8 E STA D O D E M I N A S ● D O M I N G O , 1 º D E M A R Ç O D E 9 2 0 1 5 E D I TO R : B a p t i s t a C h a g a s d e A l m e i d a E D I TO R - A S S I ST E N T E : R e n at o S c a p o l at e m p o re E - M A I L : p o l i t i c a . e m @ u a i . co m . b r TELEFONE: (31) 3263-5293 W h at s A p p : ( 3 1 ) 8 5 0 2 - 4 0 2 3 NACIONAL ❚ TRAGÉDIA DE ILHA GRANDE Reportagem ingressa na mata e revela marcas da destruição da Sankay e a luta de seus donos para sobreviver à perda da pousada e da filha FOTOS: LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS O que sobrou da luxuosa Pousada Sankay foi tomado pelo mato que avança sobre a área isolada pela Defesa Civil e declarada de risco permanente, mas ainda guarda vestígios do que foi o sonho de seus donos Cicatrizes de um desastre Ilha Grande, Angra dos Reis (RJ) – Quem chega de barco à Enseada do Bananal, no distrito de Ilha Grande, em Angra dos Reis, desfruta do belo cenário panorâmico da praia e pode ver, num contraponto, o rastro do deslizamento na encosta da montanha semelhante a uma cicatriz. O desastre resultante das intensas chuvas do fim de 2009 ganhou repercussão internacional e deixou marcas no meio ambiente e nos moradores. Na época, a avalanche de lama, troncos e pedras desceu e se dividiu em certo ponto de seu curso destruidor: de um lado, soterrou casas, dizimou vidas e também parte da praia; no outro, onde se localizava a Sankay, uma pedra gigante rolou a ribanceira e atingiu em cheio o quarto onde dormiam Yumi e amigos, entre eles o casal de namorados Isabella Godinho e Paulo Sarmiento. Yumi e o casal de amigos morreram. Após o resgate das vítimas, todas as casas foram interditadas pela Defesa Civil, com exceção das localizadas à esquerda de quem chega à enseada e uma moradia cujos proprietários obtiveram liminar na Justiça para ocupação. Alguns moradores não gostam de falar sobre a tragédia ou ir além dos cordões de isolamento das árvores, mas indicaram a trilha ao repórter fotográfico Leandro Couri, do EM, alertando sobre o mato avantajado. As instalações consumidas pela floresta ainda trazem fortes traços do lugar, que já foi um dos mais luxuosos da Ilha Grande – com estrutura que incluía barco, vista privilegiada para o mar, deque, sauna, piscina e salão de jogos – e que operava com mais de 70% da sua capacidade de ocupação o ano inteiro. O empreendimento erguido por Geraldo Flávio e Sonia Imanishi Faraci na Enseada do Bananal não existe mais – restaram ruínas. Impressionado com o cenário, Couri fez muitas fotos e mostrou algumas delas ao casal, na semana passada, em sua residência num condomínio em Brumadinho. “Desde a tragédia, nunca mais estive lá...”, disse Geraldo, que, além de olhar fixamente para as imagens, coçava a cabeça ao verificar os detalhes. Sonia também viu o material com tranquilidade, mas, algumas vezes, baixou os olhos. As lembranças voltaram, mas sem lágrimas. Numa das fotos mostradas no smartphone, Geraldo identificou o quarto dele e de Sonia. “Atrás do nosso quarto, ficava o de Yumi. “Puxa vida! Você esteve lá...”, disse, antes de contar episódio envolvendo a cabeceira da cama do casal. “Tínhamos ali uma tela grande de autoria de Léo Brizola. Ela foi arrancada e lançada na praia e ficou sobre a areia durante muito tempo, sofrendo os efeitos do sol e da chuva, com as pessoas passando por cima, enfim, muitos danos.” Ao ser localizada a tela, Brizola achou que seria melhor deixá-la do jeito que estava e o casal a mantém em Brumadinho com todas as suas marcas. Na época da tragédia, o patrimônio familiar incluía pousada, restaurante, butique, operadora de mergulho, uma casa em Angra e apartamento em Belo Horizonte, adquirido para alojar Yumi durante os estudos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Em duas décadas na Ilha