! _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 1-94, 2014! Copyright© 2014. Todos os direitos reservados à Editoria da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Endereço Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo - Labedisco Estrada do Bem Querer, km 03 Bairro Universitário Vitória da Conquista – Bahia – Brasil 45.083-900 Telefone: (77) 3425-9392 ! Portal REDISCO www.uesb.br/redisco E-mail: [email protected] Capa “O Jardim das delícias”, óleo sobre madeira, 1504, Hyeronimus Bosch. ! ! ! ! ! R25r REDISCO – Revista Eletrônica de Estudos do Discurso e do Corpo / Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo. v.5, n.1, jan./jun. 2014.-- Vitória da Conquista: Edições UESB, 2014. Periodicidade: Semestral Número temático: Corpo e mulher ISSN: 2316-1213 ! ! ! ! 1. Análise do discurso - Periódicos. 2. Discurso e corpo - Periódicos. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Laboratório de Estudos do Discurso e do corpo. CDD: 401.41 ! ! Catalogação na fonte: Elinei Carvalho Santana - CRB 5/1026 UESB – Campus Vitória da Conquista - BA ! Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Reitor Paulo Roberto Pinto Santos Vice-Reitor Fábio Félix Ferreira Editores Nilton Milanez Cecília Barros-Cairo Secretário Ricardo Andrade Amaral Comissão Executiva Marisa Martins Gama-Khalil Roselene de Fatima Coito Vinicius Lemos da Silva Reis Vilmar Prata Conselho Editorial Internacional Barbara Lemaître (Sorbonne Nouvelle – Paris 3) Beatriz de Las Heras (Universidad Carlos III de Madrid) David Roas (Universidad Autónoma de Barcelona) Jean-Jacques Courtine (University of Auckland) Philippe Dubois (Sorbonne Nouvelle – Paris 3) Rémy Porquier (Nanterre – Paris X) Sophie Benoist (Sorbonne/ Paris VIII) Sophie Moirand (Sorbonne Nouvelle – Paris 3) Conselho Editorial Nacional Alexandre Filordi de Carvalho (Universidade Federal de São Paulo) Antônio Fernandes Júnior (Universidade Federal de Goiás) Carlos Felix Piovezani Filho (Universidade Federal de São Carlos) Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro (Universidade Regional do Cariri) Cleudemar Alves Fernandes (Universidade Federal de Uberlândia) Conceição de Maria Belfort Carvalho (Universidade Federal do Maranhão) Denise Gabriel Witzel (Universidade Estadual do Centro-Oeste) Edson Carlos Romualdo (Universidade Estadual de Maringá) Edvania Gomes Silva (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) Elmo Jose dos Santos (Universidade Federal da Bahia) Fábio César Montanheiro (Universidade Federal de Ouro Preto) Flávia Zanutto (Universidade Estadual de Maringá) Flavio Garcia de Almeida (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Franscisco Paulo da Silva (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte) Freda Indursky (Universidade Federal do Rio Grande do Sul.) Helcira Maria Rodrigues de Lima (Universidade Federal de Minas Gerais) Henrique Silvestre Soares (Universidade Federal do Acre) Ilza do Socorro Galvão Cutrim (Universidade Federal do Maranhão) Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso (Universidade Estadual de Maringá) João Bôsco Cabral dos Santos (Universidade Federal de Uberlândia) Jorge Augusto Alves da Silva (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) Jorge Viana Santos (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 1-94, 2014! Katia Menezes de Souza (Universidade Federal de Goiás) Lúcia Ricotta Vilela Pinto (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) Lucília Maria Sousa Romão (Universidade de São Paulo) Luzmara Curcino Ferreira (Universidade Federal de São Carlos) Maíra Fernandes Martins Nunes (Universidade Federal de Campina Grande) Mara Rúbia de Souza R. Morais (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás) Marcello Moreira (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) Marcos Lúcio de Sousa Góis (Universidade Federal da Grande Dourados) Maria Cristina Leandro (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Maria das Graças Fonseca Andrade (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) Maria de Fátima Cruvinel (Universidade Federal de Goiás) Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago (Universidade Federal de Goiás) Maria do Rosario Valencise Gregolin (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) Maria Regina Baracuhy Leite (Universidade Federal da Paraíba) Marluce Pereira da Silva (Universidade Federal da Paraíba) Maysa Cristina da Silva Dourado (Universidade Federal do Acre) Monica da Silva Cruz (Universidade Federal do Maranhão) Nádea Regina Gaspar (Universidade Federal de São Carlos) Pedro Luis Navarro Barbosa (Universidade Estadual de Maringá) Pedro Ramos Dolabela Chagas (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) Roberto Alexandre do Carmo Said (Universidade Federal de Minas Gerais) Roberto C. da Silva Borges (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca) Roberto Leiser Baronas (Universidade Federal de São Carlos) Santuza Amorim da Silva (Universidade do Estado de Minas Gerais) Sidney Barbosa (Universidade de Brasília) Simone Tiemi Hashiguti (Universidade Federal de Uberlândia) Soraya Silveira Simões (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Sulemi Fabiano Campos (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Suzy Lagazzi (Universidade Estadual de Campinas) Vanice Maria Oliveira Sargentini (Universidade Federal de São Carlos) Revisão de Língua Portuguesa Cecília Barros-Cairo George Lima Renata Celina Brasil Maciel Samene Batista Santana Revisão de Língua Espanhola Iris Nunes de Souza Revisão de Língua Inglesa Michael Douglas Silva Revisão de Língua Francesa Ana Paula de Oliveira Tomaz Normalização Tyrone Chaves Filho Design de Capas Ítalo Alberto Diagramação da Revista Cecília Barros-Cairo ! SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................. 6 ARTIGOS ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS: (RE)CONFIGURAÇÕES DO CORPO E DO HOMOEROTISMO FEMININO NA NARRATIVA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Adenize Franco ......................................................................................................................................... 7 POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR? SEMIOLOGIA E INTERICONICIDADE NO DISCURSO PUBLICITÁRIO Amanda Braga ............................................................................................................................................ 16 AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA Daniel de O. Gomes ................................................................................................................................... 27 QUEIMANDO SUTIÃS: O CORPO COMO DISCURSO E ACONTECIMENTO Elizete de Souza Bernardes e Vanice M. Oliveira Sargentini .................................................................... 37 NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO: O MASCULINO E O FEMININO NO CINEMA Hertz Wendel de Camargo e Rafaeli Francini Lunkes .............................................................................. 45 IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA: UMA QUESTÃO DE MODERNIDADE Luciana Rosar Fornazari Klanovicz ........................................................................................................... 58 CORPOS EM ROTAÇÃO: DE AMÉLIA A AMELY, MULHERES DE VERDADE? Nincia Cecilia Ribas Borges Teixeira ........................................................................................................ 69 DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY: MATERIALIDADES DA PINTURA E DEFORMAÇÕES CORPORAIS Renan Mazzola ........................................................................................................................................... 77 SER DIFERENTE É NORMAL: GLEE E A PRODUÇÃO DE IDENTIDADES PARA AS MINORIAS SOCIAS Maria do Rosário Gregolin e Thiago Ferreira da Silva .............................................................................. 87 _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 1-94, 2014! APRESENTAÇÃO “Durante muito tempo se tentou fixar as mulheres à sua sexualidade. ‘Vocês são apenas o seu sexo, dizia-se a elas [...]. E este sexo, acrescentaram os médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor de doenças. ‘Vocês são a doença do homem’” . Essas palavras de Michel Foucault, extraídas da Microfísica do Poder (1979, p. 234)1, permitem-nos situar este volume da REDISCO - Revista Eletrônica de Estudos do Discurso e do Corpo – relativamente ao tema que norteia os nove (9) artigos aqui publicados: o corpo das mulheres. Que corpo é esse construído pela diferença entre os sexos, regulado pelo discurso do “natural”, sujeito às violências materiais e simbólicas, saturado de uma sexualidade que lhe determinou espaços, proibições, liberdades, limites, trabalhos e exclusões? Na pluralidade da história, há movimentos muito antigos, acelerados no século XVIII, que tentaram responder a essa pergunta. Houve um tempo em que as respostas faziam pesar sobre o corpo da mulher tanto a obscuridade da reprodução quanto os imperativos que o transformaram em um mero vaso receptor, ou seja, um território de posse e de cultivo dos homens. Porque dele emanavam mistérios e forças, transitando entre o sagrado e o laico, esse corpo se colocou desde a noite dos tempos onipresente nos discursos de poetas, escritores, médicos, religiosos, políticos, pais e maridos. No campo do imagético, transformou-se em objeto do olhar e do desejo. Enfim, aquele corpo, antigamente definido, dentre outros aspectos, como a “doença do homem”, é um corpo imerso na história, fabricado discursivamente, inserido nas formas sociais da cultura e enredado pelas tramas normativas da aparência, sexualidade, maternidade etc. É, pois, para esse corpo que se voltam as discussões do presente volume. Sob olhares díspares, os autores trazem perspectivas do campo da história, da literatura, da comunicação social e da análise do discurso, com o intuito de pensarem na produção discursiva do corpo das mulheres, focalizando, sobretudo, sua história – física, estética, política, ideal e material – reinventada na encruzilhada de discursos da mídia, da literatura e das artes plásticas. Denise Gabriel Witzel Nilton Milanez !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 1-94, 2014! ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS: (RE)CONFIGURAÇÕES DO CORPO E DO HOMOEROTISMO FEMININO NA NARRATIVA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Adenize Franco Universidade Estadual do Norte do Paraná Resumo: Proponho, nesse artigo, a discussão e análise acerca da (re)configuração literária e discursiva do corpo feminino em dois contos do escritor Marcelino Freire. Os traços e os laços que configuram a representação de relações homoeróticas nos contos Minha flor (2003) e Declaração (2010) repercutem não somente o tema da lesbianidade na narrativa contemporânea brasileira quanto indagam entrelaçamentos discursivos de poder e silenciamento do amor que, atualmente, já ousa dizer seu nome. Assim como, busco salientar que tais narrativas (re)configuram a construção do corpo dentro das relações homoafetivas distintamente de narrativas literárias que as precederam. Palavras-chave: Narrativa Contemporânea Brasileira; corpo; homoerotismo feminino; Marcelino Freire. Abstract: Among traces, among bonds: (re)configuration of the body and of the female homoerotism in the brazilian contemporary narrative. I propose in this article the discussion and the analysis about the literary and discursive (re) configuration of the female body in two short stories from the writer Marcelino Freire. The traces and the bonds that configure the representation of the homoerotics relationship in the short stories My flower (2003) and Declaration (2010) deflect not only the lesbianity theme in brazilian contemporary narrative as inquire discursives entanglements of power and silencing of the love that nowadays dare already to say his name. Therefore, I seek emphasize that those narratives (re) configure the construction of the body inside the homo-affective relationships distinctly from literary narratives that precede them. Keywords: Brazilian Contemporary Narrative; body; female homoerotism; Marcelino Freire. Entre corpos, entre traços: Léonie e Pombinha Se observarmos as pesquisas voltadas para a configuração do homossexual (ou do homoerotismo, da homocultura ou da homossociabilidade) na literatura brasileira REDISCO teremos já formado um painel que destaca, apresenta, analisa as obras ficcionais que trazem personagens gays e/ou relações homoafetivas masculinas1. O marco 1 Para uma análise mais aprofundada consultar o capítulo Essas histórias de amor maldito, de Devassos no paraíso (2004), de J. Silvério Trevisan. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014 8 evidencia-se em O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, com a presença do homossexual Albino, e em O bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha, que de maneira mais enfática constrói a trama tendo como núcleo o romance entre Amaro e Aleixo. Esse romance é tido por muitos como o fundador do homoerotismo na literatura brasileira. O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, também figura entre as obras do final do séc. XIX que, marcada pelo realismo-naturalismo, procura trazer à discussão as relações homossexuais dentro das instituições de ensino, atacando a moral que estas prezavam. Ou seja, denunciando as relações homossexuais existentes no internato como marca de uma instituição hierarquizada (fracos X fortes – feminino X masculino) e que, considerando as discussões de Michel Foucault em Vigiar e Punir (1999) sobre os estados de coerção e aos espaços pequenos, tais instituições reputam os corpos a um estabelecimento da ordem moral a partir do poder. Ao entrarmos no séc. XX, teremos a emergência de figuras decisivas da identidade homoerótica masculina, a partir das figuras do culpado e o solteirão que podem ser observados em A crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, ou no conto Frederico Paciência, de Mário de Andrade. Na década de 60, a organização de Gasparino Damata, Histórias do amor maldito (1967), surge como a primeira obra de temas propriamente gays dentro da literatura brasileira. Conforme Santos e Wielewicki (2005), “nesse período, a literatura homoerótica caracteriza-se por colocar em cena a repressão política e sexual, por buscar uma imagem que se distancie da autonegação e por uma narrativa direta (neonaturalista)” (SANTOS; WIELEWICKI, 2005, p. 297). Nos anos 90, as produções de Caio F. Abreu, João Silvério Trevisan e Silviano Santiago tornaram-se expoentes de uma geração que transita entre a melancolia, a realidade incisiva e a utopia. O temor imposto pela AIDS transforma a experiência e o contato com a doença em fonte de reflexão e criação de narrativas intimistas. Além disso, a necessidade de marcar um território, de se fazer notar e, evidentemente, demonstrar uma literatura de qualidade dá a perceber não REDISCO FRANCO somente uma preocupação pessoal mas, também, política. A entrada do séc. XXI, portanto, irá colher os frutos dessas gerações anteriores. Bernardo Carvalho, João Gilberto Noll, Denílson Lopes, Marcelino Freire e outros já podem tratar a temática do homoerotismo sem a preocupação de serem estigmatizados como autores de literatura gay ou vilipendiados por focarem suas narrativas nas configurações de identidades do mesmo sexo. Observe-se o caso de O filho da mãe (2009), de Bernardo Carvalho, que possui como personagens centrais um casal homossexual (Andrei e Ruslan). Ao mesmo tempo em que a representação do homossexual masculino é delineada em narrativas da literatura brasileira, algumas delas também, ainda que com menos destaque – apresentam personagens femininas que apresentam orientação sexual lésbica. Aluísio Azevedo, em O cortiço (1890), não somente tipifica o homossexual masculino Albino quanto o faz em relação à lésbica e prostituta Léonie. Assim como seu contemporâneo Adolfo Caminha, em A normalista (1893), insinua uma relação de tônica homoerótica entre as personagens Maria do Carmo e Campelinho, em que estas refazem a cena da “sensação nova” advinda da leitura do romance O primo Basílio, de Eça de Queirós. - É isso menina, que eu não pude compreender bem. – E, abrindo o livro leu: “...e ele (Basílio) quis-lhe ensinar então a verdadeira maneira de tomar champagne. Talvez ela não soubesse! – Como é? – perguntou Luísa tomando o copo. – Não é com o copo! Horror! Ninguém que se preza bebe champagne por um copo. O copo é bom para o Colares... – Tomou um gole de champagne e num beijo passou-o para a boca dela (sic). Luisa riu...”, etc., etc. - Como explicas tu isso? - Tola! – fez a Campelinho. – Uma coisa tão simples...Toma-se um gole de champagne o de outro qualquer líquido, junta-se boca à boca, assim... e juntou ação às palavras. [...] Depois, as duas curvadas sobre o livro, unidas coxa a coxa, braço a braço, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014 ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS passaram à ‘sensação nova’(CAMINHA, 1998, p. 65-6). A cena descrita revela o beijo entre as adolescentes, a união das coxas e dos braços evidenciando a relação entre os corpos femininos com maior destaque para a concretização da cena homoerótica. No romance de Aluísio Azevedo, na relação entre Léonie e Pombinha, a cena da relação homoerótica feminina é levada à materialização corporal, inclusive dentro as prerrogativas que norteavam a estética naturalista, como a comparação zoomórfica com a qual o narrador finaliza a passagem que segue: Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere e o roçar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue, desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos. Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando” (AZEVEDO, 1998, p.89). O fragmento citado refere-se ao momento em que a personagem Pombinha é seduzida por Léonie, enquanto a mãe tira um cochilo no quarto ao lado. Como podemos observar, enquadrada na estética naturalista, a narrativa não deixa de explorar tanto as relações sociais quanto as relações de gênero. Estas relações, por sua vez, são alicerçadas tanto em valores biológicos quanto morais, uma vez que Léonie é representada como a ‘predadora’, por disvirginar a jovem e, ainda, irá desencadear o futuro de Pombinha que, depois de abandonar e trair o marido, vai ao encontro de Léonie e continua o ciclo inicial: abre sua própria casa de prostituição e solícita, prestativa e amiga mantém relação com os moradores do Cortiço. Ambas as personagens estão condicionadas aos ímpetos corporais: os seios que se tocam, os pelos pubianos que se roçam, os dentes que REDISCO 9 se cerram, o sangue que folgueia. Atrelada a comparações zoomórficas (“espolinhar”, “irracional”, “feroz”, “corcovos de égua”), a imagem busca comprovar o caráter de tese que o romance implica e detem-se às contrações físico-corporais que os corpos das amantes revelam. A tônica da relação sexual entre as personagens é descrita dentro desses dois elementos: o físico absoluto e o comparativo animalesco. O homem movido pelos seus impulsos expõe a relação anormal que a homossexualidade prognostificava e que, portanto, tendia às condições animalizantes da natureza. Por outro lado, a relação “predadora” de Léonie institui uma tomada de posição social de Pombinha que, ao subverter a passividade de sua vida anterior, se lança à atividade, consciente, de prostituta ao seguir os desejos de seu corpo, como afirma Silviano Santiago no artigo O homossexual astucioso (2004), “Pombinha deixa o noivo para seguir o corpo e os passos da madrinha” (SANTIAGO, 2004, p. 201). Ainda nesse artigo, Silviano Santiago recupera as considerações de Peter Fry em Léonie, Pombinha, Amaro e Aleixo2 (1982), atentando para o fato de que Pombinha não só inverte a retórica da atividade dos homens e da passividade das mulheres, assumindo a ‘ambição’, a ‘originalidade’, que são normalmente atribuídas ao papel masculino, mas também embarca numa profissão que tem por objetivo explorar ao máximo as fraquezas do ‘sexo forte’´.” E complementa: “Ao rejeitar o casamento, elas rejeitam a convivência com os homens e as relações sexuais produtivas em favor de uma relação de amizade e prazer sexual uma com a outra (FRY apud SANTIAGO, 2004, p.201). 