A música no documentário O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas Filipe Brito Gama Universidade Federal de São Carlos – UFSCar – Brasil [email protected] Resumen: O documentário O Rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), dos diretores Paulo Caldas e Marcelo Luna, é uma obra significativa dentro da cinematografia do gênero, nas últimas décadas, no Brasil, participando de diversos festivais e atingindo um público considerável. Também converge com outros filmes da mesma época com relação à sua temática, abordando as periferias brasileiras, mais especificamente Camaragibe, próximo à Recife. Porém, um dos elementos diferenciadores dessa película é a forte presença da música, que está tanto no discurso temático do filme, ao abordar o rap como um elemento de modificação social, principalmente através da figura de Alexandre Garnizé, como também na presença de diversas músicas na construção narrrativa do filme, proporcionando um tratamento da trilha musical bastante complexo. Este trabalho tem como objetivo analisar a trilha musical do documentário O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas, observando onde as essas músicas aparecem, como elas são articuladas na trama, que músicas são essas, para posteriormente fazer apontamentos mais específicos sobre a presença do rap no filme. Palabras clave : O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas - trilha musical – rap - documentário e música 1 A música no documentário O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas 1 – O documentário O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas É inegável a importância da música na construção de boa parte das grandes obras cinematográficas, mas como afirma Kassabian (2001, p. 37) a teoria do cinema historicamente se concentrou em análises relacionadas principalmente a aspectos visuais e narrativos. No entanto, nas últimas décadas, pesquisadores vêm concentrando esforços para desenvolver estudos específicos sobre a música no cinema, principalmente em produções ficcionais. Tratando-se de documentários, esses estudos específicos sobre a música em filmes são mais escassos, como coloca Fernão Ramos (2008, p 86) “a música possui na tradição documentária uma dimensão que não fica aquém daquela do cinema de ficção, e que ainda deverá ser estudada”. Na própria definição de documentário desenvolvida por Ramos (2008, p. 22, grifo nosso), ele deixa clara a importância da banda sonora, apresentando os filmes do gênero como “uma narrativa basicamente composta por imagens-câmera, acompanhadas muitas vezes de imagens de animação, carregadas de ruídos, música e fala (mas, no início de sua história, mudas) [...]”. Observando essa perspectiva, este trabalho tem como objetivo analisar a presença da música em um filme específico, o documentário O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna, rodado nos anos de 1998 e 1999 em Recife e Camaragibe, cidades do estado de Pernambuco localizado no nordeste brasileiro, e que tem Recife como capital. A opção por essa película se opera pela importância da música na narrativa, podendo ser percebida desde a inclusão do nome Rap no título do filme, como pela escolha de um músico como um dos personagens principais. Antes de falar especificamente da questão musical no filme, é vital perceber o contexto que essa produção estava inserida no fim da década de 1990. Segundo a pesquisadora Maria Beatriz Colucci (2006, p. 95): O cinema brasileiro, do final dos anos 1990 e no início do século XXI, marcou-se pela expansão do documentário e por sua inserção no mercado cinematográfico. Nesta expansão, um conjunto significativo de filmes voltou sua atenção para as questões sociais, especificamente aquelas relacionadas à violência urbana. 2 Fernão Ramos (2008, p. 205, grifo do autor) diz que “a imagem do povo é um tema recorrente no documentário brasileiro contemporâneo”, entendo-se a palavra povo como uma alteridade social, a partir da representação do outro que não é o mesmo da classe do realizador, o que ele vai chamar do popular criminalizado. Consuelo Lins e Claudia Mesquita (2008, p. 17), dissertando sobre o tema da violência nas obras documentárias nacionais, asseveram que O rap do pequeno príncipe “reencontra essa mesma temática na periferia do Recife a partir da trajetória de um matador e de um músico [...]”