RELIGIOSIDADES E REGULAÇÃO DA SEXUALIDADE: CONFLITOS
MORALISTAS NO ROMANCE “O SUMIÇO DA SANTA”
Marinalva Lima dos Santos1
O presente trabalho tem como objetivo discutir a interferência da moralidade religiosa
judaico cristã na vida sexual, sobretudo das mulheres, estabelecendo contraponto com a
cosmovisão da religiosidade afro-brasileira, no que se refere à esse aspecto. Para
realizar tal abordagem, serão analisados os conflitos das personagens “Adalgisa” e
“Manela”, do romance de Jorge Amado, “O Sumiço da Santa: uma história de
feitiçaria”. Esse estudo comparado, fundamentado com teóricos da literatura, filosofia,
sociologia e da cultura, evidenciará, portanto a regulação moral da sexualidade no
contexto do pertencimento à determinada forma de religiosidade, a qual, imprime
marcas nos sujeitos e influencia, dessa maneira, nas alteridades e na construção de suas
identidades.
Palavras-chave: Religiosidades. Sexualidade. Moral. Cultura.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Discutir religiosidades é ao mesmo tempo entrar em um campo de polêmica, de
relações de poder e construções de identidades. Sobretudo quando se tem uma
sociedade fruto da amálgama cultural na qual, consequentemente, habita entre embates
e misturas uma diversidade religiosa, lutando, as religiões judaico-cristãs para
estabelecerem-se como principais, numa constante busca pela obtenção de seguidores,
enquanto as religiões afro-brasileiras lutam por respeito e liberdade. Não se pode
esquecer também, que o campo religioso faz parte da construção e preservação da
identidade de um grupo.
Por conta disso, antes de realizar um estudo comparado que envolve concepções
religiosas, é preciso elucidar o lugar de fala, o qual pretende ser livre de preferência e
crença religiosa. Não há aqui a intenção de defender determinada religião e colocá-la
em posição superior à outra, já que cada religião comunga de características, liturgias,
regras, valores, que permitem sua identificação e diferenciação, portanto, deve ser
respeitada dentro de sua particularidade.
1
Mestranda do programa de pós-graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia,
Campus II, Alagoinhas. E-mail: [email protected]
Dito isso, tendo como objeto de análise o romance de Jorge Amado O Sumiço da
Santa, o presente trabalho tem como objetivo discutir a interferência da moralidade
religiosa judaico-cristã na vida sexual, sobretudo das mulheres, estabelecendo
contraponto com a cosmovisão da religiosidade afro-brasileira, no que se refere à esse
aspecto.
Para realizar tal abordagem, serão analisados os conflitos das personagens
“Adalgisa” e “Manela”, do referido romance amadiano. Esse estudo comparado,
fundamentado com teóricos da literatura, filosofia, sociologia e da cultura, evidenciará,
portanto a regulação moral da sexualidade no contexto do pertencimento à determinada
forma de religiosidade, a qual, imprime marcas nos sujeitos e influencia, dessa maneira,
nas alteridades e na construção de suas identidades.
SOBRE O CONCEITO DE MORAL
De início é preciso situar sobre a noção de moral e sua relação com as
religiosidades de matriz africana e judaico-cristã. No Dicionário básico de filosofia
(JAPIASSÚ e MARCONDES, 2001) “a moral diz respeito aos costumes, valores e
normas de conduta específicos de urna sociedade ou cultura”. Baseado no dicionário
Michaelis de língua portuguesa (online) o termo “Moral” apresentado está relacionado
com bons costumes, honestidade, justiça, comportamento descente, educativo, refere-se
também ao pudor.
Dessa maneira, fica evidente que a “Moral” é um conjunto de valores e normas
que definem o que é certo e o que é errado dentro de determinada sociedade e cultura. É
fruto de uma consciência coletiva validada pela sociedade. Diante dessa definição, fazse necessário questionar quem, dentro da sociedade, define o que é certo e o que é
errado? E que grupo social torna válida uma consciência coletiva?
