Para Cecília 5 6 Eles eram muitos cavalos, mas ninguém mais sabe os seus nomes, sua pelagem, sua origem... 7 8 ELES ERAM MUITOS CAVALOS 9 10 Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios? ₈₂ 11 12 1. Cabeçalho São Paulo, 9 de maio de 2000. Terça-feira. 2. O tempo Hoje, na Capital, o céu estará variando de nublado a parcialmente nublado. Temperatura – Mínima: 14°; Máxima: 23°. Qualidade do ar oscilando de regular a boa. O sol nasce às 6h42 e se põe às 17h27. A lua é crescente. 3. Hagiologia Santa Catarina de Bolonha, nascida em Ferrara, na Itália, em 1413, foi abadessa de um mosteiro em Bolonha. No Natal de 1456 recebeu o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora. Dedicou sua vida à assistência aos necessitados e tinha, como única preocupação, cumprir a vontade de Deus. Morreu em 1463. 4. A caminho O Neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum tum-tum, rege o tronco que trança, tum-tum tum-tum, sensuais as mãos deslizam no couro do volante, tum-tum tum-tum, o corpo, o carro, avançam, abduzem as luzes que luzem à esquerda à direita, um anel comprado na Portobello Road, satélite no dedo médio di13 reito, tum-tum tum-tum, o bólido zune na direção do Aeroporto de Cumbica, ao contrário cruzam faróis de ônibus que convergem de toda parte, mais neguim pra se foder um metro e setenta e dois centímetros está no certificado de alistamento militar calça e camisa Giorgio Armani, perfume Polo borrifado no pescoço, sapatos italianos, escanhoado, cabelo à-máquina-dois, Rolex de ouro sob o tapete, mais neguim pra se foder ela deve estar chegando, uma dessas estrelas que sobrevoam a estrada, a mulher, o patrão compromisso inadiável em brasília expliquei pra sim, claro, ele o trata como filho que gostaria de ter tido sim, claro, o filho um babaca o cocainômano passeia sua arrogância pelas salas da corretora, sim, claro, o filho um babaca o cocainômano desfila seus esteróides por mesas de boates e barzinhos — que já quebrou —, por rostos de leões-de-chácara e de garotas de programa — que já quebrou —, por máquinas de escrever de delegacias — que também já sim mas é meu filho e suborna a polícia, o delegado, o dono da boate, as garotas de programa, os leões-de-chácara, sim mas é meu filho sim, claro, a filha mora no Embu, macrobiótica, artista plástica esotérica, os quadros sempre os mesmos quem não tem olhos pra ver riscos vermelhos, histéricos, espasmódicos, grossos, finos, fundo branco 14 não tem olhos pra ver uma vez comeu ela horrível no estúdio entre pincéis e latas de tinta sobre uma mesa onde jazia esticada uma imensa tela em branco isso é arte ela cheiro de incenso maconha é natural nua sob a bata indiana, restos de sêmen na superfície branca isso é arte mais neguim pra se foder amuou num canto arrependida? não passa de um empregadinho sim, mas o pai me adora um profissional competente porque ganho dinheiro pra ele na bolsa um apartamento enorme em moema um por andar três suítes contratei um desses veados dinheiro não é problema ele montou um circo o mulherio estranha aí eu falo a decoração é do fulano elas têm orgasmo sim, competente: há seis anos escorria sua pálida magreza pelas poucas sombras das ruas tristes de muriaé cidade triste há cinco anos vestia-se com as primeiras neves de fairfield ohio graças a uma bolsa do american fields ganha em concurso promovido pela loja do rotary club de muriaé cidade triste há quatro anos arranhava suas incertezas no citibank suas certezas no citibank há dois anos ganha dinheiro pro o velho não vai deixar porra nenhuma pra mim há um ano cuida do caixa-dois da corretora vai ficar tudo pros 15 ela desembarca london-gatwick um anel adquirido na portobello road na palma da mão é seu londres como estava? tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum 5. De cor Vêm os três, em fila, pela trilha esticada à margem da rodovia. A escuridão dissolve