Arq Bras Cardiol
volume 75, (nº 5), 2000
e cols
ArtigoVolpe
Original
Plástica mitral com anel maleável de pericárdio bovino
Plástica Mitral com Anel Maleável de Pericárdio Bovino
Marco Antônio Volpe, Domingo Marcolino Braile, Reinaldo Wilson Vieira, Dorotéia Rossi Silva Souza
Campinas, SP
Objetivo – Descrever a técnica cirúrgica de plástica
valvar mitralcom anel maleável de pericárdio bovino e os
resultados clínicos e ecodopplercardiográficos.
Métodos - Foram estudados 32 doentes, sendo 25 do
sexo feminino e sete do masculino, idade entre 9 e 66
(M=36,4±17,2) anos, com seguimento de 100% em 16 meses. A abordagem mitral foi exclusiva em 23 (72%) doentes, enquanto os demais (9) foram submetidos a operações
associadas. A técnica consistiu em medir o perímetro da
cúspide anterior e implantar uma prótese flexível de pericárdio bovino com esta medida, para reforço e conformação do anel mitral posterior, reduzindo-o ao perímetro da
cúspide anterior, com ajuste do aparelho valvar.
Resultados - Registrou-se sobrevida de 93,8% com 2
(6,2%) óbitos: um de causa desconhecida e outro por insuficiência ventricular esquerda. Houve apenas uma reoperação. Na avaliação ecodopplercardiográfica, 88% dos
doentes mostraram recuperação funcional da valva mitral
(50% com ausência de insuficiência e 38% com insuficiência leve e sem repercussão hemodinâmica). Dos 12% (4
pacientes) restantes, 6% apresentaram insuficiência moderada e 6% insuficiência acentuada. Segundo a classificação da NYHA, os doentes das classes II (28%) e III (72%)
passaram para as classes I (65%), II (32%) e III (3%).
Conclusão - O anel de pericárdio bovino, sendo flexível, moldou-se perfeitamente ao anel valvar, respeitando
sua geometria e contratilidade. A plástica mostrou-se reprodutível com vantagens significantes na evolução dos
doentes, prescindindo de anticoagulação.
Palavras-chave:
cirurgia valvar mitral, plástica-anuloplastia, pericárdio bovino
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP
Correspondência: Marco Antônio Volpe – Rua Baronesa do Japi 129/13 – 13207000 – Jundiaí, SP
Recebido para publicação em 16/9/99
Aceito em 1/3/2000
Para o perfeito funcionamento da valva mitral, é necessária a integridade funcional de seus elementos constituintes, que pode ser alterada diante de distúrbios ocasionados
por doenças congênitas ou adquiridas 1. Essas doenças
podem causar dilatação do anel valvar, fusão comissural, hipoplasia da cúspide posterior, encurtamento ou alongamento das cordas tendinosas e ruptura das cordas anteriores e ou posteriores, tendo como conseqüência a insuficiência e ou estenose mitral 2.
Em 1956, Lillehey e cols. fizeram a primeira anuloplastia
sob visão direta para correção de insuficiência mitral 3. Posteriormente, outros cirurgiões tentaram a generalização da
anuloplastia por plicatura do anel 4. Todavia, houve alto índice de recorrência devido a problemas, como deiscência,
trombose, perda da complascência da cúspide, entre outros 5.
O surgimento dos substitutos valvares levaram ao desinteresse pelos procedimentos conservadores e apenas
alguns grupos continuaram realizando reparos valvares em
casos selecionados 6,7. A diversidade de próteses tornouse cada vez maior, todavia pacientes com substitutos valvares começaram a apresentar complicações associadas direta
ou indiretamente à prótese, tais como fraturas, desgastes,
tromboembolismo, infecções, hemólise, ruptura e calcificação 7-9.
O interesse na reconstrução mitral ressurgiu na década
de 70 com os trabalhos de Carpentier e cols., propondo a utilização de um anel protético rígido para reconstrução da valva
mitral 7,10,11. Desenvolveram também inúmeras técnicas para
correção de anormalidades valvares anatômicas específicas,
entre elas ressecção segmentar da cúspide posterior e encurtamento, alongamento, transplante e divisão de cordas 11.