Para responder esses questionamentos faz-se necessário buscar a origem dos
preceitos morais em suas raízes. E é esse trabalho que o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche realiza no livro intitulado Genealogia da Moral (1999), um olhar crítico
sobre os valores morais a partir de uma análise filológica e histórica para saber como os
preceitos morais nasceram, desenvolveram e se modificaram. O termo Genealogia
remete ao estudo da gênese, ou origem de algo, nesse caso Nietzsche (1999) busca a
origem da moral. A filosofia conceitua moral como conjunto de princípios dos costumes
e deveres do homem. Para iniciar sua genealogia, o autor parte da origem dos conceitos
que norteiam a tradição moral: bem e mal, bom e ruim. Para isso, Nietzsche (1999)
realiza uma apresentação e interpretação da maneira que esses conceitos foram criados e
o seu processo de evolução. Ele conclui que o termo bom desde os seus primórdios foi
associado ao nobre, privilegiado, puro, em contrapartida o ruim foi associado
historicamente ao plebeu, impuro.
Nessa perspectiva, sendo o candomblé uma religião popular, trazida para o
Brasil pelos africanos que foram escravizados e o catolicismo trazido pelos
colonizadores, a classe dominante, tem-se como consequência o maniqueísmo que
coloca a religião afro-brasileira na condição de representante do mal e a religião
judaico-cristã como representantes do bem.
Na segunda dissertação Nietzsche (1999) discorre sobre a ‘má consciência’
definida pelo autor por culpa ou consciência de culpa que tem origem na ideia material
de dívida, que atualmente toma dimensões psicológicas. O sentimento de culpa é
resultante de uma consciência de obrigação, do pagamento de uma dívida. Nessa relação
entre credor e devedor, o credor se acha no direito de descontar no devedor o quanto
achava que valia sua dívida o que caracteriza a culpa como sofrimento e a vingança
como restituição da dívida ganhando o caráter de justiça. Por fim, ele disserta sobre o
ideal ascético, entendido como o que vai contra o modo de ser da vida, considerada um
caminho errado, e o sacerdote ascético, incorpora sua noção de erro e encarna o desejo
de ser outro e de transformar o modo de ser da vida.
Diante disso, é possível perceber que o conceito de “Moral” é construído
socialmente e somente nas práticas sociais poderá ser verificado. Nota-se também que
enquanto prática social os valores morais podem variar de acordo com fatores sociais,
temporais, geográficos e culturais. Nesta perspectiva o que é dito ou visto como prática
justa ou como ‘bons costumes’ dependerá do local que o sujeito ocupa, englobando
classe social, etnia, orientação sexual, religião, pertencimento a determinada forma de
cultura, dentre outros. Ou seja, o que está em jogo é também as relações de poder, que
conforme Foucault (1979) o poder não é algo material, mas sim, uma prática social
constituída historicamente.
Segundo Reginaldo Prandi (1997) o catolicismo, historicamente, tem sido a
religião majoritária do Brasil enquanto às religiões afro-brasileiras cabia o status de
religiões minoritárias. O candomblé, religião sincrética, opera em um contexto ético no
qual a noção judaico-cristã de pecado não faz sentido. Ao contrário das religiões
judaico-cristãs, nas quais, os fiéis devem ser piedosos para com o próximo para alcançar
a salvação e que “[...] a religião é fonte e guardiã da moralidade entre os homens, já que
deus é a potência ética plena e em si.” (PRANDI, 1997, p. 12). As religiões afrobrasileiras não procuram por salvação, procuram sim, realizar interferências nesse
mundo, por meio de forças sagradas vindas de “outro mundo”. Não há nas religiões
afro-brasileiras, segundo Reginaldo Prandi (1997), uma moralidade, uma noção de
ações do bem e mal, ou mesmo uma moral para todos os adeptos, como nas religiões
judaico-cristãs, essa noção vem por meio da relação entre o seguidor e o orixá, seu Deus
pessoal.