Grande, fortalecemos nossa união”, conta Sônia. “Depois da ‘partida’ de nossa filha, fiquei entre dois caminhos: tornarme sobrevivente ou vítima”, diz ela, que, durante muito tempo, acordou no meio da madrugada, exatamente na hora do “acidente”. A mãe de Yumi encontrou alegria modelando o barro, que, por essas ironias do destino, soterrou a filha única. Montou um ateliê de cerâmica, em que o casal mantém vários potes plásticos com terra de diferentes cores retirada do lote onde construiu a casa. “Sonia pretende fazer um pote com um punhado de cada terra para guardar as cinzas de Yumi”, adianta Geraldo. As marcas estão também na pele dos pais de Yumi. Geraldo tem o rosto da filha tatuado nas costas; o nome da menina está ainda grafado na lateral de uma das panturrilhas dele e de Sonia e, visto de cima, toma a forma de uma guitarra. O nome de Yumi batiza um torneio de kobudô, no Rio de Janeiro, e um projeto de educação musical em Angra. INABITÁVEL Desde a tragédia que deixou 53 mortos e um desaparecido, incluindo o Morro da Carioca, comunidade na cidade de Angra dos Reis (RJ), a área onde ficava a pousada foi declarada de risco permanente e inabitável. Segundo a Secretaria Especial de Defesa Civil e Trânsito de Angra dos Reis, em 2010, foi construído um muro no local para evitar que novos blocos de rocha se deslocassem em direção ao mar. Mas como há pedras soltas no alto do morro, a Defesa Civil Municipal decidiu pela interdição permanente de toda a área onde ficava a Sankay para evitar mais óbitos. Geraldo e Sonia no cantinho dedicado a Yumi (acima), morta no deslizamento: medalhas, troféus, instrumentos musicais, cinzas da menina e terra de Ilha Grande materializam a memória RUÍNAS DO PARAÍSO LEANDRO COURI E GUSTAVO WERNECK Angra dos Reis (RJ) e Brumadinho (MG) – Os cordões de isolamento são samambaias, cipós e raízes grossas que, de cara, desencorajam os mais desavisados a seguir pela trilha interditada. No meio da mata, há colchões tragados pelos arbustos, um espelho quebrado no canto da janela e pedaços de uma antiga cadeira marcada pela lama seca, além de montes de entulhos de demolição. O cenário desolador e sinistro é parte das ruínas da Pousada Sankay, em funcionamento até a passagem de 2009 para 2010, na deslumbrante Enseada do Bananal, na Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ). Nas primeiras horas daquele ano novo, um deslizamento de pedras e lama vindas do alto de uma montanha pôs fim ao empreendimento e matou a estudante de arquitetura Yumi, de 18 anos, filha dos proprietários, os mineiros Geraldo Flávio e Sonia Imanishi Faraci. Dois amigos de Yumi também morreram no local. Pouco mais de cinco anos depois da tragédia, que deixou 53 mortos e um desaparecido em Ilha Grande e numa comunidade de Angra dos Reis, o Estado de Minas mostra, com exclusividade, o estado da Sankay, considerada um pequeno paraíso tropical e onde só se chega de barco. Desde o acidente, o local da pousada está interditado pela Defesa Civil sob risco permanente de novos deslizamentos. Ao mesmo tempo, Geraldo e Sonia rompem o silêncio e, com impressionante serenidade, falam das dores da perda, de lembranças e dos novos tempos. Em dezembro passado, quando os colegas da garota se formaram em arquitetura na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, o casal sentiu bater forte a ausência e se refez com boas recordações e união forte. Com madeira de portas, janelas e piso da Sankay, Geraldo e Sonia, aposentados, construíram uma casa num condomínio em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Sonia tomou gosto pela cerâmica e tem trabalhado muito na produção de jarros, pratos e outros objetos decorativos. Transformou o barro das angústias na arte da superação. Depois de viver duas décadas na ilha e cinco distante dela, eles