IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
A PEREIRA DA TIA MISÉRIA: DA NARRATIVA ORAL AO TEXTO
DRAMATÚRGICO
Vanessa NAKADOMARI (UEL)
Sonia PASCOLATI (Orientadora – UEL)
Introdução
Esta pesquisa é um desdobramento de um projeto maior, o Portal da Literatura
Paranaense, sediado na Universidade Estadual de Maringá e realizado em parceria com
outras universidades do Paraná. O objetivo do Portal é reunir, ao máximo, produções e
informações sobre o campo literário do estado. Nossa participação nesse projeto se dá pelo
levantamento de material acerca da dramaturgia da cidade de Londrina. Assim, o texto a ser
analisado nesta pesquisa está inserido em nosso catálogo de textos dramatúrgicos
londrinenses. De autoria de Luan Valero, A pereira da Tia Miséria foi escrito em 2009 e
dialoga intertextualmente com o conto popular homônimo, de origem oral. É a respeito
dessa intertextualidade que focamos nossa análise.
As relações estabelecidas entre oralidade e escrita são, por vezes, segmentárias,
levando a crer em um embate entre os dois gêneros literários, em que o texto escrito
sobrepõe-se ao oral, estabelecendo um jogo de superioridade/inferioridade de acordo com
uma gama de valores que segregam a literatura em patamares mais ou menos elevados de
acordo com seu suposto grau de erudição. É certo que esse pensamento se aplica a diversos
contextos literários e que foi preciso muito empenho por parte dos defensores da oralidade
para que essas expressões alcançassem a respeitabilidade dos estudiosos da área e fossem
legitimadas como autênticas manifestações artísticas da palavra, especialmente em tempos
mais antigos quando a escrita era privilégio das classes mais abastadas e a oralidade
costumava ser associada ao povo. Na atualidade, embora exista ainda esse tipo de conflito,
essas relações se tornaram mais flexíveis e vários teóricos compreendem as particularidades
de cada gênero, sem a necessidade de fazer comparações para definir o que é de melhor
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qualidade. Muitas vezes não só corroboram a individualidade de cada um como aspecto
positivo, mas os relacionam como complemento um do outro.
Para este trabalho, temos um interesse especial nessa última pontuação, entendendo
que em nossa análise essa complementação se dá na intertextualidade presente no texto de
Luan Valero, A pereira da Tia Miséria (2009). É preciso ressaltar que o intertexto não
acontece aqui de forma direta com a oralidade, ou seja, o autor do texto dramático teve
como fonte primária uma versão escrita do conto popular, publicada por Yara Maria
Camillo no livro Contos populares espanhóis (2005), para depois buscar outras fontes.
Inclusive, partiremos dessa obra para delinear nossa análise intertextual, pois, além de ser a
principal influência do dramaturgo, podemos afirmar que em muito pouco difere de outras
versões encontradas.
De qualquer forma, o entendimento sobre a proveniência oral do conto é
fundamental para traçarmos o desenvolvimento percorrido por essa narrativa até chegar ao
trabalho de Valero, a fim de demonstrar que seu texto foge às perspectivas que confrontam
escrita e oralidade e funciona como complemento, um reforço da proposta inicial do conto.
1. Da oralidade
A pereira da Tia Miséria narra a história da Miséria, uma senhora que vive de pedir
esmolas e tem em seu quintal um pé de pera e um cão vira latas. A mulher, mãe do menino
Ambrósio – referência à palavra hambre, fome em espanhol, como registra Camillo (2005)
– enfrenta problemas com os meninos do vilarejo, pois esses lhe roubam os frutos da
árvore, que ela almeja vender para melhorar o seu sustento. Dado que um dia a senhora
recebe a visita de um mendigo, o acolhe em sua casa e dá-lhe de comer, em troca recebe
uma graça do sujeito que lhe confessa ser um anjo do céu. A Tia pede que quem subir na
pereira não consiga descer sem seu consentimento. Feito isso, quando surge a Morte para
buscá-la, a senhora pede a ela que colha algumas peras para a viagem e a Morte fica presa à
arvore. Tia Miséria propõe, então, um trato: a Morte terá autorização para descer desde que
só volte para levá-la, e a seu filho, quando a Tia a chamar.
