O PODER FICCIONAL DAS LINGUAGENS PLÁSTICAS: O QUE A ARTE PODE
ENSINAR À PEDAGOGIA?
Angela Raffin Pohlmann (Universidade Federal de Pelotas – Pelotas/RS)
Sandra Regina Simonis Richter (Universidade de Santa Cruz do Sul – Sta. Cruz Sul/RS)
Apoio financeiro: CNPq, auxílio financeiro e bolsas de iniciação científica
Resumo
O artigo parte da interlocução entre nossas pesquisas em artes plásticas e educação,
levando em consideração as relações que podem ser estabelecidas entre o corpo, o gesto
e as marcas que aparecem pelo movimento transformativo dos corpos em contato com
as matérias. O artigo investiga, desde as fenomenologias de Bachelard, Merleau-Ponty e
Ricouer, as conexões entre imaginação, corpo operante e realização de imagens para
destacar o modo como as linguagens plásticas reverberam no corpo e nos processos de
aprendizagem. Das imagens produzidas em contato com a matéria (sejam desenhos,
pinturas, modelagens ou construções tridimensionais) emerge o poder transfigurador da
arte desorganizar para reorganizar sentidos, alargando espaços e nos mostrando outras
aparências do mundo. Por proliferação e irradiação, o campo do ficcional e das criações
plásticas decifram e recriam o mundo, reapresentando outros modos de ser e existir no
mundo e no coletivo. O processo de criação em artes plásticas ensina ao pensamento – e
à pedagogia – a lidar com as temporalidades simultâneas que exigem a tomada de
decisão de iniciar um gesto transfigurativo no e do mundo.
Palavras-chave: artes plásticas, educação, corpo operante, formação de professores.
1
O PODER FICCIONAL DAS LINGUAGENS PLÁSTICAS: O QUE A ARTE PODE
ENSINAR À PEDAGOGIA?
Que relações podem ser estabelecidas entre o gesto e as marcas que aparecem
pelo movimento transformativo dos corpos sobre as matérias? Que afinidades podemos
encontrar entre a continuidade das práticas com materiais plásticos e os gestos que
inauguram imagens? Como podemos pensar, no campo educacional, a íntima relação
entre imaginação poética, ação de realizar imagens e aprendizagens que estas ações
suscitam? Ou seja, como a ação de fazer “aparecer” imagens, na especificidade da
experiência plástica de operar traços, manchas, superfícies e volumes, reverberam no
corpo e nos processos de aprender a instaurar sentidos que significam a convivência?
Tais interrogações emergem do encontro entre nossas pesquisas que tratam tanto
da especificidade da formação do artista plástico e do professor de arte, como também
da especificidade da educação da infância e da formação do professor de educação
básica1. Nestes estudos e investigações em torno da aproximação entre artes plásticas e
educação ressaltamos a importância de propor uma reflexão que considere o poder
ficcional das linguagens plásticas nos instalarem no mundo, desde a infância. O
interesse que mobiliza nossos estudos é afirmar que, no processo de aprender a figurar2
imagens, não se trata apenas de efetivá-las enquanto produto visual – as imagens em si
– mas considerar o processo de torná-las visíveis. Supõe a intencionalidade de relevar a
tensão dos ensaios, tentativas, desvios, explorações, acasos e repetições ocorridos no
tempo do percurso para alcançá-las, pois fazem parte da figuração que a imagem
plástica torna visível.
A partir da interlocução entre as fenomenologias da imaginação criadora em
Gaston Bachelard, do corpo operante em Merleau-Ponty e da ação narrativa em Paul
Ricoeur, buscamos evidenciar particularmente a dinâmica operativa do fazer. Ao
utilizarmos o termo “fazer” nos referimos à idéia grega de poïen – o vigor do agir –
como dimensão transformativa de tudo isto que é vida e história em sua acepção de
1
2
ANPED Sul 2002; ANPED Sul 2006; ANPED 2007; ENDIPE 2008 e ANPAP 2008.
Compartilhamos, com Teixeira Coelho (2000, p.188), que o termo figuração “não significa,
necessariamente, figurativo, presença da figura humana e das coisas reconhecíveis ‘tais como são’. Figura
é aquilo que, além de deixar ver alguma coisa, não precisa ser vista para conseguir veicular algo que o
espectador pode ver. (...) Há transporte de uma dimensão para outra [material, imaterial; visível,
invisível]. Como numa tela de Francis Bacon, vejo o que está ali e vejo o que não é visível e no entanto
está ali.”