Essas técnicas passaram a ser empregadas, juntamente com
a anuloplastia, para recuperação da função valvar 7,12. A experiência acumulada e os novos conceitos sobre fisiologia do
aparelho valvar mitral mostraram limitações na técnica proposta por Carpentier, como a fixação do anel contrátil 13,14 e
eventual obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo 15-19.
Os anéis completos desenvolvidos por Duran e cols. 13,20
e Puig e cols. 21,22 seguiam princípios similares aos propostos por Carpentier e cols., com vantagem de serem flexíveis,
respeitando a movimentação do anel nativo 13,20-22 e reduzindo a possibilidade de obstrução da via de saída da câmara
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381
Volpe e cols
Plástica mitral com anel maleável de pericárdio bovino
esquerda 23. Entretanto, o anel valvar anterior não participa
expressivamente na dilatação do aparelho mitral e a colocação de uma prótese anelar completa pode distorcê-lo, comprometendo o trato de saída do ventrículo esquerdo, o que
levou à proposta da anuloplastia exclusivamente posterior
com prótese 24 ou apenas sutura contínua, similar a um De
Vega 25. A evolução comprovou a superioridade dos anéis
para conformação posterior 26-30.
As técnicas de valvoplastia utilizando anéis têm como
base a área da cúspide anterior, associada ou não a distância intertrigonal ou intercomissural, para seleção do tamanho da prótese anelar 10,13,27-30. Em 1985, Braile e cols. 26 desenvolveram medidores específicos visando a mensuração
do perímetro da cúspide anterior, introduzindo um novo
conceito para escolha do tamanho da prótese anelar. Utilizaram anel de pericárdio bovino flexível e radiopaco para reforço e remodelação do anel mitral posterior, reduzindo-o ao
perímetro da cúspide anterior.
Este estudo teve como objetivo descrever uma técnica
de plástica valvar mitral com anel maleável de pericárdio
bovino e sua avaliação clínica-ecodopplercardiográfica
pós-operatória.
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mitral e a plástica tricúspide destacaram-se entre os procedimentos e as operações associados, sendo realizados em
18 e 4 doentes, respectivamente.
As avaliações clínicas foram feitas nos períodos pré e
pós-operatório, segundo a classificação da New York
Heart Association (NYHA). A figura 1-A mostra 23 (72%)
doentes em classe funcional III e 9 (28%) em classe funcional
II, no período pré-operatório.
Os graus de insuficiência mitral foram avaliados nos
Tabela II - Procedimentos e operações associados a plástica
mitral com anel maleável de pericárdio bovino
Métodos
Foram estudados 32 doentes, sendo 25 (78%) do sexo
feminino e 7 (22%) do masculino, com idades entre 9 e 66
(média= 36,4 ±17,2) anos. Os doentes foram operados de
agosto/94 a dezembro/95 na Disciplina de Cirurgia Cardíaca
do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, para plástica
valvar mitral com prótese maleável de pericárdio bovino implantada em anel posterior,.
A doença reumática foi a causadora das lesões valvares em 28 (87,5%) doentes, seguida da degeneração mixomatosa em 4 (12,5%) deles. Apenas um paciente tinha uma
cirurgia anterior para troca valvar aórtica por prótese mecânica. A tabela I apresenta as lesões que determinaram o
reparo valvar, com destaque para dupla lesão mitral, detectada em 14 (44%) doentes e insuficiência mitral pura em 12
(37%).
O tempo de circulação extracorpórea variou de 51 a 132
(M=80,2+18,8) minutos e o de pinçamento da aorta de 29 a
100 (M=57,9+16,1) minutos. A cardioplegia foi por infusão
contínua. Foram utilizados anéis de 25, 27, 29 e 31mm.