Em se tratando de um conto popular, é claro que a narrativa pode sofrer algumas
alterações de acordo com o contexto, mas, em suma, a ideia é justificar a presença da
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miséria no mundo e o motivo de ela não acabar. É comum a esse tipo de narrativa a
finalização com uma lição de moral e que se desenvolvam com figuras mágicas, criando-se
um universo fantástico para ilustrar a visão de um povo sobre seu meio, para ensinar os
mais jovens como se comportar.
Na diversidade de formas encontradas em uma recolha da oralidade,
destaca-se o conto popular. Como uma forma artística recriada a partir de
um texto virtual sedimentado pela tradição, o conto popular resulta em
uma construção narrativa de grande densidade semântica e valor
simbólico, representação do imaginário coletivo de uma dada sociedade.
(ALCOFORADO, 2007, p. 7).
No caso de A pereira da Tia Miséria, temos a personificação de fenômenos
inerentes à condição humana (a morte, a miséria, a fome). Diante de uma situação
complexa e sufocante que é a de visualizar ao seu redor a situação miserável de tantos
indivíduos (ou de ser um deles), o homem começa a criar elementos narrativos que deem
conta de figurar suas questões e dar-lhes, ainda, alguma explicação. Buscar uma forma de
justificar essa situação, de forma mágica e não político-social, é como alcançar uma válvula
de escape. É a voz do povo projetando sua condição por meio da criação. Ao construir o
enredo de uma narrativa como essa, esses indivíduos ganham uma espécie de fuga para o
universo criado, onde os problemas enfrentados passam a ter algum sentido.
Infelizmente, não encontramos uma data referente às primeiras versões d’A pereira.
Embora ainda seja possível encontrar diversas versões escritas ou orais – na internet há
vídeos de manifestações em sarais ou outros eventos em que participantes contam a história
da Miséria, bem como versões escritas em blogs ou sites de literatura – são escassas as
informações a respeito do conto. Camillo (2005, p.11), em sua publicação, ressalta que suas
“raízes se perdem no tempo”.
2. Da dramaturgia
O fenômeno teatral é proveniente de uma dialética que define sua consolidação
como resultado do diálogo entre texto e representação. Para se edificar como teatro, o texto
dramático deve ser levado à cena. Portanto, torna-se necessário, ao se falar de dramaturgia,
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se valer também do entendimento sobre a prática teatral. No caso desta pesquisa, esse fator
é especialmente relevante, uma vez que o texto estudado foi escrito especialmente para uma
determinada montagem, tendo alguns objetivos já delineados pela proposta cênica. Assim,
o jogo de influência entre texto e performance ganha uma dimensão particular nesse
trabalho.
Luan Valero é integrante da companhia teatral Núcleo Ás de Paus, de Londrina. O
grupo teve início em 2008, com a proposta de trabalhar em cena a partir de elementos de
prolongamento do corpo, especialmente pernas de pau. Outra proposta estabelecida era a de
fazer teatro de rua. Foi dentro dessa perspectiva que o autor deu início ao seu trabalho
dramatúrgico. O grupo selecionou A pereira da Tia Miséria dentre os contos encontrados
no livro Contos populares espanhóis (2005), de Yara Maria Camillo, para dar início à
primeira montagem da companhia. Valero ficou encarregado do trabalho dramatúrgico e,
naturalmente, sua produção estava diretamente ligada à concepção teatral do Núcleo Ás de
Paus. Contudo, esse aspecto não anula sua autonomia como autor. Por mais arraigado que o
texto seja à proposta cênica do grupo, Valero não perdeu seu espaço de criação. É
interessante notar que não há muitas rubricas no texto com indicações de cenário ou
figurino, uma vez que outros integrantes do grupo se responsabilizariam por esses quesitos.