2
devir, em sua acepção temporal de atualização de nossas virtualidades. O processo de
criação em artes plásticas ensina ao pensamento – e à pedagogia – a lidar com as
temporalidades simultâneas que exigem a tomada de decisão de iniciar um gesto no
mundo. É da plasticidade do pensamento arriscar-se a configurar – dar uma forma:
informar – os acasos.
Não se trata aqui de explicar ou definir o fenômeno poiético mas destacar como
se chega ou se alcança algo que dá outro rumo às coisas: como o corpo aprende a
tornar-se produtor fabuloso de linguagens ao arranjar e des-arranjar o real, isto é, no ato
mesmo de instaurar e transformar gestos e imagens para significar e compartilhar o estar
junto no mundo. Trata-se, antes de compreender, com Rancière (2005, p.59), que “a
política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos
materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o
que se faz e o que se pode fazer”. O interesse é destacar outra lógica – a poética – que
não supõe explicações do mundo mas experiências no e do mundo. Por ser instauradora,
é ato no mundo e não discurso sobre o mundo: algo acontece e vai ao real, o redescreve
e o atualiza.
Assim, este artigo não levará em consideração os problemas referentes ao futuro
do ensino das artes visuais diante das novas mídias e das novas tecnologias que vêm
sendo incrementadas em nosso ambiente, embora esta questão esteja se tornando cada
vez mais importante nos dias atuais. Em contrapartida, reivindicamos a consideração
educativa pela importância do gesto como aproximação possível ao mundo codificado
que nos cerca e às linguagens que alinham símbolos gráfico-plásticos como contexto
para relevar “com mais complacência, e até com maior paixão, a ação que faz do que a
coisa feita” (VALÉRY, 1999, p, 181). A questão teórica que a nós interessa é a
interrogação pelo poder poético das linguagens plásticas “significarem as coisas em
ato”.
Nessa perspectiva, a opção pela expressão artes plásticas não é neutra. Supõe
resistir à tendência contemporânea de naturalizar ou tornar hegemônica a expressão
artes visuais. Consideramos que a generalizada substituição do termo plástico pelo
termo visual é restritiva pois visa “um” produto: “a imagem”, enquanto o termo plástica
diz respeito à abertura aos processos de fazer aparecer imagens; ao devir do ato de
tornar visível ritmos de visões ou o não visto ainda. Tal restrição traz como
conseqüência para a formação de professores, seja de arte seja da educação básica, a
legitimidade pedagógica de priorizar um olho descarnado por consagrar um olho
3
racionalizado – precisão do “ponto fixo” – capaz de prescindir da mão/corpo. Trata-se
da exacerbação do ideal racional de negação do corpo: o máximo do abstração em seu
desejo de ocultação a todas as ambigüidades e alterações dos humores do corpo.
Como já disse Bachelard (1989a, p.100), “sempre haverá mais coisas num cofre
fechado do que num cofre aberto. A verificação faz as imagens morrerem. Imaginar
será sempre maior que viver”. O devaneio tonaliza o sonhador com as sombras de um
mundo plástico, maleável, engendrando uma plenitude de densidade ligeira que
multiplica ritmos de visões. As linguagens plásticas implicam considerar a
inseparabilidade entre corpo/gesto e materialidade/mundanidade; a temporalidade dos
percursos singulares de um corpo implicado no coletivo mundano; a radical cópula entre
o sensível e o inteligível; tornando sem sentido a cisão ou polarização entre sujeito e
objeto; corpo e mente.
O que está em jogo é o regime de verdade que o termo visual impõe: a “imagem
visual”, amplamente abarcada como reflexo do real, elimina o mistério, exige a palavra
que explicite o percebido, enquanto a “imagem plástica” carrega o implícito, exige o
silencio do toque do olhar: expõe o enigma de um pensamento encarnado – um modo de
pensar simultaneamente sensível e inteligível. Talvez, aqui, tenhamos que enfrentar o
grande equívoco de considerar as realizações em arte como passível de serem
subordinadas à palavra, ou seja, à tradução pela lógica do discurso verbal. O que
explica, para Cattani (2003, p. 87), porque tantas análises fogem às questões plásticas
para concentrarem-se na temática, ou ainda em teorias que acabam por não guardar
nenhum ponto de ancoragem na ação que faz, privilegiando o feito, o resultado da ação,
quando o que torna
alguém pintor, não é o emprego dos materiais próprios à pintura, nem o
reconhecimento social historicamente datado. A pintura coloca questões
próprias, internas a ela mesma; o embate com essas questões, o seu
afrontamento no próprio campo pictural, é que faz alguém pintor
(CATTANI, 2003, p.87).