seus corpos, entrevistos na escassa luz dos faróis dos caminhões, dos ônibus e dos carros que adivinha a madrugada. Caminham, o mato alto e seco roça as pernas de suas calças. São pai e filho e um rapaz, conhecido-de-vista, que, encorajado, Pode sim. Tem dez anos que vou a pé. É uma economia danada no fim do mês, resolveu acompanhá-los. O homem dirige empilhadeira numa transportadora no Limão. O menino tem dez-onze anos, embora, franzino, aparente bem menos. Agora, largou a escola, vende cachorro-quente — com molho de tomate ou de maionese — e Coca-Cola em frente à firma onde o pai trabalha. À noite, guarda o carrinho no pátio da empresa, os vigias tomam conta. Quando crescer, perder-se Brasil afora, sonha, caminhoneiro. O rapaz, desempregado, aceita qualquer empreitada, O negócio tá feio! O menino vai à frente, o homem no meio, o rapaz atrás. — Esse aí ó, vale ouro, diz, orgulhoso, o pai, tentando adivinhar a feição do companheiro que ofega asmático às suas costas, pés farejadores. É de uma inteligência! Quer ver? Vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, “Garanhuns”, fala. 16 — Pernambuco, o menino replica, automaticamente. O rapaz desdenha, “É isso?” — Ele sabe onde ficam todas as cidades do Brasil, o pai argumenta. Tem um mapa na cabeça, o peste. — Todas? — Todas! O conhecido-de-vista então pára, vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, Merda!, não consegue ler, Muito rápido... Merda! Envergonhado, pensa, Alagoinhas, o nome de sua cidade, “Alagoinhas”, Essa, esse não acerta. — Bahia, o menino responde, displicente. — É Bahia?, o pai indaga, pressuroso. — É, o rapaz acede, contrariado. Sem olhar para trás, aguarda outro ônibus que passa velozmente, “Itaberaba”, nome da cidade da mulher, Agora não é... “Bahia, também”, O reliento acertou! Desgramado! — Num falei? — Onde é que esse raio aprendeu essas coisas? — Sei não... — Ele não é de falar não, né? Ô menino! Ô! — É... Ele é mei caladão... Asselvajado... Envaidecido, vira-se, mira o letreiro do ônibus que passa velozmente, “Governador Valadares”. — Minas Gerais. — Impressionante!, o rapaz conforma-se. Caminham, o mato alto e seco pinica seus braços. — Já pensou levar ele na televisão? — Heim? — É... naqueles programas que as pessoas vão responder as coisas... — Televisão? Televisão... — Dá dinheiro, né? 17 — Ô, se! O homem busca o filho que marcha à frente escondido dentro de uma jaqueta puída, dois números acima do seu tamanho os ônibus os caminhões os carros as luzes São Paulo Televisão... 6. Mãe A velha, esbugalhada, tenaz grudada na poltrona número 3 da linha Garanhuns-São Paulo, não dorme, quarenta e oito horas já, suspensa, a velocidade do ônibus, Meu Deus, pra que tanta correria?, a conversa do motorista com os colegas colhidos asfalto em-fora, Meu Deus, ele não tá prestando atenção na estrada!, devota, que a viagem termine logo, reza, nem ao banheiro pode, fica balangando sobrecabeças, e, alcançando o fedor do cubículo no rabo do corredor, nada adiantaria, embora a bexiga espremida, embora o intestino solto, Meu Deus!, só se alivia nas paradas, findo o sacolejo, E agora?, Tá perto?, Paciência, vovó!, Ainda demora pouquinho ainda, o empesteado ar de janelas fechadas, vidros suados, no soalho, esparramados, papéis de bala, de bolacha, guardanapos, sacolas, palitos de picolé, copos descartáveis, garrafas plásticas, farelo de biscoito de polvilho, de pão, de broa, farinha, restos de comida, pé de sapatinho de crochê azul-menino, noitedia, E gente inda consegue dormir, meu Deus, a bocona jacaroa, até ronca!, até baba!, comé que?, embaralham-se distintas paisagens, cidades enoooormes, cidadezinha que, zum!, passou, E as cercas de arame farpado, as achas, o capim, o cupim, carcaças de boi, urubus, céu azul, cobras, seriemas, garrinchas, caga-sebos, fuscas, charretes, cavalos, bois, burros, bestas, botinas, brejos, beirais, bodes, 18