Mas todo o texto produzido é exclusivamente seu. Valero construiu as personagens, os
diálogos rimados, o andamento das cenas.
Vale ressaltar que o espetáculo rendeu à companhia premiações e apresentações por
todo o Brasil. Em 2011, dentre outros prêmios, o Núcleo Ás de Paus recebeu o Troféu
Gralha Azul, da Fundação Teatro Guaíra de Curitiba, nas categorias Melhor Ator para
Guilherme Kirccheim, Melhor Figurino e Melhor Espetáculo. Desde a estréia realizou cerca
de 150 apresentações, em diversos festivais de teatro, das quais podemos destacar a
participação no Circuito Palco Giratório 2013, promovido pelo SESC Nacional,
compreendendo apresentações em todo o território brasileiro, passando por mais de 50
cidades. Como parte do levantamento sobre a dramaturgia londrinense, o espaço
conquistado pelo grupo na cena teatral brasileira ressalta a importância de A pereira da Tia
Miséria para nossa pesquisa.
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3. Da intertextualidade
A afirmação sobre a autonomia de Valero resvala em outra questão, que para nós é
fundamental nesta pesquisa: seu texto provém da narrativa popular A pereira da Tia
Miséria. É sobre essa intertextualidade que nos compete dar maior atenção.
O dramaturgo alcança, com o diálogo intertextual, uma transformação muito rica da
narrativa original e valoriza um enredo já tão bem construído pela tradição. Sant’Anna
(1988) chama a essa reforma de estilização, colocando o termo entre a paráfrase e a
paródia. Segundo ele, a paráfrase representa um desvio mínimo com relação ao texto
primário, ficando próximo de uma simples reprodução, e a paródia se refere a um desvio
total, que reconfigura o sentido inicial. À estilização cabe o papel de desvio tolerável,
trabalhando o original de modo novo, sem perder sua essência: “a estilização reforma
esmaecendo, apagando a forma, mas sem modificação essencial da estrutura”
(SANT’ANNA, 1988, p.41). É dentro desse entendimento de reforma que se compreende A
pereira da Tia Miséria (2009). Valero parte do conto para montar o esqueleto da trama e, a
partir disso, desenvolve-o redimensionando sua simbologia e agregando os elementos
necessários para a cena.
O primeiro aspecto que podemos ressaltar, e que é também o mais evidente na
transposição do conto para a dramaturgia, é a criação de diálogos pelo dramaturgo. Na
peça, a figura do narrador é anulada, então toda a história é contada por meio das falas das
personagens, enquanto no conto as falas são escassas e pontuais.
A mudança na forma afeta diretamente o conteúdo do texto. Se o narrador costuma
apresentar os fatos de maneira neutra, apenas como alguém que discorre sobre um
acontecimento, as personagens dramáticas, ao tomarem para si o papel de mostrar a história
ao público, vão fazê-lo cada qual de sua perspectiva. O modo como Tia Miséria é
apresentada em cada texto ilustra essa diferença. No conto, a descrição é simples e breve:
Tia Miséria era uma mulher muito pobre e já idosa, que vivia numa
cabana nos arredores de um povoado. Tudo o que possuía era um colchão
para dormir, uma velha cadeira para sentar-se e um cesto para recolher os
frutos da pereira que havia no quintal. [...] Tia Miséria era de idade
avançada, não conseguia correr atrás dos meninos, por muito tempo [...]
Tia Miséria também tinha um filho que se chamava Ambrósio, devido à
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fome que passava. Mas o rapaz já não vivia com ela. Na verdade, a velha
senhora nem sabia por onde ele andava. (CAMILLO, 2005, p. 17).
– enquanto no texto de Valero a apresentação se dá pela própria Tia Miséria, tornando-se
mais densa, permeada dos sentimentos da personagem causados pela sua condição de vida.
