As estrelas no corpo de Juliana * Eram precisamente cento e vinte e três pintas. De tamanhos, formatos e espessuras diferentes. A maioria era pretinha. Algumas, amarronzadas. Estavam espalhadas pelo corpo inteiro, dos pés à cabeça, do nariz ao tornozelo, do calcanhar à ponta do mindinho esquerdo, das bandas da bunda ao centro do umbigo. Juliana desde pequena aprendera a apreciá-las. Saía do banho e ficava se olhando nua no espelho. Contava uma a uma. E depois recontava. Na adolescência, certa vez, pegou escondida a câmera fotográfica do pai e tirou fotos de todas, separadas e agrupadas. Mandou revelar. E depois analisou as fotos espalhadas sobre a cama. Imaginando linhas invisíveis unindo as pintas, desenhou dragões, ursos pandas, castelos medievais e personagens de mundos da fantasia. Na escola, Juliana sofria com as brincadeiras dos colegas. Primeiro apelidaramna de onça pintada. Depois, virou a menina pintada. Uma vez, durante uma discussão, uma garota disse que ela nascera com defeito de fabricação. Juliana voltou chorando para casa. Foi consolada pela tia Dora, que estava de visita. “As suas pintas são o que você tem de mais lindo, Juju. São sua marca, sua identidade. Elas fazem de você, você.” Tia Dora pegou uma revista dessas de celebridades que a mãe de Juliana costumava comprar e mostrou para a menina as fotos de várias atrizes famosas que tinham pintas no rosto, nos braços, nas pernas... “Mas eu tenho muitas, tia. Eu tenho pintas demais!” “Isso faz de você ainda mais especial, minha querida.” Dora era sua tia favorita. Não apenas por causa da intimidade e do carinho com que se tratavam, mas também porque Dora era para Juliana a representação perfeita de uma mulher madura e independente. Enquanto a mãe da menina era dona de casa e passava o dia varrendo o chão, cozinhando e lavando roupa, Dora era livre. Ela era atriz. Encenava peças. Não era famosa, como as atrizes de novela, mas de vez em quando sua foto ou seu nome apareciam nos jornais, o que enchia Juliana de orgulho. E Dora tinha também uma pinta na testa. Bem no meio da testa. Talvez tenha sido depois dessa conversa com tia Dora que Juliana decidiu que seria atriz. Convenceu a mãe a inscrevê-la em um curso de teatro. Ia duas vezes por semana e voltava sempre mais alegre. Tia Dora, quando a visitava, procurava incentivála a seguir o caminho da dramaturgia. Era quase como sua tutora no mundo do teatro. Com ela, Juliana tirava dúvidas, colhia conselhos e discutia o que aprendia no tablado. Quando tia Dora se casou, Juliana foi uma das madrinhas. Dora usou na cerimônia um vestido amarelo claro lindo, mas sem véu nem grinalda. Dispensou o padre, tendo preferido apenas um juiz para o casamento civil. Juliana jamais esqueceria os olhos radiantes de felicidade de Dora naquela noite. Após o casamento, tia Dora mudou-se para o interior. Suas visitas à casa de Juliana tornaram-se menos frequentes. Numa delas, tia Dora disse uma coisa que Juliana guardou para sempre em sua memória: “Todos somos atores. A vida é uma grande encenação.” O que era para ser apenas mais um conselho de mestre para pupila pareceu um desabafo. A frase saiu carregada de uma amargura que não combinava com a alegria da tia de outrora. Mas Dora não abria seus problemas particulares para a sobrinha. Mais tarde, a mãe lhe revelou que tia Dora estava triste com o casamento e isso estava atrapalhando também sua vida profissional. Aos dezoito anos, Juliana estreou em uma peça profissional, em um grande teatro da cidade. Era uma comédia de um autor novo. Ela interpretava uma vidente que lia o futuro em uma bola de cristal, mas previa tudo ao inverso. A família esteve presente na estreia, menos tia Dora, que andava cada vez menos envolvida com a dramaturgia e distante dos parentes. A atuação de Juliana foi elogiada não apenas pelos familiares e amigos, mas também pela