Tornar-se pintor é mergulhar na pintura. Corporalizá-la. Traços e manchas
consumam a presença da mão, o vestígio do gesto. Desenhar, pintar, modelar, gravar,
recortar, colar, esculpir são gestos transfigurativos do e no mundo não só porque
articulam visibilidades mas porque simultaneamente produzem nossa humanização, ou
seja, forjam modos singulares de ver e agir no coletivo. É porque as linguagens gráficoplásticas favorecem relações com o campo do ficcional pelo poder de tomar posse do
4
intangível – de trazer pelas mãos e colocar sob os olhos uma visão-imagem daquilo que
é disperso e impalpável – que podem colaborar com subsídios para a experimentação e
invenção de si e do mundo. Este o enigma da iconicidade figurativa e que Dagognet
(1973, p.56) denomina de “aumento iconográfico” para destacar que pintar desenhar,
esculpir, modelar ou construir, não é substituir ou apresentar uma equivalência do
mundo mas portá-lo de inteligibilidade. Implica compreender a inseparabilidade entre
corpo e mundo nos processos de aprender a estar em linguagens para tornar inteligível a
experiência de co-existir.
Concordamos com Cardoso (2007, p. 14) para quem “os grandes dilemas que o
mundo hoje enfrenta nos conflitos geminados entre tecnologia e miséria, liberdade e
fundamentalismo, cultura e violência” estão diretamente relacionados ao atropelo fatal
que o planeta enfrenta em seus valores mais essenciais: a crise da humanidade na sua
própria sobrevivência coletiva. Se situarmos as reflexões sobre as imagens e os artefatos
como centro nervoso da existência contemporânea, não poderemos prescindir da
interrogação pela experiência de pensamento que acompanha os processos de tornar
algo visível. Dar forma a alguma coisa pressupõe a in-formação de determinada
matéria; e, se em sentido amplo podemos dizer que fabricar é informar, em seu sentido
mais estrito podemos dizer que “fabricar” é inventar. Assim, estas manifestações
apontam para a tentativa de atribuir sentido ao mundo por meio do poder ficcional de
linguagens, procedimentos e técnicas.
Para tentar desvendar a lógica mais ampla que pode estar submersa nos sistemas
que nos constituem desde os milenares investimentos da humanidade em superar suas
limitações físicas por meio da tecnologia é necessário, por vezes, atropelar as
cronologias e causalidades e considerar o indivíduo, em seu devir humano, como mais
um nódulo na complexa rede de interações e possibilidades contemporâneas.
Se considerarmos, além disso, a “paisagem tecnológica” na qual estamos
inseridos, enquanto fruto da herança da Revolução Industrial dos últimos duzentos anos,
principalmente pelo legado da matemática, da física, da mecânica e das engenharias, e
que corresponde atualmente a um mundo de “aço e concreto, alumínio e plásticos, cabos
e condutores”, somos levados a crer que podemos dominar e manipular o que parece ser
concreto e tangível, ao mesmo tempo em que acreditamos ainda na ilusão de que
conseguimos deter o controle deste sistema (CARDOSO, 2007).
5
Entretanto, podemos repensar esta experiência de mundo, por exemplo,
mudando a direção do fluxo. Para isso, tal experiência poderia ser regida por novos
códigos e convenções, por outros projetos e linguagens que possibilitassem reformular a
percepção desta “paisagem tecnológica”. Isto significa dizer que, ao ingressarmos no
limiar entre palavra e imagem, entre material e imaterial, estaríamos igualmente
penetrando no projeto que pode ser ao mesmo tempo solução e obstáculo.
Assim sendo, retomando a idéia de que os códigos e convenções, projetos e
linguagens têm o poder de reformular o modo como imaginamos e percebemos o
mundo, cabe perguntar se os processos de aprendizagem das linguagens gráficoplásticas influem no modo como aprendemos a compreender nosso entorno e suas
influências, ou seja, no modo como interagimos no coletivo.
O silêncio do desenho: o corpo com a matéria
As referências à ‘linguagem’ apontam, na maioria das vezes, ao campo
disciplinar da linguagem verbal. Entretanto, aqui estamos nos referindo às linguagens
do campo das artes plásticas, aquelas que convocam o poder lúdico de transfigurar a
existência em gestos e marcas, manchas e volumes. Torna-se, então, fundamental
destacar a importância do convívio com os outros e enfatizar as ações que transformam
as coisas e seus novos sentidos a partir da interação no coletivo. Admirar-se com a
novidade do mundo, acolher o desconhecido, lidar com o estranhamento e com a
mudança de sentido ou significado faz parte da capacidade lúdica de produzir e projetar
ações em imagens e em compartilhar os sentidos que do corpo podem germinar.