. Ao tratar especificamente do filme, Ramos (2008, p. 242) diz que o mesmo é construído em uma estrutura dual, retratando dois personagens que caminham em direções diferentes, um se torna matador profissional e outro músico de rap, tendo essa perspectiva dualística construída na película a partir de uma narrativa bastante fragmentada, utilizando-se principalmente de depoimentos que vão se sucedendo e imagens fortes do que ele chama de popular criminalizado, depoimentos esses que muitas vezes assustam pela “naturalidade com a qual se apresenta o ato de matar, de eliminar fisicamente outro ser humano” (RAMOS, p. 242, 243). Arthur Autran (2002, p. 150) comenta: O rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas opera através da oposição entre as opções de Garnizé – arte e consciência política – e Helinho – a violência. Se em termos estruturais, conforme observei, há um claro destaque para o primeiro, já em termos de enquadramento, construção da ambientação ou tipo de fala a diferença de tratamento não se faz sentir tanto. Esse destaque para Garnizé, segundo Autran (2002, p.150), além de ser percebido na estrutura narrativa, se dá também através dos “belos planos dele tocando atabaque, as imagens significativas do seu corpo tatuado com as efígies, além da ligação com Mano Brown – figura de proa no movimento de conscientização dos negros brasileiros – são bastante indicativos da preferência pelo músico.” A música, como já comentado no texto, é significativamente importante na construção da narrativa, mostrando “a presença forte da nova música popular brasileira com a influência do rap, funk, reaggae [...]” (RAMOS, 2008, p. 242), unindo a fala da música rap à voz do popular criminalizado. Colucci (2006, p. 113), ao produzir um panorama das questões que são trabalhadas no longa afirma: 3 [...] O rap ultrapassa uma visão estreita da favela e inclui elementos do cotidiano do Recife, como o futebol, o dominó, o baile funk, a praia, as rodas de amigos, a religiosidade, etc. Há, no filme, um destaque à trajetória engajada de Alexandre Garnizé, como morador de favela que “sobreviveu” à violência urbana através da música e dos trabalhos sociais. A escolha de um músico como contraponto à violência do matador, já nos diz da importância da música no filme. A violência se mostra não em imagens de conflito, mas através das letras de rap. No desenvolvimento desse trabalho, será feita inicialmente uma análise mais pontual da presença da música no documentário, observando as seqüências em que a trilha musical tem maior relevância, analisando também a questão da diegese dessa trilha se valendo do conceito de Michel Chion (screen music e pit music). Posteriormente, o texto se concentrará na relação do filme com o rap, observando como a música está inserida na película, dialogando com questões de representação social e da relação filme-mercado. 2 - A música em O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas Para compreender como a música é inserida no filme, é importante fazer um breve resumo do mesmo, pontuando em que partes essas trilhas musicais se apresentam na película, considerando principalmente sua diegese. Para isso, como citado acima, utilizaremos o conceito de Michel Chion (2009), onde ele diferencia a música diegética e não diegética, mas classificando a partir do espaço simbólico de sua emissão. Assim, o autor considera a música diegética como screen music, isto é, aquela que é executada dentro da ação na tela, e a pit music, ou não diegética, produzida por uma fonte ausente da ação, fazendo uma analogia com os fossos ou espaços a baixo do palco (pit em inglês) em que as orquestras se alojavam nas apresentações de espetáculos em salas de concertos, vaudevilles, cabarés, e circos, não se colocando diante do público, mas sim em um espaço específico, escondido da platéia. Nessa película existe uma diversidade do uso da música entre o diegético e o não diegético, no primeiro tipo valendo-se mais de encenações dos personagens para câmera, mesmo que seja em representações do cotidiano, ou no caso de imagens dos shows, e no segundo caso, divide-se entre a trilha musical desenvolvida especificamente para o longa-metragem e outras músicas populares, principalmente de hip-hop, que são trabalhadas como trilha fora da ação. 4 O filme se inicia com a imagem de um aleijado se arrastando no chão pelas ruas de Recife, e como afirma Autran (2002, p. 145) esse personagem e sua ação não estão ligadas diretamente ao assunto da película. A música de fundo, não diegética, é a de um instrumento percussivo, tocada em um ritmo semelhante ao da música tribal. Esse som de percussão vai posteriormente ser associado ao personagem de Alexandre Garnizé, que ao longo da trama tocará várias vezes seu agogô, se apresentando diante da câmera com seu instrumento percussivo. Na sequência de apresentação do documentário, toca-se uma música