2 Nesse artigo Silviano Santiago recupera o artigo de Peter Fry, Léonie, Pombinha, Amaro e Aleixo, publicado em Caminhos Cruzados (1982), de Alexandre Eulálio. Nesse artigo, Fry discute as formas divergentes como os homossexuais são tratados em determinadas manifestações culturais (como é o caso da literatura de Aluísio Azevedo ou Adolfo Caminha) ou matizados em suas representações enquanto a sociedade da época, através de seu saneamento básico de saúde, “tenta controlar a sexualidade e taxar todas as atividades sexuais fora da vida em família de degeneradas e imorais” (FRY apud SANTIAGO, 2004, p.204) Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014 10 Essa passagem, bastante determinante no trajeto que Silviano Santiago endossa em seu artigo, corrobora o início da prerrogativa do crítico, o homossexual astucioso que, na linha do malandro, deveria deixar de explicitar a violência social contra si mesmo, ao autoclamar para si termos, atualmente, considerados pejorativos, “sapatão”, “bicha”, “viado” etc… introjetando a culpa “[…] pela conduta dita desviante, punindo a si pela expiação e, por aí, chegando a adotar normas contratuais de vida pública em que ele se auto-exclui da sociedade como um todo em vias de normatização” (SANTIAGO, 2004, p.202). Para o crítico, é necessário romper com essa normatização e se reler dentro da marginalidade sem buscar expiar uma culpa que não possui. No que concerne à literatura de autoria feminina, Lygia Fagundes Teles figura como uma das autoras que apresenta em suas narrativas a configuração da homossexualidade feminina. Em um de seus principais livros, As meninas (1973), tematiza o contexto político ditatorial brasileiro e apresenta uma personagem lésbica. Tal constatação nos conduz ao século XX e à configuração da personagem lésbica que, na literatura, terá destaque com uma autora marginal: Cassandra Rios. Na década de 70, a escritora chegou a vender cerca de 300 mil livros por ano no Brasil. Entretanto, o teor devasso de suas obras levou-a à obscuridade e à própria exclusão da crítica literária. Atualmente, pesquisas voltadas para os estudos de gênero e de exclusão buscam resgatar a autora e suas obras desse obscurescimento. Contemporaneamente, além de obras especificamente voltadas paro o público LGBT, encontramos autoras e autores que apresentam a temática da homossexualidade dentro de perspectivas que se voltam para o mercado deste público alvo ou na esfera literária buscando (re)configurar o modo como as minorias sexuais são projetadas na narrativa brasileira. É o caso do romance Duas iguais (2004), de Cíntia Moskovich. Trata-se da história da adolescente Clara que se vê apaixonada pela melhor amiga Ana, entretanto, impossibilitadas de viver esse amor, acabam seguindo rumos diferentes. REDISCO FRANCO Adultas, Clara se casa e Ana vai para Paris. Mais tarde, acabam se reencontrando quando Ana está com uma doença terminal e retorna ao Brasil. Clara passa a cuidar dela e as duas revivem, momentaneamente, esse amor movido tanto por culpas e dúvidas quanto por alegrias e prazeres. Diferentemente das narrativas de cunho homoerótico que a antecederam, a narrativa de Cíntia Moscovich apresenta o amor entre Clara e Ana que ousa dizer o nome, porém não se concretiza com final feliz por conta de suas subjetividades e por questões temporais. Mesmo a morte, categoria crucial a que é conduzido o romance, não aparece aqui como castigo moral e sim, o ponto de contato que move as duas e possibilita a realização amorosa. A passagem que segue demonstra a primeira relação amorosa de Clara e o primeiro contato físico das duas e converge, à semelhança da passagem amorosa entre Léonie e Pombinha, para a união dos corpos femininos. Eu a abracei e a trouxe para mim, querendo a saliva dela, querendo cada poro. Queria – como queria – ela inteira, a alma dela se pudesse. (...)As pernas de Aninha, roliças, o sexo de Aninha, escuro. Estirou-se a meu lado, colando o corpo no meu, me abraçando com todos os braços e pernas do mundo, e o que eu percebia era o algodão de que ela era feita, assim branca, assim leve. (...)Enroscada em mim, me apertando como uma tenaz de força desconhecida, começou um movimento de vaivém, roçando com quase ferocidade o sexo contra minha coxa, e eu entendi que era assim que duas mulheres faziam. Aninha se masturbava em minha perna, a respiração muitíssimo alterada, me levando junto com ela. Percebi que eu podia fazer o mesmo, que uma das suas pernas estava entre as minhas. (...) Minha amiga buscava saciarse e encontrava calma. Eu, mais impaciente, queria o gozo que estava ali, bem perto, acumulado no meu ventre, quase doendo na minha barriga. Ela me pedia que não, que eu me lembrasse que não estava só, que estávamos finalmente juntas e que não era preciso ter pressa (MOSCOVICH, 2004, p.37-9). Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014 ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS Como é possível observar, a passagem ilustra o momento de relação amorosa entre as personagens sem as comparações zoomórficas estabelecidas na passagem do romance de Aluísio Azevedo. Em Duas iguais temos a distinção clara que o amor entre o mesmo sexo já não é mais tratado como doença ou desvio da moral e que resplandecem os corpos sobre o corpo do texto. As partes corporais, as pernas, a boca, o ventre, os braços são seguidos por adjetivos que os enaltecem. As pernas roliças, os sexo escuro, braços e pernas brancos e leves como o algodão, sublimam o contato entre as amantes. A ferocidade do ato está centrada, não mais, num discurso de “predador sobre a caça” mas de autoridade sobre seu próprio corpo e sua sexualidade. Se para Silviano Santiago, Pombinha já revelava esse domínio, quando a partir da relação amorosa com Léonie perde a atitude passiva que a caracterizava, o fragmento de Duas iguais (distante mais de um século do romance naturalista) endossa ainda mais essa mudança. No caso do romance de Cíntia Moscovich, a relação homoerótica entre Ana e Clara é entrelaçada pelo discurso autônomo das personagens e suas ações. Não é mais um puro determinismo que tenta ser comprovado pelas atitudes homossexuais. Ao contrário, a relação homossexual entre as duas é estabelecida por discurso próprio dentro das identidades – cambiantes ou instáveis, como pontua Zigmunt Baumban – sexuais definidas e sem a implicação de subalternidade a que era condicionada a leitura da relação amorosa entre Pombinha e Léonie. Entre corpos, entre laços: Minha flor e Declaração É crua e dura a vida. Como um naco de víbora. Como-a no livor da língua Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me No estreito-pouco Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida Tua unha plúmbea, meu casaco rosso. REDISCO 11 E perambulamos de coturno pela rua Rubras, góticas, altas de corpo e copos. A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos. (Hilda Hilst, Alcoólicas) O poema de Hilda Hilst ilustra a segunda parte dessa discussão, a vida é dura para os corpos do mesmo sexo que se enroscam e se descobrem. A vida dura em sua metáfora corporal: antebraços, ossos, unhas. Corpo faminto como o “bico dos corvos”. As vigasossos que sustentam o corpo não são mais os “ombros que suportam o mundo”, do poema de Drummond, porque se a vida é crua, além de dura, ela precisa ser devorada. O sujeito poético do poema Alcóolicas revela sua “experiência lésbica” com a vida, “Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:/O êxtase de te deitares contigo. /Beba./Estilhaça a tua própria medida”. Os versos em destaque sinalizam a relação “apreendida” que a vida tem consigo própria, dentro de uma subjetividade expressa no poema e recorrente ao desencanto, à morte e aos amores líquidos, como a vida que por ser líquida, se esvai. A metáfora da liquidez no poema de Hilst (associada à própria ideia da embriaguez que atravessa, também, o poema) pode ser compreendida dentro das concepções pós-modernas discutidas pelo sociólogo Zigmunt Bauman, tanto das identidades fluídas quanto dos relacionamentos fugazes. Não há mais solidez e sim liquidez, já que a própria vida é líquida. No poema em referência, é visível a contradição de um corpo que se percebe faminto como os corvos, dentro de uma vida paradoxalmente: líquida e dura. E, talvez, por essa inconstância que o corpo, dentro das esferas que constituem a vida: a social, política, histórica e sexual, engendra posicionamentos e relações dentro daquilo que Michel Foucault irá denominar dispositivo histórico. Conforme Guacira Lopes Louro em Pedagogias da sexualidade (2000), as identidades de gênero e sexuais são “(…) compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade” (LOURO, 2000, p.06) E é, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014 12 portanto, nesse sentido que compreendemos, de acordo com Foucault, que a sexualidade pode e deve ser compreendida como um dispositivo histórico quando verificamos que ela se trata de uma invenção social que se constituiu historicamente a partir dos vários discursos que “regulam, normatizam, instauram saberes, produzem ‘verdades’” sobre o sexo. O poema Alcoólicas ilustrou aqui, o que Guacira Lopes Louro, a partir de Jeffrey Weeks, assinala em seu texto: “Num mundo de fluxo aparentemente constante, onde os pontos fixos estão se movendo ou se dissolvendo, seguramos o que nos parece mais tangível, a verdade de nossas necessidades e desejos corporais” (LOURO apud WEEKS, 2000, p.08). Esta assertiva converge para a necessidade de afirmação do corpo; a partir disso é que podemos nos reconhecer dentro de nossos desejos e interesses aos múltiplos pertencimentos sociais. No dizer da autora, “(…) Precisamos de algo que dê um fundamento para nossas ações, e então construímos nossas “narrativas pessoais”, nossas biografias de uma forma que lhes garanta coerência” (LOURO, 2000, p. 07). Filho, sua mãe é homossexual. É com essa frase que se inicia o conto Minha Flor, de Marcelino Freire. Integrante do livro de contos BaléRalé (2003), a narrativa centra-se na conversa de uma mãe ao filho. Ao retornar a casa, às três horas da manhã, no percurso de chegada ao prédio até o quarto do filho, vai assumindo (em pensamento) para o filho sua orientação homossexual, o famoso “sair do armário”. O monólogo relata toda sua história: a referência à viuvez com o pai do menino há cinco anos, a entrada da jovem Flor em sua vida, da relação homossexual que se constituiu entre as duas, o amor que as entrelaça, as características de cada uma, os telefonemas e encontros marcados pelo rubor e pela sensação de desconfiança dos outros, a necessidade de assumir sua condição para o filho e o encontro com este já dormindo. Tal condição anuncia o silenciamento novamente e retorno ao “armário” com a frase “Deixa, filho, pra lá”. O conto Minha flor, como foi possível perceber nessa breve síntese do conto, REDISCO FRANCO apresenta uma narrativa de teor temporal contemporâneo. O monólogo da mãe situa o ocorrido “no ano 2000”, ao tratar inclusive, esse período como “moda liberada”. Esta noção não está condicionada à relação com Flor apenas, e sim com o entrelaçamento do seu gênero feminino: mulher num mundo “tão evoluído, moderno”, como a mãe caracteriza. Estão entrelaçados a este discurso de mulher, dona de seu corpo e seus desejos (“Flor está comigo, passeia nas minhas coxas”) o discurso de mãe e homossexual (“Filho, sua mãe é homossexual”). Para além da representação corpórea subentendida apenas na menção das partes físicas como as coxas, os cabelos e os lábios (metaforizados na frase “Beijo o batom de Flor, arranco o batom fora, a pétala”), a relação entre a mãe e Flor é caracterizada pelo sentimento e pelo desejo homossexual: “Flor me beija, Flor me aquece”. Assim como, a necessidade de constituir-se dentro de uma identidade homossexual a partir do discurso monológico esbarra, contudo, nos dispositivos históricos que regulam as identidades sexuais e de gênero, como mencionado anteriormente. Uma das regulações que é referida no discurso da mãe, trata-se dos papéis sexuais desempenhados numa sociedade heteronormativa: Querido, não precisa chamar ninguém de madrasta. Padrasto então, não tem isso, o pessoal pergunta: quem é o homem? Quem é a mulher? Absurdo. Eu e seu pai fazíamos coisas que até a vida duvida. Filho hoje eu quero chorar, desabafar, eu quero me libertar. Preciso (FREIRE, 2003, p. 108). A passagem acima evidencia a menção ao discurso normativo das relações heterossexuais nos quais os papéis homem X mulher, construídos historicamente, é que validam a sociedade. É fato a necessidade de atribuir rótulos aos papéis sexuais em uma relação homossexual configurando-as dentro do enquadramento “homem” ou “mulher” da relação, numa tentativa de imposição de relacionamento heteronormativo e, muitas das Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014 ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS vezes, buscando evidenciar uma relação de domínio de gênero sobre o outro3. Nesse sentido, o entrelaçamento de corpos entre a mãe e Flor subjaz o entrelaçamento afetivo entre as duas que, ainda, esbarra na diferença de idade, “Flor se preocupa comigo. Faz chá, põe fita no meu cabelo. Flor tem sua idade” (FREIRE, 2003, p. 108). Na sequência narrativa, entretanto, a mãe busca justificar essa diferença de idade recorrendo à aproximação de maturidade da jovem com o pai do menino. Processo que será recorrente no monólogo discursivo como recurso, possivelmente, para minimizar o conflito da relação. Conflito marcado pela série de quebras e rupturas nos papéis sexuais, sociais e de gênero que revelam, sobremaneira, a subjetividade eminente dessa mãe que se revela homossexual, “Olho minha vida no espelho. Hoje não tenho medo” (FREIRE, 2003, p. 109) e que se constitui no discurso monológico tateando em busca da maçaneta que abrirá a porta, futuramente, de sua completa revelação. Por enquanto, o discurso revelador ainda é mantido no emudecimento. Situação oposta se dará no conto Declaração, também de Marcelino Freire, presente no livro Amar é crime (2010). Como o título da obra sinaliza, os contos integrantes perfazem o caminho dos crimes passionais, muitos deles extraídos de fatos corriqueiros e, inclusive, noticiados pela mídia brasileira. Neste trajeto, a narrativa em destaque, Declaração, centra-se na história da aluna apaixonada pela professora e a prisão desta por abuso de menor. Entretanto, a narrativa revela, sob inserções da voz narrativa da adolescente, o amor entre as duas. Descobriram que a gente saía junto. Eu ía na casa da professora. Dormia à tardinha e ela lia histórias. E tratava de me lamber. E de me lavar. 3 Ressaltem-se as brincadeiras ou insultos feitos a casais homossexuais masculinos que retratam a subjugação, assim como relações sexuais de dominação nas quais os homossexuais masculinos não assumem identidade homossexual, justamente por pensarem que ao dominarem não se inscrevem como tal porque continuam, em seu ponto de vista, agindo como “homem” REDISCO 13 Mais do que qualquer uma, eu precisava estudar. A professora não misturava as coisas. Dava zero, se fosse o caso. Dez, na hora dos beijos. Veio o psicólogo: uma menina de 13 anos fantasia sentimentos. Qual estrutura tem? Fui morar no silêncio (FREIRE, 2010, p. 133-134). Semelhante ao conto Minha flor, observamos nesta narrativa de Marcelino Freire entrelaçamentos não somente sexuais, mas também de posição social dos indivíduos: aluna e professora, adulta e menor que, à parte as transgressões sociais que dramatizaram, unem-se pelo sentimento amoroso: “A professora não chegou assim: como se ela fosse de plástico. Deu a ela arrepios. E uma vontade madura” (FREIRE, 2010, p. 136). A “vontade madura”, sentimento que aproxima a adolescente da personagem Flor (“Ela parece mais velha”), será força propulsora das suas ações no decorrer da narrativa. A adolescente inominada inscrevese num grupo de teatro na Fundação Casa para se apresentar na penitenciária com o intuito de se declarar à professora. A peça era uma homenagem a Monteiro Lobato. Não seria o caso de um outro texto, mais adulto? Isso não é presídio infantil. Era, de alguma forma. Falaram para ela que a mulherada, muito tempo trancafiada, volta para o útero. Para a infância. Algumas presas chupam chupetas. Lacinhos débeis na cabeça. Pelo menos, agora, ora, não haverá diferença entre a gente. Colocará sua professora nos braços. E ninará (FREIRE, 2010, p. 139). A passagem demonstra a inversão de papéis entre a adolescente e professorapresidiária. Se antes, a adolescente era tratada como criança, no discurso acima assume outro lugar, “Colocará sua professora nos braços. E ninará.” Além disso, é reveladora da condição carcerária feminina – a infantilização que toma conta das identidades das mulheres em cárcere. A narrativa em destaque, portanto, explora as condições de violência, familiar e social, às quais as Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014 14 FRANCO personagens são sujeitadas, integrando-as a três dispositivos autoritários (escola, família, justiça) que buscam de todas as maneiras emudecer seus sentimentos. E esse aspecto é o ponto de divergência entre os contos de Marcelino Freire e em discussão neste artigo. O conto Declaração, como o próprio título emblematiza, configurase como um discurso de afirmação amorosa que agrega a identidade homossexual à sua verbalização. A declaração, situada no campo semântico da relação amorosa, consubstanciase à revelação das vontades cerceadas pelos dispositivos sociais. Quando a aluna sobe ao palco para se apresentar às presas, expressa sua condição de subjetividade (apaixonada pela professora) e tal afirmação vem atravessada pelos elementos corporais. Coraçãozão na mão. Enxergou, de longe, o olhar da professora. Ao que parece, tranquila. Talvez uma cicatriz ou outra. Ainda mais bonita. Minha querida. Vim aqui para gritar. O meu amor, para todo o sempre, meu amor, seu juiz, sem fim. Ninguém consegue segurar esse motim (FREIRE, 2010, p.140). A primeira frase, metaforicamente, expressa a ansiedade amplificada da alunaadolescente (coraçãozão), no espaço-corpo em que esta sensação é delineada. Na continuidade das ações, a cicatriz – reveladora não somente de marcas físicas, mas também, das condições adversas às quais a professora foi submetida – sinaliza as adversidades. O passar do tempo e imposição aos maus tratos do cárcere não diminuiu sua beleza, ao contrário, é reiterada pelo advérbio ainda. Ou seja, embora presa, no espaço violento do cárcere, marcada pelas cicatrizes, a beleza sobrevive. E o grito de amor e de afirmação é, finalmente, enunciado. Inclusive para as autoridades que normatizam as relações amorosas (“seu juiz”). A frase final do conto pode ser compreendida como metáfora para o “entrelaçamento” amoroso entre as duas iguais, como sinalizou a adolescente na passagem anterior (“Pelo menos, agora, ora, REDISCO não haverá diferença entre a gente”) e na diferença se reconhecem. O motim, substantivo que caracteriza um ato de indisciplina, um levante contra as autoridades, é utilizado aqui como expressão de resistência a um espaço patriarcal, autoritário e que não aceita corpos, identidades e sexualidades que não possam ser enquadradas em cárceres sociais ou discursivos. Laços feitos e desfeitos As considerações expostas partem de um projeto inicial de pesquisa sobre narrativas (a princípio romances) em língua portuguesa que apresentem em seu enredo relações homossexuais femininas. Como procurei ressaltar no início do artigo, a configuração do corpo feminino e das relações homoafetivas observados na literatura brasileira tiveram exposição na estética realista-naturalista em que as teses científicas “determinavam” linguisticamente, inclusive, a composição desse quadro. Não obstante, como revela Peter Fry, as personagens Pombinha e Léonie sejam tratadas com simpatia e compreensão no romance de Aluísio Azevedo, o autor indica indiretamente, através delas, que há apenas dois caminhos possíveis para as mulheres do cortiço: casar-se e continuar a vida produzindo filhos e lavando roupa para as madames ou ascender socialmente como Bertoleza. No caso da dupla de personagens, fogem à regra ao serem associadas à prostituição e, principalmente, no fato do autor representar a lógica da prostituição. Conforme Fry (1982, p.41): (…) é a visão que elas tem dos homens que as distingue das outras mulheres do cortiço. Tanto Léonie quanto Pombinha invertem as relações de poder que se supõe, convencionalmente, existirem entre os sexos. Pombinha fica convencida da superioridade do seu sexo sobre os homens que são apenas escravos. Ou seja, a relação homoafetiva que se estabelece entre Pombinha e Léonie revela a rejeição à relação com os homens em Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014 ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS detrimento da amizade entre as duas e, também, da satisfação sexual que encontram entre si. O romance de Aluísio Azevedo, de certa forma, guardadas as ressalvas temporais, abre para a possibilidade de exploração da temática, em outras vertentes, conforme enunciamos: As meninas, de Lygia F. Telles, Duas iguais, de Cíntia Moscovich, Efeiro Urano, de Fernanda Youg, foram alguns dos exemplos que podem ser revelados. Detive-me à exploração dos contos de Marcelino Freire para, em função do curto espaço desse artigo, discutir a configuração não somente do corpo feminino e lésbico na narrativa contemporânea, mas sobretudo, para refletir sobre seus entrelaçamentos discursivos e relações de poder, cujas narrativas acabam por constituir. Em ambos os contos, há o posicionamento das mulheres em sua compreensão identitária (mais evidente no monólogo não dito da mãe, em Minha flor) e sua colocação nos espaços de poder sociais (a família, a escola e a casa de correção). Há o conflito interno no momento de se colocarem diante da sociedade que resulta ou no silenciamento ou no enfrentamento. De toda forma, configuram-se como entrelaçamentos discursivos dos corpos iguais em situações divergentes, nas quais a liberdade do corpo transforma-se em discurso individual ou coletivo para a expressão de si. Referências AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 33 ed. 