Num mundo saturado de imagens, o desenho e a pintura perderam suas funções
originais de representar o visível, e procuram por novas identidades. Entretanto, o
desenho e a pintura continuam sendo “expressões do corpo, registros do gesto humano
sobre a superfície sensível” (POESTER, 2005, p.50). Nas artes plásticas, o artista utiliza
seu corpo em contato com a matéria como meio de expressão, e suas experiências com
materiais de desenho, pintura, gravura ou escultura integram simultaneamente a energia
do seu corpo em consonância com sua mente. Não utilizamos o pincel do mesmo modo
que pegamos um lápis, nem serramos a madeira do mesmo modo como modelamos a
argila. Estas ações específicas nos humanizam pela ações que constituem estas
6
manufaturas juntamente com as possibilidades de criação manual num mundo onde o
sentido do tato é cada vez menos convocado (POESTER, 2005).
No desenhar, o uso de uma ponta que risca uma linha sobre determinada
superfície parece ser uma das linguagens do espaço bidimensional mais próxima do
corpo e de seus movimentos naturais. Um ato potente capaz de ressignificar a matéria
inanimada e transformá-la em matéria pulsante. O desenho requer mínimos recursos
técnicos e poucos materiais. Talvez, por isso mesmo, os desenhos despertem no
espectador uma emoção tão especial: a intimidade de acolher as marcas e sinais
impressos de um tremor da mão ou de uma energia vigorosa no traçado.
Para Waltércio Caldas (1997), os desenhos são “sorrisos distraídos indo em
direção ao esquecimento”. Eles estão sobre superfícies de papel, cuja profundidade está
“presente e ausente ao mesmo tempo”. Para falar do traçado e do gesto sobre uma folha
de papel, Waltércio traz o que há de mais básico no desenho, o seu traço. No traço, há
sempre a espera de que ele cumpra o seu papel: desempenhar o ritmo da imagem. Mais
do que configuração, suas linhas “deveriam tocar o papel sem perturbar o silêncio
branco”, e permanecer aí o suficiente para “lembrar o gesto que tornou possível a
imagem. Só assim, tempo, imagem e superfície podem ser recíprocos e igualmente
transparentes”.3 O que nos propõe Waltércio Caldas é um convite a nos aventurarmos
no mundo percebido, para redescobrir um universo sensível. Desconfiando das
“inabaláveis” verdades, Waltércio Caldas joga com a linguagem da arte para nos fazer
ver o que olhamos e não vemos.
Simples e diretas, as linhas desenhadas conservam a segurança ou insegurança
daquele que as criou. Nelas ficam inscritas as hesitações, os arrependimentos, as
indecisões, as dúvidas, as mudanças de rumo, as correções e os desvios. O olhar do
espectador, ao mesmo tempo, pode preencher lacunas, decifrar hieróglifos, elucidar
inscrições que expõem um campo mágico e aberto4.
Na concepção de Cattani (2005, p. 30), “o desenho talvez seja a linguagem da
arte mais próxima dos sentidos e dos sentimentos, o que demanda simultaneamente o
exercício do rigor”. Cabe ao artista estar lá e cá, na entrega ao ato de desenhar e na
3
Texto que acompanhava o trabalho "Desenhos" (1997) de Waltércio Caldas, em exposição no MARGS
(Museu de Arte do Rio Grande do Sul). Visita realizada em 15/5/2002.
4
Mais informações sobre este assunto também podem ser encontradas em: CATTANI, Icléia. “O desenho
como abismo”. Revista Portoarte, Porto Alegre, v. 13, n. 23, Nov/2005, pp. 24-30.
7
análise do já feito. Mergulhar e depois voltar à superfície, “submergir no abismo que o
grafite ou o nanquim traçam sobre o papel” e “voltar à superfície” para retomar, analisar
e corrigir se for necessário ou para abandonar “aquilo que não corresponde ao que se
deseja” para ir à procura de “algo novo”.
O traço e a mancha são gestos que escavam sentidos sob a materialidade da
marca plástica. A repetição do traço e da mancha vincula-se à valores rítmicos nos quais
a linha e a mancha são vetores, direções, intervalos. Um espaço plasmado a partir de
mudanças de direção que acontecem durante o percurso do gesto sobre o suporte. O
gesto enlaça o movimento em seu futuro, o significado do gesto, da figuração que há de
pintar-se ou desenhar-se, é o futuro do gesto mesmo. O gesto plástico é movimento auto
analítico, auto crítico: vamos fazendo e vamos avaliando. É ato de estar presente, fazerse real, viver que remete à projeção de um futuro, constante reformulação de suas
próprias intenções. Os traços e as manchas mostram-se sempre inacabados, sempre
atuais em suas repetições. Cada marca contém a gestação de outra, o germe de outra
marca, engendrando um encadeamento.
