A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO ÀS MARGENS DE BELO MONTE: CLASSES SUBALTERNAS, RESISTÊNCIAS E DESTERREAÇÃO IVANA DE OLIVEIRA GOMES E SILVA1 Resumo Parte de um complexo movimento de reestruturação do capital, as ações do Estado capitalista para a exploração predatória da Amazônia, atuam em várias frentes e a exploração do potencial hidroenergético representa apenas uma entre outras formas. Historicamente as investidas do capital desconsideram as populações originárias, as comunidades tradicionais, os trabalhadores em geral, os quais são ameaçados e atingidos por ações expropriatórias, pelas quais são espoliados em seus territórios, desde sua materialidade espacial até nas suas diferentes formas de resistência. O objetivo principal desse artigo é debater as variadas formas de desterreação a que estão submetidas as classes subalternizadas pelo capital, diante dos impactos e alterações impostas pelo barramento do Rio Xingu em função da produção de energia elétrica. Palavras chave: Estado capitalista, Amazônia, desterreação, resistência, classes subalternas. Abstract Part of a complex movement of capital restructuring, the actions of the capitalist state to the predatory exploitation of the Amazonia, act on several fronts and the exploitation of the hydropower potential is only one among other forms. Historically the capital invested disregard the originating peoples , traditional communities, workers in general, which are threatened and hit by expropriatory actions for which they are exploited in their territories , from its materiality to space in its different forms of resistance The main objective of this article is to discuss the various forms of dispossession that are subject subaltern classes by capital, on the impacts and changes imposed by the Xingu River bus on the basis of electricity production. Keywords: Capitalist state, Amazonia, dispossession, endurance, subaltern classes. 1 – Introdução O presente trabalho visa discutir a relação entre os interesses do Estado Capitalista e as reações da sociedade civil no contexto do planejamento e construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no município de Vitória do Xingu, sudoeste do estado do Pará. Centro de irradiação da crise planetária contemporânea, a lógica da acumulação capitalista e sua crise estrutural, tem no Estado capitalista seu “imprescindível parceiro de aventuras e gozos”. Assim sendo, uma das funções primordiais do Estado capitalista é prover de condições estruturais favoráveis o processo de acumulação do capital ao mesmo tempo em que deve zelar pelos interesses da população. Os processos de territorialização do agrohidronegócio na Amazônia são compreendidos neste estudo, a partir das ações do Estado executadas desde a ditadura militar no Brasil, tomando a década de 1970 como ponto de partida. As 1 Acadêmica da Pós-Graduação FCT-UNESP. 2303 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO iniciativas do Estado são analisadas como expressão dessa parceria, que prioriza os intentos do capital e desconsidera, reduz e degrada os seres humanos, que são considerados meros custos de produção (Mészáros, 2007). Tal processo somente se realiza ao impor a desterreação ou desterritorialização das populações tradicionais, entendendo-se que desterreação pode ser definida como uma quebra de vínculos, uma perda de território, um afastamento dos nossos territórios, havendo assim, uma perda de controle das territorialidades pessoais ou coletivas, uma perda de acesso a territórios econômicos, simbólicos. A Amazônia brasileira possui características peculiares que ensejam a cobiça do grande capital, quais sejam, uma extensão territorial que ocupa mais da metade do território total do país, o bioma mais extenso e uma reserva hídrica de grandes proporções. Para o recorte temporal adotado, a Bacia do Rio Xingu se tornou objeto de interesse do Estado por seu potencial hidroelétrico oficialmente durante a década de 1970. 