causa do suporte perene de água” e situava-se “no centro de uma área subdesenvolvida do ‘hinterland’ da Bahia” (Davis, 1943, p. 53). Em 1906, a Fazenda Ponte Nova, de propriedade de Luiz Guimarães e Souza, tenentecoronel da Guarda Nacional5, foi comprada pela Junta de Missões Estrangeiras da PCUSA por vinte e dois contos de réis. Banhada pelo rio Utinga, a fazenda possuía 1.670 hectares, com área cultivável de 219 hectares (RUI BARBOSA. Documento sobre Imposto de Renda de Imóveis Rurais, 31/03/1936, nº 810. Arquivo do IPN, 1936). No dia 12 de agosto de 1906, o IPN iniciou suas aulas, sob a direção de Waddell6, oferecendo, inicialmente, o primário e, em seguida, o curso normal7. Como ainda não era reconhecido pelo governo estadual, só possibilitava aos seus diplomados o exercício do ensino primário particular. Oferecia também um curso bíblico, secundário, com a finalidade de formar pastores e missionários para os seus campos evangelísticos (BAHIA. Boletim de Informação do Serviço de Estatística da Educação e Saúde da Bahia, 1939. Arquivo do IPN). O objetivo de Waddell era fazer funcionar uma escola profissionalizante, oferecendo, inicialmente, o curso normal rural, destinada a dar aos jovens um preparo que os habilitasse a ensinar em núcleos urbanos mais afastados, não só no interior da Bahia mas em outros Estados, “desencadeando assim uma verdadeira onda de cultura e cristianismo naquelas terras sertanejas”. Como também, “educar o indivíduo para que ele vivesse em seu ambiente, fixando-o em seu meio, evitando, assim, a evasão rural para os centros urbanos” (Nascimento, 2003). A escola atendia uma clientela de situação financeira geralmente precária, isolada do litoral pela distância dos pontos terminais das linhas férreas. O IPN ministrava ensino religioso, presbiteriano, de caráter obrigatório, sendo um estabelecimento de natureza privada e confessional. Destinado a educar os filhos das famílias que seriam evangelizadas, era mantido pela PCUSA, não recebendo nenhuma subvenção do governo brasileiro. Funcionava em regime de internato para moças e rapazes, e, semelhante às suas escolas presbiterianas norte-americanas, adotava a co-educação e o sistema cooperativo, onde o aluno obtinha sua educação através de uma taxa anual de 50 mil réis e serviços prestados ao estabelecimento. Segundo Sancha Galvão (1993), as moças que lá se formavam, retornavam para seu local de origem, e abriam escolas particulares ou ensinavam nas escolas paroquiais da Missão, preparando alunos que, mais tarde, vinham terminar os seus estudos em Ponte Nova, pois, “as escolas públicas eram raras no sertão baiano e as moças formadas na capital não tinham interesse em ir para o interior, principalmente pelas dificuldades de transporte e de hospedagem”. As igrejas que as contratavam, pagavam um salário pelo ano letivo e todas as despesas da viagem de férias (Galvão, 1993, p. 50, 51). Um relatório apresentado por Robert Speer, secretário da Junta Presbiteriana de Missões Estrangeiras e presidente do Comitê de Cooperação na América Latina, após visitar o IPN, em 1909, demonstrava a representação8 que aqueles homens faziam da sociedade brasileira do interior do país. Para ele, aquela instituição funcionaria como uma escola de treinamento para crianças do Brasil tropical9. As meninas seriam preparadas para serem professoras das escolas nas cidades e fazendas; dentre os meninos, deveriam ser selecionados os melhores para serem seus futuros “ministros”, “meninos e meninas que deixaram suas casas e antiga vida desqualificada, agora seriam bons fazendeiros e boas mães” (Wheeler et alli, 1926, p. 299. Grifos meus). Para aqueles missionários, o IPN funcionaria como um instrumento de remodelação do indivíduo, produzindo o que Elias (1994) denominou de uma trama delicadamente tecida de controles, que abarca de modo bastante uniforme, não apenas algumas, mas todas as