O artista está em constante busca. Ele é aquele que se arrisca, aceitando a
instabilidade e a ausência de lugares seguros inerentes ao processo criador. Ele se
coloca diante do abismo e se joga, porque este é o único modo de realizar seu desejo. A
exigência é de uma incerteza própria diante das coisas para reiterar permanentemente o
instante inaugural. O sentimento de estranheza diante do mundo se renova com a
experiência de uma existência sempre em vias de ser novamente recomeçada.
Processos de criação: exigência vital de “começar-se”
Na criação artística, a ação se faz a cada gesto e nem sempre há lugar para as
idéias estabelecidas a priori. Nos colocamos diante de um eterno “começar-se”. Durante
a criação plástica, as ações, numa seqüência de gestos, transformam a matéria através
de seleções, apropriações ou combinações que se transformam permanentemente. A
espontaneidade do gesto abre espaço, simultaneamente, para a intervenção do acaso e
para o surgimento de novos sentidos.
8
Na percepção visual de um objeto externo e imóvel nossa observação vai
acumulando informações e “dilatando”5 a visão que temos dele. Somos capazes de olhar
as coisas que todos vêem, e se acrescentamos um novo ângulo é porque a realidade da
qual todos participam, a cada um se transfigura de modo singular. Os processos que
acompanham o fazer poético nas linguagens gráfico-plásticas podem passar por
inúmeros acidentes que surgem sem que pareçam ter relação nem com o que havia
antes, nem com o que os seguiu.
Nossa imaginação, às vezes, atua apoiada em dados incompletos. Comparamos
aquilo que é com o que poderia ser, e confrontamos o que aparece com o que queríamos
que fosse. Em determinados momentos, nosso pensamento nos afasta do que está
exatamente diante de nós. E, com alguma freqüência, a experiência nos mostra como
obter determinado resultado, cujas operações utilizadas são precisamente aquelas sobre
as quais nunca tínhamos pensado. É pelo contato, pela manipulação, pelo manuseio com
as materialidades que diferenciamos e aferimos nossas capacidades, disponibilidades,
nossas tendências e eficiências, além de verificar o que decorre de cada uma destas
ações durante o processo de construção e/ou destruição das matérias até que algo seja
fabricado.
O trabalho do artista em seu atelier (ou do estudante em contato com as
materialidades) não elimina o acaso de seus atos; nem exclui o mistério de seus
procedimentos; ou suprime a embriaguez dos horários.6 A mobilização da intuição
motiva a invenção de formas novas e imprevisíveis.
A capacidade de conviver com a bagunça, tolerar a incerteza e mesmo os erros
decorrentes do processo passam a ser as marcas distintivas do trabalho manual. As
tarefas artesanais, além disso, demandam a habilidade em executar ações até certo ponto
repetitivas que possam favorecer o aprimoramento da técnica. A eterna busca pela
qualidade e a motivação em realizar atividades que procuram pela perfeição destacam a
paciência necessária para um lento aprendizado no qual há um preponderante papel do
hábito. Apesar do pragmatismo que parece envolver estas ações, trata-se de uma
minuciosa sensibilidade em perceber e experimentar o mundo exterior com emoção e
5
“O meu estado de alma, ao avançar pela estrada do tempo, dilata-se continuamente com a duração que
vai acumulando; é, por assim dizer, como se se tratasse de uma bola de neve”. (BERGSON, s/d., p. 14).
6
No texto de 1938, Paul Valéry (2003, p.41-42) comenta que o artista “fabrica fechado em seu quarto,
usa procedimentos muito pessoais e muito empíricos, vive na desordem e na intimidade de suas
ferramentas, vê o que quer e não o que o cerca, usa potes quebrados, sucata doméstica, objetos
condensados”.
9
intimidade. Há uma precedência da mão, do contato, do fazer e do corpo que não
deixam de levar em consideração o papel do tempo, da prática, do aprendizado, da
repetição e mesmo da incerteza e do erro como partes constituintes deste fazer7.
Para Merleau-Ponty (2002, p. 87-88 e 102), os dados que compõem a dimensão
do mundo dos acontecimentos transformam-se em “sistema significante” na expressão.