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Em nosso pano de fundo está a transmutação das línguas de madeira em línguas de vento e o modo como isso, atrelado às rupturas políticas e teóricas da época, provoca uma série de descontinuidades no interior da disciplina, exigindo que a Análise do Discurso se volte às novas materialidades discursivas e apure caminhos de analisá-las. É a fim de demonstrar um dos caminhos possíveis que este artigo se apresenta. Para tanto, estaremos detidos à análise de um enunciado recentemente publicado: interessa-nos empreender sua análise a partir do roteiro oferecido por uma ordem do olhar, fazendo trabalhar uma abordagem discursiva que aceita o aparato semiológico na discussão sobre imagem. Nesse sentido, este é um artigo que faz trabalhar a teoria mediante sua aplicação analítica, recorrendo às atuais discussões de Jean-Jacques Courtine sobre discurso, imagem e memória, bem como às leituras que daí decorrem. Palavras-chave: Discurso, imagem, memória, semiologia. Résumé: Où nous ammène l’ ordre du regard? Sémiologie et intericonicité dans le discours publicitaire. Cet article a comme point de départ les inquietudes qui perturbent le quadre téorique et méthodologique de l’Analyse française du Discours dès la décennie de 80. Dans notre arrière plan il y a la transmutation des langues de bois en langues de vent et la façon dont, associés aux ruptures politiques et téoriques de l’époque, celle-ci provoque une série de discontinuités à l’intérieur de la discipline, en exigeant que l’Analyse du Discours se tourne vers les nouvelles matérialités discoursives et sélectionne des chemins pour les analyser. C’est avec l’objectif de démontrer l’une des voies possibles que cet article se présente. Pour cela, nous analyserons un énoncé récemment publié: nous nous intéresserons à entreprendre son analyse à partir du manuscrit présenté par une ordre du regard, en faisant travailler une approche discursive qui accepte l’appareil sémiologique dans la discursion à propos de l’image. En ce sens, le présent article fait travailler la théorie à travers son application analytique, en faisant appel aux actuelles discussions de Jean-Jacques Courtine à propos du discours, de l’image et de la mémoire, ainsi que des lectures qui en résultent. Mots-Clefs: Discours, image, mémoire, sémiologie. REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 17 BRAGA Como podem signos, veiculados pela imagem, pela fala ou pela escrita, pôr multidões em movimento? Eis o que ainda constitui um mistério para as ciências humanas. Régis Debray Já não é novidade que estamos, todos nós, analistas do discurso, num momento que resgata o espírito dos anos 80: momento de deslocamentos, rupturas e desafios. Há, talvez uma motivação, talvez um desconforto, que parte não apenas do caráter sincrético que os discursos assumem em sua produção, mas também dos caminhos que, possivelmente, nos levariam à sua análise. Os discursos que se expõem, hoje, aos nossos olhos, não trazem, no entanto, tamanho ineditismo. Em 68, ano que antecede a concepção de uma Análise do Discurso enquanto disciplina, o Maio de 68 já anunciava os últimos suspiros de uma língua de madeira. O movimento configurava-se como um momento de transição, a partir do qual as esferas da mídia, da política e do capitalismo fariam funcionar, de modo cada vez mais acelerado, uma midiatização do discurso político, ou, ainda, uma espetacularização, segundo a fórmula de Guy Debord (1997), do discurso político. A revolta estudantil já não era uma revolução midiatizada? Courtine bem o dirá que sim: tratava-se, segundo ele, “das núpcias entre Marx e a Coca-Cola [...], de um recobrimento das discursividades políticas tradicionais pelas formas breves, vivas e efêmeras do discurso publicitário” (2011, p. 147). Do mesmo modo, é nesse momento que o Estruturalismo francês, imbuído de todo o poder científico depositado na Linguística, resgatava o projeto saussureano de uma Semiologia cuja missão seria, como diz a tão repetida passagem do Curso de Linguística Geral, “estudar o funcionamento dos signos no seio da vida social” ([1916] 2006, p. 24). Segundo Courtine (2009), tal projeto deve ser pensando mediante as transformações tecnológicas que se assistia à época, mais precisamente no que diz respeito às transformações sofridas pelo campo das telecomunicações num contexto pós-guerra e REDISCO seus efeitos no interior de uma cultura de massa. O extensivo funcionamento das mídias audiovisuais inaugurava uma modalidade de transmissão de informação que já não se restringia à voz, mas se estendia às imagens. Não por acaso, é nesse momento que Roland Barthes, investido do método linguístico e do caráter científico então oferecido por ele, estará preocupado em abordar o funcionamento das imagens da imprensa no interior de uma sociedade de consumo, numa cultura de massa. Para Courtine (2009), a criação da revista Communications – que nasceu, em 1961, com o propósito de fazer a crítica da comunicação de massa – bem como os textos que Barthes oferece, nesse período, à análise de imagens – A mensagem fotográfica, de 1961 e A retórica das imagens, de 1964 –, nada mais era do que um reflexo da incursão das mídias audiovisuais de comunicação nas esferas pública e privada. Anos depois, durante a década de 80, a revolução audiovisual, potencializada pela grande mídia, colocaria em xeque o objeto privilegiado da Análise do Discurso, isto é, o discurso político verbalmente materializado. A incorporação da linguagem publicitária na linguagem política e uma composição discursiva cada vez mais heterogênea instauravam outra discursividade, na qual a grande mídia tinha papel central: instalava-se o reinado das imagens, de modo que os textos recebiam um tratamento sincrético, fazendo com que o discurso verbal desse lugar a materialidades de natureza diversas. Assim, era chegado o tempo de diminuir o abismo entre a vida e a ciência, atentando, nas análises, para a produção e o funcionamento das línguas de vento que já se apresentavam no mundo: “as novas materialidades do mundo pós-moderno que se concretizavam no discurso” (GREGOLIN, 2008, p. 27). Os últimos textos de Pêcheux refletiam essa preocupação: afinal, “em que pé estamos em relação a Barthes?” ([1983] 2007). É nesse momento, ao final da década de 80, que Courtine, atento à mutação das materialidades discursivas, retomará o termo semiologia a fim de abrir caminhos para a análise dos discursos compostos por sistemas semióticos verbais e não verbais levando em Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR? conta sua dimensão histórica. Para tanto, Courtine partia de uma crítica à tradição saussureana, “que derivou para uma semiótica a-histórica e formal, preocupada unicamente com a dimensão textual dos signos” (COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 15, nota 23). Assim, o projeto de uma Semiologia Histórica, antes de resgatar uma tradição saussureana, como o fez Barthes, parte de uma tradição semiológica médica e da emergência do paradigma indiciário de que fala Ginzburg (1989), a fim de estender o alcance da visada discursiva na medida em que renegocia seus limites e seus alcances. Atento a esse trajeto, este artigo se apresenta com o intuito de ampliar algumas dessas discussões mediante sua aplicação analítica. Empreenderemos a análise de um texto publicitário atual, sincrético, composto por mais de um sistema semiótico. 18 Antes de colocá-lo, no entanto, como elemento capaz de ratificar discussões teóricas postas anteriormente, faremos o caminho inverso: apresentaremos o texto e seguiremos sua análise a partir do roteiro oferecido por uma ordem do olhar, discutindo a teoria em paralelo, a depender das solicitações colocadas pela própria análise. Para tanto, partiremos de uma abordagem discursiva que aceita o aparato semiológico na discussão sobre imagem. Nesse sentido, recorreremos não apenas às discussões de Courtine sobre discurso, imagem e memória – uma vez que elas já se assentam sob as atuais materialidades discursivas –, mas também a algumas discussões traçadas por Roland Barthes, deixando em suspenso um certo excesso estruturalista e tomando suas discussões enquanto hipóteses, medindo sua possível aplicabilidade aos textos atuais. ORIGEM É RIQUEZA? Plastic Dreams: Melissa Magazine, nº 1, 2009. REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 19 O texto apresentado na imagem foi veiculado por um catálogo de moda durante o inverno de 2009. O catálogo – que, nesta edição, intitula-se Afro Mania – se chama Plastic Dreams e é produzida pela Melissa, a fim de divulgar sua coleção e as inspirações das quais é fruto1 Por isso, antes de mais nada, é preciso chamar a atenção para os gêneros que o texto congrega: trata-se de uma revista publicitária, de modo que as esferas da publicidade e do jornalismo aparecem, aqui, num certo entrelaçamento discursivo. Essa convergência de gêneros resvala numa espécie de apagamento da estrutura publicitária comum: o que há, nesse texto, não é a estrutura de um anúncio, mas a estrutura de uma grande matéria feita para uma determinada mídia impressa que traz, por sua vez, como pano de fundo (e não mais que isso), o produto a ser vendido. Há um desejo de comercializar sem, no entanto, deixar-se entrever enquanto publicidade. Essa miscigenação discursiva – que nos deixa antever, à esteira de Courtine (2008), o estatuto liquefeito dos discursos contemporâneos – não enfraquece, entretanto, o caráter publicitário do texto. Ao contrário disso, o tom oferecido pela matéria publicitária, isto é, o tom de um certo jornalismo de entretenimento, busca aguçar, ainda mais, o desejo de consumo, uma vez que sua credibilidade se assenta sob os moldes da verdade jornalística, reiterando certa despretensão publicitária na medida em que a torna sutil. A posição marcada pela revista ratifica, então, a ideia de que a mídia, ou melhor, o medium, vai melhor funcionar quanto mais ele apaga sua condição de meio, porque “o bom mensageiro é o que desaparece atrás de sua mensagem, como o anjo da Anunciação que se eclipsa imediatamente após ter aparecido” (DEBRAY, 1995, p. 14). 1 Não apenas o texto em destaque, mas toda a revista está disponível em: <http://disb5npyjfxc3.cloudfront.net/uploads/magazine /1/melissa-afromania.pdf/>. Acesso em 04 set. 2010. REDISCO BRAGA Que subjetividades desenham os detalhes? Da observação acima, que lança um rápido olhar sobre o modo de produção e recepção do texto, passamos a olhar, mais atentamente, para sua composição propriamente dita. Percebe-se que existe uma ordem do olhar que nos dirige, primeiramente, ao rosto da modelo e, de lá, estende nossos olhos ao colo, às pernas, aos braços, fazendo-nos atentar à coloração de sua pele, intensificada pela luz que nela incide. Os tons usados evidenciam não apenas uma pele negra, mas evidenciam, do mesmo modo, um cenário negro. Pela coloração, a pele da modelo se mistura ao cenário e ao ambiente rural que ele anuncia. Há uma simbiose entre a pele negra e o ambiente criado para a fotografia: homem e natureza se (con)fundem, entram numa fusão em que não se sabe ao certo onde termina o humano e começa o ambiente físico, a terra, o chão. São elementos que parecem fazer parte do mesmo domínio. É a pele de ouro marrom, como bem diria Caetano2. Dessa homogeneidade de cores evidenciadas pela luz, nossos olhos se estendem pelo que se apresenta enquanto ruptura: o corpo da modelo, repleto de detalhes, estampas e acessórios, parece saltar do papel. A fim de seguir a proposta de Courtine no que diz respeito a uma Semiologia Histórica, partimos, então, às particularidades da composição textual, assim como propõe Ginzburg (1989) ao falar de um paradigma indiciário. O intuito é rastrear esses sintomas – como bem o faria um médico ao observar os sinais expressos na superfície corporal – em busca de diagnosticar os sentidos que produzem, as subjetividades que expressam. Passeamos os olhos, então, em busca desses sinais, a fim de detectar que detalhes do texto carregariam o rótulo de negligenciável. Nesse empreendimento, chegamos não exatamente aos acessórios de madeira e metal que se espalham pela modelo, mas, mais precisamente, detemos-nos ao modo com que as peças parecem ser fabricadas e ao formato que assumem. 2 Referência à música Tigresa, de Caetano Veloso. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR? Supondo ser feito artesanalmente, de modo rústico, a modelo traz, ao pescoço, um pingente que sugere tanto o formato do continente africano, quanto o formato do Brasil. O formato do pingente flutua nessa ambiguidade e parece funcionar como uma espécie de etiqueta, sugerindo uma produção feita além-mar, entre África e Brasil. Assim, a Melissa recorre ao formato do continente africano para indicar a busca de uma origem e, assim, fazer frente a um processo de globalização que procede numa tentativa de homogeneização cultural. Ao mesmo tempo, recorre ao formato do mapa brasileiro para indicar uma resignificação dessa origem aos moldes atuais. Além disso, há peças em metal dourado que recobrem o pingente em madeira. Seria ouro? Seria, quiçá, o ouro produzido na África do Sul, um dos maiores exportadores desse mineral do mundo? Assim como a apresentação da peça em madeira, o acessório em ouro também não parece ter recebido nenhum trabalho delicado de lapidação, configura-se como um elemento bruto. Essa rusticidade na configuração dos acessórios nos remete, facilmente, à construção midiática que temos do continente africano. A identidade cultural africana criada (e exposta) pela grande mídia nada mais é do que a identidade de um povo assolado pela pobreza, pela incivilidade, pelo animalesco. Do mesmo modo, as argolas que envolvem seu pescoço trazem à tona uma tradição milenar, conhecida não só entre as mulheres africanas, mas também entre as mulheres asiáticas. Tais argolas se configuram como um traço que delineia uma subjetividade, como proporá o olhar de Courtine (COURTINE; HAROCHE, 1988), ao retomar Ginzburg (1989). Às mulheres que fazem uso dessa prática – que não se sabe ao certo onde, quando ou por quais motivos nasceu – convencionou-se atribuir o nome de mulheres-girafas, construindo uma espécie de zooide que busca associar, diretamente, a aparência dessas mulheres à aparência animal, não apenas pelo longo pescoço, mas também pelo andar altivo que as argolas exigem. Não por acaso, a revista Marie Claire, ao fazer REDISCO 20 uma reportagem sobre essas comunidades, denominou-as de zoológico de mulheres3. Investigando, então, os detalhes que se dão a ver na extensão do texto, chegamos ao desenho de uma subjetividade: o modo artesanal e rústico com que foram produzidos os acessórios, o ouro usado na confecção do pingente, as argolas envoltas ao pescoço e a própria denominação que recebem as mulheres que lançam mão de seu uso são indícios que produzem uma identidade africana rural, animalizada, incivilizada, rude. Identidade atemporal, que se manifesta e emerge sempre que se fala de África. Assim, partindo dessa subjetividade, é possível fazer o caminho inverso para perceber que é no paradigma indiciário que estamos nos detendo quando ressaltamos sua produção, mais precisamente ao modo como Courtine o retoma no empreendimento de uma Semiologia Histórica. O trabalho de Ginzburg privilegia uma perspectiva de identificação, a do médico, do fisiognomonista, do conhecedor de quadros, do detective. Queremos insistir aqui também na dimensão da expressão; tentar agarrar, para além dos traços imóveis, o movimento de uma subjectividade; e colocar assim, a partir dos signos que se manifestam à superfície do corpo, a questão da identidade individual que os exprimiu e não apenas a da identificação que eles podem permitir [...]. O trabalho de Ginzburg abre por outro lado a perspectiva de uma semiologia histórica. Comporta elementos e sugestões que permitem voltar às próprias origens dos signos [...]. E de tornar a dar assim vida a um projeto semiológico que derivou para uma semiótica a-histórica e formal, preocupada unicamente com a dimensão textual dos signos (COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 15, nota 23, grifo nosso). 3 Mianmá: zoológico de mulheres. Reportagem publicada em julho de 1996. Disponível em: <http://marieclaire.globo.com/edic/ed114/rep_mulhergi rafa.htm>. Acesso em: 05 jul. 2010. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 21 Assim, no momento em que buscamos realçar a configuração de uma subjetividade que brotava dos sinais oferecidos pelo texto, estávamos detidos no modo como Courtine faz uso do paradigma indiciário, cuja característica recai sobre a capacidade humana de auscultar os sinais que se manifestam numa torção íntima (e ínfima) como forma de se chegar a uma realidade maior e mais complexa (GINZBURG, 1989). Esse paradigma oferece, segundo Courtine, a possibilidade de revitalizar um empreendimento semiológico que esteja comprometido com a ampliação de uma visada discursiva. Se partirmos, então, da citação acima, em geral, e das críticas que a encerram, em particular, poderíamos dizer, grosso modo, que a proposta de uma Semiologia Histórica, antes de estar ligada à concepção de uma disciplina, está ligada à construção de uma perspectiva teórica que carrega o desejo não apenas de devolver a espessura histórica dos discursos, mas, além disso, de considerar uma unidade textual baseada no caráter sincrético que a constrói. Essa abertura não significa, no entanto, distanciar-se dos preceitos postulados pela Análise do Discurso. Piovezani (2009) fala de uma reformulação conservadora, na medida em que a perspectiva adotada por Courtine faz irromper novas questões sobre a composição, a historicidade e o funcionamento do discurso contemporâneo. Que imagens desenham os detalhes? Ainda atentos aos detalhes, é preciso questionar sobre as imagens que nos surgem no momento em que analisamos as minúcias que compõem o texto em questão. É preciso indagar a que imagens nos remetem as estampas que forjam a pele da modelo, o modo como seu cabelo se apresenta, as argolas ao pescoço, os acessórios rústicos, ou, ainda, a própria expressão corporal da modelo, isto é, a maneira com que a mesma se desdobra pela extensão do texto, sentada e com as mãos ao chão. Que imagens fazem parte de nosso catálogo interno e que trazemos à tona no momento em que olhamos REDISCO BRAGA esse texto? Que relações estabelecem as imagens que produzimos e as imagens que o mundo nos oferece? Em 1981, quando da publicação de sua tese na Langages 62, Courtine propunha introduzir o conceito de memória discursiva na problemática do discurso a partir de sua leitura de Foucault, segundo o qual “um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados” (FOUCAULT, [1969] 2008, p. 110), o que nos permite pensar que uma formulação mantém, em suas margens, formulações coexistentes, às quais ela retoma, transforma, reformula, confronta. Assim, a formulação primeira produziria efeitos de memória em relação às formulações com as quais dialogava. Courtine distinguirá, então, que “a noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado” (2009, p. 105,106), fazendo ecoar, numa determinada conjuntura ideológica, a posição que convém assumir, levando-se em conta as coisas das quais nos lembramos e o modo como nos lembramos. É nesse jogo entre uma memória e sua irrupção na atualidade que se dá o funcionamento daquilo que Courtine dirá como sendo o efeito de memória. O efeito de memória estaria posto na relação entre interdiscurso e intradiscurso, isto é, na relação entre a formação de uma memória no fio do discurso – o interdiscurso – e a sua formulação na atualidade – o intradiscurso. Isto porque “os enunciados existem no tempo longo de uma memória, ao passo que as ‘formulações’ são tomadas no tempo curto da atualidade de uma enunciação” (COURTINE, 2009, p. 106). Atentando ao caráter semiológico presente no conceito de enunciado tal qual proposto por Foucault (GREGOLIN, 2008), é possível afirmar que a noção de memória discursiva formulada por Courtine pode apresentar-se tanto no interior de práticas verbais, quanto no interior de práticas não verbais. Por essa razão, e dado o estado liquefeito das discursividades contemporâneas, “a noção de memória foi e permanece ainda aqui um investimento interpretativo de grande alcance, tanto no que concerne às palavras quanto as imagens” (COURTINE, 2008, p. 17). Ainda segundo Courtine (2008), é fundamental que saibamos, pois, de que modo funciona uma Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR? memória das imagens, bem como de que modo essa memória atravessa, organiza e atribui sentidos a uma imagem vista, reconhecida e compartilhada pelos sujeitos de uma dada cultural visual. É dessa preocupação que decorre o conceito de intericonicidade, que parte do pressuposto de que “toda imagem se inscreve em uma cultura visual, e essa cultura visual supõe a existência, para o indivíduo, de uma memória visual, de uma memória das imagens, toda imagem tem um eco” (COURTINE, 2005)4. Assim, se partimos dessa discussão, é possível perceber que a imagem trazida pelo texto faz surgir outras imagens, numa cadeia enunciativa sem início nem fim. Incide, sobre o texto, uma intericonicidade que nos remete à existência histórica do enunciado, deixando-nos saber que toda imagem tem um eco, que toda imagem está inscrita numa cultura visual e que retém uma memória discursiva na sua produção, seja ela individual ou coletiva. Ao apresentar-se numa certa configuração, a imagem trazida pelo texto nos faz surgir a imagem de um africano selvagem, animalizado pelo meio, intimamente relacionado à ideia do safári. Imagens com as quais nos deparamos em filmes