A tabela II mostra os 23 (72%) procedimentos e as 9
(28%) operações associados à plástica. A comissurotomia
Procedimentos associados
No
%*
%**
Comissurotomia anterior e posterior
Papilarotomia posterior
Papilarotomia anterior
Ressecção quadrangular da
cúspide posterior
Total
17
3
2
1
74
13
9
4
53
10
6
3
23
100
75
o
%*
%**
45
33
22
100
13
9
6
28
Operações associadas
N
Plástica tricúspide
Troca valvar aórtica
Plástica valvar aórtica
Total
4
3
2
9
* Porcentagem calculada sobre o total de procedimentos ou operações
associadas; ** porcentagem calculada sobre o total de 32 doentes.
A
ClasseII
ClasseIII
B
Tabela I - Lesões valvares pré-operatórias dos doentes submetidos
à plástica mitral com anel maleável de pericárdio bovino
Lesões
Dupla lesão mitral
Insuficiência mitral pura
Estenose mitral pura
Estenose mitral calcificada
Total
382
Doentes
No
%
14
12
5
1
32
44
37
16
3
100
Class I
ClassII
ClassIII
Fig. 1 - Avaliação clínica dos doentes submetidos a plástica mitral com anel maleável
de pericárdio bovino. (A) pré-operatório; (B) pós-operatório.
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períodos pré e pós-operatório por estudo ecodopplercardiográfico. A insuficiência mitral acentuada foi detectada
em 75% dos doentes, sendo 12 (37,5%) com insuficiência
pura e 12 (37,5%) com dupla lesão e componente de insuficiência grave. Entre os demais, dois (6%) apresentaram dupla
lesão mitral e componente de insuficiência moderado e seis
(19%) não apresentaram insuficiência, sendo portadores de
estenose mitral (figura 2-A).
Foram considerados como óbitos hospitalares aqueles que ocorreram na instituição ou até 30 dias de pós-operatório.
Todos os pacientes foram submetidos a esternotomia
mediana e heparinização sistêmica de acordo com a curva
do tempo ativado de coagulação (tempo ≥480s). A circulação extracorpórea foi estabelecida por drenagem das veias
cavas e infusão arterial pela aorta. A temperatura nasofaríngea manteve-se em torno de 32ºC. Após pinçamento completo da aorta ascendente, iniciou-se a infusão de cardioplegia sangüínea, através de uma cânula 12Fr, na raiz da aorta.
Em seguida, abriu-se o átrio direito e confeccionouse uma bolsa ao redor do seio coronário, onde se introduziu uma sonda Foley nº18 para infusão retrógrada contínua da cardioplegia. O átrio esquerdo foi aberto por inci-
são longitudinal em direção à veia cava inferior e abaixo da
cava superior.
A adequada visibilização da valva mitral permitiu o
estudo da anatomia valvar e a avaliação do comprometimento do aparelho subvalvar. O alongamento, retração ou
ruptura de cordas tendíneas, bem como a posição e participação da musculatura papilar na lesão foram cuidadosamente avaliados. Para tração delicada dos folhetos valvares,
foram utilizados dois ganchos de pontas rombas e curvas.
Realizaram-se, quando necessário, procedimentos
sobre as cordas tendíneas, os músculos papilares e os folhetos. Posteriormente, utilizaram-se medidores para a escolha do tamanho do anel. Esses instrumentos apresentam-se
aos pares e sustentam em suas extremidades semicírculos
de 21mm/23mm, 25mm/27mm e 29mm/31mm (fig. 3), para medida do perímetro da cúspide anterior (fig. 4).
Na seqüência, foram passados pontos em “U”, com fio
de poliéster trançado 2.0, profundamente no anel mitral
posterior, tendo como limites os dois trígonos fibrosos e
evitando-se o sistema coronariano. Esses mesmos pontos
foram passados no anel maleável e amarrados de forma a
recolher o anel mitral posterior, remodelando-o e adequando
o folheto posterior ao anterior, garantindo a competência
valvar (figs. 5 e 6). Testou-se a valva mitral, passando-se
uma sonda 12F pelo orifício valvar aórtico até o ventrículo
esquerdo, com infusão de sangue fornecido pela linha arterial através de um shunt. Após o teste, quando necessário,
foram feitos reparos adicionais sem dificuldades, uma vez
% de doentes
A
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Plástica mitral com anel maleável de pericárdio bovino
Fig. 3 - Medidores do perímetro da cúspide anterior.