alimentam o sonho de voltar a viver perto do mar e, nem por um segundo, deixam de cultuar a memória de Yumi, nome que, em japonês, significa “caminho bonito de luz”. DEPOIMENTO LEANDRO COURI, REPÓRTER FOTOGRÁFICO DO EM Decifrando signos do santuário Um colchão e objetos variados cobertos de arbustos: cenário desolador “Ao chegar a Ilha Grande para passar férias com a família, não me toquei, de imediato, que estava na região onde o acidente ocorrera no réveillon de 2009/2010. Mas, como fotógrafo eternamente apaixonado e jornalista por herança, senti a adrenalina e a certeza de que não tinha outro objetivo a não ser ir lá ver as ruínas da Sankay. Durante três dias, entrei na mata, onde antes era a pousada, e, aos poucos, fui decifrando alguns signos daquele santuário. Mesmo agora, após a ação do tempo, fica claro que tudo era tratado com amor, arte e cuidado. Os ladrilhos, como se estivesse faltando alguma escrita, me remeteram ao nome que é a junção das palavras japonesas ‘san” e ‘kay’; cada detalhe mostra que havia cuidado e harmonia. Nas ruínas, estão signos de uma estrutura construída em estilo rústico, no meio da floresta tropical, e que, após o acidente, está em parte submerso e em parte emergindo na mata, deixando expostos os objetos deixados pela família Faraci ou hóspedes e até mesmo pelos saqueadores. “Tirávamos o que podíamos de dia e o ladrão roubava de noite”, conta Sonia Imanishi Faraci. Trilha de dor e superação Longe das montanhas de Minas e do mar de Angra dos Reis (RJ), duas grandes paixões do casal, o deserto de Atacama, no Chile, foi o destino escolhido por Geraldo Flávio e Sonia, em outubro, para celebrar as bodas de prata. Numa altitude superior a 4 mil metros, os dois tinham um objetivo singelo: ficar mais perto do céu e, portanto, da filha Yumi Imanishi Faraci, que, se estivesse viva, completaria 23 anos no mês anterior. “O lugar guarda uma energia muito forte, foi bom estar ali”, revela Sonia, ao admirar da janela de casa, num condomínio em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a natureza exuberante, e se recordar da filha única que morreu no réveillon de 2009 em Ilha Grande. Estudante de arquitetura e apaixonada por esportes, sendo inclusive faixa preta em caratê, a jovem foi soterrada por lama e pedras deslizadas de uma montanha, enquanto dormia na Pousada Sankay, dos seus pais, na Enseada do Bananal. “Um dia voltaremos a Atacama. E, com certeza, a morar à beira-mar”, diz Geraldo, certo de que a experiência trouxe força para superar a dor da perda e esperança para trilhar outros caminhos. Mais de cinco anos depois do episódio, ao qual Geraldo chama de “tragédia” e Sonia, de “acidente”, o casal Faraci fala com tranquilidade dos tempos tenebrosos que passou. Na sala da residência construída com madeira e outros materiais vindos da Pousada Sankay, hoje em ruínas, o casal reservou um canto para preservar a memória da filha – arte e delicadeza se somam no espaço, parecido com um altar. Na parede do fundo está a foto da menina sorridente, e, nas laterais, registros de momentos em que ela tocava guitarra com a sua banda de garagem; encostados num móvel, instrumentos como teclado, gaita e o primeiro violão; numa coluna, quadro de medalhas, entre elas as conquistadas em campeonatos de caratê e kobudô; e, em prateleiras, vela acesa, imagens de santos católicos e objetos pessoais. Nada chama tanto a atenção, no entanto, como um pote sobre a mesa contendo parte das cinzas de Yumi. “Lançamos um pouco no oceano, em Ilha Grande, numa cerimônia debaixo d’água com a presença de 80 amigos, e um pouco do alto do Topo do Mundo, na Serra da Moeda”, conta a mãe. Ilha Grande é a senha para que venha à tona a história que mudou a vida do belo-horizontino Geraldo e da carioca Sonia, que se mudou ainda criança