que se passam no continente africano, em matérias televisivas que falam sobre a fome na África, em documentários destinados a expor a cultura do continente. A modelo não apenas porta ao corpo a pele de felinos selvagens (as listas dos tigres, as pintas escuras das onças), como também parece posicionar-se como um deles: sentada ao chão de um ambiente rural, onde também apoia suas mãos. Surge-nos, daqui, a imagem de animais ferinos: leões, tigres, zebras, leopardos, onças. Surge-nos a imagem de uma África bruta, ruralizada pelo barro do cenário, pela terra em que se expõe a modelo, pelas peles animais que assume como sua, pelos cabelos ao vento, pelos acessórios que porta sem qualquer trabalho de lapidação. É no próprio safári que se apresenta a modelo: 4 Registro audiovisual, ausência de página. COURTINE, Jean-Jacques; MILANEZ, Nilton. Intericonicidade: entre(vista) com Jean-Jacques Courtine. Registro audiovisual, 2005. Disponível em: <http://www.grudiocorpo.blogspot.com/>. Acesso em: 06 jun. 2009. REDISCO 22 mãos ao chão, animais no corpo. Assim, a imagem da África enquanto ambiente selvagem estende-se, aqui, aos africanos, que, também animalizados, passa-nos a imagem de um verdadeiro safári humano. Todas essas imagens, que nos surgem no exato momento em que nos deparamos com o texto em questão, mantém estreita relação umas com as outras: uma relação de memória, memória das imagens: intericonicidade. Desse modo, percebemos que as imagens trazidas pela publicidade se confundem ao mesmo tempo em que alimentam o estoque de imagens que carregamos na memória, imagens que, corriqueiramente, são construídas pelos sujeitos de nossa cultura visual sobre a África. Para atentar a essa articulação, entretanto, não é preciso que tenhamos estado num safári real, uma vez que estamos falando de uma história das imagens construída no encontro entre a história das imagens vistas e a história das imagens sugeridas: A noção de intericonicidade é assim uma noção complexa, porque ela supõe a relação entre imagens externas, mas também entre imagens internas, as imagens da lembrança, as imagens de rememoração, as imagens das impressões visuais armazenadas pelo indivíduo. Não há imagens que não faça ressurgir em nós outras imagens, quer essas imagens tenham sido já vistas ou simplesmente imaginadas (COURTINE, 2011, p. 160, 161, grifo nosso). Assim, o conceito de intericonicidade não está posto no modo como as imagens são produzidas no mundo, mas sim no modo como nos relacionamos como elas, no modo como abastecemos nossa memória imagética de imagens produzidas externamente, ao mesmo tempo em que acionamos a relação dessas imagens com aquelas que nós mesmos produzimos, imaginamos ou apenas sonhamos. É nesse jogo que se constitui a relação de que fala Courtine. Tal relação tem raízes nos trabalhos sobre iconologia de Hans Belting (2006), que, numa abordagem antropológica, propõe que as “representações internas e externas, ou imagens mentais e físicas, devem ser consideradas como dois Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 23 BRAGA lados de uma mesma moeda”5, uma vez que a interação entre imagens endógenas e exógenas seria uma atividade intrínseca ao homem. Sabemos que todos temos ou que possuímos imagens, que elas vivem em nossos corpos ou em nossos sonhos e esperam para serem convocadas por nossos corpos a aparecer. [...] ao mesmo tempo possuímos e produzimos imagens. Em cada caso, corpos (isto é, cérebro) servem como uma mídia viva que nos faz perceber, projetar ou lembrar imagens, o que também permite a nossa imaginação censurá-las ou transformá-las (BELTING, 2006). Percebemos, pois, que tanto na perspectiva discursiva proposta por Courtine, quanto na perspectiva antropológica de Belting, é com o corpo que estamos lindando: o corpo que interpreta, produz e serve de suporte às imagens, diria Courtine (2005); ou o corpo que possui, convoca, produz, projeta, lembra, imagina, censura e transforma imagens, diria Belting (2006). Enquanto sujeitos de uma cultura visual, somos constantemente atravessados por imagens que alimentam nossa memória, na mesma medida em que somos produtores e críticos, segundo Belting (2006), dessas imagens, já que cabe, ao sujeito, a possibilidade de censurá-las ou transformá-las a partir da memória individual ou coletiva, num sempre enlace entre esquecimento e lembrança. Do mesmo modo, é a partir do corpo que podemos pensar a relação estabelecida entre palavras e imagens. Segundo Belting: As palavras estimulam nossa imaginação, enquanto a imaginação, por sua vez, transforma as palavras nas imagens que elas significam. Neste caso, é a linguagem que serve como um meio para transmitir imagens. Mas aqui também ela necessita do nosso corpo para preenchê-las com 5 Referência eletrônica, ausência de página. BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à Iconologia. Revista Ghrebh, n. 8, jul. 2006. Disponível em: <http://revista.cisc.org.br/ghrebh8/artigo.php?dir=artig os&id=belting_1>. Acesso em 15 jul. 2010. REDISCO experiências pessoais (BELTING, 2006). e significado Tomando o corpo enquanto mídia viva, Belting (2006) ressalta sua capacidade em ilustrar ou preencher de significados imagéticos uma palavra, colocando-as como estruturas propulsoras de imagens, depósitos da imaginação, alocações vazias que esperam por significados. A linguagem seria, dessa forma, um meio condutor para que o corpo possa ativar, produzir ou despertar imagens, que, por sua vez, não contam com formatações pré-concebidas, mas colocam em jogo a relação do sujeito com a significação e suas inúmeras possibilidades de sentido, fazendo-as sempre singulares. Estamos falando, portanto, de uma mudança de terreno proporcionada pelo corpo, que condensa em carne o verbo. Se pensamos em nosso texto, poderíamos nos questionar sobre as imagens que nos surgem quando escutamos, escrevemos ou simplesmente nos deparamos com a palavra África. Em que tipo de imagem nossos corpos transmutam essa palavra? De que modo preenchemos com carne a fome do verbo? O que nos diz sua plenitude semiológica? Diante da análise empreendida pelos tópicos anteriores – nos quais nos referíamos não apenas às subjetividades traçadas pelos indícios encontrados no texto, mas também às imagens com as quais esses indícios se relacionam – percebemos que toda a configuração textual – o cenário rústico, as peles de animais, os acessórios brutos, as argolas ao pescoço, o cabelo armado – nos remete à ideia de uma África animalizada. Somos tomados pela memória de um continente pobre, selvagem, bestial, faminto. Todos esses sinais são, no entanto, resignificados por um segundo sistema semiótico que constitui, igualmente, o texto em questão: ORIGEM É RIQUEZA: uma verdadeira princesa afro-brasileira vivencia aqui uma realidade lúdica cuja origem e identidade provém do plástico. Luxo pop, os novos modelos da coleção de inverno 2009 extraem sua nobreza da sofisticação Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR? tecnológica, e a busca por sua essência passa pelo que há de mais fashion e moderno no design hoje. Acessórios em madeira, palha e metal ajudam a desenhar o look tribal-chic, feito de muitas estampas e cores quentes, quebrando os tons naturais. Nos pés, cobre, prata e vermelho esquentam ainda mais a moda da estação. Desse modo, na conjunção com um segundo sistema semiótico, o texto abre cortinas para outra possibilidade de sentido, que se apresenta na tentativa de minar qualquer significação que não seja aquela préestabelecida pelo roteiro publicitário. Os índices trazidos pelo texto assumem, no encontro com a linguagem verbal, outros papéis. A origem já não se assenta sob a memória ocidental de uma mama-África pobre e selvagem, mas numa riqueza cultural, que, resgatada pela mídia e pela moda, recebe um lugar de nobreza, embalada por uma essência que passa pelo que há de mais fashion e moderno no design hoje. Os acessórios em madeira, palha e metal, dos quais apontávamos a ausência do trabalho de lapidação, ajudam a desenhar o look tribalchic, de modo que já não reconhecemos, ali, uma rusticidade na confecção, mas uma estilização cultural ao sabor do mercado. Converte-se, pois, a tradição em riqueza: a nobreza está na essência, a cultural tribal é o que há de mais sofisticado. Resgata-se a memória de uma África primitiva para fazer emergir uma nova discursividade. Sofisticação, origem, riqueza e identidade são esferas que se coadunam, aqui, mediante o trânsito de símbolos culturais, que, absolvidos pelo mercado, desterritorializam-se e assumem outros sentidos. Assim, é possível afirmar que a linguagem verbal é posta, aqui, numa tentativa de fixar determinados sentidos para uma imagem que é, por natureza, polissêmica. Mais precisamente, numa tentativa de subverter os sentidos que possivelmente seriam construídos num primeiro olhar sobre o texto. Talvez tenhamos, então, uma espécie de fixação à esteira do que propõe Barthes ([1964] 1990, p. 32), já que essa linguagem verbal aparece “de modo a combater o terror dos signos incertos”. O verbo retém, aqui, a função de inaugurar uma possibilidade de REDISCO 24 sentido almejada pela publicidade e não totalmente concretizada pela imagem. Tratase de uma fixação que não sanciona o dado – já que este dado carrega uma cadeia flutuante de significados – mas controla uma polissemia constitutiva, na tentativa de que apenas um sentido seja legível ao sujeito leitor: aquele que estabelece sofisticação e riqueza na memória de uma África selvagem. Desse modo, tomado agora em sua plenitude semiológica, o texto seria um acontecimento discursivo que procura um outro lugar para a recorrente animalização midiática do africano. Nessa tentativa, no entanto, o texto retorna ao discurso do africano enquanto selvagem e produz um batimento no interior de sua significação. Isto porque, ao partir de uma memória a fim de resignificá-la, o texto acaba por trabalhar na manutenção dos índices que funcionam na sustentação desse discurso: as peles de animais selvagens, o penteado da modelo, os acessórios que porta, o ambiente criado. Afinal, como trazer à tona um discurso sobre origem, sem exaltar a imagem da mamaÁfrica?6 E, por conseguinte, como falar dessa mãe África sem remeter ao selvagem? Assim, ainda que a linguagem verbal atue na tentativa de controle dos sentidos, o caráter polissêmico da imagem deixa possibilidades em aberto. O resultado desse batimento, que faz chocar as significações que compõem o texto, vai concretizar-se de forma múltipla, a depender dos modos de recepção que o texto terá. Conclusão É na soma do seu olhar que eu vou me conhecer inteiro Chico Buarque Assim, é apenas quando nossos olhos finalmente chegam à apreensão do texto enquanto tal que se pode entrever uma análise global do objeto. No emaranhado de linguagens que o compõe, o texto não apanha 6 Referência à música Mama África, de Chico César, gravada em 1996. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014 25 uma decodificação totalizante no imediato momento em que é recebido pelo leitor. Ao nos depararmos com um texto, há uma ordem do olhar que emerge como roteiro de leitura e significação. Os olhos passeiam por seus componentes na medida em que os atribuem sentidos. Com isso, não estamos propondo analisar, à luz de uma abordagem estrutural, os elementos textuais enquanto unidades autônomas (BARTHES, [1961] 1990). Ao contrário disso, propomos analisar o encontro dos olhares que lançamos sobre um texto mediante sua inscrição na história, colocandoo numa série enunciativa, de modo que possamos, ao mesmo tempo, considerar o discurso em sua espessura histórica e tomá-lo sob as diversas formulações que o constitui. Desse modo, estamos contrapondo duas tradições semiológicas: por um lado, a tradição saussureana estrutural, da qual Barthes é herdeiro; e, por outro, uma tradição médica, retomada, atualmente, por Courtine, no empreendimento de uma Semiologia Histórica. Da primeira, ressaltamos a necessidade de considerá-la enquanto hipótese, a fim de que ela mesma possa nos responder até onde sua aplicação ainda se mantém produtiva aos objetos atuais. Na segunda, vislumbramos a possibilidade de renegociar os limites de uma visada discursiva no que diz respeito à análise das atuais modalidades do discurso e sua inscrição na história. Foi nessa ambivalência semiológica que tentamos fundamentar nossa análise, rastreando uma ordem do olhar que nos levou à análise de cada índice apresentado pelo texto, na tentativa de compreender de que modo o texto desenhava subjetividades, de que modo ele fazia emergir imagens com as quais dialogava e, principalmente, de que modo os olhares que lançamos sobre o texto deixava-nos entrever uma significação global. Na soma dos olhares de que fala Chico é que conhecemos o texto por inteiro7: trata-se de uma atualização dos símbolos culturais africanos no interior de uma sociedade capitalista, que industrializa uma memória na tentativa de resignificá-la e a massificá-la. Há uma plastificação cultural: uma verdadeira princesa afro-brasileira vivencia aqui uma 7 Referência à música Tanto amar, de 1981. REDISCO BRAGA realidade lúdica cuja origem e identidade provém do plástico. Afinal, não foi mesmo pelo plástico que ficou conhecida a Melissa? Do plástico enquanto material de confecção dos calçados à plastificação cultural é apenas a configuração de um deslocamento de sentido, a proposição do novo, a oferta de uma nova modelagem à memória. Memória que emerge, atualmente, a partir da visibilidade que não apenas o público negro brasileiro tem – a partir, principalmente, das políticas afirmativas –, mas também o continente africano, com toda a espetacularização em torno da Copa do Mundo de futebol, sediada pela África do Sul em 2010. Assim, os holofotes da mídia em geral se voltam à África. Em particular, os holofotes da moda, que enxergam aí uma oportunidade de absorver os símbolos culturais africanos e massificá-los em escala global. Referências BARTHES, Roland. [1961]. A mensagem fotográfica. In: _______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 1125. _______. [1964]. A retórica da imagem. In: _______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 27-43. BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à Iconologia. Revista Ghrebh, n. 8, jul. 2006. 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Cet article as l'intention académique d'enquêter le conte «El Cérebro Musical" de Cesar Aira, publié par les Editions Héloïse Cartoneira en 2007. On cherche à comprendre des questions esthétiques: la notion de beauté; les paradoxes spatiaux et temporels; la poursuite de la musicalité; la extrême superficialité des personnages féminins et la fin “théâtrale”. Nous cherchons à savoir comment est l'effet de maquillages de la fiction elle-même. Le scénario onirique et la poursuite de l'artificialité vont détruire l'alliance patriarcale de la "bonne écriture" d'un conte. Mots-clés: «El Cérebro Musical"; "Cesar Aira"; beauté; personnages féminins; maquillage; artificialité . A malescrevência de Aira Lá estava um polêmico conferencista no “Primer Encuentro de Literaturas Americanas”, realizado em 2010, em Rosário, desarticulando com sua fala as noções patriarcais habituais com as quais rotineiramente conferimos uma imagem de literatura nacional. Tratava-se de Cesar Aira: nascido em Coronel Pringles, escritor atual de sucesso no universo acadêmico das pesquisas contemporâneas; tradutor de Saint-Exupèry e especializado na poeta argentina Pizarnik. Aira falava-nos acerca do conceito de que uma literatura se põe (é apropriada) como nacional quando se pode dela falar mal. Defenderá uma complexa noção de “el gusto literario” que não pode ser colocado como anterioridade, universalidade, harmonização, e sim como um ato de fundação advindo como efeito de “recuperaciones” de uma crise que teria abalado a normalidade vigente, através de “la mala escritura”. Este gesto de mal escrever é colocado em contraposição ao que costumamos nomear classicamente como “bien écrire”1, e que geralmente é situado !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1 Lembremos do pequeno texto de Benjamin, chamado "Escrever bem": "[...] O bom escritor não diz mais do que pensa. E isso é muito importante. É sabido que o dizer não é apenas a expressão do pensamento, mas _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014! 28 como ação fundadora das literaturas representacionais dos países. Em Image I mémoire, Giorgio Agamben tece uma notável metáfora: “Beauté qui tombe”. Ocorreria um momento em que toda imagem de beleza, toda poesia, em sua elevação, repentinamente sofre uma queda, é imantada, magnetizada, por uma inversão vertical que Agamben chamará de um momento de “décréation”, uma quase suspensão entre o fazer e o não-fazer. Esta concepção do belo é a qual associo a Aira. Parece-me que, para Aira, o escritor qual um bel esprit é colocado em xeque; ocorre justamente uma inversão, onde o escritor deveria tentar antes de mais nada ser um agente de um mal-fazer. Aira propõe, então, uma dessubjetivação do retrato usual do escritor. Ele desvia, assim, da própria remissão etimológica à palavra escriba como aquele que bem escreve, o scribe, o copiste, aquele que bem copia, que o executa de modo bem feito, conforme trabalham José LuizDias, Alain Viala e outros tantos autores. Em outra entrevista, quando ele afirma seriamente que ninguém é obrigado a ler suas obras, seus contos, dando a entender que eles não são tão bem feitos quanto um clássico, está, por outro lado, dando a entender a malescrevência como uma potência dessubjetivadora, uma potencia de maquilagem, de sabotagem artificializante, dessublimadora, dos pilares estéticos que nos guiam uma noção do belo e !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! também a sua realização. Do mesmo modo, caminhar não é apenas a expressão do desejo de alcançar uma meta, mas também sua realização. Mas a natureza da realização - faça justiça à meta ou se perca, luxuriante e imprecisa, no desejo - depende do treinamento de quem está a caminho. Quanto mais tiver disciplina e evitar os movimentos supérfluos, desgastantes e oscilantes, tanto mais cada postura do corpo satisfará a si própria e tanto mais apropriada será a sua atuação. Ao mau escritor ocorrem muitas coisas, e nisso se gasta tanto quanto o mau corredor não treinado nos movimentos indolentes e gesticulados dos músculos. Mas justamente por isso, nunca pode dizer sobriamente o que pensa. É dom do bom escritor, com seu estilo, conceder ao pensamento o espetáculo oferecido por um corpo gracioso e bem treinado. Nunca diz mais do que pensou. Por isso, o seu escrito não reverte em favor dele mesmo, mas daquilo que quer dizer.