Assim, vemos que cada pintor monta um “sistema de equivalências” para expressar os
dados que percebe do mundo. Nem sempre temos uma visão clara de nossos
enunciados, já que “as mais puras verdades supõem vistas marginais” e seu sentido
depende do horizonte que a linguagem dispõe em torno delas. Isto significa que ao
falarmos ou ao escrevermos, o que temos a dizer não está pronto diante de nós, pois é
através do esforço de constituir os signos (e a linguagem) que damos forma ao que
queremos dizer. Tudo ainda está por fazer.
Do mesmo modo, na pintura há uma constante “deformação coerente” imposta
ao visível. Deste modo percebemos o sentido próprio de cada obra de arte. Nelas, as
“deformações coerentes” se manifestam conforme o estilo de cada pintor, cujo “sistema
de equivalências” aparece para mostrar-nos os significados ainda esparsos de sua
percepção, mas que através de sua expressão pictórica retomam e ultrapassam o mundo
percebido.
A percepção nunca está acabada, pois ela não visa um objeto já dado, mas o
“constitui” ao mesmo tempo em que o “inaugura” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 8287). A significação aparece, então, quando submetemos “os dados do mundo a uma
‘deformação coerente’”. Quando isso ocorre, o pintor nos apresenta um mundo novo, do
qual ainda não temos a chave. Ele nos faz ver e nos faz pensar de outro modo,
totalmente distinto da obra analítica que nos mostra apenas o que nela já estava
contido8.
Para pensarmos o currículo, a aprendizagem e o ensino, levando em
consideração o campo da arte, talvez tenhamos que retomar a idéia de inacabamento em
7
Mais informações sobre este assunto podem ser encontradas em: SENNETT, Richard. O artífice. Rio de
Janeiro: Record, 2009.
8
A concepção da pintura moderna como expressão criadora foi uma novidade para o público que estava
acostumado com a pintura clássica e os modos “objetivos” de representar a realidade (MERLEAUPONTY, 2002).
10
Merleau-Ponty: recuperar a perplexidade diante do mundo e restaurar o desejo de
reaprender a ver esse mundo9.
Experiência poética e aprendizagem
Frente a ‘modelos educacionais’ que pretendem “fabricar” um humano, é
possível pensar a educação em ‘fluxos descontínuos’, como ato complexo de
temporalização (BENJAMIN, 1994), e pensar a ‘história suspensa pelas rupturas na
tradição’. Neste sentido, vale à pena considerar a educação como acompanhamento,
hospitalidade e acolhimento do outro em sua radical alteridade (MÈLICH e
BÁRCENA, 2000).
A inseparabilidade entre o corpo e o mundo, e entre o corpo e as múltiplas
linguagens, pressupõe uma provocação e uma sedução que contagie e modifique a
ambos. A experiência sensível do corpo em movimento e o afeto contido nos atos
poéticos mobilizam as mãos junto com suas ações e pensamentos. A interrogação, o
espanto e a admiração fazem parte da perplexidade diante do mundo. Há sempre a
sensação de inacabamento e de indeterminado. Mas, o que significa isso? Talvez,
signifique que esta busca pela completude, ou as indagações sobre a perfeição nos
levam a um percurso infinito. Tem-se a sensação de que estamos em um percurso sem
fim, porque vamos em direção a um lugar que parece nunca chegar.
Esta sensação está presente quando iniciamos o processo de criação no campo
da arte, ou em qualquer outro campo. Quando iniciamos a escrita de um texto ou
quando começamos algum projeto, nos colocamos perante passos ilimitados, e o que
nos move em direção a esta possibilidade de concretude é a procura por aproximar-nos
de algo que corresponda ao que inicialmente tínhamos em mente. Entretanto, não temos
como saber o que é mesmo que temos em mente, se desta experiência só teremos
conhecimento depois de realizar alguma coisa no plano físico da matéria (se é que se
pode tentar separar estas duas coisas).
Uma coreografia se instala entre o plano “interior” e o plano “exterior”, para
que dela possa surgir questões que nos movam em direção à realização de alguma coisa.
9
Para mais informações sobre este assunto, ver também: Newton Aquiles von Zuben: “Fenomenologia e
Existência: Uma Leitura de Merleau-Ponty” Em: http://www.fae.unicamp.br/vonzuben/fenom.html
(acesso em 13/12/2009).
11
Partimos à procura de equivalências, pois estamos permanentemente relacionando ao
menos duas coisas: o que temos diante de nós e o que podemos imaginar a respeito do
que está ali adiante. Vemos tal coisa, como se fosse tal outra. Neste sentido, não
poderíamos dizer que há uma imagem mental (interior) que “representa” o que é visto
no exterior, pois nossa tarefa não é a de representar internamente alguma coisa. Nossa
tarefa consiste em encontrar equivalências.