2 - Desenvolvimento É crucial para a discussão do tema ressaltar que a região é conhecida nacionalmente, há décadas, pelos graves conflitos fundiários sucessivos, em razão da luta pelo uso e posse da terra. A disputa territorial na região foi impulsionada pela sobreposição de grandes projetos coordenados e financiados pelo Estado, tais como, a construção da Rodovia Transamazônica, Projeto de Colonização coordenado pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA), Projetos de Agropecuária e de exploração mineral financiados pela SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia), entre outros. Tais projetos pressupunham via de regra a preponderância do interesse nacional, o suposto “vazio demográfico” e o ataque aos habitantes tradicionais, sejam as populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas ou pequenos agricultores. Na Amazônia, como no restante do Brasil e da América Latina, a partir da década de 1970 foram criadas redes de mobilização popular, sobretudo como manifestações de resistência aos opressivos regimes totalitários que tomaram o poder na segunda metade do século XX. O anseio por participação da sociedade civil nas decisões políticas fomentou o surgimento de várias frentes que se 2304 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO expressavam em movimentos e associações civis (GOHN, 2013). O cenário de problemas sociais que impulsionou o surgimento e desenvolvimento dos movimentos sociais era bastante amplo, o regime opressivo da ditadura militar era apenas a face mais violenta apresentada aos que almejavam transformações na sociedade. Miséria e opulência eram flagrantes nas cenas cotidianas do Brasil, no contexto urbano ou rural. A desigualdade social, os planos econômicos e de desenvolvimento elaborados para o país e voltados exclusivamente para o atendimento dos interesses do capital, a degradação da natureza promovida pelos grandes empreendimentos, foram catalisadores de amplas reações de indignação e provocaram o desenvolvimento de organizações populares e ações coletivas na luta por direitos e por justiça social nos mais diferentes contextos: sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, comunidades eclesiais de base da igreja católica, associações, movimentos ambientalistas, etc. No decurso das décadas de 19701980 houve um acirramento do processo massivo e predatório de ocupação da Amazônia brasileira (PÁDUA, 2000; FEARNSIDE, 2005). Neste período, a migração foi incentivada pelo governo militar que via na ocupação deste „vazio demográfico‟, a possibilidade de garantir o domínio e a soberania nacional sobre a região, bem como a implementação de grandes projetos na perspectiva desenvolvimentista, tais como os de mineração (Pólo Noroeste, Projeto Carajás), a construção de usinas hidrelétricas (UHE Balbina-AM, Samuel-RO, Tucuruí-PA) e de rodovias, como a abertura da Transamazônica (BR-230) e a Cuiabá-Santarém (BR-163). Os Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu foram iniciados em 1975. Destes estudos, cujas conclusões foram publicadas pelo governo brasileiro no ano de 1980, quando a ELETROBRÁS recebeu o relatório dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu, até o ano de 2010 quando a concessão da licença prévia foi expedida pelo IBAMA, em 1º de fevereiro de 2010, ocorreram inúmeras manifestações contrárias ao projeto da UHE, como assembleias, passeatas, embargos judiciais, atos públicos, promovidos por movimentos sociais de resistência liderados por indígenas, ambientalistas, religiosos, ribeirinhos, pesquisadores, artistas nacionais e estrangeiros, que 2305 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO denunciavam os graves danos socioambientais que a UHE provocaria na região e solicitavam seu cancelamento. Um marco emblemático da resistência popular regional diante dos projetos de construções de Usinas Hidrelétricas no rio Xingu, foi a realização, no ano de 1989, da I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Liderado pelos indígenas da etnia Kayapó e apoiado pelos movimentos sociais em escala local, regional, nacional e internacional, o encontro obteve ampla cobertura da imprensa mundial e teve como símbolo maior da manifestação a reação indignada de Tuíra, mulher da etnia Kayapó, que encostou um facão na face do representante da ELETRONORTE durante o evento. A Constituição Federal do Brasil, ao tratar do Meio Ambiente, postula que cabe ao Estado assegurar o equilíbrio harmonioso entre o homem e o meio ambiente em que vive, devendo sempre o interesse de proteção ao meio ambiente, por ser um interesse público, prevalecer sobre os interesses individuais privados. Ora, esse Estado é efetivamente o provedor de condições estruturais para o avanço do Capital, cuja característica destrutiva é evidenciada por diversos autores de teorias críticas, tais como Mészáros (2007), que