áreas da existência humana, é instilada nos jovens desta ou daquela forma, e às vezes de formas contrárias, como uma espécie de imunização, através do exemplo, das palavras e atos dos adultos. E o que era, a princípio, um ditame social acaba por se tornar, principalmente por intermédio dos pais e professores, uma segunda natureza no indivíduo, conforme suas experiências particulares (Elias, 1994, p. 98). O DIA-A-DIA NO INSTITUTO PONTE NOVA Para aquela concepção religiosa, a maneira de agradar a Deus não estava em se separar do mundo, mas em cumprir as tarefas, os deveres, dentro das profissões seculares. Educação e trabalho caminhavam juntos, pois este era visto como o produto de um longo processo de educação, como uma “vocação”. O conceito de vocação para o calvinismo “tinha, mais que o luteranismo e o catolicismo, o sentido de uma auto-destinação a dada condição de vida sancionada não apenas pela ordem social (como no catolicismo), mas também pela própria voz da consciência” (Weber, 1987, p. 174). O controle do tempo através de atividades era constante, possuindo uma função reguladora de atitudes e modeladora do comportamento. Aquele processo de escolarização visava inculcar no indivíduo a auto-disciplina, uma “consciência moral”, modificando a estrutura de sua personalidade. Segundo Elias (1998), o indivíduo “é sempre obrigado a pautar seu próprio comportamento no ‘tempo’ instituído pelo grupo a que pertence e, quanto mais se alongam e se diferenciam as cadeias de interdependência funcional que ligam os homens entre si, mais severa torna-se a ditadura dos relógios” (Elias, 1998, p. 97). Do momento em que o aluno se acordava até a hora de dormir, o corpo e a mente deveriam estar ocupados com o estudo e com o trabalho. Os rapazes cuidavam da limpeza do internato, dos arredores, da horta, das roças de laranja, abacaxi, banana, mandioca, feijão e arroz, movimentavam o engenho, onde produziam mel e rapadura, pilavam café e milho, e recebiam noções de carpintaria. As moças cuidavam da culinária, cada uma lavava e passava sua roupa, sendo proibidas de pagarem a lavagem. Todos tinham deveres com a igreja: participavam do coral e dos cultos aos domingos, independente de sua religião. Esta norma do colégio já era informada no ato da matrícula (BAHIA. Boletim de Informação do Serviço de Estatística da Educação e Saúde da Bahia, 1939. Arquivo do IPN). As segundas-feiras eram destinadas à lavagem da roupa. Aos sábados, à noite, todos se reuniam para brincar. “Cantavam, recitavam. Havia diversos brinquedos que se chamavam brinquedos de salão”. As refeições eram servidas no internato, para moças e rapazes, quando o diretor e professores presidiam as mesas. O café da manhã, servido das 7 às 7:30 constava de carne acompanhada de verduras, arroz, farinha, “tudo como muita fartura e arrematado com café”. Em seguida, uma turma de seis alunos descia ao rio para lavar a louça. Aqueles que preparavam o café da manhã eram responsáveis pela limpeza dos quartos e da copa. Às nove horas, todos iam para a aula. Ao meio-dia, era servido um lanche: café, leite, bolo de milho e trigo, pão fabricado na própria instituição, doce e frutas. Das 14 às 15:30, os alunos retornavam às aulas (Galvão, 1993, p. 53). Entre uma aula e outra, os alunos deveriam “descansar” do trabalho mental, mas executariam “pequenos trabalhos: distribuição de cadernos, limpeza do quadro etc”. Segundo o documento que registrava o horário de atividades, aquelas pequenas “atividades não foram incluídas no horário porque ocupam apenas alguns segundos que são suficientes para descanso, (...)” (INSTITUTO PONTE NOVA. Horário, 1944. Arquivo do IPN, 1944.). Após as aulas, os alunos continuavam com suas tarefas. Às 18 horas, era servido o jantar: feijão com carne, verduras e mandioca, ao invés da farinha. Após o jantar, havia o culto doméstico. As duas horas seguintes eram destinadas à