eletrônica de caráter repetitivo, em que não se tem uma definição de seu começo e fim. As imagens apresentam grafites desenhados em paredes, com ilustrações que fazem analogia ao próprio filme e o título do longa, em uma fonte característica desse tipo de representação artística. De alguma forma já insere o espectador no universo do hip-hop, temática fundamental na trama. Posteriormente são captadas imagens da cidade de Recife com a mesma música na banda sonora. A trilha musical feita para o filme (assim como a mixagem e a produção das músicas) foi produzida por Helder Aragão, conhecido por DJ Dolores1, e aparece em alguns momentos pontuais principalmente com a intenção de criar um “clima” para a cena, gerar uma atmosfera específica, tentando se apresentar como inaudível2 (conceito criado por Claudia Gorbman). Mas essas construções musicais são desenvolvidas de forma bem distinta as do cinema clássico hollywoodiano analisado por Gorbman, se aproximando então do que Anahid Kassabian (2003, p. 98) expõe ao analisar filmes contemporâneos como Matrix e Lara Croft:Tomb Raider. Mesmo sendo evidente que O rap do pequeno príncipe e esses dois filmes são bastante distintos, a trilha sonora causa um efeito aproximado de falta de direcionalidade, a música aparenta não ter começo nem fim, repetindo a mesma frase por diversas vezes, talvez criando uma analogia à própria narrativa do filme, que não busca a linearidade e sim a fragmentação. A cena seguinte é singular dentro da narrativa, pois poderia ser considerada a “parte ficcional” do filme, uma encenação de uma pessoa fugindo de alguém, com a câmera em primeira pessoa, bastante instável. Na banda sonora se destacam os passos e o respirar ofegante desse indivíduo, além das sonoridades do ambiente (como sirenes, sons de animais, etc.) e bem ao fundo, com pouca intensidade, uma música com uma 1 Arranjos musicais: DJ Dolores e Orquestra Santa Massa; Música: DJ Dolores e Alexandre Garnizé; Produção musical: DJ Dolores, Clarice Hoffmann. 2 Nesse conceito, a música não é percebida conscientemente, sempre subordinada à fala e a imagem. Esse conceito foi desenvolvido para o estudo do cinema clássico hollywoodiano, mas pode-se fazer um paralelo, mesmo que frágil, com outros filmes de construção narrativa bastante distinta. 5 batida de percussão forte, lembrando o ritmo da embolada, e repetitiva, com timbres de guitarra distorcida, aproximando-se do som realizado nessa mesma época por artistas recifenses como Chico Science e Nação Zumbi, Fred 04 e o movimento manguebeat. Nesse trecho as músicas se assemelham à trilha de Baile Perfumado (1997)3, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. A fita segue com uma pequena apresentação de Helio José Muniz, ou Helinho, que é “matador das almas sebosas”, mostrado a partir de uma imagem fixa, esse personagem olhando para câmera enquanto uma narração com sua própria voz expõe os nomes de sua família. Na continuação, quem se apresenta é o Alexandre Garnizé, a partir também de uma imagem fixa em close do seu rosto, sendo ele músico, baterista da banda Faces do Subúrbio. A imagem subseqüente é a de Garnizé andando pelas ruas de Camaragibe, local onde o filme se passa, e no som uma composição produzida apenas com timbres percussivos, e que vai servir como fundo para que ele conte a história sobre os assaltos e ameaças que sofreu em sua região, só que a música vai perdendo intensidade ao longo do depoimento, e quando ela é interrompida introduz-se Helinho (que é seu amigo) como o matador da “raça podre” que praticava furtos na periferia. Seguem depoimentos sobre o tema até aparecer uma bela tomada de Alexandre tocando bateria, e pela primeira vez se observa no filme, mesmo que de forma breve, uma música diegética, ou screen music. Em seguida ele fala um pouco sobre a percussão para voltar à imagem em que está tocando bateria e depois continuar para um plano do centro de Recife. O trecho musical cessa quando entram três jovens encapuzados que se consideram na missão de “‘limpar’ a cidade dos ladrões e definem as “almas sebosas” como aqueles indivíduos inúteis” (AUTRAN, 2002, p. 145). Após um insert de um pequeno trecho de Garnizé fazendo uma “virada” de bateria, começa a sequência em que os músicos falam do papel deles como cantores de rap, e a importância dessa música para aquela comunidade. Alexandre fala nesse trecho sobre o diálogo da música rap com a embolada, manifestação musical tradicional de Pernambuco, afirmando que esses dois “estilos” têm a mesma cadência e base rítmica e que se pode cantar rap tendo como base a embolada e vice-versa. Como ilustração os músicos da Faces do Subúrbio cantam para a câmera uma de suas letras, que fala das “almas sebosas”, tendo como base o ritmo da embolada tocada a partir de dois 3 A produção musical do filme Baile Perfumado foi feita por Geraldino Magalhães e Marcelo Pinheiro. As músicas foram compostas e executadas por Chico Science, Fred Zero Quatro, Siba, Mestre Ambrósio, Lúcio Maia, Marcio Miranda e Paulo Rafael, este último também assinando a direção musical. 