crítica especializada, em uma resenha no jornal. “Em um papel secundário, a estreante Juliana Rodrigues rouba a cena representando a vidente Cleonice. Ela consegue arrancar gargalhadas da plateia sem apelar para o exagero na atuação, dando vida ao humor sutil do texto”, dizia a matéria, que foi recortada e colada em um mural no quarto da jovem. Foi na semana de estreia que Juliana fez amor pela primeira vez. Aconteceu na casa do namorado, em uma noite em que os pais dele estavam fora. Foi também a primeira vez que ficou completamente nua na frente de um homem. Ele logo se apaixonou pelas pintas. “São cento e vinte e três ao todo”, ela disse. Ele brincou de passar a mão por elas. Depois, deu um beijinho em cada uma. Juliana contou sobre os desenhos que enxergava quando pequena. “Aqui tem um dragão, vê?” A adolescência transformou seu corpo e distorcera alguns dos desenhos, mas ainda era possível reconhecer a maioria deles. “Você tem constelações de pintas no seu corpo!”, ele disse. “Você podia tentar ler o futuro através dessas pintas-estrelas! Poderia ser uma astróloga de pintas!”, brincou. Juliana riu muito da ideia e passaram o resto da noite interpretando o mapa astral formado pelas pintas em seu corpo. Aquela foi a única peça de relativo sucesso que Juliana encenou. Depois dela, nenhuma outra deu certo. Com o passar dos anos, começaram a lhe faltar convites e a jovem foi se desiludindo cada vez mais com a escolha que fizera. Em casa, ouvia reclamações da mãe, que a recriminava por não ter cursado uma faculdade, preferindo investir na carreira de atriz. Tia Dora, a única pessoa a quem Juliana daria ouvidos, estava sumida de sua vida, assim como das páginas das revistas. “Você se espelhou na sua tia e olha como está agora! Vinte e quatro anos de idade e sem perspectiva! Nem Dora aguentou ficar no teatro a vida inteira! Isso não dá certo para ninguém, Juliana.” Aquela discussão tocou-a profundamente. A evocação do nome de Dora era o que mais doía. Usar sua amada tia como exemplo contra o teatro era um golpe baixo da mãe. “Você não sabe do que está falando! Tia Dora nunca abandonou o teatro! E nunca vai abandonar!”, respondeu aos gritos, antes de correr para o quarto e bater a porta com força. Passou a noite chorando na cama, envolta nas lembranças das inúmeras tardes de ensaio, das horas que passou aprendendo a se maquiar, das broncas que recebeu da professora de teatro, dos conselhos de tia Dora, dos pés descalços sobre o tablado, do esforço para fazer chorar, das lágrimas que caem sorrateiras, meio indecisas, enganadas pelo cérebro que procura imagens tristes no meio de uma tarde feliz. O choro que certa vez conseguira fazer descer de seus olhos durante uma cena dramática era completamente diferente daquele na noite em que decidiu abandonar o teatro. O choro real tem outro gosto. Tia Dora estava errada. Nem sempre a vida é uma representação. Os meses que se seguiram foram duros. Queria um emprego, mas não aceitava qualquer porcaria. Não queria ser garçonete para servir os outros. Não queria ser faxineira para limpar a sujeira dos outros. Não queria ser uma funcionariazinha administrativa para carimbar e xerocar os papéis dos outros. Queria ser protagonista. Ser livre como tia Dora fora um dia. Queria escolher seu próprio papel. Em uma das manhãs em que vasculhava o jornal em busca de ofertas de emprego reparou no anúncio de uma vidente. Mãe Samara. Lia cartas, mãos, mentes, bolas de cristal. A mulher lia tudo. Juliana lembrou-se de sua personagem mais famosa, a vidente Cleonice. Teve vontade então de fazer uma visita a Mãe Samara. Não era exatamente para que lesse o seu futuro. Era para ver, cara a cara, a figura real de uma vidente. Talvez fosse uma tentativa de se reencontrar com sua personagem, de ver o quão próximo da realidade ela conseguira chegar. Visitou Mãe Samara no dia seguinte. O