LEITURA NA ESCOLA: TEXTOS LITERÁRIOS E FORMAÇÃO DO LEITOR Leonor Werneck dos Santos (UFRJ) O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado. (QUINTANA, 1973: 20) 1. Introdução Este artigo apresenta uma possibilidade de leitura do conto “O Jardim selvagem”, de Lygia Fagundes Telles, com o objetivo de chamar a atenção de professores sobre a importância da formação de leitores críticos – que deveria ser a principal tarefa da escola. Após uma breve discussão sobre leitura, são propostas algumas atividades, voltadas para alunos de Ensino Fundamental (2º. segmento) ou Médio, abordando aspectos pré-textuais, textuais e póstextuais (cf. Silva, 1992) que possam dar conta de diversos aspectos do conto. 2. Formação de “ledores” e de leitores na escola ...saber uma língua é saber produzir textos e interpretá-los. (Magnani, 1991, p. 55.) Nunca se falou tanto de leitura e escrita como nas últimas décadas. Os resultados de avaliações nacionais e internacionais, como a Prova Brasil, Enem, Pisa etc., assustam, pois constata-se que crianças e jovens brasileiros cada vez leem menos e pior. Numa visão bastante superficial do que vem a ser leitura, pode-se considerar que a criança aprende a ler e escrever logo nas primeiras séries, estágio após o qual o aluno estará preparado para compreender e produzir qualquer tipo de texto, mas não são poucos os alunos que chegam ao final do ensino fundamental e sequer conseguem entender uma notícia de jornal. Embora isso pareça incoerente, é um exemplo da diferença entre a leitura superficial de um texto e sua verdadeira análise e consequente compreensão: é o que separa o ledor do leitor. Para Silva (1988, p. 4), nem sempre há, na escola, espaço para "o adentramento crítico dos textos propostos"; por isso, formam-se ledores, e a leitura perde a sua validade porque as palavras do escritor ficam como que magicamente fechadas em si mesmas, sem que os elementos do real, indicados ou evocados pelas palavras, sejam efetivamente colocados em relação direta com a história e experiência do leitor. Dessa forma, não existe a posse, apreensão ou compreensão de ideias, mas a mera reprodução alienada de palavras ou de trechos veiculados pelo autor do texto. Aqui os signos impressos são tomados como autônomos, sem que o leitor elabore e faça mediação com o social, com o concretamente vivido. Aprender a ler, mais do que decodificar o código linguístico, é trazer a experiência de mundo para o texto lido, fazendo com que as palavras impressas tenham um significado que vai além do que está escrito, por passarem a fazer parte, também, da experiência do leitor. A tarefa não pode, portanto, restringir-se à alfabetização ou às primeiras séries do ensino fundamental, mas deve estender-se durante toda a vida escolar, e é imprescindível ter como meta a formação de leitores, não meros "ledores". Além disso, a leitura de textos orais, defendida nos PCN como essencial no processo de formação do leitor, nem sempre ocorre na escola, e os próprios professores enfatizam a leitura de textos escritos – nem sempre, porém, com aprofundamento crítico. Na escola, portanto, os alunos têm acesso à leitura nos livros didáticos, com adaptações (por vezes mal feitas) ou fragmentos de textos, seguidos de exercícios de vocabulário, compreensão/interpretação e proposta de redação, questões geralmente objetivas que só avaliam a capacidade do aluno de retornar ao texto e copiar trechos – como alerta Marcuschi (1996), são exercícios de “copiação”, não de compreensão. Quando há leitura de obras literárias, a ela segue-se uma avaliação, geralmente restrita a provas ou fichas de leitura superficiais (cf. Santos, 1994), sem valorizar a construção do texto e a participação ativa e crítica do aluno. Mesmo quando é escolhida uma obra de qualidade literária e que interesse aos alunos, se o professor se restringe a fichas e provas, acaba por perder a oportunidade de motivar a leitura e mostrar como se constrói o texto. Silva (1984) e Santos (1994) abordam vários problemas decorrentes dessa prática de ler livros apenas para preencher fichas de leitura e fazer prova. O quadro descrito não poderia ser mais grave, e, mediante a situação na qual se encontra a leitura na escola, Ramos (1987: 298-299) destaca um dos pontos principais: O professor, que nem sempre é um leitor, não pode perceber-se como alguém que cria condições necessárias ao estabelecimento da relação leitor-leitura-obra.