% de doentes
B
Fig. 2 - Avaliação ecodopplercardiográfica dos doentes submetidos a plástica mitral
com anel maleável de pericárdio bovino. (A) pré-operatório; (B) pós-operatório.
Fig. 4 - Medida do perímetro da cúspide anterior.
383
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Plástica mitral com anel maleável de pericárdio bovino
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to de regurgitação importante, holossistólico, atingindo o
teto do átrio esquerdo sendo captado até o nível de entrada
das veias pulmonares.
A análise estatística aplicada às avaliações clínicas e
ecodopplercardiográficas foi realizada utilizando-se o teste
de Wilcoxon para dados emparelhados. A diferença nos
valores obtidos entre os períodos pré e pós-operatórios foi
considera significante quando a probabilidade estatística
de sua casualidade foi <5%.
Resultados
Fig. 5 - Pontos passados no anel mitral posterior e na prótese maleável de pericárdio
bovino.
Fig. 6 - Anel maleável em sua posição definitiva, com adequado fechamento valvar.
que o anel flexível permite novas abordagens sobre a valva,
mesmo depois de fixado. Realizaram-se testes até o completo
e adequado reparo valvar, com posterior fechamento do
átrio esquerdo. Após as manobras para a retirada do ar das
cavidades cardíacas, interrompeu-se a infusão de cardioplegia e a aorta foi despinçada, com o coração retornando aos
batimentos em pouco tempo.
As avaliações clínica e ecodopplercardiográfica foram
realizadas com base no atendimento clínico e nos exames pré
e pós-operatórios. A classificação clínica considerou os
sintomas, de acordo com NYHA. Para avaliação ecodopplercardiográfica, por via transtorácica, utilizou-se o aparelho ULTRAMARK - 4 da ATL (Advanced Technology
Laboratories) com transdutores de 2,25; 3,5 e 5,0MHZ. Foi
utilizada a classificação proposta por Colette e cols. 31 e
descrita por Feigenbaum 32, que quantifica a insuficiência
mitral com base na extensão e magnitude do jato de regurgitação durante a sístole ventricular esquerda. As classes
são identificadas como: ausente - não existe jato regurgitante detectável; mínima - jato de regurgitação discreto, não
holossistólico, e restrito às imediações da valva mitral; moderada - jato de regurgitação considerável, holossistólico,
atingindo a porção média do átrio esquerdo; acentuada - ja384
Na evolução dos 32 doentes registraram-se dois óbitos, sendo um imediato e outro tardio, correspondendo cada
um deles a 3,1%. Ambos apresentaram valvopatia reumática
e insuficiência acentuada das valvas mitral e tricúspide,
sendo submetidos a plástica e procedimentos associados
em ambas as valvas. Um deles, com 19 anos, faleceu no 3º
dia de pós-operatório de causa desconhecida e, o outro,
com nove anos, necessitou ser reoperado para troca valvar
mitral nove meses após a plástica. Na evolução, necessitou
suporte ventilatório prolongado e apresentou instabilidade
hemodinâmica, que evoluiu para insuficiência ventricular
esquerda com óbito no 2º dia de pós-operatório. Os demais
doentes foram acompanhados por 16 meses, equivalente a
214 meses/paciente, com média de evolução de 6,7 meses.
Não ocorreram complicações tardias fatais relacionadas diretamente ao anel maleável, o que permite considerar
índice de sobrevida de 93,8%. Um paciente foi submetido a
reoperação após nove meses da plástica valvar mitral, com
troca da valva devido à recorrência do processo reumático e
desenvolvimento de insuficiência acentuada no pós-operatório tardio. Assim, o índice de reoperação foi de 3%, coincidindo com o índice de complicações tardias não fatais.