6 pandeiros. No refrão dessa composição está a frase “almas sebosas não aguentamos mais”4. A narrativa segue com uma série de depoimentos que tratam dos problemas da cidade de Camaragibe. Ao falar do tema morte, aparece o relato de uma fotógrafa, Annaclarice Almeida, e brevemente um timbre de flauta toca de forma intensa junto a outros sons sem muita ordem como sirene, o choro desesperado de uma mulher, um carro passando, o “click” da câmera, proporcionando uma espécie de comentário a partir do caos sonoro daquelas imagens. Adiante Garnizé discursa sobre educação, falando da necessidade da população menos favorecida economicamente conhecer sua realidade para terem a possibilidade de modificá-la. Este é o momento que Alexandre se emociona, quando ele fala de sua batalha para conscientizar as pessoas sobre suas condições e direitos, chegando a interromper seu depoimento pela proximidade do choro. Após um insert de uma tomada das crianças em sala de aula batendo palmas, mostra-se Garnizé tocando atabaque em belas tomadas que destacam planos detalhes dele se apresentando com um semblante concentrado. Nesse momento, Alexandre está no comando de suas ações e emoções, criando uma espécie de contraponto com o momento de maior fraqueza emocional. O bloco narrativo seguinte é fundamental no filme e tem a presença de Mano Brown, um dos ícones do rap brasileiro, em diálogo com os integrantes da Faces do Subúrbio. Antes das falas desses personagens são mostradas imagens de um programa de rádio, no estúdio, onde se debate (de forma sensacionalista) o abuso de policiais sobre moradores da comunidade, enquanto o locutor classifica como racismo a atitude dos guardas, e em paralelo tomadas mostrando Mano Brown e os outros como se estivessem ouvindo a discussão no rádio. Autran (2002, p. 146) classifica essa parte de interação entre os representantes do rap paulista e pernambucano como central para o filme. Aqui os músicos discutem temas como “o rap, a África, a violência [...]” (AUTRAN, 2002, p. 146) enquanto comem um prato típico e bebem cerveja no terraço de uma casa em Camaragibe, com imagem para os morros do Recife. Nesse momento, uma imagem aérea da periferia do Recife capta em planos gerais o aglomerado de casas nessa região, enquanto a música Salve dos Racionais MC’s preenche toda a banda sonora. Pela primeira vez uma música de rap é tocada como uma pit music no documentário e também de forma pioneira na película esse gênero se apresenta com seus timbres clássicos, a partir de base eletrônica, apesar da 4 A canção se chama “almas sebosas”, composta por Zé Brown e Tiger. 7 letra não ser exatamente em versos rimados e sim citando uma série de bairros periféricos do Brasil. Essa cena está localizada na metade da película, e chama atenção de Colucci (2006, p. 114) quando ela afirma que a música é o principal elemento de compreensão daquela realidade, independente da cidade, criando uma integração entre as periferias, e é nessa sequência que isso fica claro: Vemos isso especialmente no encontro do grupo Faces do Subúrbio com os Racionais MCs , ou de Garnizé com Mano Brown. A inserção na trilha da música Salve, dos Racionais, é pontuada pelo vôo panorâmico sobre as favelas recifenses, apontando para suas identidades de favelas brasileiras, não importa se em Pernambuco, em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Esses planos aéreos, para Autran (2002, p. 151), servem “para informar ao espectador de maneira direta e impressionante a respeito da enorme massa de pobreza nas cidades brasileiras” além de uma sedução estética provocada por uma imagem quase abstrata, a qual torna o espectador cúmplice daquela perspectiva, mas também mostra com certo romantismo a favela como uma bela manifestação popular. O autor trata essa parte do documentário como um plano de longa duração com “uma pungente música dos Racionais MC’s em que se destacam os nomes de lugares pobres de São Paulo” (AUTRAN, 2002, p. 151), e vai dialogar com uma imagem anterior na qual os músicos falavam e comparavam bairros violentos de São Paulo e Recife, provendo “possivelmente pela primeira vez no cinema brasileiro, a atuação articulada do movimento hip-hop, cuja