lugar tinha o cheiro carregado de um incenso esquisito aceso no canto. Em uma antessala apertada, os clientes esperavam a vez. As pessoas que aguardavam tinham o semblante triste, mas, ao mesmo tempo, ansioso. Pareciam apostar que aquela vidente seria a solução para seus problemas. Acreditavam que boas notícias sairiam daquelas cartas, ou da bola de cristal, ou do que quer que fosse. E estavam dispostas a pagar por isso. Aquelas pessoas compravam esperança. Cada sessão não demorava mais que meia hora. Mãe Samara atendia em um quarto com janelas fechadas, iluminado apenas por algumas velas sobre uma mesa com pano branco. Ela se vestia como uma mãe de santo. Era negra, de um negro profundo cuja pele se camuflava na escuridão do quarto. Mãe Samara mirava nos olhos de cada um que entrava em seu aposento. Parecia tentar captar as emoções dos clientes, ler suas mentes. “O que a traz aqui?” “Eu quero saber o meu futuro.” “Todos querem saber o futuro. Mas para lê-lo, preciso saber mais sobre você. O que te aflige?” “Estou desempregada.” “Certo... Para questões de trabalho, é melhor usarmos a bola de cristal.” Juliana teve que conter o riso. Via em Mãe Samara uma personagem tão engraçada quanto a sua Cleonice. A vidente pronunciou palavras mágicas, enquanto concentravase com os olhos fechados e passava as mãos sobre uma pequena bola de cristal. Depois, ainda de olhos fechados e com a voz que parecia ser de outra pessoa, como se tivesse incorporado um espírito, Mãe Samara disse: “Sua vida não é a sua vida. Você quer viver outra pessoa. Se é isso que você quer, que assim seja. E faça disso seu ganha-pão. Esse será seu emprego. Sua vida será uma representação!” A resposta mexeu com Juliana. A jovem tinha direito de fazer até três perguntas para a bola de cristal, mas preferiu encerrar a sessão ali mesmo. Pagou e deixou o resto do seu futuro para trás. Juliana nunca acreditou em videntes. E não iria começar a acreditar agora. Preferiu entender o que Mãe Samara disse como um conselho. E usá-lo como lhe conviesse. Teve então uma ideia absurda, mas que naquele momento parecia fazer todo o sentido do mundo. Era tão surreal que tinha medo de contar para os pais. Mas estava decidida a colocá-la em prática. Revelou o plano apenas para o namorado. Foi com ele que treinou durante algumas semanas, trancados em seu quarto. Quando se sentiu minimamente segura, comprou uma peruca vermelha e um roupão azul estrelado. Alugou uma sala em um prédio comercial. Pôs um anúncio no jornal mais popular da cidade. “Vidente Cleonice, a única expert em astrologia corporal no Brasil! Leio seu futuro em meu corpo. Venha e comprove!” Não, não era uma piada. Ou era? Juliana decidiu usar todo o seu conhecimento de dramaturgia para encarnar sua personagem como se fosse uma pessoa real. E ganhar dinheiro com isso. Para não sentir a consciência pesada, encarava seus clientes como se fossem uma plateia, a consulta como se fosse uma peça, e o preço da sessão como se fosse o ingresso do espetáculo. A pequena sala alugada era seu palco. Só aceitava consultas com hora marcada. Recebia uma pessoa por vez. Atendia vestida com o roupão azul estrelado e a peruca vermelha. No começo, veio muita gente curiosa. Eram pessoas que já haviam sido atendidas por cartomantes, astrólogas e mães de santo, mas que agora procuravam algo novo. Mas eram também pessoas desesperadas, no afã de ouvir algo que lhes desse esperança. São as pessoas mais fáceis de serem enganadas. Uma plateia ingênua. Depois de desligar a luz e acender velas vermelhas posicionadas no canto da sala, a sessão começava com Juliana entoando um mantra. Para isso, pedia silêncio total. “É para que eu e você possamos nos concentrar”, dizia. “Aqui, quem mostra o caminho para o futuro é você. Sou apenas um instrumento. Meu corpo simboliza o universo”, acrescentava e, logo em seguida, desamarrava