Este artigo busca apresentar uma reflexão sobre como os processos de criação e produção da “Trilha Griô nas Terras do Boi Falô”, realizado pelo Ponto de Cultura NINA, Mestres Griôs de tradição oral e EMEF Maria Pavanatti Favaro em Campinas (SP), podem refletir em práticas de cultura de tradição oral na disputa de narrativas e formas de aprendizagens dentro das instituições formais de ensino. A partir de uma perspectiva da Pedagogia Griô de valorização da cultura e da identidade ancestral local e, ao mesmo tempo, preenchendo um espaço de demanda criada pela lei 10.639/2003 que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, a trilha integra mito, arte, ciência e historia na invenção de novos possíveis para o conhecimento a partir do corpo, da palavra e da identidade afro-brasileira. Palavras chaves: estudos culturais das ciências, domínio sociocultural, Pedagogia Griô, cultura popular, história afro-brasileira. “Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô” – uma experiência partilhada da Pedagogia Griô Henrique Dutra* Entendendo a Trilha (ou dando nomes aos bois) * Ator, professor de teatro no ensino fundamental e pesquisador no programa de mestrado na Faculdade de Educação da UNICAMP, vinculado ao grupo de pesquisa OLHO - Laboratório de Estudos Audiovisuais, se dedica pesquisa da tradição oral e suas implicações com a educação. É produtor e Griô-Aprendiz do Ponto de Cultura NINA Griô. E mail: henriquedutra2@ gmail.com. Cel: (19) 9 9192 0028 A Trilha Griô nas Terras do Boi Falô é uma aula-espetáculo a céu aberto e um percurso de educação e turismo cultural de base comunitária que tem duração aproximada de sete horas. Passando por patrimônios materiais e imateriais da cidade de Campinas, tendo como tema gerador a principal história Participei como produtor, ator e Griô Aprendiz 3 da trilha do município, que é o Mito do Boi Falô, a Trilha Griô é uma desde seu início, quando concebida e idealizada pelo Ponto das práticas da Pedagogia Griô que integra diversos rituais de Cultura NINA (Núcleo Interdisciplinar de Narradores de vínculo e aprendizagem de sua metodologia. O roteiro Orais e Agentes Culturais 4 ), Mestres, Griôs Aprendizes e passa por duas fazendas históricas da cidade de Campi- demais grupos de tradição oral da cidade: Urucungos, nas, a fazenda Santa Genebra, apontada pela memória Puítas e Quijengues, Capoeira de Angola Menino Crispim oral como o lugar onde o Boi Falô e a Fazenda Roseira, um Levado e Ponto de Cultura Jongo Dito do Ribeiro, todos quilombo urbano cuidado pelo Ponto de Cultura Jongo envolvidos na Ação Griô Nacional em aprendizagens e Dito Ribeiro. Além desses locais, também são visitados o trocas de experiências com as comunidades das trilhas marco onde o Boi Falô, em Barão Geraldo e o Cemitério da Griôs de Lençóis, criadas pelo Ponto de Cultura Grãos de Saudade, onde está enterrado o escravizado Toninho, que Luz e Griô como prática da Pedagogia Griô. escutou o boi falar. 2 Toninho foi o primeiro negro a ser Apesar das inúmeras dificuldades que um projeto como enterrado ao lado do seu escravocrata, o Barão Geraldo esse enfrenta, principalmente a escassez de recursos fi- de Resende, no setor onde estão todos mausoléus dos nanceiros e a dificuldade de conciliar as agendas de to- Barões de Café de Campinas. dos os profissionais envolvidos para os ensaios, a trilha foi realizada em três momentos, desde sua concepção e produção: 1 2 296 Henrique Dutra Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô 1 A Pedagogia Griô foi criada por Líllian Pacheco e coautoria de Márcio Caires, coordenadora pedagógica do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô (www. graosdeluzegrio.org.br, ver livro no link publicações) localizada na cidade de Lençóis, região da Chapada Diamantina - Bahia. Possui como referenciais teóricos e metodológicos as