importância é inegável em relação aos avanços da consciência racial e social dos jovens” (AUTRAN, 2002, p. 152). Finalizada a tomada aérea, volta-se para a imagem de pessoas jogando dominó, e em seguida Garnizé fala da diversão daquela região, destacando “o pagode e a pelada” (música e futebol). Um momento curioso dessa passagem é quando Alexandre diz em seu depoimento que as únicas diversões no fim de semana eram “forró, pagode, futebol e baile funk”, e logo em seguida os diretores articulam com uma cena em que nenhum desses gêneros musicais citados aparece, mas sim uma canção de brega interpretada por Reginaldo Rossi, ícone do estilo e figura notória em Pernambuco. Em uma casa, diversas pessoas escutam e dançam a música Sua ausência, apresentada como screen music, captada em som direto, enquanto a câmera filma esses momentos de descontração. A música brega desde sua designação no início dos anos 80 (antes conhecidos como cafonas) conseguiu, como afirma Fernando Fontanella (2005, p. 21) 8 “mobilizar massas e shows e atingir quantidades enormes de vendas de LP’s”, sendo Reginaldo Rossi um dos principais representantes do primeiro grupo de artísticas do gênero. Mesmo com o declínio desse estilo musical, principalmente nos anos 90, alguns músicos conseguiram se manter em destaque. Fontanella (2005, p. 24) assevera que: Em Pernambuco, muitos cafonas como Reginaldo Rossi e Adilson Ramos não só continuavam populares, como faziam escola em uma nova geração de bandas que surgia, como a banda Labaredas e Só Brega. Nos dois casos, à medida que se desenvolvia esse circuito musical alternativo nas periferias das duas regiões metropolitanas, o termo pejorativo “brega” foi sendo gradualmente assumido como estilo musical por músicos e fãs [...] O estilo brega em Pernambuco, principalmente a partir da figura de Reginaldo Rossi, possuía uma relevância para a população dos bairros periféricos, sendo também uma das opções de diversão, que no filme não foi citado por Garnizé, mas foi incluído pelos realizadores através da montagem. No próximo bloco narrativo, a história se concentra em Helinho dentro da prisão, sem nenhuma música. Em contraponto a falta de liberdade do cárcere, aparece uma imagem de uma praia do Recife, e ao fundo a trilha musical utilizando de timbres de bateria e o som de apito, na tentativa de apresentar aquela atmosfera descontraída, soando com uma música quase carnavalesca principalmente pelo apito, característico na condução de sambas. Esse trecho musical é novamente repetitivo, mantendo o mesmo ritmo e se valendo de poucas variações timbrísticas e de tempo. Segue com uma imagem no estádio de futebol, e em paralelo, cenas de um baile funk, em que são mostradas sombras de jovens dançando, enquanto a música rap do bronzeado toca. As imagens do jogo e do baile funk vão se articulando com a música ao fundo que tem a função de unir essas atividades, expressando de alguma forma um momento de liberdade, felicidade dessas pessoas, como o prório Garnizé trata em uma fala anterior a essa sequência. A película segue com um discurso de Mano Brown sobre a opressão ao povo feito em um show que os Racionais MC’s estão realizando, enquanto jovens são revistados para entrar. Depois ele começar a cantar a música Diário de um detento, uma das principais do grupo (escrita por Mano Brown junto ao ex-detento Jocenir), podendose ouvir os gritos de euforia da platéia. A música continua (trata de violência, da vida de um presidiário e do massacre de Carandiru) preenchendo toda banda sonora, enquanto o 9 filme constrói a partir de imagens do show, da platéia e de planos feitos em uma prisão (criando uma relação direta com a letra da música), um trecho que se aproxima do formato de um videoclipe. Nesta passagem o documentário se vale de imagens captadas em diferentes espaços, com variadas cores e texturas, em um ritmo acelerado de montagem, além da presença dos artistas que se apresentando no palco, enquanto a canção permanece soberana na banda sonora. Com essas características, pode-se aproximar esse trecho de uma construção narrativa com certa descontinuidade, uma das tendências do videoclipe segundo Arlindo Machado (2005, p. 180), que define como um formato em que “tudo muda de um plano para outro”, fazendo dessas tomadas unidades quase independentes em seus elementos, mesmo que sejam congruentes a partir de um tema geral.5 Helinho, em seguida, fala sobre a sua condição na cadeia, dos problemas de convívio ao medo de viver lá dentro. Em uma pequena parte dessa sequência, uma batida eletrônica com uma base de rap toca em um compasso lento, enquanto dois indivíduos