Mesmo não tendo no candomblé uma noção de moral como no catolicismo,
continuarei utilizando o termo moral para a religião negra pra designar o controle que o
orixá tem sobre o adepto da religião, entendendo que não se configuram da mesma
maneira nas duas expressões de religiosidade em estudo, mas desempenha o papel de
regras, ainda que, não resulte na consumação do pecado.
ADALGISA, MANELA E A REGULAMENTAÇÃO DA SEXUALIDADE
Nesse momento é preciso situar as personagens centrais dessa análise: Adalgisa,
Manela e Santa Bárbara, a do Trovão, verificando de que maneira os preceitos
moralistas negros, referentes à religiosidade de matriz africana, e os preceitos cristãos,
configuram a vida, atitudes e ações das referidas pessoas fictícias (CANDIDO, 2002),
assim como esses preceitos operam na regulação ou não da sexualidade das
personagens. Não pode deixar despercebido o significado e função da Orixá Iansã, ou
mais especificamente como é tratada no romance, Santa Bárbara, a do Trovão,
desempenha no que se refere à chamada ‘moral’ religiosa, consequentemente interfere
nas vivencias sexuais.
Ocorrido em Salvador, na década de 70, período da ditadura militar, o enredo do
livro O Sumiço da Santa gira em torno do desaparecimento de uma preciosa imagem de
“Santa Bárbara, a do Trovão”, que foi levada de Santo Amaro da Purificação para
Salvador, onde seria exposta em uma mostra no Museu de Arte Sacra.
O desaparecimento da santa causou um rebuliço na cidade, entre as autoridades e
imprensa local. Acreditavam que fora um roubo, porém, na realidade, Santa Bárbara, no
momento do desembarque transformou-se em Iansã e saiu pelas ruas e Terreiros de
Candomblé de Salvador. Ela veio para a “Cidade da Bahia” com o propósito de libertar
Manela do cativeiro de sua tia Adalgisa, a quem iria ensinar a tolerância e a alegria.
Dentre as histórias paralelas à do desaparecimento de Santa Bárbara merece
destaque aqui, a relação não amistosa entre Adalgisa católica fanática e puritana, filha
de uma negra com um espanhol e sua sobrinha Manela, adepta do Candomblé. Adalgisa
Perez Correia considerava apenas seu lado espanhol, do lado paterno, não se queria
negra, preferia frequentar a igreja católica ao batuque dos Candomblés. “Pelo lado
paterno, os Perez y Perez, Adalgisa chegava em penitência das procissões da Semana
Santa de Sevilha carregando a cruz de Cristo – considerava apenas esse lado, não queria
saber de outro se outro houvesse.” (AMADO, 2010, p. 52).
Adalgisa não tinha filhos, mas após a morte dos pais de Manela passou a ser a
tutora da garota, já que “Deus não lhe dera filhos, dedicar-se-ia a fazer de Manela uma
senhora, uma senhora de princípios, como ela própria.” (AMADO, 2010, p. 56). Para
atingir esse propósito a vida da sobrinha passa a ser intensivamente investigada e
controlada pela tia que a proíbe de participar das festas e tradições do povo-de-santo,
queria que ela vivesse conforme a moral e os bons costumes da Igreja para alcançar a
vida eterna, livre do pecado. Para que Manela se tornasse uma “senhora de princípios”,
sua tia lhe impôs várias proibições, dentre as quais está a participação em Candomblé e
Umbanda “essas feitiçarias, guardar a maior distância, nem ouvir falar, são centros de
perdição onde o demônio se apossa das almas dos cristãos”. (AMADO, 2010, p. 77)
Nesse contexto pode-se perceber a intolerância da tia em relação à religiosidade
afro-brasileira, deixando claro o etnocentrismo, que como explica Gildeci Leite (2011) é
o ato de estabelecer seus costumes; sua etnia; sua cultura como centro e julgar todos a
partir de seus conceitos. Além disso, nota-se que Adalgisa tem a pretensão de sobrepor
seus preceitos cristãos ao associar a manifestação dos orixás demônios que, segundo
ela, possuem os seres humanos, mais precisamente as almas do cristão. A demonização
é uma estratégia utilizada na tentativa de diminuir a crença do outro. Segundo Marco
Aurélio Luz (2008) o ataque à religião é o mais eficaz para deixar os africanos e
descendentes sem sua própria cultura e sua própria identidade, já que ela é a fonte de
identidade e alteridade.