discute a incontrolabilidade e a destrutividade do capital globalizante. Eis alguns dos eixos contraditórios que destacamos preliminarmente no estudo em curso: As ações do Estado versus os interesses da sociedade civil; interesses públicos x interesses privados; expansão incontrolável do capital x sobrevivência humana. Belo Monte enquanto um projeto gestado pelo Estado e contestado vigorosamente pelas populações regionais durante três décadas, oferece a possibilidade de análise da fragilidade do território tradicional diante dos avanços do capital. Mais ainda, vislumbramos a possibilidade de analisar a ascensão de um partido originário das lutas populares transformado em agente estratégico do capital para viabilizar a processos de territorialização do agrohidronegócio na Amazônia. 3 - Belo Monte: represamento de injustiças e silenciamentos Desde a retomada do planejamento e das obras da UHE Belo Monte na primeira década dos anos 2000, assistimos um esforço monumental das forças do capital para silenciar as vozes e pensamentos discordantes do insano megaprojeto 2306 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO do PAC. O fato de o poder central do país estar ocupado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) quando o projeto da UHE Belo Monte finalmente se impôs e massacrou as resistências populares foi uma grande surpresa de início e uma constatação tardia de um processo de cooptação (e de corrupção) que estava em curso há mais tempo. A proximidade ideológica e militante existente entre os integrantes dos vários movimentos sociais locais, contrários à UHE Belo Monte e o governo que está ocupando o poder central, gerou uma profusão de constrangimentos e processos de desmobilização. Havia uma expectativa nos movimentos sociais que a eleição de Lula encerraria de vez a sanha da construção da UHE no Xingu. A construção das alianças do governo petista, contudo, acenava na direção contrária. Edson Lobão, político conservador maranhense, que se destacou desde os conflitos envolvendo a construção da UHE Itaipu Binacional defendendo os empreendimentos hidrelétricos sem se importar com os prejuízos das populações atingidas2, esteve ocupando posições estratégicas junto ao Ministérios de Minas e Energia, capitaneado por Dilma Roussef, quando finalmente o governo assumiu a construção da UHE Belo Monte como ação prioritária diante das ameaças de “apagão” do setor elétrico. Diante da resistência amplamente divulgada pelas populações ameaçadas pelo represamento do rio Xingu, em setembro de 2009, na condição de Ministro das Minas e Energia, Lobão vociferou sobre a existência de “forças demoníacas” contrárias aos projetos hidrelétricos. O enunciado do ministro expõe um amplo movimento de criminalização (demonização!) dos movimentos sociais contrários ao empreendimento da UHE Belo Monte. Na metodologia utilizada pelos empreendedores da UHE Belo Monte para silenciar e neutralizar os movimentos sociais merece ser destacado o processo de apropriação e deturpação das estratégias desenvolvidas historicamente pelos movimentos sociais. O simulacro democrático operacionalizado nas audiências públicas obrigatórias, demonstrou desde os antecedentes das obras, que todas as 2 A pesquisadora Guiomar Germani, na obra “Expropriados terra e água: o conflito de Itaipu” (2003), destaca pronunciamento do então deputado federal Edison Lobão, no dia 11 de abril de 1981, na condição de vice-líder do governo, defendendo a direção da Itaipu Binacional frente às denúncias de corrupção, recebimento de propinas e descaso nos processos indenizatórios e de reassentamentos dos expropriados. 2307 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO armas antigas da política arcaica seriam utilizadas para forçar a opinião pública em favor da barragem. Foram providenciados ônibus e caminhões para transportar caravanas de participantes, trazidos de redutos eleitorais de áreas rurais, de comunidades religiosas conservadoras e pouco esclarecidas, munidos de bandeiras, camisetas e frases em favor do empreendimento, usando apenas o volume de pessoas presentes e seus gritos como argumento para intimidar os movimentos contrários à UHE Belo Monte. Numericamente inferiores, graças às artimanhas dos empreendedores no controle de participantes nos eventos, os movimentos sociais sofreram com campanhas difamatórias, acusados de serem atrapalhadores do progresso, dos empregos que seriam