o roupão e deixava-o cair no chão, ficando nua diante do cliente, cuja primeira reação era de espanto. Mas a seriedade com que Juliana representava o seu papel era contagiante. “Agora, escolha cinco pintas. Apenas cinco. Toque-as na sequência que lhe parecer melhor. E eu lerei seu futuro.” As pessoas ficavam sempre muito indecisas na hora de escolher as pintas. Olhavam o corpo inteiro, giravam Cleonice para lá e para cá. “Vale qualquer pinta?” “Vale.” “Até essa no pé?” “Qualquer uma. Mas respire fundo antes de escolher. Sinta uma força levando seu dedo...” E as pessoas então iam encostando, uma a uma, em cinco das cento e vinte três pintas de Juliana. Uma vez definida a sequência, Cleonice ficava alguns minutos pensando, antes de se pronunciar. Costumava fazer previsões herméticas e sem pé nem cabeça, o que deixava as pessoas ainda mais confusas. “Vejo uma salamandra em seu caminho, trazendo atrás de si uma nuvem amarela que selará sua felicidade.” “A quem sabe multiplicar, falta o dom de dividir. Mas é a raiz quadrada de suas dúvidas que lhe dará segurança para ir em frente.” “Não se abale com a primeira curva de uma montanha russa. Porque os temerosos vomitam primeiro e os felizardos enjoam por último.” “Um gato de três cores mia alto quando está com fome e baixo quando está com sede. Os gatos bicolores só miam quando vão lutar. Você precisa se imaginar como um gato de sete cores, feito o arco-íris. Aí, sim, o Olimpo se abrirá para todos os felinos.” É claro que ninguém ficava plenamente satisfeito com essas respostas e pedia para que Cleonice as explicasse melhor. Ela então falava: “É isso que dizem as pintas. E é para que eu leia as pintas que você me paga. Mas se quer que eu interprete o que dizem as pintas, tenho que cobrar uma taxa extra.” E as pessoas pagavam. Aí Juliana inventava interpretações de acordo com o que sentia que o cliente gostaria de ouvir. Basicamente: amor, saúde e dinheiro, não necessariamente nessa ordem. No fim, ficavam todos satisfeitos: os clientes com as respostas; Juliana, com o pagamento. Com o passar do tempo, a própria Juliana desenvolveu um significado para cada uma daquelas cento e vinte e três pintas. Quando alguém apontava para a pinta do calcanhar direito, por exemplo, aquilo significava uma reviravolta no trabalho. Se fosse apontada a pinta do nariz, era sinal de saúde plena. E, no raro caso em que fosse escolhida a pinta no meio do umbigo, isso queria dizer “morte”. A repetição daquele ritual e a construção de significados para as diversas pintas fizeram com que às vezes a própria Juliana começasse a acreditar em Cleonice. Era a atriz virando a personagem. Ou a personagem virando a atriz? Era ainda representação? Ou era verdade? Houve também alguns infortúnios. Uma vez um homem tentou atacá-la assim que ficou nua. Juliana conseguiu se desvencilhar dos seus braços e fugir pelo corredor do prédio. Depois desse incidente, seu namorado passou a fazer o papel de Rubão, o segurança de Cleonice. Todo cliente era avaliado antes por ele. E se a vidente se sentisse em perigo, bastava um grito para que Rubão entrasse na sala para salvá-la. A notícia sobre a “astrologia corporal”, ou “pintologia”, se espalhou pela cidade por meio do boca a boca. Após um ano de atividade, Cleonice não precisava mais pôr anúncio em jornal. E quem quisesse marcar uma consulta precisava reservar data com mais de um mês de antecedência. Para os pais, Juliana mentia. Disse que arrumara um emprego em um escritório. Saía de manhã, voltava à noite. Não deixava pistas. Sabia que seus pais jamais concordariam com aquilo. Mas aquele emprego era a realização de um sonho. Estava ganhando muito dinheiro e, ao mesmo tempo, atuando como atriz. Das 9h às 18h, ela era uma personagem. Cleonice existia apenas em horário comercial. E cada vez mais ela se sentia uma vidente de verdade. Até que