A avaliação clínica pré e pós-operatória foi realizada
com base na classificação da NYHA. A figura 1 mostra, numa análise comparativa, que de 31 doentes em evolução, 20
(65%) passaram para a classe funcional I; 10 (32%) para a
classe II e apenas 1 (3%), submetido a reoperação, mantevese em classe III.
Os estudos ecodopplercardiográficos, mostrados na
figura 2, permitem comparar os achados pré e pós-operatórios e revelam que, dos 32 doentes, 16 (50%) evoluíram sem
qualquer grau de insuficiência, 12 (38%) apresentaram insuficiência discreta e sem repercussão hemodinâmica, 2 (6%)
insuficiência moderada e 2 (6%) insuficiência grave.
O teste de Wilcoxon para dados emparelhados mostrou diferença estatisticamente significante (p<0,05) para as
classes funcionais e avaliações ecodopplercardiográficas
nos períodos pré e pós-operatórios.
Discussão
Este trabalho propõe a utilização de um anel biológico
que se restringe apenas à parte posterior do anel mitral. Ele
difere do anel sintético flexível desenvolvido por Duran e
Ubago 13 e outros da segunda geração de anéis 21, uma vez
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que não envolve toda a circunferência valvar mitral. Na evolução, mostrou-se satisfatório em doentes submetidos a
anuloplastia, concordante com resultados apresentados
anteriormente 26,28,29.
Na decisão pelo reparo ou troca valvar, devem ser consideradas a seleção adequada dos pacientes e a presença
dos fatores de risco associados 33. Em análise multivariável,
Galloway e cols. 33, combinando idade, sexo e vários fatores
de risco, registraram quatro elementos relacionados com
aumento de risco operatório: idade, classe funcional IV da
NYHA, operação cardíaca prévia e desempenho de procedimentos cardíacos prévios. O tipo de conduta cirúrgica
valvar, segundo eles, não parece influenciar o risco operatório ou a sobrevida tardia de pacientes submetidos a reparo
ou troca valvar. Entretanto, para Carpentier 11, a reconstrução valvar pode ser indicada com base nas lesões, antes
mesmo de se considerar a idade, a causa da doença e a condição do doente, além disso, quanto mais jovem mais urgente é a indicação visando ao reparo valvar.
No presente trabalho, a avaliação ecodopplercardiográfica assegurou a indicação da cirurgia reparadora nos doentes em classe funcional II (28%), antes que tivessem maiores
lesões do aparelho valvar e evoluíssem para deterioração
ventricular. Isso permitiu melhor resultado tardio, com 65% dos
doentes passando para classe funcional I com recuperação da
geometria ventricular esquerda e da função mecânica da valva
mitral, relatado também na literatura 26,28,34,35.
Este estudo, com 100% de seguimento em 16 meses,
apresentou 93,8% de sobrevida, enquanto outros com
período de seguimento inferior 29 ou igual 36 revelam índice
de 98%. Estudos com cinco 26,28, oito 35 e 16 34 anos de seguimento apresentam 90% e 98,8%±1,2%, 88%±4% e 78,1%±3,1% de sobrevida, respectivamente. Valvoplastias associadas a índices superiores de sobrevida são comuns quando
comparadas à troca valvar 37.
A experiência adquirida, a compreensão do papel do
aparelho valvar mitral na função do ventrículo esquerdo e a
menor morbi-mortalidade pós-operatória levaram à expansão no número de plásticas valvares 30,38, que levam também
a melhor desempenho ventricular esquerdo no pós-operatório 39. Os resultados a longo prazo mostram restauração da
função ventricular aos níveis normais, com índices de
sobrevida significativamente melhores, em particular para
os procedimentos mitrais isolados 34, que no presente trabalho correspondem a 71,8% dos doentes Associou-se também a isso o surgimento de diversas técnicas para reparo
do aparelho valvar 13,21,40,41, além dos problemas que as trocas acarretam, tais como degeneração das próteses, infecções, gradientes transvalvulares, vazamento paravalvular,
hemólise e eventos tromboembólicos 8,37.
