TRÊS ARTES, CINCO QUALIDADES
O artista plástico Carlos Matuck, ao colocar a sua mais recente obra, a
assemblage O pintor em sua janela, na Livraria Cultura Arte do Conjunto Nacional,
em São Paulo, SP, propicia uma reflexão sobre três artes: a música, a literatura e as
artes visuais, principalmente quando se leva em conta que esse mais recente
trabalho dialoga com outros, anteriormente apresentados na Livraria Cultura do
Shopping Villa-Lobos e na Casa das Rosas, também na capital paulista.
Em comum, está o fato de serem assemblages, termo consagrado nas artes
a partir da década de 1950, quando Jean Dubuffet começou a utilizá-lo para
descrever o conceito de que todo material pode ser incorporado a uma obra de
arte no sentido de criar um novo conjunto, onde cada peça, embora possa ser
identificada isoladamente, ganha um novo sentido.
Além dessa questão conceitual, o uso de materiais como madeira permite a
ultrapasagem das limitações da bidimencionalidade rumo a um diálogo aberto
com a escultura, que explora o espaço, rumo ao tridimensional, e a interações
variadas com questões de luz, sombra e espaços arquitetônicos.
Na Cultura do Shopping desde 2001, as obras Música e Literatura
caracterizam-se, respectivamente, pelo uso de uma pauta, com instrumentos; e
uma justaposição que brinca com letras, carta e envelope, elementos que integram
o universo do escritor e a sua relação com o cotidiano.
Além das dimensões dos trabalhos, o que chama ali a atenção é o uso de
diversos objetos simbólicos que se relacionam, criando uma composição visual
harmoniosa e com diversas alusões ao significado da arte contemporânea, onde o
conceito pode até correr o risco de superar a obra propriamente dita.
Especificamente em relação aos símbolos usados na criação de Carlos
Matuck, não em assemblages, mas também nos trabalhos sobre papel, convém
lembrar que o poeta português Fernando Pessoa, na “Nota Preliminar” de seu
célebre livro Mensagem, aponta que “o entendimento dos símbolos e dos rituais
(simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as
quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles.”
A primeira qualidade que Pessoa aponta é a simpatia. Ele a considera a mais
simples e consiste no observador “sentir simpatia pelo símbolo que se propõe
interpretar”. Carlos, já nesses primeiros trabalhos, demonstrava olhar atento,
habilidade para criação de formas no espaço tridimensional e capacidade de tornar
plástica a expressão de uma necessidade interior numa dimensão arquitetônica.
Na exposição “Rendam-se terráqueos”, na Casa das Rosas, em 2002,
surgem as obras O escritor à janela e O escritor em sua carta. Estão aí presentes a
segunda qualidade apontada por Pessoa, a intuição, definida como “aquela
espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que
se veja”.
A presença dos silêncios, bem maior nas obras da Casa das Rosas do que
nos trabalhos anteriores, até pela possibilidade de uma integração mais
introspectiva com o ambiente, ajuda estes trabalhos a se conduzirem rumo a uma
busca maior pelo essencial. A presença da janela como local de diálogo entre o
mundo privado e o público ganha a dimensão simbólica do artista como aquele
que pode realizar essa passagem entre o seu mundo interior e a sociedade. Ele a
observa e a transforma em arte e – queira ou não – pode ser absorvido ou
multiplicado por ela.
Esse raciocínio leva à terceira qualidade pessoana: a inteligência. Ela
“analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo”. Cria-se aqui um desafio
maior, pois esta habilidade decorre das duas primeiras. Exige a sabedoria presente
na famosa expressão “menos é mais”, que leva a trabalhar com oposições como
próximo/distante e a praticar a retirada de tudo aquilo que começa a parecer
supérfluo. Há portanto, uma concentração nos elementos que serão
desenvolvidos.
O pintor em sua janela, trabalho mais recente de Carlos, atinge em sua
plenitude a quarta qualidade considerada por Pessoa. Definida como “o
conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por
várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o
mesmo”, não se trata mais da procura de uma síntese ou da soma do fazer de um
artista, mas do entendimento de como a sua mente funciona na articulação de
significados e na combinação de distintas áreas do conhecimento.
É nesse aspecto que O pintor... leva a uma reflexão mais densa e
aprofundada sobre o que, de fato, significa ser artista no mundo hoje. Estar atrás
de uma janela pode indicar o poder demiúrgico de receber a luz que vem de fora,
assim como de transformá-la, seja por intermédio de uma palheta, pincel ou
violão, instrumentos do criador artístico em seu ato de dar forma às idéias.
Oriundo do estêncil e do grafite e amador da arte do papel, Carlos
consegue, em O pintor..., no qual contou com a participação de Sérgio de Moraes
e Júlio Barreto, um efeito próximo ao de uma estampa ou carimbo, acrescido,
porém, dos silêncios, presentes nos vazados, que levam o olho do espectador a
refletir sobre a capacidade da própria arte, independentemente de sua
manifestação, seja visual, escrita ou sonora, de gerar questionamentos.
A expectativa, muito favorável, por sinal é que o próximo trabalho dessa
série de assemblages do artista paulistano se aproxime cada vez mais da quinta
qualidade pessoana, segundo ele mesmo, “a menos definível”. Chama-a de
“graça”, “mão do Superior Incógnito” ou “Conhecimento e a Conversação do
Santo Anjo da Guarda”. Embora o poeta português não a explique, dá a entender
a existência no artista de algo mais do que ele exige nas qualidades anteriores e
parece separar o artista do artesão e o criador de imagens do mero reprodutor de
conceitos.
O segredo está, ao que tudo indica, em ver o que passa desapercebido à
maioria das pessoas, conceber o entorno como se o estivesse vendo pela primeira
vez a cada instante e enxergar nele os seus elementos estruturais, tarefa bastante
árdua quando o assunto que vem sendo enfocado por Matuck é o sentido da
própria arte, que leva o escritor ou pintor a mergulhar na própria essência de seu
ato criativo.
Após o escritor e o pintor, não será agora a vez de o músico ficar à janela?
Pela sua simpatia, intuição, inteligência e compreensão do mundo, essa
possibilidade imagética futura pode gerar em Carlos Matuck o desafio de observar
a realidade, decompô-la e recompô-la num processo plástico em que nada é o que
parece ser, simplesmente porque a idéia é transformada pelo poder do
pensamento e pela habilidade das mãos. Assim, sua assemblage ganha vida ainda
mais intensa e seus universos plásticos pessoais serão criados com autonomia,
símbolos e qualidades próprias cada vez mais desafiadoras para o olhar crítico do
observador.
Oscar D’Ambrosio, jornalista, é mestre em Artes Visuais pelo Instituto de
Artes (IA) da UNESP, campus de São Paulo e integra a Associação Internacional de
Críticos de Arte (AICA-Seção Brasil). Fevereiro de 2008
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TRÊS ARTES, CINCO QUALIDADES O artista plástico Carlos