correm em volta de um campo dentro do presídio, e em determinado ponto Helinho fala “o inferno é aqui”, enquanto a câmera mostra em primeiro plano as grades. A continuidade dessa imagem se dá também atrás de grades, mas nas ruas de Recife onde jovens andam de skate. Garnizé fala sobre a música de Recife, mais especificamente do rap, que ele classifica como uma “poesia marginal vinda da periferia” e que canta “pra quem quiser escutar”. Em determinado ponto desta sequência, os skatistas passam em frente a um cartaz do Festival Abril Pro Rock 6, de 1999. Logo depois, a canção Críticas e críticas da Faces do Subúrbio começam a tocar, enquanto na imagem pessoas são revistadas na entrada do show do festival. A câmera capta diversos momentos nesse espaço, como jovens dançando, namorando, observando o show, a banda tocando no palco para um público significativo (sendo captada em diversos planos), tudo isso enquanto a música toca, e curiosamente a primeira vez que Faces do Subúrbio se apresenta no filme com seu show é em um festival para um público de classe média recifense, apesar da diversidade de tipos mostrada pela câmera quando ela percorre o público. A música termina com imagens da periferia do Recife. O filme volta para destacar Garnizé, após a fala dos três jovens justiceiros encapuzados que falam de como agem e quais as pessoas que eles matam. Primeiro 5 Fundamental compreender que os videoclipes não necessariamente seguem um padrão. Na verdade, segundo o próprio Machado (2005, p. 176) esse formato audiovisual possui várias tendências estilísticas e conceituais, uma diversidade de realizadores com experimentações constantes. 6 O Abril pro rock é um festival de música que acontece anualmente desde 1993 no mês de abril na cidade de Recife, e possibilitou que diversas bandas se projetassem no cenário nacional. 10 Alexandre é filmado fazendo tatuagens, enquanto a câmera passeia pelo seu corpo, e ele discursa sobre as imagens que ele está tatuando (Malcolm X, Martin Luther King e Che Guevara) e a importância dessas pessoas e suas lutas políticas. Em seguida, como Autran (2002, p. 146) observa, “Garnizé toca atabaque e a câmera movimenta-se buscando traduzir o ritmo da música”, em uma cadência que faz referências a ritmos africanos (pode-se criar uma relação com a fala anterior em que ele cita grandes ícones do movimiento da cultura negra como Zumbi dos Palmares, Malcolm X e Martin Luther King). A mãe de Helinho vai falar posteriormente sobre a dor de perder o filho, e em seguida uma série de tomadas do cemitério são montados, enquanto uma música com uma característica mais triste, soturna, preenche a banda sonora, ajudando a atmosfera da sequência. Ao se fazer um paralelo com o cinema clássico e em menor escala, se aproximaria do que Gorbman (1987, p. 73) classifica como música inaudível e que provoca determinada emoção no espectador. O filme se encerra com uma música não diegética preenchendo toda banda sonora, sem interferências de sons ambientes da grande procissão que está sendo mostrada, com diversos fiéis pagando promessas. Na letra da canção Deus abençoe a todos, os músicos tratam da dificuldade da rotina das pessoas de menor poder aquisitivo, da precariedade de viver na pobreza, mas também da superação desta “gente sofrida”. No refrão da música, em referência à procissão, é cantado “Deus abençoe a todos. Deus abençoe meu povo”, e logo em seguida um plano que mostra Helinho e Garnizé de mãos dadas. O filme se encerra com os três jovens encapuzados se separando, cada um para um lado, enquanto um deles cita a música Imagine de John Lennon, embora ela não seja tocada em nenhum momento. Nos créditos, uma música produzida por DJ Dolores, de caráter repetitivo, mas com uma diversidade maior de timbres, como instrumentos de sopro, o uso do scratch produzido pelos discos, além da base com uma batida eletrônica. 3 - O Rap em O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas Mesmo com a variedade de estilos musicais e de formas de utilização da música no documentário, destaca-se o rap tanto como um dos temas centrais da película a partir do personagem de Garnizé, quanto na própria utilização na narrativa, como um elemento estético valioso. Autran (2002, p. 152) expõe que “O rap do Pequeno 11 Príncipe contra as almas sebosas tem seu ponto forte na percepção e representação cinematográfica do movimento hip-hop”, já Colucci (2006, p. 133) ao tratar da fragmentação do filme afirma: Mas é preciso ressaltar que se em O rap existe a fragmentação, existe também um elemento que agrupa os depoimentos, que é exatamente a música do rap. Como dito, as letras