Adalgisa pode ser classificada como o que Nietzsche (1999) chama de
‘sacerdote ascético’, que nas palavras do filósofo é “a encarnação do desejo de ser
outro, de ser-estar em outro lugar, é o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre
e paixão [...] o poder do seu desejo é o guardião que o prende aqui [...] ele está entre as
grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida...” (NIETZSCHE, 1999, p. 110.
Grifo do autor.) Essa classificação de Adalgisa pode ser verificada tanto nas regras
impostas à sua sobrinha na tentativa de reprimi-la, quanto no castigo por desvio da
conduta estabelecida pela tia.
Nas ações da personificação do ‘sacerdote ascético’, transparecem o desejo de
coagir e constranger a vida de Manela, no intuito de desencadear o sentimento de culpa,
o qual na visão nietzschiana dá forma ao pecado.
Qualquer subversão às regras estabelecidas pela tia resultava em castigo,
exemplo disso foi o namoro com Miro, o taxista negro, o qual Adalgisa proibira por
conta da classe social do rapaz e por ele ser negro, fato que resultou no confinamento de
Manela no convento das arrependidas. Para a tia o homem ideal para a sobrinha seria
um homem que elevasse o nome da família. Conforme explicação de Adalgisa: “Fiz o
que devia fazer para impedir que ela saísse de casa para ir se prostituir com o cãotinhoso. Deus me ajudou a descobrir a tramoia a tempo só eu sei a correria que foi.
Agora está tudo resolvido, ela se encontra sob a guarda de Nosso Senhor Jesus Cristo.”
(AMADO, 2012 p.247)
Porém essa moral cristã com o tempo não mais inibe as vontades e sentimentos
de Manela, como está expresso no momento em que ela decide dançar para Oxalá sem
procurar explicações, ou mesmo inventá-las pra contar à tia a fim de se livrar dos
sermões, insultos e bofetões “[...] deu-se conta de que não precisava mais inventar
desculpas, astuciar mentiras, pois não estava cometendo crimes, delito, erro ou falta,
nenhum pecado.” (AMADO, 2010, p. 63). Isso aconteceu porque Iansã retirou dela a
imundice, submissão, o medo, o pedido de perdão e a muniu de alegria.
Uma diferença fundamental entre o cristianismo e as religiões negras é a visão
que se tem sobre a noção de pecado e o desejo, como afirma Reginaldo Prandi (1996):
O bom evangélico, para se salvar da danação eterna, precisa
aniquilar seus desejos mais escondidos; o bom filho-de-santo precisa
realizar todos os seus desejos para que o axé, a força sagrada de seu
orixá, de quem é continuidade, possa se expandir e se tornar mais
forte. (PRANDI, 1996)
Exemplo claro dessa noção é o constante trabalho de Adalgisa, apesar de
católica, para manter Manela longe das condutas que considera pecaminosas, como por
exemplo, a subversão à castidade, além da relação com seu marido, Danilo,
fundamentado nos preceitos cristãos: após o “sacrifício” na lua-de-mel, Adalgisa
continuou a realizar relações sexuais com seu marido para atender aos mandamentos da
igreja que ver o sexo apenas como modo de procriação da humanidade. Tanto é que
quando descobriu que Danilo era estéril restringiu as relações sexuais, visto que como
não havia possibilidade de reprodução, o atendimento aos desejos da carne é
considerando, portanto, pecado.