Muitas vezes, foram os objetos e as imagens produzidas pelos artistas que
determinaram o modo como vemos as coisas. Ver é construir coisas, e, por isso, só
podemos lembrar novamente de Merleau-Ponty (1984): “ser é o que exige de nós
criação para que dele tenhamos experiência”. Assim, falar em percepção é muito mais
referir-se a agir, associar, justapor, aproximar, juntar, separar, dissociar, analisar,
sintetizar do que pensar em alguma coisa que já esteja no interior da mente. Perceber é
uma ação que envolve organizar, ordenar, compor, juntar, coletar. E, para isso, há que
se ter disponibilidade e envolvimento com o que está sendo “percebido”.10
Mas, como materializar uma idéia? E, de que forma se materializa um projeto
em arte? Quais formas de expressão seriam capazes de trazer com elas formas de
conteúdos sintonizados com as formas de pensar o próprio trabalho que está sendo
gestado? E, de que forma, na relação entre arte e técnica, estas práticas foram se autocorrigindo, se aperfeiçoando, desaparecendo ou permanecendo, enfim, se transformando
no que hoje ainda repetimos para realizar símbolos de comunicação estética, dentre a
notável diversidade que encontramos no campo da arte e nos meios utilizados como
veículos ou materiais de expressão?
Os meios de expressão podem escapar à rigidez acadêmica, ou podem
conservar algo de tradicional em sua execução. Sem conotações hegemônicas, vivemos
um período de diversidade no modo como cada um realiza a atualização dos meios de
expressão que escolheu utilizar. Nada garante a qualidade artística desta ou daquela
opção milenar ou dos avançados recursos de geração de imagens que os meios
tecnológicos com que convivemos hoje em dia propiciam. Muitos procedimentos
técnicos têm mediado o desenvolvimento cultural que nos acompanha.
Entre as formas inventadas estão também as formas de operação da própria
inteligência. São formas visíveis e invisíveis, e em função de suas condições de
10
A palavra “percepção”, usada há muito tempo, pode trazer consigo vícios de significados nocivos, se
entendida de modo estanque e literal.
12
existência, podem ser temporais ou temporárias. Emergindo como produtos de uma
condição temporal, estas formas não possuem “limites fixos e invariantes”, mas restam
envoltas “numa espécie de nebulosa”, numa “borda de tempo”, assegurando-lhe
redefinição e reinvenção permanentes (KASTRUP, 1997, p.30).
O processo de criação possibilita que novas coerências sejam formuladas no
modo como compreendemos cada coisa. Avanços e recuos, opções e indecisões fazem
parte de um trajeto que não é linear nem tampouco aleatório (OSTROWER, 1978,
p.77), pois durante o processo de criação há sempre uma seletividade interior junto com
uma tensão dirigida. Nos movemos entre as formas dos inúmeros estímulos que
recebemos, e estabelecemos algumas relações entre elas, compondo determinadas
ordenações.
O que sentimos também faz sentido, mesmo quando hibridizado por
sentimentos ou percepções inconclusivas. Essa construção de sentido pode ser
potencializada pelo “outro”, o outro que entra em nosso campo visual, o outro que
interrompe uma continuidade, o outro que chega como provocação aos hábitos de
pensamento11. Os ‘acidentes’ que se instalam no nosso campo visual desafiam nossa
estrutura psíquica, redefinem nossas disponibilidades afetivas, nossas limitações
internas e nossas respostas cotidianas à vida. O mesmo acontece com o artista diante de
seu trabalho a fazer.
Quando Valéry (2003) descreve os estudos de rochedos que Degas fazia a
partir dos fragmentos de carvão derramados sobre a mesa, ele imediatamente pensa no
informe, nas manchas, massas, contornos, volumes que têm sua existência percebida por
nós sem que delas possamos conhecer muita coisa. Valéry (2003, p.86) se refere às
formas que não encontram em nós nada que “permita substituí-las por um ato de traçado
ou reconhecimento nítido”. Para ele, “as formas informes não deixam outra lembrança
senão a de uma possibilidade”.