[...]". BENJAMIN. Walter, "A imagem de Proust" in Magia e Técnica, Arte e Política, trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1996, pp.274, 275. GOMES da moral. Mas dirá que os “bons” já existem demais, há tantos bons livros, então, demoraríamos toda uma vida para ler todos os bons escritores. De modo que o que sobra, para quem quer escrever algo distinto e que faça algum efeito no presente vem a ser esta região maldita, ou, melhor digamos, “malescrita”. O belo, portanto, não pode estar associado mais ao bem-fazer, ou melhor, à uma certa feminilidade sensível do bem-fazer. Esta feminilidade dos artistas e artesãos delicados, em geral, em contraposição a uma construtiva, direta, objetiva linguagem máscula. O cérebro do escritor deverá, portanto, deixar de ser um cérebro racional – no sentido de meramente armadura da razão, da ordem, do bem, etc, excluindo-se a emoção da desordem, a melodia possível da imaginação que por exemplo Valèry enxergava em Da Vinci. O cérebro do escritor advém agora como “cérebro musical”. Lemos aqui a mescla entre razão e emoção, masculino e feminino, mal escrever e bem escrever, onde o velho receio do perigo musical ou do improviso dá lugar a uma circunstância melódica do saber, do narrar. Edward Said, em “Elaborações Musicais”, apontara para a dilatação do campo musical que ultrapassa e invade outros domínios não musicais, ou seja, a música deve ser afrontada como um campo mais amplo do que aquilo que acreditamos ser o próprio pensamento linguístico. É, simultaneamente, uma forma de pensamento, mas que, ao se abrir por vezes livremente para o universo do improviso, o devaneio da simultaneidade com a qual a composição se expõe pelo instrumento, por exemplo, nos ensina com mais frequência isto que Aira quer nos informar em seus contos. E o que Aira nos informa é a arbitrariedade e a errância dos elementos das histórias que conta, como acordes dissonantes ao acaso, navegando na partitura da ficção; ou digo melhor: o abandono musical da ancestral linearidade do logos é o que Aira alerta como captura necessária no pensamento do escritor. É deste modo que ressaltamos o conto “Cérebro Musical” que Aira publicou pelas edições Eloisa Cartonera, em 2007, e que, aqui, nos servirá de objeto de investigação. _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014 AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA ! Antes de mais nada, é preciso lembrar que a intenção de Aira ao publicar suas obras pelas Edições Eloisa Cartonera pode ser já um exemplo deste impulso à marginalidade e à exterioridade dos modelos vigentes que abrigam canonicamente as obras em geral bem escritas. Difícil associá-lo ao escopo de ostentar o sujeito que escreve como um bel esprit. Podemos perguntar: como pode um autor ser perfeita e exatamente um bel esprit quando seu nome de autor é repousado em um livro com capa de papelão reciclado? Quando seu objetivo é a “malescrevência”? Contudo, não é apenas uma questão isolada de assinatura em um veículo periférico. Aqui o associamos a Douglas Diegues, Daniel Link, Ricardo Piglia, Raúl Zurita, e outros. Não se trata de considerá-los, a todos eles, periféricos apenas pela qualidade “menor” das impressões de alguns de seus livros, ou pelo dado artesanal e primitivo da arte gráfica da capa, mas sim por se vincularem a bel prazer a um sistema editorial que, precisamente, não é em si sistemático; um sistema editorial que não se retrata totalmente como aparelho de publicação, que dessubjetiva este retrato possível do autor viril; um processo marginal de publicações que, justamente, não se vincula a um critério estabelecido de “bem fazer” com a qual as editoras mais comerciais, ou mais industriais, se valem para sublimar autores. A dessubjetivação pela indumentária O enredo do conto “El Cerebro Musical” começa com a observação detalhada do narrador: um garoto que está em um restaurante de um hotel, em um imaginável evento beneficente de doações de livros, em um provável sábado dos anos 50. Sua observação dá-se no entre lugar entre a austeridade e a desconfiança - ou seja, o lugar estrito, rigoroso, que o reprime como observador - entre seu pai (“com hábitos austeros”) e sua mãe (“com sua invencível desconfiança”). No fundo do salão, transportam-se caixas de livros recebidas em uma mesinha branca por uma personagem interessante, Sarita Subercaseaux, a pequena 29 mulher com cabelo penteado em feitio de ovo plumoso, rosto branco de pó de arroz e um vestido celeste. “En aquel entonces había reglas bastante estrictas com la indumentária” (AIRA, 2005, p.3). Desde a bela disposição da mesa, tudo remete a um tempo muito passado, como se os anos 50 remetessem, por sua vez, a um tempo mais longínquo e mais artificial. A billetera de Pushkin (famoso poeta russo que morreu em um duelo), de seu pai, reenvia-nos ao séc. XVIII. Lembro, assim, das críticas que Charles Baudelaire faz em pequeno um capítulo de “Sobre a Modernidade”, intitulado “Elogio da Maquilagem”. Baudelaire aponta a falsa concepção do séc. XVIII do belo associado à fecundidade que tem a contraditória sublimação da natureza como base do bem. Esta noção do belo, artificialmente, acaba fazendo-nos esquecer do horror do homem natural, da animalidade de onde viemos, pois a natureza é para Baudelaire infalivelmente hostil. Pegando a linha do enredo que Aira desenvolve neste conto, vemos uma teatralização que vai da austeridade do início de um conto um tanto áspero, em um ambiente pequeno burguês, ao onírico mais extremo e imprevisto, cheio de leveza e velocidade ao final do conto. O conto inicia neste rigoroso ambiente de livros encaixotados olhados por uma criança imaginativa e discorre as ações progressivamente rumo ao fascínio livre e sem rigor. Irá diluindo o rigor inicial até, por exemplo, testemunharmos uma anã alada que bota um ovo do tamanho de uma melancia. Y la enana alada, la gran libélula, después de cruzar varias veces con su clap-clap aterrorizante, cada vez más rápido, el espacio aéreo del teatro y chocar repetidamente contra el techo y las paredes, también se precipito a la boca del escenario, lo que dentro de todo era ló más razonable. La escenografía pequeño burguesa de la compañia de Leonor Rinaldi se la trago, y después hubo um derrumbe generalizado de bambalinas (AIRA, p.20). _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014! 30 Simplificadamente, da desordem do circo à exatidão demagógica do teatro burguês, posso afirmar que Aira vai aos bastidores do rigor, mostrando o que pode a fantasia e o fascínio por detrás da imaginação infantil. Mais que isto, ele denota, com paralela riqueza descritiva com a qual Baudelaire definia a Modernidade, que nossa tendência inebriante e harmonizadora de conferir virtudes é tãosomente sobrenatural, artificial ilusão. Nosso rigor mental conduz apenas à correção do universo natural; eis o que está no fim do conto, quando acaba mostrando um ovo equilibrado sobre um livro, que vem a ser a imagem simbólica da Biblioteca Municipal de Pringles. Ou seja, ele produz todo esforço descritivo que simula o caos, nosso pânico do que pode sair do “cérebro musical”, para transmutá-lo em uma adoração paradisíaca. Temos, ao final, a ordeira Biblioteca de Pringles e todo conto é, por um lado, apenas uma ingênua lenda de sua fundação. Mas se é nada além disso, nada há além disso, não há história além disso, não há sublimação de uma ou mais histórias; há apenas um abandono em cena, ou o fora de cena, o “obsceno”. E nada mais obsceno que o gesto de retratar o irretratável, narrar o que não há além... É aqui que vemos, quem sabe, o mal escrever como fundação, como maquilagem sobre a maquilagem, como força constituidora da identificação, do território da cidade. Ingenuamente, a selvageria se esconde sob o artifício da indumentária, a plumagem, a maquilagem, o cérebro rosa fosforescente qual um baú de memórias, mas que, de fato, guarda em seu interior as fantasias que assassinamos em nome da autossublimação.2 !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 2 No mesmo ano em que este conto foi publicado, pela Editorial Cartonera, o professor Raul Antelo escrevia acerca da estética do abandono em Aira: “(...) Não há espaço, nessa perspectiva de Aira, para a plenitude de uma segunda história, como em Piglia ou, em menor medida, em Bernardo Carvalho. O narrador já não conta uma fábula; ele limita-se a apresentar um esquema e, na medida do possível, apenas uma fórmula ou tão somente um procedimento. Sob esse ponto de vista, na estética do abandono é indispensável a beleza de indiferença reivindicada por Duchamp. Nela, o narrador, a rigor, não deve mais ter estilo inconfundível.(...)” (ANTELO, 2005, p.113) GOMES Quando Baudelaire, diagnosticando a artificialidade emergente do séc. XIX, explicava que o pó de arroz objetiva desaparecer as manchas informes que a natureza cria, aproximando o ser humano da estátua, está criticando o falso narcisismo sublimador da modernidade. Tudo que adorna o corpo de uma mulher – e aqui retomo a imagem de Sarita Subercaseaux que, reaparece subitamente no fim do conto, transformando o machado em livro, a arma em objeto positivo – faz parte dela mesma, diz Baudelaire. Ele está mostrando que a mulher, na condição de corpo feminino marcado pela responsabilidade do belo e da moral, não pode ser, poeticamente, separada de sua indumentária. E isto é menos uma crítica à vaidade feminina, obviamente, do que ao modo narcísico e superficial com o qual a modernidade se constituía na artificialidade aos olhos críticos de Baudelaire. Esta artificialidade é o que gerou o conto moderno, é o que, em geral, motiva tanto a literatura romântica quanto a realista; e está clara, ainda sobrevive, na descrição do protótipo da solteirona que é esta personagem de Aira. Mesmo que de personagem “plana”, no início do conto, ela passe a personagem “redonda”, ao final, como uma análise mais formalista observaria, não há interioridade nesta personagem. Ou melhor, não há uma interioridade que não seja exterioridade. É mais uma de suas personagens maquiadas que ali representam a superficialidade simbólica dos papéis que todos exercemos como sujeitos reduzidos a semiobjetos. Ela é a imagem mesma da esterilidade, como diz o conto, sua arrumação fria, objetificadora, remete à dessubjetivação pela indumentária e a maquilagem que ela se reduz. Pergunto: seu cabelo em forma de ovo plumoso contradiz ou não, afinal, a imagem final do ovo que ela tem nas mãos? Pois esperamos que ela o rompa, estamos ansiosos, no fim do conto, para saber o que há dentro do ovo, mas não há revelação maior que a superfície do próprio ovo sobre o livro. A Biblioteca de Pringles, como simbologia da tradição que se segue sem pensar, é mais importante que a revelação da imaginação. A verdade, enfim, está tradicionalmente na _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014 AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA ! Biblioteca como instituição máxima. Cabe ao leitor imaginar a significação do ovo, seu interior fantástico, porque como diria Clarice Lispector “o ovo é obvio”, o ovo é exterioridade plena. O ovo vem a ser antes a imagem da esterilidade do que a da fecundação. Tanto que o ovo deve ser “galado”, “chocado”, “cuidado”. Como dirá Simone Curi, estudando Lispector em sua tese: “o ovo é devir (...), a escrita é devir (...)” (CURI, 2001, p.149) Mas – e o ovo? Este é exatamente um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito é uma das instruções, estou tão cansada. Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar, o que me mataria de dor. Mas se ele for esquecido, se eu fizer o sacrifício de viver apenas a minha vida e esquecê-lo. Se o ovo for impossível.” (LISPECTOR, p.214.) Mis propias elucubraciones Todo conto pode ser também interpretado como a imaginação do garoto que está enfeitiçado pela movimentação destas caixas, algumas ruidosas, algumas cheias outras vazias, está fascinado e, mesmo que não saiba ler neste instante, será um futuro leitor fanático e usuário desta Biblioteca. Logo de início, o narrador revela que era característico de si inventar coisas, dar-se a elucubrações e fantasias. 31 entendia, y no entendia casi nada. ¿Quién iba a explicármelo? (AIRA, 2005, p. 4) Oras, todo o conto assumirá este tom onírico, principalmente após a descrição do “cérebro musical” e a ida ao circo, quer seja, todo conto será uma elucubração, um dilatar fantasioso de imagens chocantes ao ponto de ser quase irritante no sentido de uma má escritura, ou um enredo que se dilui pela ausência de previsão. Neste aspecto, Aira enfrenta o leitor mais tradicional, que, inconscientemente ou não, espera da ficção uma representação mimética de sua identidade ou da beleza que a dimensão onírica possa revelar como ordem, moralidade, etc. A leitura, por sua vez, pode ser uma má leitura se quiser, mas, todo modo, o leitor deve aceitar este pacto explosivo. ¿Quién iba a explicármelo? Ou seja, o leitor é talvez colocado nesta função infantil, diríamos, onde a miragem musical supera aquilo que poderíamos esperar como realidade pacífica a ser mimetizada. Aira nos avisa, inclusive, educadamente, de antemão, que estamos em termos narrativos ante uma possível armadilha imaginativa. Emboscada que de fato se proporá, adiante, como fantasias um tanto soltas. Mesmo o sentido final, da Biblioteca de Pringles, não passa de um non sense. Aira equilibra-se em uma corda bamba entre os rigores que o fazem contar uma história e o devaneio circular. Em certa entrevista, Aira diz que o que lhe interessa são os inícios de seus contos, como terminam em geral são devaneios e circularidades para que terminem logo e assim que ele possa botar mãos à obra novamente, botar mãos na massa. Se por um lado, possa parecer um tanto arbitrário e desrespeitoso com o leitor, em verdade, por outro lado, trata-se tanto de um pacto ético com a liberdade interpretativa do seu leitor – exigindo dele uma posição menos inerte quanto de uma ética consigo mesmo que seria de ordem blanchotiana, ao meu ver. É o que poderíamos chamar de obsessão do recomeço. Como diria Blanchot, ao ressaltar a frase “Noli me legere”, o escritor não pode ler sua obra; ele está condenado à esfera da escritura, na infinita descoberta, diante desta dimensão ilegível da obra, de que no espaço da criação Lo ideal habría sido que todos los libros dentro de uma caja fueran distintos; lo peor, que fueran todos ejemplares del mismo libro; pero esto último era ló más frecuente. No sé quién me había explicado estas cosas, o si eran resultado de mis propias elucubraciones y fantasias; habría sido muy característico de mi, inventarlo todo, porque siempre estaba inventando historias y maquinaciones para ló que no _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014! 32 não há mais lugar para criar, é preciso por mãos à obra, novamente. Explicaria assim esta obsessão em Aira por finalizar alguns de seus contos do modo mais elucubrativo possível. E posso afirmar que, neste “El Cerebro Musical” o primeiro dado do fantasioso e do elucubrativo a que o leitor estará condenado, da dimensão onírica e atópica que nos encontramos é a própria Sarita Subercaseux que, segundo relato da mãe do narrador, havia morrido há muitíssimos anos, antes mesmo do garoto nascer. Visto que este garoto é o narrador, logo na 3a página do conto, estamos, então, perdidos, confundidos, cientes que as analepses ou prolepses não confirmarão a linearidade ou o tempo narrativo do enredo. Da temporalidade não linear Michel Butor nos recorda que existe um “branco” que fica entre os parágrafos que contam tempos diferentes. Este branco marca uma região temporal que frequentemente é esquecida, é o tempo do leitor. Como cada leitor tem um tempo para si, o tempo da narrativa é, assim, dada em uma relatividade com o tempo de se ler. No mais, ele destaca três tempos, na narrativa ou na ficção, que seriam: o tempo da aventura (o tempo interno em que a “coisa” ocorre); o tempo da escritura (este tempo vai refletir-se na aventura por intermédio de um narrador) e o tempo da leitura (o tempo que o leitor aciona ou presentifica a “coisa”, a história). Butor explica-nos que “O autor pode nos dar um resumo que lemos em dois minutos, exigiu duas horas para ser escrito e ocorreu, no plano da aventura, em dois dias.” Mas, noto que para Butor o tempo ainda é um elemento que precisa ser “aplicado” sobre um espaço. Para se estudar as anomalias do tempo é preciso observar o espaço. Butor, por ver o tempo muito segmentadamente acaba não admitindo uma outra temporalidade possível que é a do autor, da autoria, a do escritor. Para ele o autor quando nos conta algo no ´eu´ está sempre no interior do que conta. Este GOMES apagamento temporal-autoral poderia bem ser estudado em paralelo com Foucault, mas ocorre um contratempo que é o de apagar toda e qualquer remissão ao tempo em prol do espaço, do lugar, da topografia que implica no labirinto do discurso como miragem. Tal perigo Aira se propõe atravessar e desfrutar. Ao estabelecer uma leitura crítica da instantaneidade e das leis físicas a que ela se assujeita, Agamben, em “Infância e História”, tal como o fez Benjamin pautado em Heidegger, lembra que a concepção de tempo que o ocidente nos compôs traz à tona a ideia de um “continuum” como suporte de quantificações. Porém, isto encaminha à experiência cristã do tempo (da linearidade) que é muito redutora filosoficamente haja vista elevar a irreversível imagística tanto da “criação divina” quanto do “fim dos tempos”. Como podemos pressupor efetivamente que o tempo é uma linha que encaminha ao seu próprio fim? Isto assume um significado altamente ideológico na historicidade, propondo o desamparo do presente. Perdemos a fé no tempo, posto que Aira proponha, ao contrário, a devolução infinita do presente, do aqui-agora mesmo que como abandono, a todo tempo, no fluxo da leitura. Aira propõe, ao contrário, o que Susana Scramim ressaltaria na renúncia da linearidade do tempo: “uma imersão na temporalidade anacrônica do presente” (SCRAMIM, 2007, p.173) Por outro modo, o tempo aristotélico matemático (circular), o tempo geométrico, também é colocado em crise em Aira, tanto quanto o tempo metafísico cristão. Ao destituir qualquer acesso a um plano cronológico, ao renegar toda expectativa do corrimento sucessivo de fatos que nos formule uma imagem integral do acontecimento - no conto “El Cerebro Musical” – trabalha-se numa região temporal da negatividade, posso dizer. Assim, a dimensão originária está em tudo o que diz, a todo momento, mas não é exata e aristotelicamente circular, como se um teatro, uma encenação, começasse e acabasse em cada proposição, em cada micro-fato que narra com extrema facilidade de abandono do tempo linear. _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014 AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA ! Estas encenações de Aira, este teatro da não-linearidade que é sua obra, lembra a aversão que a mãe do personagem tem pelo demagógico teatro pequeno-burguês (o nome “Leonor Rinaldi” condiz com a popular atriz argentina falecida nos anos 70). Este teatro cujas companhias de Pringles bancavam para a classe mais abastada. Talvez, intimamente como literato, Aira revele-se nesta aversão a uma classe de leitores mais popularizada que está acostumada com o óbvio da “boa literatura”. A tal punto llegaba la aversión de mamá a esse tipo de teatro que más de uma vez, cuando venía alguna compañia que lo practicaba, nos había hecho cenar temprano para ir a estacionarnos en el auto frente al teatro (pero a cierta distancia, disimulados en las sombras) a la hora del comienzo de la función, para registrar a los asistentes. Por ló general no había sorpresas, los que acudían eran gente humilde, de los barrios apartados, ló que ella llamaba ‘la negrada’, y que Le merecia apenas algún comentário despectivo, por ejemplo ‘qué esperar de estos ignorantes’. Pero a veces se colaba alguien de La clase decente, y entonces sus críticas se hacían enérgicas, sentia que su espionaje valia la pena, y ‘ahora sabía a qué atenerse’. (AIRA, 2005, p.8) Quem sabe, “el cerebro musical” esteja mais próximo da mágica circense e Aira busque mesmo uma temporalidade irreal, itinerante como o circo, mas que se estabelece numa incongruência. A contradição está dada posto que tal polaridade não possa ser condizente com o elevado nível da literatura de Aira, que, apesar das acrobacias, por vezes cômicas, nada tem de popular, sendo, por sua vez, exigente demais de um leitor erudito e pouco paciente. Um leitor explosivo ou bélico, tão impulsivo quanto o modo com que as crianças precipitam-se e empurram o cérebro musical ao chão, leitor que acate suas pirofagias, suas fugas temporais e espaciais, seus excessos, suas musicalidades, suas inventividades anacrônicas. Quiçá o leitor ideal de Aira possa ser, antes, o tigre do circo, os anões fugitivos, do que o velho expectador 33 em si, com sua passividade do olhar sobre a lona protetora. Desde a temporalidade não linear, tudo nos encaminha à fusão entre ilusão e fato, pois já não sabemos, ao ler o conto, a real distância entre as coisas, a real proporção das coisas. O que pouco interessa, aparentemente. A interioridade dos pensamentos se expõe como origem pura, como um quebradiço ovo. Tanto mais sobrenatural é o mundo, quanto mais Aira o descreve com naturalidade, como se desenhasse um ovo num papel. Quando, por exemplo, todos buscam os três enanos, eles já não têm a proporção real, são buscados em baixo das pedras, nas camisetas, em invólucros minúsculos. Nada mais sobrenatural. Los pringlenses vivían bajo el supuesto, ampliamente comprobado, de la transparência social y catastral del pueblo. ¿Cómo podía ser que en esa diminuta caja de cristal pudiera seguir hurtándose a la mirada um objeto tan conspicuo como tres enanos? Con el agravante de que no eran un compacto sino uma pareja que se escondia y un tercero que los buscaba y a la vez se escondia también. Un matiz de sobrenatural empezó a cubrir el episodio. Las dimensiones de un enano se revelaron problemáticas, al menos para la perturbada imaginación colectiva. ¿ Había que mirar bajo las piedras, en el revés de las hojas, em los capullos de los bichos canastros? Por lo pronto, las madres miraban bajo las camitas de sus hijos, y los niños desarmábamos los juguetes para revisar adentro. (AIRA, 2005, p. 14) Ele não aponta a mera ingenuidade do povo pringlense, mas o desespero coletivo, hiperbólico, que diminui o tamanho do alvo para potencializar a inquietação temporal e a sobrenatureza do fato narrado. As coisas não tem dimensão em Aira, tudo é pequeno, tudo é microabandono musical. _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014! 