MISÉRIA (Pede esmolas)
Eu sou Tia Miséria. O senhor me desculpe o mau jeito, apesar do
penteado desfeito, sou mulher sabida e séria. Venho lhe pedir respeito
que, por mim, tu passas e não espera. Não espero mais do que um defeito
que no olhar do senhor faça valer a visão da vida que é severa... O meu
filho, Fome, tá por aí... Se encontrar com ele: Cuidado! Só quero o meu
menino para sair daqui... Deixar-lhes em paz, eu faria de bom grado. Que
a reza seja como ela diz: Que seu nome seja santificado... Estampado!
Procurado! Exilado... Mesmo morrendo nas mãos de um soldado! Desde
que eu saiba quem o tem sustentado ou assassinado... Sua mãe, Miséria,
não é sustentada por ninguém! Todos sabem que a Miséria, ao ser
humano, não convém. O povo, o meu sustento tem guardado, daquele
jeito, meu filho, meio cru ou já queimado... Tia Miséria também vai
morrer, quando todo o seu filho for encontrado, ou quando junto do
mundo padecer!
(alguém lhe dá uma esmola)
Obrigada, vá com Deus! O dinheiro da Miséria: Simples centavos que são
seus... [...]. (VALERO, 2009, p. 3-4).
A carga emocional depositada pela Tia em sua apresentação permite outra dimensão
do público/leitor com a obra. O fato de as falas serem no tempo presente (enquanto o conto
é no passado) aproxima as personagens de seus espectadores. O narrador do conto se refere
a algo que já ocorreu, enquanto as figuras cênicas não estão contando a sua história, elas a
estão vivendo, no momento da leitura (ou do espetáculo).
Assim, o público/leitor não ouve uma história, ele a assiste, a vivencia. O texto
dramático também aproxima o leitor de outra forma: as falas em primeira pessoa levaram
Valero a construir personagens com personalidades mais bem delineadas. Elas não servem
somente para ilustrar os fenômenos que personificam e dar andamento à ação dramática,
pois nessa trama cada figura ganha sua trama pessoal.
No conto, por exemplo, os meninos que roubam as peras da Tia são apenas
mencionados como peraltas da vizinhança. Valero torna concretas essas presenças por meio
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de duas personagens: o Menino 1 e o Menino 2. Apesar do nome impessoal, eles aparecem
em várias cenas e têm longos diálogos, por meio dos quais podemos saber mais a seu
respeito: ser vizinho da Miséria significa viver de forma miserável, não conseguir
frequentar a escola por mal conseguir se alimentar: “MENINO 2 – Tá vendo? E agora, o
que a gente vai fazer?! Eu é que não vou pra escola! De barriga vazia não dá pra
aprender...” (VALERO, 2009, p. 7). Essa preocupação do autor em trabalhar melhor as
personagens dá mais força à simbologia proposta inicialmente pelo conto. Mostra mais a
fundo o que a narrativa inicial busca ressaltar. Valero vai além e considera o
desenvolvimento dessas personagens de acordo com sua proveniência.
Depois de Tia Miséria conseguir o feitiço que aprisiona à pereira quem ela não
permitir descer, os meninos, assustados, param de roubar seus frutos. No conto, encerra-se
a participação dos garotos na trama com a seguinte menção: “Logo correu a notícia do que
acontecia a quem ousasse subir na pereira da Tia Miséria. Desde esse dia, nenhum garoto se
atreveu a roubar sequer uma pêra.” (CAMILLO, 2005, p. 19). Na versão dramatúrgica,
depois de se explorar quem eram esses meninos e como viviam, o autor se ocupa de
mostrar as consequências sofridas por eles. Os garotos acabam na criminalidade devido ao
meio em que vivem e a falta de oportunidades.