As plásticas associam-se a menor número de complicações, em relação à troca valvar 33,42. Neste estudo, a freqüência
de complicações pós-operatórias foi de 3,1%, coincidente
com a reoperação, tratando-se de um doente com valvopatia
reumática e insuficiência acentuada das valvas mitral e
tricúspide submetido a procedimentos reparadores em ambas
as valvas. Todavia, na evolução tardia, necessitou de troca
Volpe e cols
Plástica mitral com anel maleável de pericárdio bovino
valvar mitral e faleceu no pós-operatório. Em diversos estudos, a incidência de pacientes submetidos a reparo valvar livres de reoperação oscila de 49 a 100% em quatro a 17 anos de
seguimento 26,30,33,43,44. Nem sempre o menor índice esteve relacionado ao maior tempo de seguimento.
A análise da evolução de plásticas mitrais mostra a
importância da remodelação do anel com algum tipo de
prótese, tendo em vista que a ausência de anuloplastia está
associada a maior incidência de falha precoce 30. O estudo
de Bernal e cols. 34 em reumáticos, utilizando anel completo e
maleável, revelou 89,9%±3,2% de pacientes livres de reoperação em 16 anos. Nesse caso, a curva de risco para reoperação mostrou dois períodos críticos com alta incidência do
evento, ou seja, durante os dois primeiros anos e 10 anos
após a cirurgia. Segundo esses autores, as reoperações precoces habitualmente se associam à indicação inadequada
ou falha técnica, enquanto as tardias, em geral, estão ligadas à progressão da valvopatia de base. No entanto, no
presente estudo tal progressão determinou precocemente a
reoperação.
Em contrapartida, Braile e cols. 26 revelam ausência de
reoperação em cinco anos de seguimento de doentes com
valvopatia predominantemente reumática submetidos a
anuloplastia posterior. Não obstante, a valvopatia reumática
é preocupante, com alta incidência de falhas nos procedimentos reparadores 11,33,43, provavelmente ocorrida devido
as alterações histopatológicas que acometem a valva mitral
na doença reumática, tais como, edema da substância intercelular, fragmentação de fibras colágenas, infiltração de linfócitos e células plasmáticas, entre outras. Entretanto, Bernal e cols. 34 e Antunes e cols. 43 afirmam que a valvoplastia é
excelente alternativa para tratamento de doentes com comprometimento reumático da valva mitral.
David e cols. 35, utilizando anel completo e maleável em
pacientes com valvopatias degenerativas, encontraram
95%±2% deles livres de reoperação em oito anos. Concluíram que apenas o grau avançado de alterações mixomatosas
está relacionado a maior risco para reoperação. Cosgrove e
cols. 29, em estudo de doentes com valvopatia predominantemente degenerativa, submetidos a anuloplastia posterior,
observaram 97% deles livres de reoperação em um ano, enquanto Camilleri e cols. 28 encontraram 99% dos doentes livres deste evento em cinco anos. Existem controvérsias
quanto ao índice de reoperação associado às plásticas e
trocas valvares. Galloway e cols. 33 e Cosgrove 44 referem índices semelhantes para ambos os procedimentos, embora
alguns estudos mostrem valores mais elevados para as plásticas 45.
A plástica valvar na doença reumática associa-se a
maior índice de complicações tromboembólicas, quando
comparada a procedimentos semelhantes nas valvopatias
degenerativas ou isquêmicas 34. No presente estudo, embora 87,5% dos doentes fossem portadores de valvopatia reumática, não foi registrado episódio tromboembólico, mesmo
na ausência de anticoagulante, sendo os pacientes submetidos apenas ao tratamento com ácido acetil salicílico por
via oral na dosagem de 200mg/dia. Nesse caso, concordan385
Volpe e cols
Plástica mitral com anel maleável de pericárdio bovino
te com o estudo de Braile e cols. 26 em doentes com valvopatia predominantemente reumática submetidos a mesma técnica e em seguimento por cinco anos.