Para compreender o que leva Adalgisa a possuir essas características é preciso
entender o que sucedeu durante a gravidez. Andreza, a mãe de Adalgisa era adepta do
candomblé, cumpria suas obrigações de santo e normas de amizades. Quando conheceu
o pai de Adalgisa
Acabara de acertar com Mãe Aninha, do Axé do Opô Afonjá,
que se recolheria à camarinha no próximo barco das iaôs para raspar a
cabeça e receber Iansã, seu orixá de frente. [...] Apenas não sabia que
levava no ventre o produto dos amores com o gringo que a seduzira e
lhe montava casa: estava prenha de Adalgisa. Ao descobrir, já era
tarde: iaô de efum completo, cabeça raspada, corpo pintado, banhos de
maionga, o encantado dentro dela junto com o abicum. Não lhe
pertenceria o filho que palpitava em seu ventre, pertencia à santa. No
dia do oruncó, da festado nome, Andreza saltara duas vezes, dera dois
nomes, um era seu, o outro, do abicum. (AMADO, 2010, p.121).
O abicum, que em iorubá refere-se a aquele que nasce para morrer, foi o
provocador do “feitiço” de que se fala no subtítulo do romance “uma história de
feitiçaria” e envolve diretamente Adalgisa, pois, sua vida foi resultante do feitiço da
“troca de cabeça”, no qual a mãe morre no lugar do filho, e Adalgisa não cumpre seu
dever de se dedicar ao santo, já que considerava o Candomblé como coisa do demônio,
mesmo sabendo que a negação resultaria na morte de sua mãe. Por conta disso, no dia
em que completou vinte e um anos sua mãe amanheceu morta.
Por isso é que Adalgisa não era uma pessoa normal, sua liberdade era limitada e
dependente, ela era sujeita a desconforto e problemas de saúde, “[...] em vez de coração
tem uma pedra no vão do peito.” (AMADO, 2010 p. 222). Iansã veio pessoalmente
resolver o problema. Foi montar Adalgisa, que foi surpreendida pela inesperada
aparição de Exú Malê, o qual começou o processo do transe contra a vontade da filha de
Iansã. Nesse momento “[...] a cabeça estalando, era a dor de cabeça que se ia para
sempre, a respiração atropelada, era o coração de pedra que sangrava, não dava para
acreditar” (AMADO, 2010 p.358). Iansã havia pedido a Exú Malê que colocasse a
cangalha em Adalgisa. Quando estava a montá-la Iansã não usou esporas por conta da
lágrima que ela derramou no momento que deixou Manela no convento das
arrependidas. A partir desse momento, Adalgisa deixou de ser abicum clandestina e
passou a assumir a condição de filha de Oiá Iansã. E assim também seguiu para o barco
das Iaôs.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível entender que no romance a personagem Manela representa a
imoralidade, é a ‘vagabunda’ sob a ótica de Adalgisa, representação de uma ‘puritana’ e
intolerante, sacerdote ascético e símbolo da moral cristã, conservadora das ações
consideradas corretas, pela igreja, para se viver em sociedade. Ela que não poupa
nenhum esforço para retirar sua sobrinha, filha de criação, dos caminhos que ela
acredita serem da perdição, a fim de transformá-la em uma senhora da sociedade tal
qual ela se dizia ser. É nesse embate de valores que surge a figura de Iansã, orixá de
cabeça dessas duas personagens, cujas ações atestam o que afirma Gildeci Leite (2012),
segundo o qual, nas obras amadianas os orixás direcionam o enredo.
Isso atesta também o que afirma Prandi (1997), segundo o qual, mesmo não
tendo princípios morais como as religiões brancas, as religiões negras possuem
princípios que norteiam as ações, por meio das interferências dos orixás. Como
aconteceu com a personagem Adalgisa, do romance em questão, quem sofreu várias
transformações após a iniciação. A ausência da noção de pecado se manifesta na
transformação sofrida pela puritana após ser montada por Iansã, passar quarenta dias de
camarinha, pagar o desleixo de obrigação e evoluir de iaô para ebômi. Mesmo aceitando
sua condição no candomblé, reconhecendo sua ancestralidade ela não deixou de ir às
missas, porém, abandonou sua postura de fanática e não mais se confessou com o padre,
o que demonstra uma mudança de postura relacionada à ideia de pecado, culpa e perdão.