banca e às 21 horas, todos se recolhiam. CONSIDERAÇÕES FINAIS A visita feita a Wagner, em 2002, e as entrevistas concedidas por ex-alunos do IPN permitiram constatar que a presença daquele grupo religioso também imprimira um modelo arquitetônico às residências da cidade que ficavam próximas aos seus prédios10. Segundo os depoimentos tomados, todo aquele aparato pedagógico, num espaço rural, facultou a formação de um núcleo urbano. Na operação histórica, o espaço é também fonte, ou seja, sinal e signo. Sinal, porque nele está inscrito o passado. E não só na forma de inscrições escritas monumentais, normalmente urbanas, mas na sedimentação, permanência e disposição espacial dos seres humanos, dos objetos e das coisas. E signo, porque ditas sedimentação, permanência e disposição, assim como o espaço como território e lugar, indicam ou dizem algo, remetem a significados que têm de ser interpretados, tanto sem estarem materialmente inscritos como por se encontrarem na memória das pessoas, no imaginário coletivo (Viñao Frago, 1996, p. 76). No campo da história das instituições escolares, a arquitetura da escola, a distribuição do espaço e do tempo escolar torna-se importante para a compreensão da implantação de determinado projeto pedagógico. Segundo Escolano (1998), A arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie de discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais e também ideológicos. Ao mesmo tempo, o espaço educativo refletiu obviamente as inovações pedagógicas, tanto em suas concepções gerais como nos aspectos técnicos (Viñao e Escolano, 1998, p. 26) Aquele grupo religioso sabia que era preciso dar visibilidade ao seu projeto educacional, demonstrando, assim, a importância da educação para ele. Fazia-se necessário construir edifícios escolares para que, na monumentalidade de seus prédios, a escola fizesse ver sua ação pedagógica. A distribuição do espaço escolar explicitava o objetivo de projeção e divulgação que a Missão pretendia imprimir àquela educação, pois, além de ser “um constructo cultural que expressa e reflete (...) determinados discursos”, é “um mediador cultural em relação à gênese e formação dos primeiros esquemas cognitivos e motores, ou seja, um elemento significativo do currículo, uma fonte de experiência e aprendizagem” (Viñao e Escolano, 1998, p. 26). De acordo com o relatório de Wheeller (1926), em 1909, as instalações do IPN consistiam num sobrado que servia de dormitório para as estudantes e residência para o missionário-diretor e sua família; uma pequena casa-escola, na verdade, um barracão inacabado; e, do outro lado do rio, um dormitório para os rapazes. Em 1925, já existiam três prédios. Dois deles, de um lado do rio: o primeiro, servia de hospital, desde 1917 e estava sendo construído o prédio definitivo que ofereceria 25 leitos, um consultório, uma casa para o farmacista, outra para o médico, e dependências para aqueles que vinham se consultar ou fazer algum tratamento. Além deste, uma igreja e um prédio onde funcionava uma escola primária. Em frente ao rio, a antiga casa agora funcionava somente como internato feminino, acomodando 30 moças em beliches; o casal missionário estava instalado numa pequena casa com dois quartos; em outro prédio funcionavam as salas de aula e uma capela para os estudantes (Wheeler et alli, 1926, p. 299-302). Até 1938, a Missão investira na construção de um complexo educacional em Wagner. O Relatório de Verificação das Instalações do Instituto Ponte Nova, realizado pela Comissão de Fiscais da Secretaria de Educação da Bahia, naquele ano, descreveu minuciosamente o IPN: o sobrado, destinado à residência do diretor e internato masculino; três pavilhões de salas de aula, dispostos em formato de ferradura; um sobrado em estilo vitoriano, construído no ponto mais alto da fazenda, destinado à residência das alunas internas e das professoras do estabelecimento (BAHIA. Relatório de Verificação sobre as condições e instalações do IPN, 1938. Arquivo do IPN). Além do IPN, a Missão organizou e subsidiou até 1971, em Wagner, uma igreja e uma escola de auxiliar de enfermagem, a primeira do gênero na Bahia, ao lado do Grace Memorial Hospital. O sucesso daquele complexo institucional, integrando religião, educação e saúde, levou a Missão a organizar, em 1923, um projeto denominado “Escolas Ponte Nova” no território sob sua jurisdição. Em 1926, existiam escolas rurais em Buriti e Cáceres, Mato Grosso (Chapada dos Guimarães); Jataí e Planaltina, Goiás (Chapada dos Veadeiros). Nesta última cidade também foi construído um hospital. Em Rio Verde, Goiás, foram organizados pelo Dr. Donald Gordon, uma escola de enfermagem e um hospital. As atas ainda falam de um hospital em Araguaia, Mato Grosso, e de um hospital e escola em Anápolis, Goiás, estes dois últimos construídos pelo Dr. James Fanstone. Vinculando educação, saúde e religião, aquele complexo constitui-se num espaço privilegiado de investigação de instituição confessional protestante, presbiteriana, destinado a moldar almas, formar pessoas que difundiriam um modelo pedagógico nas populações rurais, distinto de seus colégios instalados nos centros urbanos, como era o caso do Mackenzie College, em São Paulo (Minutes of Meeting of the Central Brazil Mission (1904-1938). NOTAS 1 Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação, do Núcleo de Pós-Graduação em Educação da UFS. Professora da Rede Pública Estadual de Sergipe. E-mail: [email protected] 2 O Instituto Ponte Nova é objeto da pesquisa que desenvolvo atualmente no Doutorado em Educação (PUC/SP), sob a orientação da Profa. Dra. Marta Maria Chagas de Carvalho. 3 Minutes of Meeting of the Central Brazil Mission (1897-1912); Minutes of Meeting of the Central Brazil Mission (1904-1938). Documentação institucional do IPN, no período de 1911 a 1953. 4 Não obstante Matos (2004, p. 19) afirmar que Bahia e Sergipe pertenciam à Missão Central do Brasil, o Livro de Atas da Missão registra além desses Estados, Goiás, Mato Grosso e Norte de Minas Gerais. Minutes of Meeting of the Central Brazil Mission (1904-1938). 5 BAHIA. Documento ‘Projeto Wagner’. Câmara de Comércio Americana-BA/Governo do Brasil. Arquivo do IPN, 1995. Segundo Galvão, posteriormente, o tenente-coronel foi excomungado da igreja católica por ter feito negócio com os presbiterianos e toda a sua família se converteu ao presbiterianismo (Galvão, 1993, p. 48). 6 Waddell permaneceu em Wagner até o ano de 1914, quando saiu para presidir o Mackenzie College, até 1927 (Matos, 2004, p. 136). 7 Há indícios de que, em 1911, foram iniciadas as atividades do curso normal rural, com duração de cinco anos (INSTITUTO PONTE NOVA. Livro de Registro de Pontos/Matrícula, 1911-1925. Arquivo do IPN). Naquele mesmo ano, Waddell solicitou ao escritório de Nova Iorque uma professora com experiência em High-School (Minutes of Meetings of the Central Brazil Mission, 1897-1912, Reuniões realizadas entre os dias 11 e13/12/1911). 8 Remete-se aqui ao conceito de representação de Chartier (1986). 9 Termo utilizado pelos missionários presbiterianos norte-americanos em relatórios para referir-se ao hinterland brasileiro. 10 Segundo Escolano (1998), “não apenas o espaço-escola, mas também sua localização, a disposição dele na trama urbana dos povoados e cidades, tem de ser examinada como um elemento curricular. A produção do espaço escolar no tecido de um espaço urbano determinado pode gerar uma imagem da escola como centro de um urbanismo racionalmente planificado ou como uma instituição marginal e excrescente”. (Viñao e Escolano, 1998, p. 28). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAHIA. Relatório de Verificação sobre as condições e instalações do IPN. Arquivo do IPN, 1938. BAHIA. 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