(...) somente o professor leitor-fruidor, aquele que se concede o direito de entregar-se à leitura-prazeremoção, pode fazer frente às propostas de massificação da leitura apresentadas pela indústria editorial via adoção de paradidáticos únicos para toda a classe, cuja avaliação-controle se opera graças a fichas, roteiros e suplementos de trabalho, todos eles padronizados, afastando-se qualquer possibilidade de uma leitura lúdica e criativa. [grifo da autora] Assim, o texto literário, que poderia ajudar o trabalho dos professores, acaba sendo considerado por eles e seus alunos como apenas uma atividade a mais, e perde-se, dessa forma, a oportunidade de incentivar a leitura. Em vez disso, para formar leitores, pode-se proporcionar ao aluno uma variedade de leituras e a possibilidade de se sentir o agente do ato de ler, para que essa não seja apenas uma atividade a mais no currículo escolar. Como se adentra, então, nas entrelinhas dos textos? Há diversos níveis de leitura, como podemos perceber na distinção de Orlandi (1988, p. 73) entre inteligível, interpretável e compreensível: a) o inteligível: ao que se atribui sentido atomizadamente (codificação); b) o interpretável: ao que se atribui sentido, levando-se em conta o co-texto linguístico (coesão); c) o compreensível: é a atribuição de sentidos, considerando o processo de significação no contexto da situação, colocando-se em relação enunciado/enunciação. Nota-se, portanto, que a percepção das relações textuais define o nível de leitura do leitor, propiciando um contato mais profundo com o texto: a interação. Deve ser uma preocupação da escola estimular o aluno a ler nas entrelinhas e a fazer sua leitura observando que nenhum texto é totalmente neutro. Porém, esse trabalho só pode ser feito através de uma abordagem textual direcionada para a participação e interpretação crítica do leitor. Se a leitura na sala de aula não tem sido tratada como interação, forma de conscientizar o leitor, torna-se necessário analisar onde estão as falhas e procurar corrigi-las, para que essa atividade deixe de ser enfadonha e passe a proporcionar ao aluno o prazer de ler. O professor que pretenda estimular os alunos a ler precisa estar atualizado com relação às teorias de leitura, Linguística Textual e Análise do Discurso, para colocar em prática o que preconizam os PCN e trabalhar o texto em sala de aula como unidade de ensino (cf. TRAVAGLIA, 1996). Geralmente consideradas uma responsabilidade do professor de português, as atividades de leitura – discutir, interpretar e produzir – deveriam ser partilhadas por profissionais de todas as áreas, pois todos, de uma maneira ou de outra, são professores de linguagem(ns). É comum ouvir professores de história, biologia e matemática, por exemplo, reclamando que os alunos não conseguem responder às questões das provas, têm dificuldade em resumir os textos do livro ou não entendem os enunciados. Menos frequente é, porém, ouvir os mesmos professores comentando que discutiram um texto com os alunos, mostraram como interpretar um problema ou ensinaram a fazer relatório. A dificuldade enfrentada pelos professores mostra um problema que, na verdade, começa muito cedo, pois considera-se que a criança entra em contato com a leitura apenas quando chega à escola: a família não tem o hábito de ler, livros não são considerados presente e ensinar a ler é tarefa do professor. Assim, deixa-se de lado o que nos ensina Freire (1995), ao dizer que a leitura como percepção do mundo precede a leitura da palavra. Entretanto, conforme alerta Soares (1988, p. 25), “ao povo permite-se que aprenda a ler, não se lhe permite que se torne