Bernal e cols. 34, em portadores de valvopatia reumática
submetidos à plástica mitral com anel maleável completo, encontraram índice de 79,2%±3,2% livres desta complicação em
16 anos. Nesse caso, houve um pico na curva de tromboembolismo aos 10 anos de pós-operatório, coincidindo com um
dos picos da curva de reoperação. Tal fato coloca a valva
como provável responsável por essa complicação e não o
tipo de técnica empregada. O tromboembolismo parece também estar relacionado, além da causa da lesão valvar, à existência dos fatores de risco pré-operatórios, mais que aos procedimentos cirúrgicos propriamente ditos 34,35.
David e cols. 35, em pacientes submetidos a valvoplastia por doença mitral degenerativa, encontraram em oito
anos de seguimento índices inferiores (82%±6%) de pacientes livres de tromboembolismo. Nesse caso, associou-se a
faixa etária acima dos 60 anos a um risco três vezes maior de
ocorrência do evento. No presente estudo, a referida faixa
etária representa apenas 12,5% dos pacientes. Em contrapartida, considerando valvopatias predominantemente degenerativas, Camilleri e cols. 28 e Cosgrove e cols. 29 observaram índices de 97% e 91% de doentes livres dessa complicação, em períodos de seguimento de um e cinco anos, respectivamente.
A endocardite não registrada neste estudo tem baixa
incidência também na literatura. Sua presença foi observada
por Bernal e cols. 34 em 0,8% dos doentes com valvopatia
reumática, em 16 anos. Braile e cols. 26, em estudo com predominância de valvopatia reumática, encontraram
95,7%+4,5% de doentes livres dessa complicação. Para
valvopatias degenerativas, os índices de doentes livres de
endocardite variam de 98% a 100%, em seguimento de um a
oito anos 28-30,35.
Neste trabalho, a plástica mitral normalmente realizada
em doentes com diagnóstico pré-operatório de insuficiência
ou dupla lesão, foi indicada também a portadores de estenose mitral pura ou calcificada (19%), após realização de
comissurotomia. A técnica proposta foi efetuada quando,
após esses procedimentos, a valva apresentou algum grau
de insuficiência. Essa conduta mostrou-se importante na
evolução pós-operatória. O anel maleável de pericárdio bovino possibilitou diminuição da área que as cúspides, com
coaptação adequada, devem fechar. Isso permitiu recuperar
a relação entre o anel valvar e as cúspides, cuja variação é
de 1:1,5 a 1:2,2 30,46.
Os benefícios foram evidenciados pela ecodopplercardiografia, que revelou 88% de recuperação da função
valvar, com regurgitação ausente (50%) ou mínima (38%),
cujo jato mostrou-se discreto, não holossistólico e restrito
às imediações da valva mitral, conforme classificação proposta por Colette e cols. 31. Acredita-se que um dos fatores
determinantes do sucesso dessa técnica seja a medida do
perímetro da cúspide anterior, na escolha do tamanho da
prótese a ser utilizada no anel mitral posterior. As diferentes
técnicas de anuloplastia adotam como base de medida, para
386
Arq Bras Cardiol
volume 75, (nº 5), 2000
escolha dos diferentes tamanhos de aneis, a distância
intertrigonal ou a distância intercomissural, associadas ou
não à medida da área da cúspide anterior 10,13,27-30. Entretanto, o anel mitral não mantém constância no tamanho e forma
durante a sístole e o segmento de anel que sobrepõe a área
de continuidade aórtico-mitral alonga-se de maneira significativa durante a sístole ventricular 47. Desta forma, tais medidas parecem não fornecer estimativa adequada para seleção
do tamanho da prótese anelar, o que justificou o desenvolvimento de medidores para o perímetro da cúspide anterior 26.
Nagatsu e cols. 48 demonstraram, experimentalmente,
que após a plástica mitral uma fração de regurgitação <30%
associa-se à recuperação total da função contrátil, ocorrendo alterações ao nível celular (miócitos). Há evidências clínicas de melhora acentuada na resposta da função diastólica e no volume e dimensão do ventrículo esquerdo em um
ano de seguimento 14, o que torna promissora a evolução
dos pacientes ora estudados.