expressões culturais de tradição oral, principalmente de raízes afro-indigenas. Compartilhada pelo país a partir da Ação Griô Nacional, projeto criado e coordenado pelos autores da Pedagogia Griô em parceria com o MinC, que integrou escolas, comunidades, universidades, pontos de cultura, ONGs, educadores, pesquisadores, artistas Griôs e mestres de tradição oral em saberes que envolvem ciência e história do currículos formais das escolas com as historias de vida, mitos e saberes da tradição oral de suas comunidades ( www.leigrionacional.org.br). Segundo o mito, o boi teria dito ao escravizado que “aquela dia era sextafeira santa, portanto, não era dia de trabalhar” 3 4 Segundo a Pedagogia Griô, O Griô-Aprendiz ou Aprendiz-Griô é uma pessoa que possui identificação afetiva e cultural com o Griôs, Mestres e Mestras de tradição oral e que possuem uma didática e uma linguagem para fazer a mediação do diálogo entre o saberes, fazeres e práticas dagógicas de tradição oral e os conteúdos e práticas pedagógicas da educação. O Ponto de Cultura Nina Griô nasceu da Associação Núcleo Interdisciplinar de Narradores Orais e Agentes de Leitura (NINA), entidade sem fins lucrativos situada na periferia de Campinas, no bairro Vila Industrial. O coletivo integra o movimento da “Ação Griô Nacional” que esta sendo implantada em todo o Brasil por meio do Ministério da Cultura através do Programa “Cultura Viva”. 297 — Duas edições em outubro de 2012, com recurso narrar e trocar experiências de seus protagonistas, utili- financeiro do prêmio cultural do BID ( Banco Intera- zando-se do modelo de ação pedagógica da Pedagogia Griô mericano de Desenvolvimento); que trabalham conjuntamente as emoções e sentimentos — Uma edição em março de 2014, com recurso do identitários, os mitos e lendas, a música e cantigas tradi- Fundo de Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão (FAE- cionais e a corporeidade vivida em danças e brincadeiras PEX) da Unicamp, durante o evento Ciclo de Vivências e tradicionais. — Duas edições em outubro de 2014, com recursos música e pelo movimento pleno de sentido), muito pre- do governo federal, por meio do edital Mais Cultura sente nas sociedades primitivas, mas esquecidas na socie- nas Escolas. dade contemporânea devido às novas formas de produção e consumo que a legitimam, foram bem explicitadas por Sempre atendendo alunos e professores da EMEF Maria Pavanatti , a premissa básica da trilha era a de propor 5 uma outra relação entre sujeito e objeto cultural, diferente do modelo da educação vigente na qual “mente e corpo foram separados no processo de ensino e aprendizagem” (MOURA, 2010), colocando razão e sentimento em lados opostos, fracionando os saberes na escola e relegando algumas matérias como sendo de “mais importância” e de “menos importância. A Trilha Griô nas Terras do Boi Falô envolve esses saberes e fazeres a partir de uma proposta criada de forma coletiva e interativa, baseada na arte de 5 298 Essa ação (o intercâmbio de experiências, mediado pela A Escola Municipal de Ensino Fundamental Maria Pavanatti Favaro fica localizada no bairro Jardim São Cristóvão em Campinas. A escola é parceira do Ponto de Cultura NINA desde 2010, ano em que a professora, atriz e Aprendiz Griô Cintia Birochi assumiu as aulas de artes. Benjamim (1994). Sobre a perda da experiência, o autor nos diz que: [...] as experiências estão deixando de ser comunicáveis [...]. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria Henrique Dutra Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô Práticas da Pedagogia Griô; — o lado épico da verdade — está em extinção [...]. Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que esta desaparecendo, tem se desenvolvido concomitante com toda uma evolução secular das forças produtivas. (BENJAMIN, 1994, p.201). É sobre essa égide da ação e da experiência voltada para a tradição oral, que todo o roteiro artístico se desenvolve em distintos lugares. O público não assiste à trilha, ele 299 A história do Boi Falô é uma dessas histórias que atra- corporais, danças, músicas e contações de histórias, pro- vessam o tempo sendo contadas pelos filhos e netos dos tagonizadas pelos Mestres e Griôs Aprendizes. campineiros que vivenciaram a dura experiência da es- Campinas foi a última cidade do Brasil a abolir a es- cravidão. Embora existam diversas variações da mesma cravidão. A memória desse período pode ser encontrada história, característica típica dos contos de tradição oral, materializada em monumentos em praças e nomes de ruas onde cada pessoa que reconta imprime na sua narrativa que homenageiam personalidades ou datas importantes “a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do dessa época (como a estátua da Mãe Preta no Largo São vaso” (BENJAMIM, 1994, p.205), a história do boi falô con- Benedito, por exemplo), mas também encontra ressonância ta as artimanhas do escravizado Toninho, que para não nas muitas histórias transmitidas oralmente pelos descen- trabalhar no dia santo, informa ao seu senhor que o boi dentes dos escravizados, que narram as crueldades dos havia falado. Quem conta essa história e abre o ritual do barões dessa cidade, que também já foi conhecida pelo percurso encantado da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô, nome de “bastilha negra”. Paulo Freire, umas das principais são os Griôs Aprendizes do Ponto de Cultura NINA, sobre influências teóricas e práticas da Pedagogia Griô, sobre a a batuta do Mestre Griô Marcos Simplício, ou Mestre Mar- importância de conhecer o passado para a construção do quinhos 7 , como é mais conhecido nas rodas de capoeira. futuro, nos lembra que: No parágrafo seguinte, transcrevo o áudio da versão do Mestre, repetida a exaustão em nossos ensaios e por fim, nos dias das apresentações: 6 Não há transição que não implique um ponto de partida, um processo e um ponto de chegada. Todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje. De modo que o Conta-se que em 1888, numa sexta feira santa na Fazen- nosso futuro baseia-se no passado e se corporifica no da Santa Genebra, o Barão Geraldo de Rezende ordenou presente. Temos de saber o que fomos e o que somos, ao seu escravo Toninho que preparasse o boi para arar a para sabermos o que seremos. (FREIRE, 1985, p.33). terra. O cativo, muito religioso, se mostra relutante, ex- 7 6 300 Entre as crueldades narradas, uma delas remete ao corte do tendão do tornozelo, impedindo a corrida, porém permitindo ainda o caminhar. Henrique Dutra Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô a complementa de maneira ativa, por meio de vivências Marcos Alberto Simplício, mais conhecido como Mestre Marquinhos, é Mestre de Capoeira de Angola. É fundador do grupo “Capoeira Angola Crispim Menino Levado”. 301 Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô Cultura NINA Griô e com a Ação Griô Nacional, Mestre Com a insistência do Barão, e com medo de sofrer os Marquinhos escutou essa história do seu pai, que escutou castigos que eram impostos aos escravos, Toninho muito do seu avô, que escutou do seu bisavô, que foi escravizado. a contragosto, vai preparar o boi para seu ofício. Ocorre, Ao contar a história, o Mestre não simplesmente “despe- no entanto, para o espanto do negro que o boi reclama e ja uma narrativa”, mas ele revisita lugares, passeia pelos diz que ”aquele não era dia de trabalho". O escravo Toni- terrenos de sua memória íntima e divide com o público nho sai correndo pelos campos da fazenda gritando: "O dezenas de anos de uma tradição que passa de pessoa boi Falô! O boi Falô!" a pessoa (de pai para filho) sendo essa, “a fonte da qual A princípio, o Barão não acredita no que o escravo fala: todos os