leitor”. Como se formou tal paradoxo? Se ler é conferir significação, construir sentido (cf. KOCH, 1997) ao que nos é apresentado – o que qualquer criança faz, com textos verbais e nãoverbais –, essa concepção de leitura, entretanto, nem sempre é enfatizada na escola, onde atividades com textos geralmente são mecânicas e desprezam a participação crítica do aluno. Nas aulas das diversas disciplinas, lê-se para sublinhar informações e responder questionário. Com o professor de português não é diferente: texto ainda é sinônimo de ampliação de vocabulário, exercícios de ortografia, cópias e questões de interpretação / compreensão que por vezes não avaliam mais do que a capacidade do aluno de retornar ao texto e repetir o que está escrito. Ocorre, portanto, uma descaracterização da leitura, pois o aluno não percebe sua importância como co-autor do texto, ou seja, não se considera, na escola, a interação texto-leitor imprescindível para o ato de ler. O desinteresse dos alunos ocorre devido à automatização da leitura expressa nas questões. Aguiar (1988, p.22) traçou o que chama de "perfil comportamental do professor de ensino fundamental e médio no que tange a material literário utilizado e práticas docentes": Uma leitura descompromissada, livre e estimulante da imaginação e da criatividade ou do senso crítico não é enfatizada. A cada leitura correspondem atividades de responder exercícios gramaticais e de redação, sem qualquer relação com o caráter artístico de um texto literário, ou de interpretação com itens programados e direcionados para uma compreensão literal e primária. (...) O debate, a livre discussão e atividades que extrapolam o âmbito da sala de aula são esquecidos. As fórmulas mais carentes de criatividade e mais tradicionalmente empregadas, como aulas expositivas e exercícios escritos e orais de interpretação, são praticadas pela maioria, o que também promove a falta de incentivo e de motivação para a leitura dos alunos. Em outro trabalho sobre o assunto, as opiniões de professores participantes de um curso de formação em São José dos Campos demonstraram a Magnani (1989, p. 55) quais costumam ser os objetivos da leitura nas aulas de português: Interessante é notar que todos foram unânimes em afirmar a importância da leitura, mas consideram-na importante por diferentes razões, entre as quais: fonte de distração, informação, conhecimento e enriquecimento cultural; ensina a falar melhor; melhora a produção do texto; estimula a criatividade; acalma as crianças, etc. Mas a razão que aparece com mais frequência é que aumenta o vocabulário, concepção que, a nosso ver, constitui um grave desvio epistemológico. Para estimular a leitura, é necessário que o professor perceba que ela é um processo muito mais amplo e exige a participação do leitor: o sentido de um texto é construído na interação texto-sujeitos e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo (KOCH & ELIAS, 2006: 11) [grifos das autoras]. O professor deve perceber, portanto, que a cumplicidade gerada na leitura vai proporcionar a interação leitor-texto e a participação ativa do aluno na leitura: Ao ler, o aluno poderia deixar de ouvir o mestre, que tudo pode e tudo sabe, para ouvir a si mesmo e aí acreditar que também sabe e que também pode... errar... parar de ler... discordar... não gostar... misturar... imaginar e sonhar. (...) Abandonar a condição de aluno... aprendiz... ouvinte... criança... conceito... comportamento... para existir como pessoa e leitor (SILVA, 1984: 83). 