para a capital mineira. Tudo começou na década de 1990. Cheios de planos e com a filha pequena, os dois decidiram atender ao “chamado do mar” e iniciar vida nova em família, numa praia. “Meu pai, Akira, tinha um terreno no Bananal e nos ofereceu a propriedade. O lugar não tinha água encanada nem luz elétrica, só tínhamos gerador. Mesmo assim encaramos o desafio de erguer a Pousada Sankay”, conta Sonia, explicando que os ideogramas japoneses formadores da palavra significam montanha (san) e mar (kay). MERGULHOS Impossível traçar a trajetória dessas duas vidas e do empreendimento em Ilha Grande sem falar de Yumi. “Sempre pensamos em dar a ela uma vida saudável, sem o estresse da cidade grande. Nossa filha foi criada no meio da natureza, nadava bem, era instrutora de mergulho. Foi alfabetizada por nós, era fluente em inglês e japonês. Tivemos o privilégio de acompanhar as etapas do seu crescimento, comparecendo às reuniões na escola, mesmo quando a pousada estava lotada”, diz Sonia, com o semblante calmo de quem cumpriu bem a missão. Muitas lembranças são citadas com alegria discreta e fazem parte das memórias familiares: “Certa vez, estávamos na varanda e Yumi disse que o cadarço do tênis estava andando. Era nada mais nada menos que uma cobra coral”, recorda-se a mãe. Tudo corria bem até que chegou o réveillon e os Faraci fizeram festa para desejar feliz 2010 a 54 convidados, incluindo sete amigos da filha chegados de BH. “Yumi pediu ao DJ para tocar, especialmente, Macarena, para fazer a coreografia, e Viva La Vida, da banda Coldplay, que ela amava. Dançamos até duas da madrugada. Nossa filha preferiu dormir com a turma, cedendo seu quarto para o avô. Quando eram 3h15, a terra da montanha, de 380 metros de altura, desceu trazendo pedras, lama e raízes”, conta Geraldo. PORTAS FECHADAS A longa noite não terminaria tão cedo – na verdade, duraria todo o ano seguinte. “Ao ouvir barulho e gritos, pulei da cama e consegui salvar Natasha, amiga de minha filha. Mas demorou muito para Yumi ser encontrada”, diz Geraldo, com a voz firme. Na manhã seguinte, chegou o resgate. “Na pousada, ocorreram estragos apenas no quarto de Yumi, mas, na região do Bananal, não foram poucos: nove pessoas de uma família haviam morrido”, conta ele. A solidariedade de vizinhos falou mais alto e muitos donos de pousadas abrigaram os hóspedes. “Sem amigos não se faz nada na vida”, acredita Sonia. Com a interdição da Sankay pela Defesa Civil, veio o inevitável colapso financeiro. A família retirou o que pôde, incluindo 68 portas, janelas, pisos, roupas de cama, eletrodomésticos, móveis e outros objetos. “Não foi fácil desfazer uma vida em apenas dois dias. Vendemos tudo, fizemos o acerto com os funcionários, devolvemos o sinal de pagamento aos hóspedes, embora alguns não tenham aceitado, e fechamos a empresa. Em Angra dos Reis, fiz um brechó em casa e vendi até meus sapatos e roupas. Teve uma mulher que, para ajudar, comprou até o que não precisava!”, conta Sonia. Nesse torvelinho, o casal retornou a BH e foi morar com a mãe de Geraldo até que, há dois anos, se mudou para Brumadinho. Como os danos na pousada foram causados pela natureza, não houve pagamento de seguro. O que aliviou a barra foram os R$ 10 mil pagos por seguro da UFMG, específico para estudantes. Ao interagir com os vizinhos, Sonia conheceu ceramistas e viu que tinha jeito para essa arte. Acabou montando um ateliê e já apresentou peças em exposições. Vivendo com o dinheiro da aposentadoria e o fruto de economias, os dois contam que o mundo virou de cabeça para baixo, mas eles conseguiram entrar nos eixos. “Aprendi a praticar o desapego. Antes, tinha tudo sob controle, era pura matemática”, afirma Sonia, que trocou de matéria. Com um sorriso franco, revela que passou a valorizar a espiritualidade.