das músicas direcionam o espectador para uma construção sobre as relações entre a favela e a violência que confronta as representações estigmatizadas. O rap, por ser uma música popular conhecida, também cria uma relação com o público, como coloca Jeff Smith (1998, p. 10), facilitando sua interpretação dentro da narrativa. Além disso, por ser um estilo músical vinculado a movimentos sociais, a periferia e a luta de classes, cria dentro da película uma relação com o espaço retratado no filme. Outro fator imoportante é que a presença de figuras conhecidas nacionalmente como Mano Brown e o Racionais MC’s, e em menor escala o próprio Faces do Subúrbio, pode proporcionar nos espectadores uma relação de proximidade com a tela e o tema. Os Racionais MC’s surgiram junto com o movimento hip hop nacional, na década de 80, onde se concentravam principalmente na Estação São Bento, em São Paulo, para a prática da música, do grafite e da dança. Segundo Motta (2004, p.14) os Racionais surgiram a partir da junção dos integrantes, viabilizada pelo produtor cultura Milton Sales, unindo Mano Brown e Ice Blue com o DJ KL Jay e Edi Rock, sempre trabalhando com letras de denúncia política, racial e social, o que no início dificultou a inserção da banda no mercado. A primeira música que gerou alguma repercussão foi a faixa Mulheres Vulgares, do LP “Holocausto Urbano”, mas é em 1993 com o álbum “Raio X do Brasil” que eles ficaram mais conhecidos nacionalmente, saindo da periferia de São Paulo para tocar em algumas partes do Brasil. Depois disso, lançam seu primeiro trabalho em CD, com uma Coletânea dos Racionais em 1994. Mas é em 1997 que a banda ganha de vez notoriedade nacional, levando o Racionais MC’s para o grande público através do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, que segundo algumas fontes chegou a vender próximo a um milhão de cópias, mesmo esse número sendo bastante contestado. Motta (2004, p. 17) diz que esse disco “apresenta uma marcante profissionalização, que vai desde a capa e o encarte até a produção das músicas”. É nesse disco que aparecem as duas das faixas utilizadas em O rap do pequeno príncipe 12 contra as almas sebosas, com a presença tanto de Salve (música do momento do plano aéreo) quanto de Diário de um detento (faixa tocada pela banda no momento do show). Essa segunda canção foi a de maior destaque na época, com a produção de um videoclipe filmado no Carandiru, proporcionando à música e ao vídeo um grande sucesso de crítica e público. Portanto, não aparenta ser uma escolha ao acaso a presença dos Racionais, e principalmente de Mano Brown, em O rap do pequeno príncipe, já que na época eles eram os principais representantes do movimento hip-hop no Brasil, sucesso de público e crítica se tornando referência quando se trata desse estilo musical. E mesmo com esse sucesso, os músicos dos Racionais MC’s ainda permaneceram vinculados à luta social, tanto por suas letras quanto pelas ações e questionamentos feitos na grande mídia, preservando a ideia da “voz do excluído, do menos favorecido”. Esse documentário, além de sua importância temática com o enfoque da atuação do hip-hop como agente transformador nas periferias, pode também possibilitar através da exposição para o grande público uma maior visibilidade para essas bandas. Smith (1998, p.02) fala que a relação da música popular com o cinema (especificamente o hollywoodiano) não é nova, e que os filmes sempre utilizaram das músicas para se venderem, e vice-versa. Claro que, tratando-se de Hollywood, tem-se outro universo vinculado às indústrias milionárias e com interesses maiores, mas ainda assim pode-se fazer uma associação com a possibilidade da música popular ajudar a “vender” o filme, isto é, se tornando mais um atrativo para o público. Na perspectiva das bandas, a película pode ser um ótimo meio de divulgação do trabalho, principalmente para o grupo Faces do Subúrbio, que era menos conhecido nacionalmente. Outra relação do filme com a música é o diálogo entre o movimento musical do manguebeat e o os filmes classificados como árido movies (ambos organizados em Recife), sendo a agitação musical anterior a cinematográfica (que começa principalmente com Baile perfumado). Porém, segundo Samuel Paiva (2008, p. 101) “as tentativas de classificação dessa produção segundo um rótulo – cinema ‘manguebeat’ ou ‘árido movie’, por exemplo - foram deixadas de lado pelos próprios realizadores”, mesmo assim existe uma “reiteração de conceitos” entre o grupo de filmes do qual O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas faz parte. Saldanha (2009, p. 102) classifica o manguebeat