narradores recorrem” (BENJAMIM, 1994, p.198). ”Negro mentiroso, não quer saber de nada mesmo!”, e Corpo, gesto e voz são acrescidos a essa narrativa. Os ordena que busquem o boi para comprovar essa histó- Griôs Aprendizes criam as imagens e sublinham os textos ria. O animal nada diz e Toninho é obrigado a trabalhar. importantes, agindo como um coro contemporâneo, inter- Acontece porém, que o Barão adoece e vira ”um corpo mediando, facilitando e criando abertura para as narrativas seco”. Amaldiçoado pelo que fez, sua única chance de dos mestres e grupos de tradição oral. A barulheira das sobreviver é ir até Aparecida do Norte, pagar promessa crianças empolgadas no ônibus e na entrada da fazenda já por ter feita judiação no dia de sexta-feira santa. não pertence mais a esse lugar. Inicia-se o ritual da conta- Henrique Dutra plicando que sexta-feira santa não era dia de trabalhar. ção de histórias, tão urgente na sociedade midiatizada dos Além do Mestre Marquinhos, muitos outros Griôs e mestres contam essa história. Ela já foi tema de trabalhos escolares, enredos de escola de samba, poesias e festivais da cidade de Campinas, em especial no distrito de Barão Geraldo, onde todo ano, no dia da sexta feira santa, ocorre a Festa do Boi Falô. A escolha do Mestre para protagoni- tempos modernos. Ingrid Koudela, ao analisar o trabalho de Alessandra A. Faria 8 sobre a criança, a contação de histórias e o jogo teatral, nos lembra que essas são “umas das raras oportunidades para se ter uma relação com a criança sem a mediação de uma tela...tv...computador... isto é vida, aqui e agora!” zar essa história no início da trilha foi decidida de forma coletiva, pois, além do seu envolvimento com o Ponto de 302 8 FARIA, A. A. de. Contar histórias com jogo teatral. São Paulo. Perspectiva: 2011, p.13. 303 Na sequência, abre-se a roda. Tambores, surdos, xeque- A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação exige rês e cantoria adentram pelo espaço. É o grupo Urucungus, permanente busca. Busca permanente que só existe no Puítas e Quijengues que convida os participantes para ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade uma apresentação de umbigada e samba de bumbo, ati- para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente vidades artísticas que eram praticadas pelos escravizados porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém na época retratada pela trilha, mas que carregam consigo se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão um ato político, pois era durante os rituais corporais de (FREIRE, 1987, p.27). aproximação que os escravizados conseguiam se reunir e debater questões importantes de forma velada aos olhos dos barões. Essa ação de “mascarar” a verdade para manter viva a sua ideologia foi um recurso muito utilizado pelos escravizados em busca de sua liberdade e na construção de uma identidade em meio à uma repressão muito forte. Paulo Freire dizia que a consciência do oprimido encontrase imersa no mundo preparado pelo opressor, dividindose em duas: de um lado, aceitando valores e ideologia do O grupo formado por moças, rapazes, Griôs, mestras e mestres contam histórias, abre uma roda de conversa e ao final, fazem um jogo teatralizado, permeado por cantigas populares. Embalados pelo batuque potente dos instrumentos, os participantes avançam e recuam criando um jogo de pergunta e resposta, que acontece várias vezes. Um dos integrantes do grupo, Mestre Alceu se adianta e conta: dominador, de outro lado, tem desejo e necessidade de A terra só ficou entre eles (os filhos do Barão), a terra não libertar-se. A relação entre liberdade e comunidade apa- foi distribuída pra ninguém, pro escravo mais querido, rece para o autor da seguinte maneira: pro Toninho... Então isso dai a gente chama de latifúndio. Henrique Dutra Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô 9 Que nome mais esquisito né? Parece nome de remédio (as crianças riem). Como é que chama? Então essa música falava disso, do Barão que deixou toda a sua terra pros 25 9 304 Fundado em 1988, o grupo de teatro e música Urucungus, Puítas e Qujengues tem como missão preservar e divulgar a cultura popular brasileira de acordo como elas são manifestadas nas suas origens. A marca principal do Urucungos é fazer com que o público participe das suas performances, criando um ambiente de integração coletiva, remetendo a grande característica da manifestação popular: a participação do público. filhos dele. Eles tinham que cantar de uma forma poética, que não desse na cara... 10 10 Registro de vídeo captado pelo vídeomaker do Ponto de Cultura Nina-Griô, 305 à venda de brinquedos infantis. Então surge a questão: gestores do projeto que acompanham sua execução. O quem vê o marco? Em meio a luzes, outdoors e propagan- público deixa a Fazenda Santa Genebra em direção à pró- das, o marco do boi falô, patrimônio material e imaterial xima parada da trilha. Os contadores de histórias, Griôs da cidade, padece. Não há espaço para a ancestralidade aprendizes e atores-jogadores lhes encaminham para o do povo campineiro. Seu valor simbólico é sufocado pe- ônibus sempre dentro dessa esfera “encantada”. Sabemos los meios de produção dominantes e pela hegemonia do todos, obviamente, que tudo não passa de uma encena- poder e da sociedade de consumo. ção. Não somos baroneses, escravizados ou qualquer uma No marco, está Tia Nice 11 com uma barraca de acarajé. destas figuras desse universo, mas o que é a arte, se não Ela recebe o grupo, conversa, conta histórias, serve mini isso? A experiência estética da trilha propõe um constante acarajés, sorri. A sua versão da história do boi difere um jogo de, por meio da arte, esquecermos de nós mesmos, pouco da versão do Mestre Marquinhos (questão típica fazermos um parênteses em nossas vidas cotidianas e das histórias de tradição oral, como já mencionado an- nos entregarmos, por algumas horas que sejam, a um tes). “Daí, o boi levantou a patinha e disse: hoje ninguém novo universo, “a uma suspensão da realidade” (JUNIOR, trabalha!”— Conta ela levantando o braço esquerdo. Todos 2011, p.59). riem e saboreiam seus acarajés. O grupo chega a uma pequena praça no distrito de A próxima parada da trilha fica no Cemitério da Sau- Barão Geraldo. Lá está localizado o “Marco do Boi Falô”, dade. Ele está localizado na região central da cidade e foi onde, dizem, teria de fato se passado o diálogo do boi fundado em 1880, sendo o mais antigo de Campinas e o com o escravizado Toninho. É importante salientar que a praça e o marco são insignificantes perto do cenário que compõe a geografia desse espaço no raio de alguns metros. Tangendo a praça, é possível encontrar uma grande rede de supermercados à frente, postos de combustível, um em cada lado e uma enorme loja de dois andares destinada Neander Heringer no dia 07/11/2012. 306 Henrique Dutra Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô Todos são convidados a jogar: professores, alunos e 11 Tia Nice do Acarajé é muito conhecida em Campinas. Ela tem uma barraca de acarajé na feira mais tradicional da cidade, a feira de artesanatos, também conhecida como “Feira Hippie”. Essa feira se iniciou entre o final da década de 1970 e início da década de 1980 em torno da barraca de acarajé de Tia Nice e os hippies que por ali também expunham. Hoje, a feira tem um caráter mais diversificado, porém a Tia Nice ainda tem sua barraca e os hippies ainda contam com um espaço para expor seus produtos à venda. O ponto de acarajé da Tia Nice figura entre as poucas barracas de tradição popular que ainda sobrevivem. Somam-se a elas barracas de brinquedos populares de madeira, comidas típicas, bijouterias, roupas, bordados e rendas. 