gerados para a população local, etc. O fato de ter no governo, patrocinador do empreendimento, os antigos aliados, também repercutiu fortemente contra muitas lideranças da resistência ao empreendimento. Há que se diferenciar aqui pelo menos duas tendências majoritárias assumidas pelos atores locais remanescentes das grandes ações coletivas na região entre os anos de 1980 até os anos 2000, diante da construção da UHE Belo Monte: A) os grupos que se institucionalizaram e cooptados pelo governo assumiram seu discurso desenvolvimentista, abandonando a luta contra a barragem e assumimindo um discurso de buscar os benefícios do empreendimento; B) os grupos que insistiram em se posicionar contrários à UHE Belo Monte e com isso foram isolados no cenário político. É possível também identificar subgrupos que se mesclam alternadamente aos dois grupos majoritários em ações coletivas pulverizadas. O pragmatismo dos governos petistas na administração do estado burguês rapidamente abandonou as bases, ou seja, as entidades de classes, movimentos por justiça social, coletivos que possibilitaram a ascensão do partido, que por mais de 30 anos foi companheiro nas lutas contra as desigualdades profundas existentes no país. Contudo, podemos compreender que o processo de rendição ao capital foi iniciado há pelo menos uma década antes da chegada ao poder central, com a institucionalização das organizações de base, até então articuladas como lutas amplas por justiça social, igualdade, cidadania, emancipação, direitos, reforma agrária, etc. O novo formato de lutas, disseminado desde o início dos anos 1990, 2308 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO visava criar novas mobilizações estimuladas por programas e projetos sociais encimados por ONG‟s, com um padrão formal de pessoa jurídica obrigatório e com uma crescente burocratização das ações e lutas decorrentes de conflitos sociais. A figura das lideranças assalariadas, vinculadas formalmente aos coletivos institucionalizados operando full time também sinalizavam para mudanças significativas nas mobilizações e organizações populares. A desterritorialização da resistência é um dos produtos mais caros ao capital em sua marcha desenfreada rumo à exploração ilimitada aos recursos naturais da Amazônia e quiçá do planeta. O uso dos conhecimentos construídos no processo de consolidação da UHE Belo Monte pelos empreendedores, que neutralizou sistematicamente a resistência popular, representa um ataque à história das lutas dos trabalhadores. A desmobilização dos grupos subalternizados pelo capital está em curso, e tal operação articula uma teia que mobiliza dinheiro, poder, ameaças, intimidação, judicialização da resistência, criminalização dos opositores e o atropelamento de direitos constitucionais e de acordos com organismos internacionais. A violação do direito de consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas expõe o processo unilateral e atropelado do licenciamento e a violação do direito de consulta prévia, comprovam o descaso do governo brasileiro com a legislação e a falta de diálogo com os povos indígenas sobre Belo Monte. 4 – Belo Monte e suas ‘Frentes de Atração’ 3 A Licença Prévia (LP) da usina apresentou uma série de condicionantes a serem cumpridas pela empresa para a obtenção da Licença de Instalação. Dentre essas condicionantes, destacam-se aquelas relacionadas aos reassentamentos, que serão construídos para realocação da população atingida pelo empreendimento Belo 3 Referência a uma das principais táticas, desde os tempos coloniais, em um cerco pacífico de povos indígenas (Lima, 1995), que era a de identificar-se como amigo, isto é, como um interlocutor de confiança. A iniciativa da pacificação dos povos indígenas estava ligada ao fato destes estarem situados em áreas destinadas, pelo Estado, à exploração econômica intensiva, como nos projetos de colonização e nos grandes projetos de mineradoras e hidrelétricas. (Silva, 2009). 