um dia entrou pela sua porta uma cliente nova, que havia agendado a consulta com o nome de Dorotheia. Era a tia Dora. Juliana quase desmaiou, tamanho foi o susto. Tia Dora, que ela não via há anos, estava ali, na sua frente, para uma consulta. Estava envelhecida e o olhar seguro de antes fora substituído por outro, cambaleante, preocupado, perdido. Poderia até ser outra pessoa, mas era mesmo tia Dora. A pinta no meio da testa eliminava qualquer dúvida. Juliana teve vontade de chorar. Por que tia Dora estava ali? Teria vindo desmascará-la? Ou seria apenas uma infeliz coincidência, uma obra do maldito acaso? Ou será que esse encontro esteve sempre previsto em suas pintas, mas ela nunca tinha sido capaz de ler o próprio futuro? Estava prestes a pedir desculpas, a jurar que não faria mais aquilo, a implorar que tia Dora não contasse para seus pais, quando a cliente, subitamente, falou cabisbaixa: “Boa tarde... Soube dos seus incríveis poderes... Preciso de sua ajuda... Quero saber o meu futuro...” Juliana ficou confusa. Mirou nos olhos de Dora. A tia parecia não reconhecê-la. Seria possível? Não enxergar a própria sobrinha cheia de pintas pelo rosto? É verdade que estava maquiada e vestia uma peruca vermelha, mas qualquer familiar ou amigo próximo a reconheceria. Juliana respirou fundo e virou Cleonice. Apagou subitamente a expressão de surpresa com a entrada de tia Dora e substituiu-a pelo ar seguro e arrogante de uma vidente prestigiada e altamente requisitada. “Pois bem... Já sabe como faço para ler o futuro?” “Ouvi dizer que você lê as pintas do seu corpo... Eu escolho as pintas... É assim?”. Era difícil para Juliana manter a impassibilidade de seu personagem. Enquanto Dora falava, a jovem se esforçava para ler o rosto da tia, suas expressões, seu olhar, a entonação de sua voz. Será que tia Dora estava também representando? Seria aquilo uma espécie de duelo entre duas atrizes? Um desafio entre a mestre e sua pupila? Quem se manteria na personagem por mais tempo? Tirou o roupão. Desnuda, na frente da tia, ela não sentiu a confiança que sentira nas centenas de últimas vezes em que repetira esse gesto. Em vez disso, Juliana sentiu vergonha. Se aquilo não era um jogo, uma brincadeira, sua tia iria reconhecê-la naquele momento, diante de seu corpo nu. Mas não reconheceu. Ou fingiu que não reconheceu. Dora começou a chorar... Disse que estava doente. Muito doente. E que viera ali para saber quanto tempo mais de vida tinha pela frente. E estava com medo de apontar as pintas erradas. De saber de um futuro desagradável. Ela tremia toda e se debulhava em lágrimas. Não, definitivamente ela não estava atuando, pensou Juliana. Ou então era a melhor atriz que já vira em toda a sua vida. Teve novamente vontade de abandonar Cleonice e se transformar na sobrinha Juju. Queria abraçar a tia, consolá-la, conversar como conversavam antigamente. Porém, prosseguiu um pouco mais com sua atuação. Insistiu para que Dora escolhesse as pintas. E quando a tia o fez, Juliana tomou outro susto. Dora apontou primeiro para a pinta no umbigo e depois para outras quatro pintas que não poderiam significar outra coisa que não o seguinte: Dora tinha poucas semanas de vida. Em vez de contar-lhe o que lera, Cleonice falou que Dora ainda viveria por muitos e muitos anos. Disse isso com a voz trêmula, insegura, nervosa. A pior representação que já fizera no papel de Cleonice. Ninguém jamais acreditaria naquela vidente. Dora enfureceu-se, deu um tapa na cara da sobrinha e disse em tom de lamentação, antes de ir embora e fechar a porta da sala: “Por que não me disse a verdade, Juliana?” ********************************************************************** * Este conto é de autoria de Fernando Paiva e faz parte do livro Salvem os monstros, publicado pela editora 7Letras, em março de 2010. www.salvemosmonstros.com www.7letras.com.br