307 primeiro cemitério público do Brasil. Em 2003, o local foi fechamento da narrativa. Em seguida, dá-se início a uma tombado como patrimônio cultural da cidade por abrigar roda de jongo, em que todos são convidados a participar mausoléus das famílias mais ricas e tradicionais. É nesse cantando e dançando. Conclui-se o passeio pela Trilha Griô local, na avenida principal, que se encontram as sepulturas nas Terras do Boi Falô com um almoço típico da culinária do Barão e de Toninho, um ao lado do outro. Esse fato, afro, preparado pelas mulheres jongueiras. inclusive, legitima a história do boi falô, uma vez que os de brancos, muito menos na avenida principal e ao lado Quando se entrecruzam as narrativas: possibilidades com a escola dos túmulos das famílias ricas. Toninho se tornou uma espécie de santo popular e sua lápide recebe muitas placas de agradecimentos e flores até hoje. Antes da trilha acontecer, foram realizadas inúmeras reuniões entre professores, gestores e mestres para se O último ponto da trilha é novamente uma fazenda chegar a um plano de trabalho que não começasse ou estilo colonial, mas que hoje se constitui em um quilom- terminasse somente na trilha, mas que permeasse outros bo urbano, chamado Fazenda Roseira. Também conhecida trabalhos e práticas dentro da escola. Também o diálogo como Ponto de Cultura Jongo Dito Ribeiro, que desde com os pais foi mediado com muito cuidado: 2006 se dedica a manter vivas as tradições de cultura afrodescendente. Nesse local, o público é convidado a fazer uma pequena trilha a pé, onde se aprende sobre a história da fazenda, da época da escravidão e do momento de emancipação política e cultural dos afrodescendentes que hoje fazem a gestão do local. Essa narrativa passa por manifestações culturais, como a capoeira e o jongo, que também possibilitavam momentos de reuniões políticas Henrique Dutra Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô escravizados jamais seriam enterrados em um cemitério Já mandei os bilhetes de autorização. Não expliquei muita coisa, nem falei do cemitério. Tem muitos pais evangélicos e nós já tivemos problema até para trabalhar com livro do Harry Potter... Olha, veja bem, ninguém aqui na escola esta mentindo ou fazendo apologia a religião alguma... Mas nosso compromisso é com os alunos. (Sandra Shafirovits — Caderno de anotações, março de 2014). entre os escravizados, veladas pela imagem de manifes- 308 tação artística aos olhos dos barões. Ao final do passeio, A transcrição acima é uma fala da diretora da EMEF entra-se na sede da fazenda, onde há um vídeo que faz o Maria Pavanatti. Desde o início, nos preocupávamos sobre 309 como trataríamos das questões de matriz africana sem O intuito de criar uma metodologia para compor ser agressivo ou desrespeitar a crença dos alunos e seus uma Trilha que falasse para aqueles alunos e conseguisse, efetivamente, estar entrelaçada ao Projeto Politico e Pedagógico daquele espaço sem ser ofensivo ou tendencioso. Schwartz, um dos grandes autores dos estudos culturais nos lembra que: pais. Antes de realizada, a Trilha começava na Escola, nas aulas de Artes e História. Quando o Márcio 12 veio pra fazer o encontro antes da tudo de Griô, de Boi Falô... e estavam muito ansiosas... Nós A identificação explícita das culturas vividas como um já tinhamos falado com eles e feitos atividades diversas projeto distinto de estudo, o reconhecimento da autono- vezes. Por que não da pra fazer a Trilha assim, jogada no mia e complexidade das formas simbólicas em si mesmas; currículo escolar né? Então a ideia é ir trabalhando esses a crença de que as classes populares possuíam suas pró- conteúdos antes, aí vem a Trilha e depois a gente conti- prias formas culturais, dignas de nome, recusando todas nua estudando a história de Campinas e a matriz africana as denúncias, por parte