(Entra correndo o Menino 2, agora um bandido adulto)
MENINO 2 – Bela pera! Muito bela... Não parece fruto da Miséria? Quem
dera... As que hoje eu consigo, são imitações daquelas... Mas, talvez, já
salvariam o meu amigo... Era só ficar tranquilo, eu dizia: “Não
desespera!”. Ele não era pra ter sido bandido: Morreu de fome, uma
primavera depois do famoso feito de Tia Miséria. (VALERO, 2009, p. 8).
Assim, percebemos personagens mais redondas, que completam o sentido do conto,
uma vez que o tema central desse é a miséria. Todas as figuras ganham mais vida, mais
movimentação. Até mesmo o cachorro da Tia Miséria torna-se uma personagem bem
elaborada por Valero. O cão passa a fazer um papel importante no enredo, relacionando-se
ao menino Fome, lembrado muitas vezes por meio de sua figura. O nome do cachorro é
Sem Nome e a Miséria espera seu filho voltar para escolher o nome que lhe caiba melhor.
Outra característica fundamental é a linguagem empregada pelo dramaturgo. As
falas rimadas dão às cenas um lirismo que condiz com o ambiente da peça. Também
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funcionam como complemento, dando a essas figuras a função de sustentar falas num tom
extra-cotidiano que completam sua caracterização mágica. Além do poder de atração que as
rimas geram em quem as lê ou escuta. O autor trabalha a linguagem como parte da
estilização proposta em seu texto. A reforma na narrativa primária acontece também nesse
sentido. A linguagem lírica também é uma maneira de explorar o conteúdo da trama.
MENDIGO – Deus deve se importar com todos, senhora! Saiba que essa
sua questão é velha! Mas, se a senhora acredita, a coisa já melhora! Se
não, faz como eu, pega seu nada e vai embora.
MISÉRIA – O Senhor não acredita em Deus?
MENDIGO – Conhecendo Tia Miséria, tu percebes onde a dúvida do
homem mora... Acredito nos passos meus, eu sou um andarilho, lembra
senhora?
MISÉRIA – É só mais um homem de Deus que nada tem e, na cabeça da
Tia, são tantos e tantos, que é assim o pensamento que me vem: Todos
esses deveriam ser santos!
MENDIGO – Tantos santos? Creio que a Deus não convém...
MISÉRIA – Por que o espanto? Porque seria santo também?
MENDIGO – Não me leve a mal, dona... É que... Nisso tudo há um
porém: O santo tem que frequentar a igreja e isso exige algum vintém!
MISÉRIA – Não entendeu nada do que falei! Eu disse que santo é
justamente quem não o tem! (VALERO, 2009, p. 6).
O diálogo entre a Miséria e o Mendigo dá um trato lírico à questão penosa da
pobreza. Em falas como essas percebe-se a preocupação do autor em exaltar essas figuras
marginalizadas, partindo em sua defesa de forma ainda mais ampla que o conto popular.
Retomando a ideia da dicotomia texto-representação, temos uma questão
interessante concernente ao caráter oral da narrativa primária. Alcoforado (2007) trata da
dificuldade de se passar os signos da oralidade para a escrita, ou seja, a literatura oral é
acompanhada por diversas expressões de seu locutor (mudanças no tom de voz, gestos,
corporalidade), que não poderiam ser reproduzidos pela escrita. Contudo, esses signos
fazem parte da construção do texto dramatúrgico. Em suas rubricas e até mesmo nas falas
das personagens estão reunidos signos virtuais, encarregando a escrita de comportar os
elementos significativos que deverão ir para a cena. Como afirma Pascolati,
na verdade, o teatro, em sua plenitude, é o resultado não do confronto,
mas da conjunção entre palavra (texto) e gesto (representação). O texto de
teatro traz em si as virtualidades do espetáculo o que exige do leitor,
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mesmo no caso de uma leitura solitária, a visualização da cena, seja pelas
falas das personagens, pela movimentação destas no palco e ainda pelas
indicações cênicas dispersas pelo texto. (PASCOLATI, 2007, p. 21).