2309 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Monte (BRASIL, 2010). Atualmente, a obra já está quase concluída e os reassentamentos apresentam problemas, desde famílias que foram excluídas do programa sob as mais diferentes alegações, como prazos de cadastramento, por exemplo, até problemas estruturais nas casas entregues aos expropriados. A empresa preferiu indenizar a reassentar, pagando aos moradores quantias abaixo do mercado local, inflacionado pelo próprio empreendimento. Outra estratégia utilizada foi negociações individualizadas, por exemplo, em vilas na área rural. A estratégia de „dividir para dominar‟, foi aplicada durante as reuniões de negociação e a individualização na negociação serviu aos intentos do empreendedor, que gastou menos nas indenizações e não se comprometeu com o reassentamento coletivo na área rural. As ações mitigatórias dos impactos do empreendimento no que se refere aos povos indígenas, na prática são ações genocidas, visto que uma das metodologias adotadas pelo Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM) criou um balcão de negociações na cidade de Altamira, o que colocou em situação de alta vulnerabilidade as populações das diferentes etnias do Xingu. Atraídos para a cidade, sem contar com alojamentos adequados, centenas de indígenas ocuparam os vãos entre os prédios da Universidade Federal do Pará, ou ficaram amontoados em espaços superlotados e inadequados alugados pelo Consórcio. Casos de bebedeiras, brigas e até estupros envolvendo indígenas ocorreram durante este período. A motivação das populações indígenas para a permanência na cidade era a busca por bens de consumo, geralmente supérfluos, prejudiciais à saúde coletiva, distribuídos de forma similar aos relatos da ocupação europeia nas américas no século XVI. Os “presentes” variavam desde roupas, alimentos industrializados, combustíveis, veículos motorizados, eletrodomésticos, enfim, uma parafernália de bugigangas que de alguma forma gera uma dependência perversa das populações nativas a diversos produtos desnecessários as suas dietas ou as suas vidas nas aldeias. Não obstante a desfaçatez da oferta abundante dos presentinhos, as obras reivindicadas nas aldeias, que consistiram basicamente em moradias, escolas e postos de saúde, quando muito tiveram a construção iniciada, mas nenhuma das etnias recebeu efetivamente esses investimentos que seriam relevantes para o bem- 2310 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO estar das comunidades a médio e longo prazo. Criou-se uma dependência brutal das populações indígenas em relação ao consórcio empreendedor: o ritmo da vida no ambiente tradicional foi alterado, muitas famílias abandonaram suas roças e passaram a se alimentar exclusivamente com os produtos fornecidos pelo empreendimento. A sociedade civil, devidamente institucionalizada, foi convocada pelo governo federal, via Ministerio da Integração Nacional e com o aparato local do CCBM, para participar do rateio de um montante estimado em R$ 500.000.000,00 (quinhentos milhões de reais). No discurso do empreendedor, os movimentos sociais seriam “empoderados” ao participar da distribuição dos recursos, participando dos editais, submetendo projetos ao gestor dos recursos do PDRS Xingu. O Comitê Gestor do PDRS Xingu é composto por representantes dos governos federal, estadual e municipais, comunidades indígenas, movimentos sociais, organizações ambientais, entidades sindicais dos trabalhadores rurais, urbanos, de pescadores e entidades patronais. De acordo com o discurso oficial, essa estrutura permitiria que a população afetada, assim como as associações que a representa, opinassem sobre a implantação do projeto de Belo Monte (BRASIL, 2011). A criação de um comitê composto pelos representantes da sociedade envolvidos e/ou afetados pela obra de Belo Monte é propagandeada pelo empreendimento como um exemplo de gestão de conflitos, na verdade é um grande balcão que privilegia e coopta parceiros de acordo com a sua influência no cenário regional e partidário. É um dispositivo que neutraliza os movimentos de resistência, considerando-se que ao aceitarem participar do jogo na caça aos recursos financeiros, aceita-se operar dentro das regras do consórcio. Assim, do ponto de vista formal e ao arrepio das leis, o empreendimento se impõe dispersando, subjugando e silenciando seus opositores. 