11
“Afirmemos, contudo, que a construção do sentido só se consuma na outrificação. Por um lado, na
assunção de que é o outro que faz a nossa visão, mesmo em termos neurofisiológicos, pois se instala no
nosso campo visual como um acidente, como uma interrupção na continuidade do fundo, como um
‘acontecimento’ (enfim, um estímulo). Por outro lado, aceitando que a nossa visão do mundo não é única
e se enriquece se for confrontada com a visão do outro (com outras visões). É este o postulado da
heterogamia cognitiva que defendemos: quanto mais outros, mais diferenças, mais informação, mais
‘catástrofe’, mais luz”. [CUNHA E SILVA, Paulo. "Uma cartografia para depois de amanhã". Disponível
em: http://www.virose.pt/vector/periferia/cartograf.html]
13
Tornar inteligível a estrutura de um objeto é encontrar o conhecimento e a
unidade de um sólido pelo movimento do olho sobre o que vê, pelos caminhos do lápis
sobre o papel, que apalpa cada detalhe, e acumula cada elemento de contato com a
forma ao adquirir intimidade com ela (VALÉRY, 2003, p.87). Degas retoma
indefinidamente seu desenho e nunca admite que tenha alcançado "o estado póstumo de
sua obra", no sentido de buscar incansavelmente a verdade no estilo. Sua vontade
domina o lápis, o pastel, o pincel, sem que o traço esteja suficientemente perto do que
ele quer. O que ele deseja é alcançar a precisão última da sua forma, e para isso
multiplica os rascunhos, rasura o que já fez se for necessário, avança ou recomeça
inúmeras vezes, aprofundando, ajustando, envolvendo seu desenho de folha em folha,
de cópia em cópia. São construções feitas, muitas vezes, à custa de destruições. Seu
trajeto se dá por um rumo vago, que direciona seus movimentos, e, apesar de possuir
uma intuição amorfa, seu senso de direção vai em busca da perseguição de uma
miragem (SALLES, 2004, p.28). Direcionadores, estes elementos se constituem como
“fios condutores” na trajetória.
As imagens produzidas em contato com a matéria (sejam desenhos, pinturas,
modelagens ou construções tridimensionais) estabelecem ligações entre a memória que
temos dos objetos que conhecemos e o inusitado que elas podem provocar ao mesmo
tempo em que abrem fendas e rasgam o nosso pensamento (GOMES, 2004, p. Ec. 2).
Por seu poder transfigurador, a arte desorganiza para reorganizar em outra formatação,
produzindo novos sentidos, alargando espaços e nos mostrando novas aparências do
mundo. O corpo que age opera no mundo, transfigura a realidade, como modo de tornálo inteligível.
Simultâneas e diferentes, reversíveis e entrecruzadas estas marcas produzem as
experiências12 que se constituem em linguagem. Por proliferação e irradiação, o poder
do campo ficcional decifra e recria o mundo, nos reapresentando novos modos de ser e
existir no mundo e no coletivo. O ficcional não propõe engodos ou mentiras, como
queria Platão – ou como quer a racionalidade técnica – mas elabora coordenações entre
atos que fazem efeito no real ao definirem regimes de intensidades sensível em seu
12
“A experiência é o ponto máximo de proximidade e de distância, de inerência e diferenciação, de
unidade e pluralidade em que o Mesmo se faz Outro no interior de si mesmo”. [CHAUÍ, Marilena. “A
filosofia como interrogação interminável”. Em: http://blog.controversia.com.br/2008/06/01/merleauponty-a-obra-fecunda/ (Acesso: 18/02/2010)]
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poder de abertura à outras dimensões de realidade. Quando real e ficção fundem-se não
há como retroceder.
Nessa concepção, aprender – ou mudar hábitos de pensamento – supõe
considerar a temporalidade da formação lenta e contínua promovida pelo esforço da
razão e pela astúcia da imaginação exigidas – juntas – a garantirem para o pensamento
sua função agressiva de projeção ao porvir no mundo contra a inibição intelectual da
adequação à explicações e nomeações pré-concebidas do mundo.
Trata-se de lembrar à educação a inseparabilidade entre o sensível e o inteligível
no ato de aprender a decifrar e interpretar o vivido. Inseparabilidade que acontece no
tempo da ação do corpo. Ação que não tendo fundamentos últimos além da historia da
corporização (VARELA, 1997, p.22), nos permite abarcar tanto a experiência vivida
quanto as possibilidades de transformação inerentes à experiência do viver. O que aqui
está em questão é o poder do vínculo entre o sentido poético das linguagens e o sentido
dos sujeitos na coletividade – de todos os sujeitos que temos em nós. Se concebemos as
palavras não apenas como designações das coisas mas também como único modo de
designá-las, mostramos o quanto podemos empobrecer o poder das linguagens nos
instalarem no mundo. Por isso, Bachelard (1990, p.44) pode afirmar que o modo como
imaginamos é mais instrutivo ou formativo do que aquilo que imaginamos.
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15
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O PODER FICCIONAL DAS LINGUAGENS PLÁSTICAS: O QUE A