Outra mudança de Adalgisa após a iniciação foi a abstinência dos prazeres
relacionados à vivência da sexualidade, isso porque o sexo deixou de ser para ela, como
pensava anteriormente, um processo sagrado pelo qual era permitido apenas multiplicar
a espécie humana e que quando se dissociava desse fim conduzia ao pecado. Essa
mudança de comportamento foi intensificada ainda mais pelos feitos de Iansã.
Conforme a mitologia dos orixás
Um dia Oiá foi enviada por Xangô às terras dos baribas. De
lá ela traria uma porção mágica, cuja ingestão permitia cuspir fogo
pela boca e nariz. Oiá, sempre curiosa, usou também a fórmula, E
desde então possui o mesmo poder de seu marido. (PRANDI, 2001, p.
306).
Dessa forma, com seu poder de cuspir fogo, Iansã, “[...] cuspira fogo nas partes
de Adalgisa [...]” o que a levou juntamente com Danilo a decidir “[...] voltar ao morro
de São Paulo para comemorar os vinte anos de casados, uma segunda lua-de-mel.”
(AMADO, 2010 p.400)
As mudanças de Adalgisa demonstram o quanto a ligação de uma pessoa com
determinada religião molda a sua maneira de ser, sua identidade. Ao tratar sobre a
importância das religiões negras, Marco Aurélio Luz (2011) afirma que a religião, em
relação ao processo cultural, é indicadora de uma maneira negra de ser.
Pode-se afirmar também que as mudanças de Adalgisa apontam para o modo da
construção da identidade, que segundo Hall, não se trata de algo fixo já que “o sujeito
assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL, 1997, p.3). Inicialmente Adalgisa
interiorizou os preceitos cristãos, criando uma consciência que a aprisionava. Ir contra
esses preceitos chegaria ao estado, chamado por Nietzsche (1999) de má consciência,
posteriormente definida como pecado, já em um segundo momento a personagem se
liberta dessa consciência e assume uma nova identidade.
Isso reflete também na relação e regras impostas por Adalgisa, tanto à sua
maneira de ser quanto à sua sobrinha Manela no que se refere às vivências da
sexualidade. Inicialmente, Adalgisa na condição de puritana católica, tinha sua vida
sexual pautada nas normas morais da religião à qual é adepta. Ela portanto, se privava e
fazia sua sobrinha viver sob as mesmas privações. Após a aceitação de Adalgisa de sua
condição de fiha-de-santo, quando tornou-se iniciada no candomblé houve uma
profunda mudança em sua visão de mundo, de pecado e portanto da regulação da
sexualidade. Isso expressa o quanto o pertencimento religioso molda e transforma a
identidade.
REFERÊNCIAS
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das Letras, 2010.
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São Paulo: perspectiva, 2002.
CARVALHAL, Tania Faraco. Literatura Comparada. 4 ed. São Paulo: ática, 2006.
Dicionário Michaelis de Português online. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 15/04/2012.
FAUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 24 ed. Rio de Janeiro: graal, 1979.
HALL. Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
1997.
JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
LEITE, Gildeci de Oliveira Literatura e Mitologia Afro-Baiana: encantos e percalços.
Disponível em: <http://www.seara.uneb.br>. Acesso em 14/06/2011.
LEITE, Gildeci de Oliveira. Jorge Amado: da ancestralidade à representação dos
orixás. Salvador : Eduneb, 2012.
LUZ, Marco Aurélio. Cultura Negra em Tempos Pós-modernos. 3. ed. Salvador:
Edufba, 2008.
LUZ, Marco Aurélio. Cultura Negra e ideologia do recalque. 3. ed. Salvador; Rio de
Janeiro: Edufba; Pallas, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
PRANDI, Reginaldo. As Religiões Negras do Brasil: Para uma sociologia dos cultos
afro-brasileiros. In: Revista USP. São Paulo, dez1995-fev1996.
PRANDI, Reginaldo. Deuses africanos no Brasil. In:________ Herdeiros do Axé. São
Paulo: Hucitec, 1997, p.1-50.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Schwarcs: São Paulo, 2001.
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CONFLITOS MORALISTAS NO ROMANCE “O SUMIÇO DA