3. Sugestões de atividades Segundo Silva (1992), o trabalho com o texto, literário ou não, pode começar antes mesmo da primeira página, por isso o autor divide a leitura em três etapas – pré-textual, textual, pós-textual –, apresentadas brevemente na seção 3.2., a seguir. Para cada texto, é possível pensar em atividades diferentes, conforme as especificidades do gênero textual e os objetivos da leitura1. No caso de obras literárias, a análise também pode incluir aspectos referentes a estilos de época, forma e linguagem dos textos e características dos autores. Nesta proposta que apresentamos, porém, nos detivemos a questões mais abrangentes, que envolvem levantamento de hipóteses e uma compreensão mais global do texto. Como exemplos de atividades, listamos a seguir apenas algumas sugestões de tópicos que podem ser abordados antes, durante e após a leitura do texto “O Jardim selvagem”. O objetivo de grande parte delas é fazer com que o aluno se questione sobre o texto, faça inferências, crie expectativas, etc. Além das atividades, fizemos alguns comentários decorrentes das várias oportunidades em que já trabalhamos este conto, para exemplificar o que acontece nas turmas. As respostas podem ser orais, mas também podem render muitos textos escritos, e o tempo estimado para trabalhar este conto vai 1 Cf. Santos (1994), que propõe atividades para obras de Pedro Bandeira. depender da disposição do professor, porque às vezes três ou quatro aulas podem ser usadas. É sempre bom lembrar que mais vale analisar muito bem um conto, que superficialmente vários. 3.1. O Jardim selvagem (Lygia Fagundes Telles) Este conto de Lygia Fagundes Telles, repleto de mistério e com uma certa dose de humor, chama a atenção pelo jogo de palavras do título: trabalhá-lo, levantando campos semânticos e imaginando o enredo, pode levar até uma aula inteira. O interessante, para quem se dispõe a discutir um texto ainda não lido, partindo do título, é que várias histórias vão surgindo e todas podem ser escritas, o que fará os alunos produzirem textos que podem ser confrontados com o original. A história – narrada por uma menina, Ducha, que nunca presencia os acontecimentos, mas ouve vários personagens falarem deles – intriga exatamente por essa ausência da narradora, pois ficamos sem saber o que é verdade e o que é mentira. A misteriosa Daniela, caracterizada pelo marido, tio Ed, como “jardim selvagem”, age de maneira intempestiva e controlada, alternadamente, confundindo os personagens, a narradora e o leitor. O final, como é comum em contos da autora, não apresenta soluções e nos deixa com a sensação de que, virando a página, a história continua. São tantas as possibilidades de trabalho com este texto, que selecionar algumas não é nada fácil. 3.2. Atividades sobre o conto 3.2.1. Pré-textuais Na etapa pré-textual, a ênfase é na motivação para a leitura, que pode começar na análise do título, da capa e/ou da contracapa (e das ilustrações, se for o caso) e numa breve apresentação dos personagens (somente os nomes, ou apenas algumas características, para atiçar a curiosidade do leitor). Também podem ser lidos trechos iniciais do texto, apenas para que o leitor imagine o que acontecerá. Discutir bastante o título, pedir à turma que imagine que história será lida, ler apenas a primeira fala do texto e fazer perguntas, tudo isso fará com que a leitura do conto “O Jardim selvagem” fique ainda mais interessante. 3.2.1.1. Antes de ler o conto, analisar o título e listar palavras que nos lembrem jardim (flor, pássaros, abelhas, sol, cores, harmonia, calma, algo conhecido / planejado / artificial,...) X selvagem (floresta, leão, feras, cavalo selvagem, violência, rusticicidade, algo desconhecido / natural / exótico...). Observar que, conforme a turma vai listando o que faz lembrar “jardim” e “selvagem”, a ideia de elementos de conotação positiva para jardim e negativa para “selvagem” vai, gradualmente, sendo invertida. Essa alternância entre elementos que geralmente se opõem vai conduzir a narrativa, afinal “Daniela é como um jardim selvagem”. É comum, em algum momento, após tantos termos de valor negativo para selvagem, alguém dizer “Mas cavalo selvagem é tão bonito!” ou “Eu adoro leão, leopardo, esses bichos...”, então os alunos começam a se lembrar de vários itens positivos para selvagem. Além disso, é curioso observar como a turma geralmente começa a listar substantivos concretos e, aos poucos, vai substituindo-os por substantivos abstratos e adjetivos. O objetivo desta atividade, que, dependendo da turma, pode durar uma aula inteira, é estimular a curiosidade da turma para o que o conto nos apresenta. 