como: 13 [...] uma iniciativa de alguns jovens músicos pernambucanos em criar uma nova identidade cultural onde estivessem presentes os ritmos regionais e a cultura pop, uma contestação, inclusive, a outro movimento tradicional da cultura pernambucana, o Movimento Armorial. A batida mangue musicalmente significava a mistura do Maracatu de Baque Virado com o funk e o rap. Os principais grupos desse movimento foram sem dúvida Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A com Fred 04. Pode-se destacar também Mestre Ambrósio e Silvério Pessoa, Cascabulho, DJ Dolores, Querosene Jacaré, Comadre Florzinha, entre outros. A pesquisadora Paula Tesser (2007, p. 73) argumenta que o manguebeat: [...] vai se colocar em um movimento contrário face ao que é imposto e consumido no início dos anos 90. E com essa atitude ele vai abrir caminhos para outros artistas, que talvez não se identifiquem diretamente com ele (penso nos grupos nascidos no bairro popular Alto José do Pinho, como Devotos, Matalanamão, Faces do Subúrbio…), mas que surfaram na sua onda criativa. Mesmo possivelmente não fazendo parte da organização do movimento manguebeat, a Faces do Subúrbio foi um grupo relevante para o cenário musical da época, sendo provavelmente o principal representante do rap vindo da periferia. A presença do grupo no filme dialoga com toda essa movimentação cultural vivida no Recife, tanto musical quanto cinematograficamente. Outros elementos que aparecem na narrativa de O rap do pequeno príncipe e que tem relação com a cena Mangue, vão desde a escolha do DJ Dolores como o profissional responsável pela trilha sonora, até a referência ao Festival Abril pro rock, espaço fundamental para o crescimento do manguebeat. 4 - Considerações finais Neste trabalho foi reiterado por diversas vezes a importância da música no filme, desde a própria escolha de um dos personagens principais como músico, como também observando todo o contexto temático que a música e especificamente o rap está inserido, além da importância da mesma na construção narrativa como trilha musical do filme. Ao observar detalhadamente as sequências do documentário, percebe-se que em cada bloco narrativo existe a presença forte de algum elemento musical, seja ele screen 14 music ou pit music, e que esses trechos musicais são articulados por uma necessidade narrativa, de uma forma dinâmica e congruente com a construção fragmentada proposta pelos realizadores. Porém, poucas vezes essas músicas são utilizadas como trilhas musicais que permeiam toda a banda sonora e tentam provocar no espectador algum sentimento, se mostrando de forma inaudível e invisível como acontece no cinema clássico analisado por Claudia Gorbman. O que acontece no documentário é uma música atuante, presente no quadro, e juntamente com a imagem e a própria letra cantada, que vão ajudar na construção do sentido daquela sequência. Ao se analisar atentamente, são pontuais os momentos em que a trilha musical feita especificamente para o filme é executada, sempre aparecendo de fundo, fazendo um comentário sobre a cena ou gerando uma atmosfera para a mesma. Nas outras vezes, o trecho musical está diretamente ligado a um personagem retratado na imagem. A presença da música rap na periferia de Recife como um elemento de transformação social, como foi mostrada na película, apresenta a força desse estilo musical, mesmo não se tratando de uma região onde o movimento hip-hop tenha uma visibilidade expressiva por parte da mídia, podendo-se criar paralelos com regiões em que esse tipo de música é mais tradicional, como a periferia de São Paulo. Além disso, a relação com o movimento manguebeat, que tinha como proposta buscar um som híbrido entre o pop e a música tradicional da região, apresenta “um rap” que dialoga com a cultura local e ganha espaço não só nas periferias, mas também com outros públicos, como a classe média intelectualizada, apontada por Arthur Autran (2002, p. 150) como o público alvo do filme. Bibliografía: AUTRAN, A. O popular no documentarismo brasileiro contemporâneo. Revista Olhar, São Carlos, v. 1, n. 7, p. 144-153, 2002. Disponível em: < http://olhar.ufscar.br/index.php/olhar/issue/view/6/showToc >. Acesso em: 13 fev. 2012. CHION, M. Film, a Sound Art. New York: Columbia University Press, 2009. COLUCCI, M. B. Violência urbana e o documentário brasileiro contemporâneo. 2006. 166f. Tese (doutorado em Multimeios). Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes, Campinas. FONTANELLA, F. I. A estética do brega: cultura e consumo e o corpo nas periferias de Recife. 2005. 145f. 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