5 – Conclusões Cada reivindicação ou projeto de sindicatos, associações, fundações, ong‟s, na dinâmica definida pelo CCBM, ,tem sua esfera de identificação fragmentada, territorial, corporativa e socialmente. Cada projeto encaminhado e defendido pelos representantes dos movimentos sociais junto aos comitês, expressa a fragmentação 2311 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO e o isolamento a que foram submetidos. O pragmatismo, imediatismo e despolitização dos movimentos sociais é o trunfo que os operadores do capital exploram nesse momento. O valor de uso do território, inclusive do território simbólico da resistência da classe trabalhadora, é reduzido ao valor de troca, que o capital define como melhor lhe convém. Daí emerge a necessidade de buscar esclarecer a consciência da atual ausência de uma luta contra-hegemônica, que significa um retrocesso na luta dos trabalhadores da região afetada pela UHE Belo Monte. A luta por justiça social que marcou a história dos trabalhadores da Transamazônica e Xingu, está amiudada, constrangida, servindo ao capital, buscando pedinchas travestidas de políticas públicas, como reparação por um dano maior. Essa cumplicidade maliciosamente construída pelo Estado capitalista, serve para encobrir o aviltamento do território duramente conquistado pelas lutas dos trabalhadores em suas associações, sindicatos, movimentos, no decorrer de décadas. Constituído na parceria com o Estado, o território do capital tem a seu favor todo o aparato político. Não há limites legais, ambientais, jurídicos. Segundo a procuradora da República em Altamira, Thaís Santi4, “houve um processo de silenciamento da sociedade civil.” A reflexão acerca da significação do território para além de uma racionalidade instrumental, que na contemporaneidade tem reduzido-o à um status de recurso natural dentro de uma lógica economicista, busca problematizar uma concepção dicotomizante que aparta natureza e sociedade como se fossem categorias isoladas. O esforço reflexivo para compreender os desdobramentos do avanço destrutivo do capital é crucial para a construção de sua necessária superação. A produção de eletroenergia, considerada essencial para a operacionalização do modelo urbano-industrial, pilar do sistema capitalista, faz com que a energia elétrica seja concebida como uma mercadoria importante para a reprodução do capital, e, consequentemente sua produção e uso se encontram administradas pela lógica do mercado. Pulverizadas as resistências, as injustiças socioambientais decorrentes da construção da usina hidrelétrica no rio Xingu, são tratadas pela lógica do capital 4 Entrevista concedida à Eliane Brum em dezembro de 2014. 2312 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO como custos de produção. Isso é representativo da irracionalidade de um sistema que ameaça o futuro da humanidade, seja pela desumanização nas relações, pelo desrespeito às leis e pela ausência total de limites. De acordo com Antunes (2003, p. 16), é “imprescindível entender quais mutações e metamorfoses vêm ocorrendo no mundo contemporâneo, bem como quais são seus principais significados e suas mais importantes consequências”, assim buscamos acompanhar as metamorfoses que envolvem os movimentos sociais no confronto com os interesses do capital, com o objetivo de entender as contradições da sociedade do capital, as transformações e mudanças que atingem diretamente as diferentes formas de expressão do trabalho e da cultura, já contaminadas pela imposição das condições degradantes à classe trabalhadora pelo capital. Busca-se, portanto, ampliar os horizontes de entendimento desse processo, para ter condições de evidenciar as contradições e os vínculos existentes entre as várias dimensões do processo hegemoneizador do capital em nível mundial e que implica na condução política dos trabalhadores, nos sindicatos, nos movimentos sociais e nos partidos políticos. Tal tarefa exige que se concentrem esforços para dirigir a atenção sobre a dinâmica geográfica do trabalho e sua plasticidade continuamente refeita, para a constante territorialização-desterritorialização- reterritorialização que extrapola as fronteiras existentes entre o que é rural e do que é urbano, que rompe com os termos cidade-campo e se mescla às diferentes relações de trabalho, vínculos empregatícios e às subjetividades expressas no âmbito da identidade organizativa (THOMAZ JUNIOR, 2009). REFERÊNCIAS ALVES, Giovanni. Limites do sindicalismo- Marx, Engels e a crítica da economia política. Bauru: Canal 6, 2014. ALVES, J. As revoltas dos trabalhadores em Jirau (RO): degradação do trabalho represada na produção de energia elétrica na Amazônia. 671 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2014. BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Plano de desenvolvimento regional sustentável (PDRS) do Xingu. Brasília: MI, 2010. BRASIL. 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