3.2.1.2. Após ler apenas a primeira fala do texto (“– Daniela é como um jardim selvagem – disse tio Ed, olhando para o teto – como um jardim selvagem...”), pode-se discutir a apresentação desses personagens: quem é Daniela? Qual sua relação com tio Ed? Ed é tio de quem? Que idade pode ter Daniela e por que ela é caracterizada dessa forma? É curioso o fato de turmas mais jovens acharem que Daniela é uma criança, enquanto jovens e adultos acham que ela é uma adolescente – nesse momento, as justificativas dos alunos rendem excelentes atividades de argumentação. Deve-se observar também o efeito de sentido do uso das reticências – pode-se pedir que alguns alunos leiam em voz alta esse trecho, para que todos percebam se houve diferença nas interpretações (quem sabe não aparecem verdadeiros artistas na sala...). 3.2.2. Textuais Na etapa textual da leitura, faz-se a análise da obra, propriamente, verificando características dos personagens, enredo, índices que colaboram para a interpretação, possíveis incoerências (por ex., finais felizes surpreendentes) etc. É interessante que as atividades sejam propostas aos poucos, conforme a leitura vai acontecendo (interrompendo a leitura em momentos-chave, por exemplo), mas também podem ser apresentadas ao final. Nessa etapa, convém observar as estratégias de construção do texto, a linguagem utilizada, a pontuação, a organização em parágrafos (quanto mais breves, mais rapidez na leitura; às vezes, parágrafos curtos causam suspense) etc. 3.2.2.1. Na primeira conversa entre tia Pombinha e tio Ed, ela manifesta ter ciúmes de Daniela, mas esse sentimento vai mudando no decorrer da história. Pode-se fazer um levantamento, então, do que motivava os ciúmes e que fatos fizeram a situação mudar. Nesse momento, percebe-se mais uma vez como Daniela é vista de maneiras diferentes, alterando refinamento e excentricidade: usurpadora do amor do irmão Ed X encanto de moça, meiga, carinhosa, atenciosa. Interessante é notar que a mudança de tia pombinha ocorre também após ter recebido presentes delicados e finos de Daniela. 3.2.2.2. Tia Pombinha sonha com Ed e fica muito preocupada com o “olhar de medo” do irmão. Podemos perceber, nesse trecho, as inferências, que criam suspense: nervosismo de Ed no sonho de tia Pombinha (será que algo vai acontecer?), impressão de tia Pombinha de que ele queria lhe contar algo, mas não podia. Além disso, surge nesse momento a referência indireta a um dito popular: “sonhar com dente é morte de parente”. O diálogo entre tia Pombinha e Ducha marca a alternância entre a ansiedade da senhora e a impaciência da menina diante das cismas da tia com sonhos (“Os sonhos de tia Pombinha eram todos horríveis, estava pra chegar um dia em que viria anunciar que sonhara com algo que prestasse.”). 3.2.2.3. Observar que o conto se divide em três partes, com lapsos de tempo entre elas: a primeira ocorre no espaço de uma semana e inclui a visita de Daniela à Tia Pombinha, mudando a visão desta sobre aquela; a segunda parte, após um mês, apresenta os problemas que aconteceram na casa de Ed e Daniela relatados pela empregada, que pede demissão por não concordar com a patroa; a última parte, após uma passagem de tempo de dois meses, é a preparação para o final, com a doença do Tio Ed, o susto de Ducha, a piora de Ed e sua morte. A percepção e a análise desses três momentos da narrativa colabora para a compreensão da estrutura deste conto. 3.2.2.4. A luva que Daniela sempre usa é um índice cheio de mistério: luva de borracha para tomar banho nua na cascata, luva de seda combinando com o vestido... Pode-se relacionar esses momentos associados à luva ao título do conto. Para criar ainda mais suspense, também pode-se interromper a leitura no meio do conto (após a segunda parte) para descrever Daniela e sugerir o que acontecerá na história. 