A reconformação do anel mitral possibilita melhora direta do músculo cardíaco com redução no diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo, fato demonstrado em estudos
com períodos de seguimento mais longos 26,28,34,35. Braile e
cols. 26 evidenciaram diferença significativa na relação entre
os diâmetros da aorta e do átrio esquerdo nos exames pré e
pós-operatórios, com reaquisição dos padrões normais de
proporcionalidade entre os mesmos no pós-operatório tardio. Tais achados ratificam a descrição de que a dilatação do
anel mitral ocorre principalmente na sua porção posterior,
com padrão simétrico ou assimétrico na dependência do
tipo de doença 49. Dessa forma, a porção anterior do anel
aparentemente não necessita reconformação 26,30.
No entanto, o sucesso obtido em anuloplastias com
uso de anéis não impediu a utilização de próteses rígidas
para plástica mitral 10,27, gerando discussões quanto ao real
desempenho dos tipos de próteses na remodelação do anel
valvar dilatado. O conhecimento sobre as propriedades dinâmicas do anel mitral nativo confirma a ausência de uma
posição fixa em um plano geométrico, sendo que seu formato em "sela" permite grande flexão na sístole 28-30. Em situações normais, o anel valvar tem função esfincter-like, com
redução em sua área de aproximadamente 26% durante a
sístole ventricular, adquirindo forma elíptica, enquanto na
diástole apresenta formato circular 30. Desse modo, a inserção de um anel rígido poderia interferir negativamente nessas propriedades 26,28-30,34. O pericárdio bovino, por suas características, adapta-se perfeitamente ao anel mitral, não interferindo em sua contratilidade 26, com evolução satisfatória dos doentes, como constatado neste estudo.
Na escolha da prótese para o reparo valvar, é importante considerar a causa da doença. Assim, para doentes com
regurgitação mitral por valvopatias degenerativas e anel
mitral contrátil, são indicadas próteses flexíveis, enquanto
para aqueles com regurgitação por valvopatia reumática e
anel valvar com contratilidade prejudicada, ambos os tipos
beneficiariam a função ventricular esquerda. Convém não
mudar drasticamente o anel regularmente contrátil para um
estado rígido 14.
Arq Bras Cardiol
volume 75, (nº 5), 2000
Volpe e cols
Plástica mitral com anel maleável de pericárdio bovino
Além disso, Spence e cols. 50, em estudo experimental
comparando diferentes tipos de próteses anelares, concluíram que a rígida é prejudicial à função sistólica do ventrículo
esquerdo. Posteriormente, o mesmo grupo comprovou clinicamente sua impressão, revelando que isso pode ser
determinante para doentes com função ventricular deprimida 14, sustentando a utilização de anéis maleáveis em portadores de valvopatia reumática com contratilidade anelar reduzida, como ocorreu em 87,5% dos doentes ora estudados. Ademais, o anel rígido pode ainda provocar obstrução
da via de saída do ventrículo esquerdo em 4,5% a 10% 15-18
dos casos, fato não observado em anuloplastias com anéis
flexíveis completos 14,31 e com anéis flexíveis posteriores
26,28,29
, incluíndo este estudo.
Em conclusão, o anel de pericárdio bovino mostrou-se
flexível, moldando-se perfeitamente ao anel valvar, respeitando sua geometria e contratilidade. Parece legítimo afirmar
que as lesões mitrais decorrentes de diferentes causas, inclusive a insuficiência secundária ao tratamento cirúrgico
da estenose mitral, podem ser adequadamente tratadas pela
técnica ora proposta, considerando que 65% dos doentes
evoluíram para classe funcional I e 88% deles para completa
recuperação da função valvar, prescindindo de anticoagulação.
Agradecimentos
Aos Drs. Valentim Baccarim, Orlando Petrucci Jr e
Pedro Paulo Martins Oliveira pelo apoio recebido na elaboração deste trabalho..
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