A virtualidade do texto teatral acentua sua ligação com a representação, uma vez
que essa, de certa forma, se apresenta no papel pelo virtual. Portanto, é interessante notar
que A pereira da Tia Miséria volta à performance, depois de passar pelo filtro da escritura.
O espetáculo não apenas leva os signos para a representação, como o faz de maneira
especialmente elaborada e estudada pelos atores, intensificando e valorizando cada
significado apresentado ao público.
E ainda que estivéssemos tratando de um texto que nunca fora representado
continuaria valendo essa afirmação, afinal, como já foi dito, a leitura do texto dramático
pede esse postura por parte de seu leitor, a de compreender seus signos virtuais, implícitos
(subentendidos nas falas e movimentações das personagens) ou explícitos (diretamente
colocados pelo autor), e visualizá-los.
Na representação, a escrita está o tempo todo presente, afinal todas as falas partem
do texto. O que ocorre é uma junção entre a performance e a escrita. Não há nenhuma
contraposição, as duas formas existem juntas, como um casamento do oral com o escrito
em que se resgata um conto tradicional, se lhe dá um trato literário por meio da escrita e
devolve-o à performance, nova maneira de fazê-lo permanecer vivo através dos tempos.
Considerações finais
O intertexto mostra que dificilmente se cria algo do nada; no geral há uma gama de
referências que permeiam uma obra. Com o passar dos tempos, esse diálogo se desenvolve
e ganha referências novas, sempre num crescente. A literatura ganha com isso um papel
importante na sociedade, por refletir suas questões políticas e sociais, por registrar
costumes de um povo e de uma época. No campo artístico, o intertexto também funciona de
forma interessante, com o diálogo entre linguagens e formas literárias que explora novas
possibilidades.
Esses dois aspectos se apresentam no diálogo intertextual que explanamos nessa
pesquisa. O objetivo do conto popular de sustentar um ideal entre um grupo de indivíduos
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recebe aval na peça, o que deixa claro o quanto essas antigas narrativas continuam
presentes em nossas vidas, ganhando novas versões sem perder sua força no imaginário
coletivo. Principalmente por ser teatro de rua, a montagem do Núcleo Ás de Paus reforça o
caráter de arte popular que dissemina um pensamento e/ou sentimento em seu meio.
Analisando pelo viés artístico, temos uma transposição de formas literárias para se
contar a mesma história, de modo que as possibilidades artísticas da palavra são trabalhadas
e cria-se uma troca não só do conteúdo, da história, mas há o diálogo entre formas que é um
ponto enriquecedor para a literatura e os estudos a respeito.
O fato de o texto de Luan Valero estar inserido num projeto maior sobre a literatura
paranaense mostra que a pesquisa está rendendo bons frutos e que temos material de
destaque e qualidade para resguardar a memória literária do estado. Por um lado temos o
texto de Valero como uma produção contemporânea importante para o Portal da Literatura
Paranaense e, por outro, o compreendemos como continuidade do processo de tradição
literária. Essa é uma das colaborações do nosso tempo para manter viva A pereira da Tia
Miséria.
Referências
ALCOFORADO, Doralice F. Xavier. Oralidade e Literatura. In: LEITE, Eudes Fernando e
FERNANDES, Frederico (Org.). Oralidade e Literatura 3 – outras veredas da voz.
Londrina: Eduel, 2007.
CAMILLO, Yara Maria (seleção). Contos populares espanhóis. São Paulo: Landy, 2005.
PASCOLATI, Sonia Aparecida Vido. Virtualidades do espetáculo no texto teatral. In:
LEITE, Eudes Fernando e FERNANDES, Frederico (Org.). Oralidade e Literatura 3 –
outras veredas da voz. Londrina: Eduel, 2007.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & Cia. 3. ed. São Paulo: Ática,
1988. Série Princípios.
VALERO, Luan. A Pereira da Tia Miséria. Londrina, 2009, 12 p. Trabalho não publicado.
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