3.2.2.5. Listar e comentar as atitudes de Daniela: tocar piano, falar francês, matar o cachorro com um tiro, montar em pelo, tomar banho nua na cascata, virar uma mesa... Nesse momento, uma atividade divertida é listar tudo que Daniela fez, desde o início do conto, e perguntar à turma o que se parece com “jardim” e o que se parece com “selvagem”, pedindo para os alunos justificarem as relações que fizeram. Se retomarmos as primeiras atividades, perceberemos que as respostas, a essa altura, já serão diferentes. 3.2.2.6. Quando tio Ed fica muito doente, Ducha, a narradora, leva um grande susto. Porém, com a morte de Ed, com um tiro no ouvido, possivelmente um suicídio, o susto não foi tão grande para ela. Pode-se analisar essa parte final do conto, para perceber como, de certa forma, a narradora parecia já haver se preparado para o final, antecipando-o. A calma com que Ducha recebe a notícia da morte do tio e a distração demonstrada nesse momento (Ducha fica “pescando” batatas fritas que caem da frigideira, enquanto ouve o relato da cozinheira) são desconcertantes. 3.2.2.7. Há diversos momentos em que a tensão é quebrada pelos comentários e pensamentos de Ducha, configurando trechos com traços de humor: pensar como tia Pombinha é sovina quando guarda num armário a caixa de doces que recebera de Ed; logo após, lembrar-se que o licor que tia Pombinha oferece a Ed é tão ruim que outras visitas já haviam cuspido fora, disfarçadamente; quando tia Pombinha relata seu sonho sobre dentes, Ducha faz o comentário “Tratar deles é pior ainda!”; a descrição que Ducha faz de tia pombinha logo após a tia encontrar Daniela (“Tia Pombinha gaguejava, o pescoço fino cheio de manchas avermelhadas. Ficava assim que nem peru quando tinha uma emoção forte.”); a confusão que acontece na casa de tia Pombinha, quando recebe a notícia da doença do irmão (“O pescoço ficou uma mancha só.”; pedem que Ducha lhe dê 15 gotas de calmante: “Contei cinquenta. E carreguei no açúcar para disfarçar. Antes de levar o copo, despejei ainda mais umas gotas. Assim que acordou, à hora do jantar, desandou nos telefones avisando à velharia da irmandade que o “menino estava doente”.”). São diversos os exemplos de comentários e pensamentos de Ducha que quebram o ritmo tenso da narrativa. 3.2.2.8. A estrutura narrativa do conto, com narrador criança, em 1ª. pessoa, merece ser analisada. Na verdade, Ducha narra os acontecimentos que não presenciou: ela nunca encontra Daniela, mas fica sabendo do que acontece pela tia Pombinha, pela cozinheira que trabalha na casa do tio Ed e pela empregada da casa de tia Pombinha, onde Ducha mora. A cozinheira merece destaque, porque serve como ligação entre as duas casas; seu discurso é dúbio, alternando certo preconceito com relação às atitudes de Daniela – o que confunde o leitor: seria tudo verdade ou exagero da cozinheira? Também os relatos de tia Pombinha são questionáveis, pois, zelosa com o irmão, nutrindo um amor quase que maternal por Ed, ela vê Daniela com desconfiança. A empregada de tia Pombinha, por sua vez, também confere aos seus relatos certo ar de fofoca. Como Ducha mescla esses relatos com suas próprias impressões de criança, ficamos em dúvida sobre o que, de fato, ocorreu. Pode ser feito um quadro com os alunos, listando o que aconteceu, quem relatou (a quem, quando, onde...) e destacando se houve comentários de Ducha. Depois, pode-se discutir com a turma essa mistura de relatos e de narradores, observando o efeito que causa no leitor. 3.2.3. Pós-textuais Na etapa pós-textual, é interessante fazer uma comparação de linguagens (pedir que os alunos retextualizem – cf. Marcuschi, 2001 – o conto em forma de peça teatral, quadrinhos), sugerir que se ilustre o conto, perceber intertextualidade presente, criticar/elogiar o comportamento de alguns personagens, continuar ou mudar alguma parte da história etc. O texto analisado também pode ser uma etapa pré-textual para outra leitura, e assim sucessivamente, criando uma espécie de “rede de textos” interligados pela temática, estilo ou enredo – o que pode render ótimos desdobramentos de leitura. No caso de “O Jardim selvagem”, pode-se propor uma dramatização2, observando