da chamada alta cultura, do bar- que esta reacionada a ela (...). Fizemos os desenhos, as barismo das camadas sociais mais baixas; e a insistência produções de textos, jogo de trilha com dados... Esse é o em que o estudo da cultura não poderia ser confinado a conteúdo programático das turmas dos 4º anos, aí fica um uma disciplina única, mas era necessariamente inter, ou alvoroço, por que as turmas dos 3º anos querem que o ano mesmo anti, disciplinar. (SCHWARZ, 1994, p.380). Henrique Dutra Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô Trilha, as crianças estavam enlouquecidas... Elas já sabiam acabe logo pra elas poderem participar da Trilha no ano que vem (risos). (Cintia Birochi, Professora de Artes – Caderno de anotações, outubro de 2014). Como trazer o desenvolvimento das tradições brasileiras para o centro da roda? Como legitimar o saber oral e popular paralelo ao saber acadêmico e cientifico? Estas são 12 310 Marcio Caires ou Marcio Griô é articulador do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô. Nesta ocasião, ele veio para o Ciclo de Vivências e Práticas da Pedagogia Griô, realizada em parceria com a Unicamp, e além de ser o facilitador nas reuniões pedagógicas com a direção e os professores , também fez a intervenção prévia na EMEF Maria Pavanatti. As outras intervenções antes e depois da Trilha foram realizadas pelos Griôs Aprendizes do Ponto de Cultura NINA. questões básicas que a Pedagogia Griô busca responder som seus princípios e práticas, entre elas a Trilha Griô. 311 Considerações Finais leira, zeladores do patrimônio imaterial da cidade de Cam- Entende-se que o projeto da Trilha Griô nas Terras do Boi pinas, da identidade e ancestralidade do povo brasileiro. Falô preenche uma lacuna no currículo das escolas. O modelo escolar brasileiro vigente segue parâmetros Referências Bibliográficas nhecimentos científicos e não os conhecimentos-saberes BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios advindos das tradições culturais, já que a visão transmitida sobre literatura e história da cultura. São Paulo: pela escola é sempre a visão determinada pelas classes Brasiliense, 1994. dominantes (DUARTE JR, 2011). Nesse sentido, a identidade brasileira constituída por um caleidoscópio de povos e culturas, em especial as indígenas e as africanas são relegadas a um segundo plano, ou então, tem suas verdades distorcidas, quando não suprimidas. A trilha não só aproxima os alunos e professores dos saberes de tradição oral, como também propõe uma trans- DUARTE JUNIOR, J. F. Por que Arte-Educação? São Paulo: Papirus, 2011. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GASKEL, G.; BAUER, M. W. (ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. 7º edição Petrópolis: Vozes, 2008. versalidade dos saberes e conhecimentos da escola for- PACHECO, Líllian. Pedagogia Griô – A reinvenção da roda mal, fazendo pontes com as disciplinas de Artes, História, da vida. 2. ed., Grãos de Luz e Griô, Lençóis - BA, 2006. Geografia e Português. Mais do que isso, está em acordo SCHWARZ, Bill 1994: Where is cultural studies?. Cultural com o cumprimento da Lei nº 10.639, que obriga o ensino de História e Cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas brasileiras. Para além dos aspectos educacionais, a importância da trilha concerne ao reconhecimento social e no fortalecimento das redes e nos vínculos dos Griôs, aprendizes e Henrique Dutra Narrativas da Trilha Griô nas Terras do Boi Falô curriculares educacionais que somente privilegiam co- Studies, 8 (3), 377-393 SILVA, R.; SOUZA NETO, J. C.; MOURA, R. A. (Orgs.) Pedagogia Social. São Paulo: Expressão e Arte Editora/ FAPESP/UNESCO, 2009 TURINO, C. Ponto de Cultura – O Brasil de baixo para cima. São Paulo: Editora Anita Garibaldi,1.ed, 2010. grupos de cultura oral: patrimônios vivos da cultura brasi- 312 313