as falas dos personagens, meticulosamente pontuadas, marcando efeitos de sentido notáveis. Podemos dizer que o texto todo apresenta intervenções narrativas que se aproximam a rubricas teatrais. Seria um desperdício não aproveitar esse recurso, já presente no texto. O conto parece não ter um final definido e, embora isso constitua uma característica dos contos de Lygia Fagundes Telles, outra atividade pós-textual que agrada bastante os alunos é dar continuidade à história: já houve quem insinuasse que Ducha estava apenas sonhando, que Daniela era a assassina, que tia Pombinha era a assassina (essa versão, especialmente, ficou bastante 2 Ver, a respeito da importância da dramatização para estimular a leitura, Oliveira (2009) divertida), que a cozinheira havia se vingado da demissão matando tio Ed, e até quem continuasse a história dando a entender que tio Ed havia simulado a própria morte para se livrar de Daniela, que, segundo o aluno, “era muito chata”. Enfim, criatividade não falta a um leitor motivado, e as histórias que surgem rendem outras discussões, outras leituras interessantes. 4. Conclusões Uma história não é mais do que um grão de trigo. É ao ouvinte, ao leitor que compete fazê-lo germinar. Se não germina, é questão de falta de ar, de sol, de liberdade, de solidão. (Michel Déon) O estímulo à leitura deveria ocorrer desde cedo, não só pela escola, mas também pela família, por toda a sociedade. A disposição dos alunos em participar de atividades criativas de leitura demonstra que o prazer de ler por vezes está apenas latente, precisando ser despertado. Porém, para que isso aconteça no âmbito da sala de aula, é necessário que a leitura se desvincule de obrigatoriedade e avaliações. Além disso, é necessário que as atividades deixem meros exercícios de “copiação” (cf. MARCUSCHI, 1996) e passem a provocar no aluno a curiosidade, o ir além do texto. O professor pode fugir de propostas tradicionais, partindo para um trabalho que mobilize os alunos a participar da história lida como co-autores do texto. É necessário conscientizá-los de que são possíveis várias leituras de uma mesma obra, e apenas um leitor ativo é capaz de atribuir diferentes percursos para sua leitura. Para isso, entretanto, o professor precisa ser também um leitor-fruidor que desperte nos seus alunos o prazer de ler. As atividades aqui sugeridas são apenas amostras de como o texto literário pode ser usado nas aulas, fazendo com que os alunos se interessem em ler, participar, discutir, criticar. A literatura, geralmente relegada a preenchimento de fichas e provas, passa a ser tratada com mais respeito, pelo professor e pelo aluno, e ler passa a ser construir sentidos, a partir do nosso conhecimento textual, intertextual e de mundo (cf. Souza & Berthier, 1993). Para que se modifiquem, portanto, as estratégias utilizadas pelos professores, eles próprios necessitam mudar seu posicionamento diante da leitura nas aulas de português. Por que não se incentiva, simplesmente, que os alunos leiam, sem cobranças? Geraldi (1997, p. 98) propõe, por exemplo, o circuito do livro: Creio que a saída prática do professor de língua portuguesa é criar este mesmo circuito entre seus alunos, deixando-os ler livremente, por indicação de colegas, pela curiosidade, pela capa, pelo título etc. No microcosmos da sala de aula é possível criar este mesmo circuito, e talvez não sejamos nós, professores, o melhor informante para nossos alunos. Rodízios de livros entre alunos, bibliotecas de sala de aula, biblioteca escolar, frequência a bibliotecas públicas são algumas das formas para iniciar este circuito. A mudança na abordagem da literatura nas aulas de língua portuguesa passa, também, pela conquista da liberdade de escolher o livro, mas é o professor quem pode proporcionar ao aluno a oportunidade de trilhar um caminho particular na leitura. Referências bibliográficas AGUIAR, Vera T. de & BORDINI, Maria da Glória. A formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. 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