34 A biblioteca em caixas No 2º volume de “Rua de Mão Única”, no fragmento em que Benjamin narra estar “desempacotando sua biblioteca”, trabalhará o fascínio e a tensão do momento em que os livros chegam, lacrados em caixas, para compor uma biblioteca. A diferença específica com o conto de Aira é que a biblioteca que trata Benjamin é pessoal e a de Aira é uma Biblioteca Pública. No entanto, tirando este aspecto, a relação se mantém, ao meu ver. É o mesmo momento de um “suave tédio” em que as estantes esperam os livros, em que temos uma pré-biblioteca, uma biblioteca a ser montada, na desordem dos caixotes, entre pilhas de volumes. A frieza de estátua de Sarita Subercaseaux, com seu colar de pérolas e sua exagerada maquilagem, em Aira, contrasta-se com a velha imagem calorosa do colecionador de livros, o bibliômano. Este elemento do ardor, da paixão sagrada, o bibliômano, se oferece em uma experiência sempre singularizante. Temos, então uma figura da pura exterioridade, a simplicidade exterior congregada na personagem Subercaseaux, que contrapõe imediatamente à interior, íntima, do colecionador de livros, como imagem benjaminiana ou mesmo flaubertiana. (Nestas duas figuras, imagino o ovo em seu lado de dentro – a gema, lado caloroso e vital – e o lado de fora – a casca delicada e fria.) Lembro-me das análises de Abel Barros Baptista quando este, ao analisar o primeiro conto que Flaubert escreveu, explica-nos que a bibliomania começa a se apropriar do livro a partir de sua unicidade, autenticidade, de seu título, sua forma material, sua raridade. O valor do livro para o verdadeiro colecionador está menos no conteúdo propriamente dito dos livros que possui, do que na habilidade de reconhecimento primário das coisas, como individualidades; são seus nomes próprios, seus títulos, etc, que assumem valor. Tal habilidade pode parecer superficial, no entanto, é quase a de um feiticeiro, como diria Flaubert. Ou seja, o valor para o colecionador, que o constitui como bibliômano, está no livro como objeto, mas em uma espécie de aura, de âmago, que envolve isto e não GOMES exatamente como posse. A posse é sempre impossível, inviável. No final das contas, o bibliômano não reduz o livro a sua pura e simples materialidade de objeto tipográfico, o que ocorre é que sua missão é a transmissibilidade, logo ele é um mediador, que se sacrifica para ser o amparo do livro (tal como Giácomo). No conto de Aira, o garoto já é um bibliômano por amar os livros em sua unicidade, em sua transmissibilidade possível. A figura dele, com sua extremada potência ao onírico, é mais a do verdadeiro colecionador benjaminiano que se sacrifica pela unicidade do livro do que a da personagem Sra. Subercaseaux que dirige a Biblioteca, que recebe os livros friamente, tendo papel decisivo na simbologia superficial e cultural de Pringles. Benjamin se preocupa em homenagear com descrições o encantamento do colecionador. Os livros em suas caixas não se reduzem a meros pertences. Não são simples pacotes que formam o ambiente basilar de “El Cerebro Musical”. Ao contrário, estes livros vão dissuadir sofisticadamente olhares como uma arte onde o caos se prenuncia em coautoria. Em seus escritos sobre os livros em caixas, Walter Benjamin faz qual uma coleção de lembranças melódicas onde a ordem e o caos de seus livros se avizinham do mesmo modo com o qual este garoto narrador em Aira produz lembranças. O cérebro musical é o do narrador, o do autor, o do bibliômano. Benjamin e Aira como vozes resultantes do semi-caos da biblioteca; o valor utilitário e funcional da biblioteca está sob as turbulências imaginativas “centuplicadas” do colecionador, do leitor excitado que deverá partilhar tal experiência. Partilha infantil e renovadora ante os livros velhos. Para um colecionador autêntico a aquisição de um livro velho representa o seu renascimento. E justamente neste ponto se acha o elemento pueril que, no colecionador, se interpenetra com o elemento senil. Crianças decretam a renovação da existência por meio de uma prática centuplicada e jamais complicada. Pra elas colecionar é apenas um processo _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014 AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA ! de renovação; outros seriam a pintura de objetos, o recorte de figuras e ainda a decalcomania e assim toda a gama de modos de apropriação infantil, desde o tocar até o dar nome às coisas. Renovar o mundo velho – eis o impulso mais enraizado no colecionador ao adquirir algo novo, e por isso o colecionador de livros velhos está mais próximo da fonte do colecionador que o interessado em novas edições luxuosas (BENJAMIN, 2000, p.229). Benjamin dirá, ainda, que “...de todas as formas de obter livros, escrevê-los é considerada a mais louvável”. O que Aira faz, com seu narrador, o garoto fascinado ante uma quase-biblioteca, é compartilhar esta esquisita tensão colecionadora de imagens, como tesouros descobertos, que crescem à medida que o conto se desenvolve. As imagens se transformam em música dissonante, entre os espaços escandalosos do circo e do teatro. Vamos, das caixas de livros em um restaurante, ao triângulo amoroso entre três anões fugitivos, um deles com a pistola nove milímetros do dono do circo nas mãos; passeamos com o cão Geniol e pela exposição de um trágico cérebro fosforescente que nunca se apaga e, no entanto, que se rompe, até revelar um anão voador, entre morcegos e pombas, como a fêmea de um gárgula indomável e vivo que, como se não bastasse, bota um ovo sem proporções... Nada há de grotesco nesta ausência de limites. Apesar de não haver pura “beleza”, há um efeito majestoso que se expõe como abandono do leitor. Será que Aira já não pensa em quem está o lendo? Será que já foi como escritor totalmente tomado pela errância, pela malescrevência, ao ponto de abandonar seu leitor? A emoção narrativa permanece nesta bizarra coleção de imagens como “edições luxuosas” que nos possibilita tomar emprestados alguns exemplares sem devolver, para que circulem livremente em nossas fantasias particulares. Para que tenhamos também nossa Biblioteca em caixas, nosso arquivo incompleto, nosso cérebro musical rompido, que não se reduz à Biblioteca de Pringles, ou a um demagógico teatro pequeno-burguês. 35 Referências AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005. _____. Beauté qui tombe. In: Image et mémoire. Écrits sur l'image, la danse et le cinema. Trad. Marco Dell'Omodarme, Suzanne Doppelt, Daniel Loayza et Gilles A. Tiberghien. Paris: Arts & esthétique. Desclée de Brouwer, 2004. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. ANTELO, Raul. A estética do Abandono. In: RESENDE, Beatriz. A literatura latinoamericana no século XXI. 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Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=1SfmI9w7 7Og&feature=related Acesso em 17 julho 2012 LISPECTOR, Clarice. Atualidade do ovo e da galinha. In: A descoberta do Mundo. Rio de janeiro: Rocco, 1999. SCRAMIM, Susana. A plenitude do tempo e a prática do desvio em Cesar Aira. In: Literatura do Presente. História e Anacronismo dos textos. Chapecó: Argos, 2007. Recebido em:11 de setembro de 2013. Aceito em: 27 de novembro de 2013. _______________________________________________________________________________________ REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014 QUEIMANDO SUTIÃS: O CORPO COMO DISCURSO E ACONTECIMENTO Elizete de Souza Bernardes Vanice M. Oliveira Sargentini Universidade Federal de São Carlos Resumo: O presente artigo tem como perspectiva teórica a Análise do discurso francesa (AD), em congruência com a Semiologia Histórica, que nos permite olhar para o objeto da AD enquanto um objeto não apenas verbal, mas, sobretudo, semiológico e de dimensão histórica. Como objeto de análise, partimos de uma observação que circulou na mídia, na qual o corpo apresentava-se como o “suporte” da materialidade linguística, bem como, se construía como o próprio discurso. Em uma visada de análise do texto misto, no qual não se separa o verbal do não-verbal, encontraremos, nos anos 70, um enunciado que, em 2013, retorna e se atualiza, a saber: “O meu corpo me pertence!” Dois acontecimentos, separados por, mais ou menos, 40 anos que se entrelaçam, formando uma rede interdiscursiva e provocando um efeito de memória (COURTINE, 2009). A partir desses dois episódios, nos questionamos: Como o corpo se torna objeto do discurso em enunciados que circulam na sociedade? Para tanto, lançamos mão de alguns aportes teóricos da AD, tais como: enunciado (FOUCAULT, 1986), acontecimento discursivo e trajeto temático (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1994). Dessa perspectiva, procuraremos analisar quais são os enunciados que se repetem, se transformam e refutam outros enunciados. Enfim, buscaremos refletir como o corpo é o próprio discurso em enunciados que circulam, atual e historicamente. Palavras-chave: Análise do discurso francesa; Semiologia Histórica; Corpodiscurso. Résumé: En ayant brûlé les soutiens-gorges: Le corps comme discours et événement. Cet article est écrit du point de vue de l'Analyse du discours française (AD), en concertation avec la sémiologie historique , qui nous permet de regarder à l'objet de l'AD comme un objet non seulement verbale, mais, surtout , sémiologique et de dimension historique . Pour objet de l'analyse , nous commençons par une observation qui a circulé dans les médias, dans lequel le corps a été présenté comme le "soutien" de la matérialité linguistique et le corps est construite comme le discours lui-même. Dans une analyse du texte mixte, où le verbale et non verbale ne pas séparer, nous trouvons , dans les années 70, une déclaration que, en 2013, retour et mises à jour , à savoir : "Mon corps m'appartient " Deux événements séparés par plus ou moins 40 années s'entremêlent, formant un réseau interdiscursif et provoquant un effet de mémoire (COURTINE , 2009). De ces deux épisodes, nous nous demandons: Comment le corps devient un objet de discours dans les états qui circulent dans la société ? Pour finir , nous avons utilisé certaines conceptes théoriques, comme énoncé (Foucault, 1986), événement discursif et trajet thématique (Guilhaumou et Maldidier, 1994). De ce point de vue , essayer d'analyser quels sont les enoncés qui se répètent, se transforment et réfutent REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014 38 BERNARDES e SARGENTINI autres enoncés. Enfin , nous allons chercher à refléter comme le corps est il même le discours en énoncés qui sont actuelles et historiques en circulation. Mots-clés: Analyse du discours française; Sémiologie historique; Corps-discours. O corpo no discurso. O discurso no corpo. “O meu corpo é minha propriedade ...”1: essa é parte da inscrição feita em seu corpo, por uma tunisiana, Amina Tyler, ameaçada de morte após esse episódio. Na imagem, a moça apresenta-se com os seios à mostra, com um cigarro na mão, lendo um livro, maquiada e usando batom vermelho. Seus olhos não se dirigem diretamente a nós. Sua expressão não é de atenção àquele que a olha. Despida, mostra-se à vontade, vestida pelas palavras inscritas em seu corpo e exprime segurança na firmeza de seu gesto. Mais que a materialidade linguística, o próprio corpo da mulher já é um discurso: o corpo é encarado, assim, enquanto um lugar de inscrição da história, como sugere Courtine (2011a). ! Figura 1 – Amina Tyler 1 ! Essa imagem, vista como um enunciado, em um sentido foucaultiano (que não está restrito à linguagem verbal), ganhou destaque em vários meios de comunicação no mundo inteiro. 1 No corpo da tunisiana, lemos na íntegra: “Foda-se sua moralidade” e “Meu corpo é minha propriedade e não é a honra de ninguém”. Tradução do árabe para o português feita pela Folha de São Paulo, em 19 de abril de 2003. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/104625-meucorpo-me-pertence.shtml. Acesso em: 11 jun 2013. REDISCO O conjunto da obra, longe de ser um elemento neutro e transparente, resgata algo que diz antes e alhures e que faz o sentido ecoar no tempo presente. Um enunciado que faz ressoar uma memória e ao mesmo tempo em que há esse resgate, há também uma atualização. Se voltarmos para os nos 70, com efeito, encontraremos o seguinte enunciado: “Nosso corpo nos pertence”, dito por um grupo feminista e que naquela época clamava pela liberdade do corpo feminino. Dois acontecimentos, separados por mais ou menos 40 anos, que na relação interdiscursiva se cruzam e criam a possibilidade de atualização, provocando um efeito de memória (COURTINE, 2009). A partir desses dois episódios, tomados aqui como acontecimentos discursivos que se inter-relacionam, nos questionamos: Quais os efeitos de sentidos que se produzem em cada momento? Como o corpo se torna objeto do discurso em enunciados que circulam na sociedade? Quais as mutações discursivas de um acontecimento a outro? Em outros termos, o que entra em um regime de (des)continuidade histórica nesses dois recortes? Para tentarmos responder a essas questões, mobilizaremos alguns conceitos, tais como: enunciado (FOUCAULT, 1986), acontecimento discursivo, e trajeto temático (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1994). As reflexões sobre o que se tem denominado de Semiologia Histórica, nos parece salutar para essa análise, haja vista que a AD permite trabalhar com os efeitos de sentido do discurso, a partir da materialidade semiológica, considerando o sujeito historicamente construído e a história, enquanto construída pelos discursos e constituidora de discursos. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014 QUEIMANDO SUTIÃS Dessa perspectiva, procuraremos analisar quais são os efeitos de memória que se repetem, se modificam, se adaptam, se opõem e transformam os enunciados, conforme estudos propostos por M. Foucault (1986). Ademais, buscaremos refletir como o corpo é o próprio (efeito do) discurso em enunciados que circulam, atual e historicamente. 39 Em um breve percurso pelos caminhos trilhados pela AD, notamos alguns deslocamentos teórico-metodológicos. Com efeito, em um exercício de pensar sobre sua própria obra e percurso, M. Pêcheux (1990) avalia que seus estudos se organizam em três épocas2: a primeira, com a Análise Automática do Discurso, que parte de uma lógica matemática e lexical para se chegar ao processo discursivo, pretendendo, de forma central, inter-relacioná-lo com a ideologia, os sujeitos e o quadro sócio-histórico; a segunda época delineia alguma relativização de conceitos anteriores e, assim, um “afrouxamento” teórico-metodológico. Na terceira fase, por fim, há um redirecionamento das reflexões que embasavam a AD. Nessa terceira época, Michel Pêcheux se debruçará, por exemplo, para a análise de um enunciado ordinário (on a gagné) em seu livro, de 1983, O discurso: estrutura ou acontecimento. Esse período marca a ampliação do olhar dos analistas do discurso sobre os seus objetos, visto que, na análise, Pêcheux revela que as discursividades integram tanto uma estrutura quanto um acontecimento. On a gagné, um grito que surgiu no campo de futebol, ganhou as ruas quando da eleição política do então presidente, em 1981. A partir desse deslocamento operado pela análise de um enunciado ordinário, abre-se espaço para que as formulações cotidianas pudessem fazer parte dos corpora em AD. A imagem, por exemplo, ganha destaque nessa terceira época. Na apresentação feita por Pêcheux, em 1983, intitulado Papel da Memória3, o conferencista comenta que: “A questão da imagem encontra [...] outro viés: não mais a imagem legível na transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas a imagem opaca e muda, aquela da qual a memória ‘perdeu o trajeto de leitura’” (PÊCHEUX, 2010, p.55). Seguindo a trilha da AD, em direção a um alargamento do objeto de análise, a imagem, a sonoridade, o comportamento, as práticas não discursivas também entraram no foco das pesquisas nesta área. Não se tratava de esquecer o enunciado linguístico, mas, sobretudo, era preciso estar atentos às demais materialidades que acompanhavam o linguístico. O objeto de estudo da disciplina é, pois, semiológico: assim como o enunciado linguístico é assinalado por uma historicidade discursiva, os objetos semiológicos não estão dissociados da história. A Semiologia Histórica (COURTINE, 2011b), então, se apresenta como um caminho a se desenhar na análise de enunciados em “todos os seus registros” (FOUCAULT, 1986). Os gestos de leituras, na contemporaneidade, deverão dar conta de todas as multimodalidades semiológicas presentes na mídia, nos sites virtuais, na televisão. Uma inscrição linguística é acompanhada de outros signos, como o corpo, os seios nus, a maquiagem, tal como observamos na Figura 1. Enfim, como lembra Jean-Jacques Courtine (op. cit., p.150): “os discursos estão imbricados em práticas nãoverbais, o verbo não pode mais ser dissociado do corpo e do gesto, a expressão pela linguagem conjuga-se com aquela do rosto, de modo que não podemos mais separar linguagem e imagem”. Essas materialidades semiológicas – que extravasam o plano verbal – entram numa rede interdiscursiva. Suas condições de produção estão historicamente assinaladas. 2 3 AD em diálogo com a Semiologia Histórica A construção da disciplina nessas três fases, pode ser lida no texto escrito por Pêcheux em 1983: PÊCHEUX, M. A AD: três épocas. In.: GADET, F. e HAK, F. (org). Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Pontes, 1990. REDISCO PÊCHEUX, M. O papel da memória. In: ACHARD, P. O papel da memória. Campinas: Pontes, 2010. Na tradução para o português, o título do livro coincide com o título da fala de Pêcheux na Mesa Redonda “Linguagem e sociedade”, realizada na Escola Normal Superior de Paris em abril de 1983. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014 40 BERNARDES e SARGENTINI O conceito de condições de produção, com efeito, sofreu alguns deslocamentos no quadro teórico da AD. Ao articular a história com o discurso, Courtine (2009) propõe pensar as condições de produção longe de ser um pano de fundo, um contexto, uma teatralidade, tampouco um “ringue de boxe”, numa perspectiva de um confronto interindividual. Para Courtine (2009), essas duas perspectivas apagam a densidade histórica dos enunciados, ou seja, tanto em um combate, quanto em um mero contexto da situação, os enunciados não seriam atravessados e constituídos pela história, mas apenas “personagens” nesses cenários. Ao refletir sobre o conceito de condições de produção, Courtine (2009, p. 86) retoma o conceito foucaultiano de enunciado. Esse teria quatro propriedades: (i) está ligado a um referencial; (ii) mantém com um sujeito uma relação determinada; (iii) tem um domínio associado; (iv) apresenta uma existência material. Compreendido dessa forma, o conceito de enunciado possibilita-nos analisar as condições de emergência e de dizibilidade envolvidas na produção dos discursos, auxilia-nos a avaliar a rede de discursos que estão no entorno dos enunciados, além de apresentar-nos as diversas formas de materialidade verbo-visual que compõem os enunciados. Feitas essas considerações preliminares no campo em que este texto se inscreve, passemos para a análise que aqui propomos. E elas queimam o sutiã...: o corpo como lugar do acontecimento Nosso corpo nos pertence!” Eis o grito que ecoava entre as mulheres que, no começo dos anos de 1970, protestavam contra as leis que interditavam o aborto, pouco tempo antes que os movimentos homossexuais retomassem o mesmo slogan. O discurso e as estruturas estavam comprometidos com o poder, enquanto o corpo estava ao lado das categorias oprimidas e marginalizadas da sociedade: as minorias de raça, de classe ou de gênero pensavam ter somente seu corpo para se oporem ao discurso do poder e à linguagem, ambos instrumentos de silenciamento do corpo. (COURTINE, REDISCO 2006, p. 8-9 apud SARGENTINI et al., 2009, p. 13). O enunciado “Nosso corpo nos pertence!” surgiu na década de 70, com os movimentos feministas, que reclamavam uma autonomia em relação aos seus corpos, especialmente com relação à maternidade e proibição da prática do aborto. Em outras palavras, o enunciado se inscrevia em determinadas condições de produção nas quais as interdições para o aborto discursivizavam práticas a respeito do corpo feminino, que era o próprio objeto, sujeito à vigilância e punição de uma ordem vinda do outro (e não das próprias mulheres). Em 2013, uma tunisiana escreve em seu próprio corpo: “o meu corpo é minha propriedade”, parafraseando o primeiro enunciado. Contudo, o enunciado alarga as reivindicações feitas com o corpo e pelo corpo. Este se torna discurso (i) contra a violência doméstica; (ii) diz respeito também ao modo das mulheres se vestirem (“de saia ou burca, o meu corpo não tem nada a ver com você!” – diz um dos enunciados das feministas dos dias atuais); (iii) além de impor-se como instrumento para a legalização do aborto. Há nesses dois momentos, cujo foco é o corpo, uma memória que se atualiza. Nos anos 70, a categoria das mulheres, em conjunto, se encontra no pronome “nosso”, marcando uma totalização da subjetividade feminina. O grito atual, destacado pelo pronome “meu” (o meu corpo me pertence!), marca uma subjetividade individualizante. Com efeito, ainda que haja esse movimento de atualização de uma memória discursiva, os efeitos dessa ecoam. Há, em certa medida, rupturas (ou ampliação dos discursos que atravessam o enunciado) e continuidades discursivas com o momento anterior. Observamos, deste modo, que a base repetível, assinalada na formulação linguística – com algumas diferenças frente ao emprego dos pronomes, no plural e no singular – se torna única em cada momento e, portanto, irrepetível. Para cada ocorrência do enunciado, encontramos o que é possível se dizer, as condições históricas que permitem as enunciabilidades, o “conjunto das regras que Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014 QUEIMANDO SUTIÃS caracterizam uma prática discursiva” (FOUCAULT, 1986, p. 147). Por essa razão, nessas duas temporalidades do movimento feminista, o mesmo enunciado toma proporções diferentes por implicar condições de produção distintas. Por conseguinte, a noção de acontecimento discursivo dá margem para que analisemos o enunciado “Nosso corpo nos pertence”. O trajeto temático, entre 1970 e 2013, faz irromper um efeito de memória na atualidade dos dois acontecimentos. Nessa esteira, “a análise de um trajeto temático remete ao conhecimento de tradições retóricas, de formas de escrita, de usos da linguagem, mas, sobretudo, interessa-se pelo novo no interior da repetição” (grifo nosso) (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1994, p. 166). Falamos de trajeto temático na questão do corpo da mulher para definir o conjunto de (re)configurações textuais que, de um acontecimento a outro, associam o corpo da mulher, a linguagem e marcação pronominal nos dois acontecimentos, e as discursividades (machistas) que também se apresentam no enunciado. Na formulação linguística, resgatamos a espessura histórica e a memória discursiva. Esta consiste no ponto de encontro entre os diferentes dizeres sobre o corpo da mulher, in absentia, numa linha vertical (interdiscurso) e o que efetivamente foi dito, numa linha horizontal (intradiscurso), in praesentia. Assim, Os objetos que chamamos “enunciados”, na formação dos quais se constitui o saber próprio de uma FD, existem no tempo longo de uma memória, ao passo que as “formulações” são tomadas no tempo curto da atualidade de uma enunciação. É então, exatamente, a relação entre interdiscurso e intradiscurso que se representa neste particular efeito discursivo, por ocasião do qual uma formulação-origem retorna na atualidade de uma “conjuntura discursiva”, e que designamos como efeito de memória. (COURTINE, 2009, p. 106). A partir da observação dos enunciados, efeitos de memória (COURTINE, 2009) são apreendidos no eixo da formulação. Há, nesse REDISCO 41 sentido, um “campo associado”4 que repete, refuta e transforma os enunciados, conforme trabalhamos com Foucault (2012, p. 119). Essa propriedade do enunciado traz à baila a presença de outra Formação Discursiva no interior desse acontecimento discursivo. Quando dizemos nosso corpo nos pertence, pomos em virtualidade a questão de que, em algum momento, os dizeres sobre o corpo da mulher pertenciam não a “nós”, de forma inclusiva. (Se assim não o fosse, não havia necessidade de emergir tal enunciado). Contudo, o outro era a autoridade que tinha o direito de dizer sobre o corpo da mulher. Esse outro é quem dita a ordem: quem decide, quem regulamenta, quem oprime, quem vigia, quem pune, enfim, quem exerce o poder sobre o corpo da mulher. O grito contra essa opressão se imprime no corpo. Quem, a partir, de então, teria o poder de decidir sobre seu próprio corpo eram as próprias mulheres. Seus corpos passam a serem “então concebidos como um lugar privilegiado de refúgio e resistência aos poderes opressores”. (SARGENTINI e PIOVEZANI, 2009, p. 1213). Quando as feministas refutam essa “tirania” sobre seus corpos, nos deparamos com uma continuidade discursiva que se revela como um denominador comum entre os dois acontecimentos. Por outro lado, a subjetividade é marcada distintamente entre ambos. As relações de poder, então, sofrem uma transformação e, daí, dizer que o linguístico se permuta: dos pronomes possessivos, plurais e totalizantes “nosso\nos” para o individualizante e singular “meu\me”. As (des)continuidades discursivas produzidas de um enunciado ao outro ressoam em outros domínios. A partir da observação das duas imagens abaixo, podemos refletir sobre o referencial enunciativo. Com efeito, Courtine (2009), ao mobilizar a noção de referencial enunciativo, conforme proposta em A Arqueologia do saber (1986, p. 4 Segundo Foucault (1986, p. 113-114), “qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em geral, livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, nele se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo [...]”. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014 42 BERNARDES e SARGENTINI 120-121), citará que tal referencial “forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado”. Na década de 70, Leila Diniz exibe sua maternidade na praia, vestindo um biquíni – comportamento, para a época, considerado como um “escândalo”. Quarenta anos mais tarde, a atriz Betty Faria recebe críticas por exibir sua idade – muito acima do “permitido” a ser visto publicamente – vestindo um biquíni. O corpo das duas mulheres discursivizam por eles mesmos e põe em circulação um efeito de memória do enunciado: “Nosso\meu corpo nos\me pertence”. Figura 2 – “Leila Diniz, em 1971, e Betty Faria, em 2013”1 A referencialidade do enunciado, em um gesto de leitura, relaciona-se com a possibilidade de emergência desses dois enunciados, marcados diferentemente em suas subjetividades, em seus pronomes. Não se trata aqui de vincular a imagem com o enunciado linguístico, colocando-o em pé de igualdade, mas, sobretudo, ao analisarmos o “campo de emergência” dessas imagens, nos memorizaremos do corpo como atravessado pela história, pelos discursos. Portanto, como reforça Courtine (2011b, p. 159), “a imagem não obedece absolutamente a um modelo de língua”. A proposição da noção de intericonicidade entre imagens externas leva-nos a considerar essa rede de formulações dizíveis: considerar as relações entre imagens que produzem os sentidos: imagens exteriores ao sujeito, como quando uma imagem pode ser inscrita em uma série de imagens, uma arqueologia, de modo semelhante ao enunciado em uma rede de formulações, em Foucault. (COURTINE, 2011b, p. 160). As duas imagens pode ser inscritas em uma série, cujos gestos são muitos semelhantes: a praia, o uso do biquíni, o gesto que evidencia segurança e espontaneidade. Inseridas na densidade histórica, as imagens que são atravessadas e constituídas por um discurso, sofrem “interdição”. Com efeito, as duas atrizes, em diferentes épocas, receberam diversas críticas por não entrarem na ordem do discurso. Houve, nesse sentido, por parte dos espectadores, o que Davallon (2010, p. 31) denominou de “acordo de olhares”. Segundo o autor: “tudo se passa então como se a imagem colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista”. O “acordo de olhares” entre os leitores das duas imagens, tanto de Leila Diniz quanto de Betty Faria conferiu a interdição, o “escândalo” e a reprovação do “espectador concreto que é convidado a vir ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos” (DAVALLON, 2010, p. 31). Assim, no intercâmbio entre as duas temporalidades – anos 70 e o ano de 2013 – o corpo, sendo ele mesmo o discurso entra nessa rede enunciativa. De um lado, a maternidade, de outro a idade da mulher – ambas atuando como um enfrentamento a um discurso assentado em uma determinada posição social, histórica e discursiva. A maternidade como ícone de uma totalização, de um plural, de um “nosso” carregado de uma ruptura discursiva do que até então era o “certo”, o “politicamente correto”, isto é, não mostrar a gestação em público. A maternidade era, pois, um procedimento discursivo de exclusão: o corpo de gestante como um tabu do objeto que não pode ser exibido em um lugar público, com trajes menores. A intericonicidade supõe, portanto, dar um tratamento discursivo às imagens, supõe REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014 QUEIMANDO SUTIÃS Em 2013, o tabu do objeto é o corpo idoso que, numa rede intericônica, sofre outros (des)contínuos procedimentos de exclusão do discurso. O sujeito (mulher gestante e mulher idosa) não teria, portanto, o direito de dizer com o seu corpo, abertamente, sobre a maternidade e a “melhor idade”. A posição sujeito, uma das características do enunciado, é concebida como uma “relação determinada que se estabelece em uma formulação entre um sujeito enunciador e o sujeito do saber5 de uma dada Formação Discursiva. Essa relação é uma relação de identificação cujas modalidades variam, produzindo diferentes efeitos-sujeito no discurso”. (COURTINE, 2009, p. 88). Os efeitos-sujeitos dão licença para compreendermos que sujeitos universais de distintas Formações Discursivas entram em confronto. Os corpos das mulheres imprimem uma refutação aos sujeitos que dizem “todos sabem ou veem que” a elas não é permitido discursivizarem seus corpos desse modo – seja em relação à maternidade, à melhor idade, às interdições do aborto, etc.. A deriva operada por esses diferentes efeitos-sujeito no discurso nas duas imagens, bem como nos enunciados linguísticos do movimento feminista de ontem e de hoje (nosso corpo nos pertence!) marcam a quarta propriedade do enunciado. A existência material quer dizer que “a enunciação é um acontecimento que não se repete. Ela tem uma singularidade situada e datada que não se pode reduzir” (FOUCAULT, 1986 apud COURTINE, 2009, p. 91). Isso se dá em função de que há um tempo, um lugar, um sujeito que realiza a enunciação. 5 Esse sujeito do saber de uma dada FD é “o lugar do sujeito universal próprio a uma determinada FD, a instância de onde se pode enunciar ‘todos sabem ou veem que’ para todo sujeito enunciador vindo situar-se num lugar determinado, inscrito nessa FD, por ocasião de uma formulação. Assim, é o ponto onde se ancora a estabilidade referencial dos elementos de um saber. Esse lugar, então, só é vazio na apareência: ele é preenchido de fato pelo sujeito do saber próprio a uma FD e existe na identificação pela qual os sujeitos enunciadores vêm encontrar nela os elementos de saber (enunciados) pré-construídos de que eles se apropriam como objetos de seu discurso”. (COURTINE, 2009, p. 87-8). REDISCO 43 Nesse sentido, ainda que haja uma formulação/enunciado repetível entre os dois acontecimentos (enunciações), estes, por serem, historicamente situados e singulares, são da ordem do irrepetível: a oposição enunciado/enunciação permite aqui pensar o discurso na unidade e na diversidade, na coerência e na dispersão, na repetição e na variação (COURTINE, 2009, p. 91). Considerações finais O corpo impresso na história e a história impressa no corpo (COURTINE, 2011a): esse foi nosso ponto de partida para a análise de alguns enunciados que circulam na sociedade. E não é de hoje. A História se constrói nessa relação de regularidades e dispersão dos discursos, estes “devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” (FOUCAULT, 2011, p. 53). O corpo, então, nas análises feitas neste artigo, discursivizam uma série de interdiscursos. Não só na materialidade linguística, mas também , segundo nos ensina a Semiologia Histórica, na materialidade das imagens que têm densidade discursiva. Tanto é assim que, em uma rede intericônica, elas entram em descontinuidades, sofrendo procedimentos de exclusão, de interdição e de autoridade de quem pode dizer sobre. Referências COURTINE, J.J. Análise do discurso político. O discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: Edufscar, 2009. _______. Déchiffrer le corps: penser avec Foucault. Jérôme Millon, 2011a. ________. Discurso e imagens : para uma arqueologia do imaginário. In. SARGENTINI, V. et al. Discurso, Semiologia e História. São Carlos : Claraluz, 2011b. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014 44 BERNARDES e SARGENTINI DAVALLON, J. A imagem, uma arte de memória ? In. : ACHARD, P. et al. Papel da Memória. Campinas : Pontes, 2010. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 21 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011. ________. O sujeito e o poder. In.: Rabinow, P. & Dreyfus, H. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. ________. A arqueologia do saber. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986. GUILHAUMOU, J e MALDIDIER, D. Efeitos do arquivo. A análise do discurso no lado da História. In: ORLANDI (org.) Gestos de Leitura: da História no Discurso. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1994. (Language, 81, 1986). PÊCHEUX, M. Papel da memória. In. : ACHARD, P. et al. Papel da Memória. Campinas : Pontes, 2010. ________. O discurso: estrutura ou acontecimento. 6. ed. Campinas: Pontes, 2012. ________. A AD: três épocas. In.: GADET, F. e HAK, F. (org). Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Pontes, 1990. SARGENTINI, V. e PIOVEZANI, C Políticas de sentido, práticas da expressão e história do corpo. Uma apresentação da obras de Jean Jacques Courtine ao leitor brasileiro. In.: COURTINE, J.J. Análise do discurso político. O discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos : Edufscar, 2009. Recebido em: 12 de outubro de 2013 Aceito em: 05 de dezembro de 2013. REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014 NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO: O MASCULINO E O FEMININO NO CINEMA Hertz Wendel de Camargo Universidade Estadual de Londrina e Universidade Estadual do Centro-Oeste Rafaeli Francini Lunkes Universidade Estadual do Centro-Oeste Resumo: A partir da análise das estruturas narrativas entre o mito de Tirésias e o filme “Tirésia” (Bertrand Bonello, França, 2003) desenvolvemos um texto de natureza ensaística que perpassa os discursos acerca do masculino e do feminino no imaginário cultural, bem como a busca do corpo feminino ideal presentes no conceito de um corpo fantástico e transgênero. Mito e imaginário se mesclam no filme analisado e despertam diferentes saberes que explicam, em parte, a nossa metafísica relação com o cinema e, portanto, com a busca elementar da satisfação do sujeito-espectador do autoconhecimento e do conhecimento do outro, próprio do ser humano. Palavras-chave: mito, cinema, discurso, sexualidade. Abstract: Mythical narratives about the hybrid body: male and feminine in cinema. From the narratives of the myth of Tiresias and the movie "Tiresia" (Bertrand Bonello, France, 2003) we have developed an essayistic nature text that pervades discourses about male and female in the cultural imaginary as well the search of the ideal female body present in the concept of a fantastic and transgender body. Myth and imagination mingle in the film analyzed and arouse different knowledges that explain, partly, our metaphysical relationship with cinema and, therefore, the elemental quest for subject-spectator satisfaction of selfknowledge and knowledge of others, for the human beings. Keywords: mith, cinema, discourse, sexuality. Da seminal mitologia grega, destacamos uma figura mítica instigante, Tirésias, personagem singular, cego, que viveu a experiência de ser homem e mulher, detentor do dom da clarividência e possuidor do fascínio desperto por todo oráculo. Com presença recorrente nas criações poéticas e dramatúrgicas da Grécia antiga, Tirésias chega ao cinema. O filme Tirésia (2003), dirigido pelo francês Bertrand Bonello, será REDISCO aqui contemplado com o intuito de revelar algumas das conexões entre mito e cinema. Destacaremos também a natureza educativa do cinema, ao passo que o mito em questão torna possível diversos tipos de abordagens sejam em situações educativas ou, simplesmente, como produto cultural consumido na atualidade. Entendemos que o personagem central possui (no mito) Tirésias mostra um corpo ora masculino ora feminino, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 46 de uma mesma alma; enquanto que (no filme) possui um corpo híbrido, apresentando concomitantemente as significações de macho e fêmea, masculinidade e feminilidade na imagem da transexual Tirésia. No filme, esse binarismo arquetípico polarizado pelo feminino e pelo masculino está arraigado no imaginário ocidental. Sob a camada aparente do discurso, essa relação de opostos é parte de uma estrutura presente em diversas binaridades na cultura. Do início ao fim da obra fílmica em questão, pares de opostos são representados em imagens, falas e sons, que dão sentido à narrativa, construindo o significado a partir das polaridades ser/não ser, homem-mulher, masculino-feminino, nascer-renascer, vida-morte, atração-rejeição, amor-ódio, luz-sombra, segredo-revelação, pureza-impureza, cidade-natureza, indivíduosociedade, eu-outro, singular-plural, céuinferno, virtude-pecado. Binaridades emergentes no decorrer da narrativa fílmica, compondo o universo de significações do filme de Bonello. Portanto, vemos nessas polaridades, a imagem arquetípica de forças positivas e negativas que compõem, ao mesmo tempo, a realidade e a natureza humana, pois “os símbolos binários, ou os pares, são inumeráveis, em todas as tradições” e “estão na origem de todo pensamento, de toda manifestação, de todo movimento” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 346). Compreender como mito e cinema estão imbricados no filme Tirésia (2003) e como eles traçam um discurso sobre a sexualidade e o corpo transexual, é um dos caminhos que seguiremos em nossa análise. A natureza binária do homem A biologia nos ensina que os seres vivos possuem uma origem dual, a começar por sua constituição orgânica composta por cadeias (binárias) de carbono – o mesmo se aplica ao homem. Os seres pluricelulares, na reprodução sexuada, nascem da integração de dois gametas – masculino e feminino – onde cada um contém metade das informações genéticas para a composição de um novo ser. Na reprodução assexuada, os seres REDISCO CAMARGO E LUNKES unicelulares dividem-se, originando dois novos seres, e cada um originando dois outros, sucessiva e infinitamente, enquanto houver condições. No universo vivo da natureza, esse é o movimento dinâmico e alternado entre unidade e divisão, que nega a principal força oponente da vida: a morte. Esse binarismo biológico constitui a primeira realidade do homem. Ciente da morte inevitável, o ser humano cria uma segunda realidade em que pode ser imortal, selando definitivamente sua natureza binária: o homem é natureza e cultura, sobrevive como filho da fecunda relação entre a realidade e o imaginário. Em relação à realidade primeira, para Morin (1997, p. 80), o imaginário é uma estrutura antagônica e complementar sem a qual não haveria o real para o homem ou nem mesmo a realidade humana. A cultura constitui “uma espécie de sistema neurovegetativo que irriga, segundo seus entrelaçamentos, a vida real de imaginário, e o imaginário de vida real” (p. 81). Considerando a natureza comportamental do homem, entendemos que a realidade psicológica do homem também se estabelece em binaridades. A partir do surgimento da consciência, o homem rompe sua natureza urobórica, desperta do estado inconsciente de integração com o cosmo. Nesse estado inicial, não havia distinção entre Eu e Tu, dentro e fora, ou entre homens e coisas, assim como não havia uma linha divisória clara entre o homem e os animais, o homem e o homem, o homem e o mundo. Tudo participava de todas as demais coisas, vivia no mesmo estado indiviso e cambiante, no mundo do inconsciente, como num mundo de sonhos de cuja tecedura de símbolos, imagens e entidades ainda vive dentro de nós um reflexo dessa situação primordial da existência na promiscuidade. (NEUMANN, 1990, p. 91). Para o autor, como consequência, o mundo torna-se ambivalente para o ego nascente a partir da experimentação em si do prazer e da dor. Dessa maneira: Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO Dia e noite, posterior e anterior, superior e inferior, interior e exterior, eu e tu, masculino e feminino, surgem desse desenvolvimento de opostos, diferenciandose da promiscuidade original; e também aos opostos como sagrado e profano, bem e mal, agora e destinado um lugar no mundo (Idem, p. 91). Parte desse estado primordial de inconsciência sobrevive na psique, pois “[...] tão logo se torna consciente e adquire um ego, o homem passa a sentir-se um ser dividido, visto que também possui um poderoso outro lado que resiste ao processo de tornar-se consciente” (NEUMANN, 1990, p. 99). Nesse aspecto, a psique é síntese da relação de opostos – consciente e inconsciente (pessoal e coletivo) –, amplamente estudada pelo psicólogo e psiquiatra Carl Gustav Jung como fenômeno de dissociação psíquica. Conforme a natureza, a cultura está construída sobre bases binárias, “em permanente resposta dialógica a suas condições biológicas, alimentando essa dinâmica binária” (CONTRERA, 2003, p. 71). Bystrina (1995) postula que a estrutura fundamental dos códigos culturais é determinada pela oposição e “tais oposições binárias dominam com enorme força o pensamento da nossa cultura particular e o desenvolvimento da cultura em geral”. Para o autor, No início da cultura humana a oposição mais importante era vida-morte. E toda a estrutura dos códigos terciários ou culturais se desenvolveu a partir dessa oposição básica: saúde-doença, prazer-desprazer, céu-terra, espírito-matéria, movimentorepouso, homem-mulher, amigo-inimigo, direita-esquerda, sagrado-profano, pazguerra, [...]. Segundo Bystrina (1995), as binaridades acabam naturalmente organizadas em polaridades valoradas de maneira que sempre uma representa a negação da outra. “A necessidade de dar valor vem em primeiro lugar para, logo em seguida, subsidiar a decisão. A polaridade existe, portanto, para facilitar a decisão, a atitude, o comportamento, a ação”. Desta forma, REDISCO 47 presentes em diferentes discursos e materialidades, as estruturas binárias funcionam como diretrizes ou instruções para as atividades e os comportamentos humanos. O homem, portanto, começa a demarcar os polos binários desde o início da sua existência. “Onde não existe perigo não há sinal, não há desafio. Isso significa que os conceitos, idéias ou objetos que não possuem seu correspondente pólo negativo não podem ser sinalizados, não podem ser demarcados” (BYSTRINA, 1995). Para Capra (2006), o equilíbrio entre os pólos é representado por uma estrutura “taoística”, neste sentido [...] todas as manifestações do Tao são geradas pela interação dinâmica desses dois pólos arquetípicos, os quais estão associados a numerosas imagens de opostos colhidas na natureza e na vida social. [...] são pólos extremos de um único todo. Nada é apenas yin ou apenas yang. [...] A ordem natural é de equilíbrio dinâmico entre yin e yang (p. 33). Yin e yang são arquétipos da cultura oriental, mas surgem como estruturas discursivas em diferentes materialidades na cultura ocidental, em padrões binários. No oriente, yang é associado ao homem e yin à mulher, a díade homem-mulher possui um apelo intenso na publicidade, no cinema, na televisão, pois remete à união dos corpos, à sexualidade e ao erotismo que, no filme de Bonello surgem como elementos compositores do argumento. O entrelaçamento de yin (feminino, fêmea, mulher) e yang (masculino, macho, homem) contém, a um só tempo, todas as semioses biológicas, antropológicas e míticas atreladas à fertilidade e à criação da vida, às relações de poder e de gênero. Em vista das imagens originais associadas aos pólos arquetípicos, diríamos que o yin pode ser interpretado como correspondente à atividade receptiva, consolidadora, cooperativa; o yang, à atividade agressiva, expansiva e competitiva. A ação yin tem consciência do meio ambiente, a ação yang está consciente do eu (CAPRA, 2006, p. 35). Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 48 Capra descreve que essa concepção binária da natureza humana no oriente é muito diferente da nossa cultura patriarcal ocidental, que estabeleceu uma ordem rígida em que se supõe que todos os homens são masculinos e as mulheres femininas, distorcendo os sentidos desses conceitos ao conferir aos homens os papéis de protagonistas e a maioria dos privilégios da sociedade. Os produtos do cinema são compostos por textos que refletem os traços da cultura e do tempo onde está inserido, dessa maneira, tomamos o filme como um enunciado que participa da manutenção das formas de ser e estar na sociedade, ao mesmo tempo em que a obra rompe com esses mesmos paradigmas, é provocativa e incômoda ao olhar do espectador. Por se tratar de texto imaginativo, o cinema, por si só, está em oposição à realidade do espectador. Portanto, o encontro entre o espectador e a obra fílmica, esse encontro que momentaneamente chamaremos de dialético, tem como síntese uma resposta às questões existenciais por meio do olhar. O conhecimento, a composição da memória cultural, os discursos acontecem (ou os paradigmas reforçados) nesses encontros. Mito e Cinema: Aproximações Para o senso comum, o termo mito está relacionado aos sentidos de fábula, lenda, história inventada ou inverídica, uma história que não corresponde à realidade. Também pode ser a representação de fatos ou personagens reais, mas exagerada pela imaginação popular; além disso, o mito pode estar relacionado a uma pessoa de significativo papel na sociedade. Na cultura de massas, por exemplo, esse papel geralmente está atrelado aos ídolos: cantores, modelos, esportistas, atores e suas conturbadas histórias pessoais. De qualquer maneira, o mito é sempre uma história repleta de imagens, lugares e personagens marcantes e alegóricos, desejosos de serem decifrados e, por que não dizer, devorarem e serem devorados de várias maneiras: por meio da televisão, do rádio, dos jornais e revistas, da publicidade, por meio do cinema. REDISCO CAMARGO E LUNKES Para compreendermos o filme como mito atualizado, é necessário entendermos que o mito, da mesma forma que o filme, [...] não é um símbolo, mas a expressão direta de seu objeto. Não é uma explicação que satisfaça um interesse científico, mas a ressurreição de uma realidade primordial mediante um relato para satisfazer profundas necessidades religiosas, aspirações morais, convenções sociais e reivindicações, inclusive, para atender às demandas práticas. O mito cumpre na cultura primitiva uma função indispensável: ele exprime, enaltece e codifica as crenças; protege e legitima a moralidade; garante a eficiência do ritual e contém regras que orientam o homem. É, portanto, um ingrediente vital da civilização, não apenas uma simples narrativa, mas uma força ativa à qual se recorre constantemente. O mito não é uma explicação intelectual ou uma fantasia artística, mas um mapa para a fé primitiva e a sabedoria moral (MALINOWSKI, 1949, p. 30, tradução minha). Mucci (2010) destaca a distinção, em todo mito, de quatro planos que se confundem na estrutura discursiva: a) no plano estético, enquanto narrativa, o mito evidencia o encadeamento de sequências, constituindo uma história que produz significâncias para quem narra e para quem recebe a mensagem; b) nos planos teórico e prático, o mito instaura-se como conhecimento, um saber, que se deseja explicativo, na medida em que organiza o relato e estrutura o mundo; c) no plano da linguagem, como história-gênese, o mito nomeia as coisas, hierarquiza-as, é uma historia fundadora que garante a veracidade (ou a naturalização) de um discurso; d) no plano cultural, o mito é autoridade, é História, pois, ao narrar “o tempo, o espaço, o lugar e a função do ser humano, o mito é, sempre, mito das origens, e o conjunto de mitos confundese com a própria história da sociedade em que se engendrou e que a engendrou” (MUCCI, 2010, p. 202). No plano estético, o cinema opera com o encadeamento de sons e imagens, criando sentidos para os produtores do filme e para o público. O filme também se instaura como um Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO saber sobre o mundo, promovendo uma educação estética e visual, tal qual uma janela que se abre diante do espectador, em um panorama que articula diferentes conhecimentos sobre a realidade. Como linguagem, o cinema escolhe, seleciona, organiza o que é mais importante e menos relevante a ser ouvido-visto, e, como analisou Pasolini (1982), as escolhas estéticas do cinema implicam sempre escolhas políticas. O cinema, ao apresentar uma forma de ver, ouvir, perceber o real, por meio do fato ou da ficção, torna-se uma autoridade, pois apresenta sempre modelos (exemplos) de ser e estar em sociedade. Por todos esses conceitos, o cinema mantém diálogos com o mito. Nesse sentido, o mito mantém uma aderência natural às artes baseadas na narrativa fantástica, tais como o cinema. A aproximação entre o cinema e o mito ocorre em dois níveis: o primeiro é que toda estrutura fílmica é também uma narrativa mítica; o segundo nível é que, como narrativa, todo mito pode servir de roteiro para diversas criações cinematográficas. O mito é umas primeiras formas de interação com a realidade na história humana. Em essência, o mito é narrativa, ritual e memória. Não é difícil verificarmos que essa estrutura narrativoritualística-simbólica se repete no sistema do cinema. APROXIMAÇÕES ENTRE MITO E CINEMA MITO CINEMA Narrativas fantásticas, trágicas, com lugares, Os filmes são narrativas que personagens e situações contêm situações, personagens impressionantes com forte e lugares impressionantes, influência na vida do influentes na vida das pessoas. homem. O mito promove a Narrativas ficcionais e conscientização de si, do realísticas promovem a outro e da realidade do conscientização de si, do outro homem. e da realidade social. O mito oferece modelos a O cinema opera com modelos serem seguidos e contribui de ser e estar em sociedade, para a ordem social. considerados ideais. O tempo mítico não possui O tempo do filme é circular começo, meio e fim, é um em sua linearidade. tempo circular, metafísico. O ritual de ir ao cinema O ritual desloca o promove um deslocamento do espectador para o tempo do espectador para o tempo da mito. narrativa fílmica. Na duração O ritual é a encenação do do filme, o tempo vivido é um mito. tempo não cronológico. REDISCO 49 É pela narração que se constroem os mitos e com eles a memória dos homens. E não há como se construir a memória sem uma linguagem que a expresse (COUTINHO, 2003, p. 27). Como sistema de signos e códigos (linguagem), o mito possui uma estrutura que tende a se organizar em narrativa. Com estrutura análoga ao sonho, à alucinação e à vidência – exemplos culturalmente conhecidos de sequência de sons e imagens em movimento –, o texto cinematográfico, como sistema sígnico, forma uma teia de expressão para o mito. Ao constatar que “o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de suporte à fala mítica” (BARTHES, 2001, p. 132), vemos ampliado o campo fenomenológico do mito e podemos afirmar, portanto, que o mito é uma linguagem que parasita outras linguagens. Em contrapartida, o mito também pode ser parasitado pela linguagem do cinema. Nesse sentido, refirome às narrativas míticas que funcionam como pré-roteiros para a criação fílmica, como é o caso do mito do vidente Tirésias, base para o roteiro do filme Tirésia (2003), em análise. Quem tem mais prazer no amor: o homem ou a mulher? Tirésias é um personagem paradoxal da mitologia grega: o profeta era cego e vidente, previa o futuro. Vinculado ao Oráculo de Delfos, situado no templo de Apolo, Tirésias possui presença marcante em muitos mitos, entre eles o mito de Narciso, quando é procurado pela mãe logo após o nascimento do filho, revelando ao vidente seu receio por ter dado à luz uma criança com a beleza igual, ou maior, que a dos deuses. No mito de Édipo, Tirésias é quem revela a Laio, rei de Tebas, que seria assassinado pelo próprio filho e, mais tarde, revelaria a Édipo que matou o pai e casou-se com Jocasta, sua mãe. O principal paradoxo de Tirésias era sua experiência na vivência dos dois gêneros. Segundo uma das versões do mito, quando jovem, Tirésias subiu ao monte Citéron para Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 50 CAMARGO E LUNKES orar. Em sua caminhada, deparou-se com um casal de serpentes místicas que copulavam. Ao separar as serpentes, Tirésias mata a serpente fêmea e, em seguida, é transformado em mulher. Por sete anos, viveu como prostituta. Depois desse período, volta ao monte e encontra outro casal de serpentes. Ao matar um dos répteis, dessa vez o macho, volta a ser homem. Mais tarde, por ser um conhecedor das peculiaridades de ambos os gêneros, Tirésias foi convocado por Zeus e Hera para resolver um impasse: os deuses desejavam saber quem desfrutava mais dos prazeres do sexo, se era o homem ou a mulher. Zeus dizia que era a mulher a sentir mais prazer na relação sexual. E Hera afirmava ser o homem a ter mais prazer. Em delicada posição, mesmo sabendo que sua resposta desagradaria um dos deuses, “Tirésias respondeu sem hesitar que o prazer da mulher era muitas vezes maior que o do homem” (CURY, 2008, p. 387) e, ainda, que o prazer da mulher era proporcionado pelo homem. Entendendo que, por ser homem, o profeta privilegiou o gênero masculino, e “indignada com ele por haver revelado um dos segredos do sexo feminino, Hera castigou-o com a cegueira, mas em compensação Zeus deu-lhe o dom da profecia e uma vida tão longa quanto a de sete gerações humanas” (CURY, 2008, p. 387). CONTEMPLANDO O FILME Na introdução do filme, por alguns minutos, o diretor propõe ao espectador imagens de atividades vulcânicas, a terra em ebulição, líquida e incandescente. Ao se abster dos créditos iniciais, o filme conduz o olhar pelas imagens disformes que remetem à criação do mundo, aos primórdios do planeta, referência a um determinado in illo tempore, tempo e espaço míticos. As imagens da lava, substância em transformação e transformadora, em sintonia com a Sétima Sinfonia de Beethoven, funcionam como uma premonição à narrativa. A introdução se finda com o surgimento do nome do personagem que dá título à obra: Tirésia. O personagem Terranova é um homem que caminha pelas ruas da cidade, visita um REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO museu, o templo das musas. É um esteta, um poeta. Nas primeiras cenas, observa estátuas gregas, cópias de corpos. “O original é vulgar, somente a cópia é perfeita”, professa em pensamento. Na cena seguinte, vai à periferia parisiense, local frequentado por travestis, garotos de programa, cafetões, vários deles brasileiros. Imagens que remetem às cenas de prostituição do filme “Tudo sobre minha mãe”. Aquele ambiente significa para Terranova um jardim (das delícias?) onde deseja encontrar uma flor que julga perfeita. Protegido pelas sombras do bosque noturno, longe da movimentação, encontra-se o recluso Tirésia, uma travesti brasileira de voz melódica, melancólica. Entoa uma canção folclórica, Teresinha de Jesus, parece expressar seu desejo de voltar ao país de origem, um lamento, um canto de saudade. Ao mesmo tempo, a canção, uma cantiga de ninar, parece uma tentativa de o personagem adormecer a si mesmo, uma busca pelo sonho perdido pelos caminhos obscuros, a cada passo, para dentro do bosque. A canção aborda as relações entre Teresinha e três tipos masculinos: o pai, o irmão e o noivo. As relações semânticas entre os nomes Teresinha/Teresa e Tirésia não são inocentes: Tirésia é a “Teresinha”, objeto de desejo de muitos tipos de homens: amantes, pais, irmãos, noivos. Tirésia pertence a todos, e ninguém lhe pertence, e canta: Terezinha de Jesus de uma queda foi-se ao chão. Acudiram três cavalheiros, todos de chapéu na mão. O primeiro era seu pai. O segundo seu irmão. O terceiro foi aquele a quem a Tereza deu a mão. Terezinha levantou-se, levantou-se lá do chão. E sorrindo disse ao noivo: eu te dou meu coração. Da laranja eu quero um gomo, do limão quero um pedaço. Da menina mais bonita quero um beijo e um abraço. Como sereia, atrai a atenção do homem que busca não o sexo, não o michê, mas carrega pretensões poéticas: deseja para si a flor mais perfeita daquele jardim. E a encontra, um ser dúbio, macho-fêmea, e a sequestra somente para si. REDISCO 51 Tirésia é enclausurada. O tempo todo vigiada, controlada pelo olhar do voyeur. Em cativeiro, seu canto se transforma em gritos de desespero e, gradativamente, passa para lamentos até chegar ao silêncio e à confissão do amor pelo próprio algoz. Os dois sexos habitam seu corpo, faz questão de exibir-se, mostrar o pênis e lembrar Terranova da sua condição. Tal qual um ser híbrido – um centauro, uma medusa, um ser meio homem e meio animal – reitera para si e para o outro: “É isso que eu sou, um monstro”. Tenta demover o sequestrador do amor platônico, contemplativo, de trazê-lo de volta à realidade, desconstruindo a poesia de sua duplicidade. [...] Você não tira um travesti da “vida”; ele é que pode te tirar da tua. Ele tem tudo; ele é auto-suficiente. Ele é um casal; se você entrar, você é o terceiro e pode ser excluído. O travesti sabe tudo que um homem quer, pois, como seu desejo é masculino, ele conhece a mulher ideal. Só o homem pode ser a mulher ideal (JABOR, 2009, p. 171). Aos poucos, privado dos hormônios, Tirésia se transforma, sua voz se agrava, sua barba cresce, o homem sob a pele feminina ressurge, vem à tona. Insatisfeito com a degradação da poética ambiguidade de sua “flor perfeita”, Terranova entra em conflito. O algoz pressente que aquele ser que representa a totalidade de dois sexos coexistindo no mesmo corpo está se dividindo. Sai a mulherespetáculo, entra o homem-oráculo, outro tipo de espetacularidade. Entre aceitar e destruir seu objeto de desejo, Terranova escolhe descartar sua vítima. Antes, à força, priva-lhe da visão, fere-lhe os olhos. Cega e abandonada no campo, é preciso Tirésia desprover-se da possibilidade de ver-se bela e perfeita, romper definitivamente sua relação narcísica com o corpo idealizado de mulher, para abrir-se à clarividência, prever o futuro, ver além das aparências e do presente. [...] Será preciso deixar de aparentar para ser. Tirésia, o travesti, é espetáculo. Encenação. Pois seu sequestrador tenta apossar-se de sua beleza, trancá-la, não deixar que ele(a) seja espetáculo público. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 52 CAMARGO E LUNKES Tentará descobrir o que há abaixo da superfície, por trás das evidências, o ser escondido pela aparência. Quer investigar o que existe atrás da máscara. Porque a imagem esconde (SANTOS, 2013). A trama, agora, transcorre em um ambiente rural. Tirésia, ferido, tem seu corpo descartado como um objeto, vazio de sentidos para Terranova. A cidade, espaço do profano, ficou para trás, o campo torna-se o cenário para o metafísico, o sagrado, o oráculo. Uma jovem encontra Tirésia, leva-o para casa e, com o apoio do pai, cuida de seus ferimentos. Ele não profere palavras, vive em silêncio. De cabelos curtos e vestes que lhe cobrem o corpo desprovido de vaidades, o homem Tirésia passa a prever o futuro dos moradores do vilarejo. Seu eu é descentralizado, desprovido de significado, os sentidos agora residem nos outros. Tirésia passa a ser a voz dos outros, narciso que olha para dentro de si e não mais para fora. Uma janela aberta aos acontecimentos futuros. Nessa segunda fase do filme, o diretor realiza diversos jogos de cena, brinca com a percepção do espectador. Tirésia passa a ser interpretado pelo ator brasileiro Thiago Teles, inicialmente interpretado pela atriz brasileira Clara Choveaux. O ator francês Laurent Lucas, que na primeira fase interpreta Terranova, agora dá vida a outro personagem, o padre François. O padre literalmente cuida e contempla as rosas de um jardim e logo se interessa pelo vidente, que desperta concomitantemente inveja, ira e fascínio. As dualidades marcam o filme. Tirésia, um ser andrógino, homem e mulher ao mesmo tempo. Uma atriz e um ator interpretam o mesmo personagem. O mesmo ator dá vida aos personagens Terranova e François. A cidade é o espaço do profano, e o campo, o do sagrado. As palavras e as visões. Oposição entre o eu verdadeiro e o eu construído. Tensão entre a identidade biológica e a identidade de gênero. Natureza e cultura em conflito. Da primeira para a segunda fase do filme, um Tirésia morre, e outro renasce. Impossível ver o filme e não estabelecer diálogos com o mito da alma gêmea, criado por Platão, narrado em seu livro O Banquete. Na tentativa de definir o que é o amor, o REDISCO filósofo descreve uma festa onde todos os convidados traçam elogios a Eros, deus do amor. O momento mais marcante acontece quando o comediógrafo Aristófanes faz um discurso reconhecido como “a teoria da alma gêmea”. Aristófanes profere que, no início dos tempos, os homens eram seres completos. Possuíam duas cabeças voltadas para direções opostas. Quatro pernas e quatro braços permitiam a esses seres movimentos circulares, multidirecionais, muita agilidade e rapidez no deslocamento. Seres de corporeidade esférica, circular, e tinham três gêneros: os masculinos eram filhos do Sol, os femininos eram filhos da Terra, e os andróginos eram filhos da Lua. Entretanto, consideravam-se perfeitos e foram capazes de subir ao Olimpo para enfrentar os deuses. Depois de perdida a batalha para os deuses, Zeus castiga os homens por sua ousadia. Com uma espada, cortou os homens ao meio, separando-os em duas partes. Zeus pede para Apolo cicatrizar o ferimento e voltar a face dos homens para o lado da fenda (o umbigo) para que sempre lembrassem do poder divino. De volta a terra, cada parte saiu desesperada à procura de sua metade. A saudade é o sentimento do desejo de voltar a ser inteiro, um sentimento de que algo está faltando. “Dessa forma, o ser que antes era completo homem-homem gerou o casal homossexual masculino; o ser mulher-mulher, o casal homossexual feminino. E o andrógino (parte homem, parte mulher) gerou o casal heterossexual” (CABRAL, 2013). Portanto, imagina-se, durante o ato sexual-amoroso, que cada metade encontra, por alguns instantes, sua plenitude e outra vez sente-se inteira. Uma poética explicação sobre o surgimento dos gêneros. Tirésia, curiosamente, divide-se para depois tornar-se inteiro. Antes, transita por um processo de transformação. Sendo travesti, nasceu homem. Construiu-se mulher para, mais tarde, desnudar-se de sua própria imagem de mulher, revelando-se um homem mais distante do profano, beirando a assexualidade, sem desejo de seduzir ou ser seduzido. Tirésia torna-se pleno porque agora não é apenas um homem, mas traz em seu corpo e em sua alma todos os outros gêneros Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO – masculino, feminino, andrógino – em forma de memórias, marcas, ecos. O travesti não enfrenta a moral vigente; eles enfrentam a biologia. A garota de programa é conservadora, serve ao sistema sexual vigente. O travesti é revolucionário, quer mudar o mundo. O veado ama o homem; o travesti ama a mulher, mas ele não quer ser mulher, ele quer muito mais, ele não se contenta com pouco, ele é barroco, maneirista (não existem travestis clássicos). Há algo de clone no travesti, algo de robô, pois eles nascem de dentro de si mesmos, eles são da ordem da invenção, da poesia. O travesti não quer ter uma identidade; ele almeja uma ambigüidade sempre deslizante, sempre cambiante [...] (JABOR, 2009, p. 170). O filme ainda nos permite verificar que a alegoria dos homens separados de sua metade explica as relações entre razão e instinto que compõem a psique humana. Cada um de nós traz no corpo e na alma uma memória, uma saudade atemporal do estado de seres completos que um dia fomos. A psicologia profunda descreve esse estado como urobórico1 (NEUMANN, 1990), um estado inconsciente, de sombras. A luz se faz a partir do surgimento da consciência na espécie humana, representa o momento da ruptura, da divisão. Mas a imagem cinematográfica também duplica a realidade e só o faz por meio da luz. As realidades do cinema existem por meio da luz, uma luz dupla: a luz que imprime as imagens do mundo na película, e a luz da projeção, que permite imaginar outros mundos “na parede da caverna escura” das salas de cinema. 1 O termo é uma referência à imagem alquímica chamada de uróboros, representada pela serpente que devora a própria calda. O estado urobórico do homem significa um estado de inconsciência, antes de surgir a consciência, momento em que a psique humana é dividida em sua representação básica: consciente e inconsciente. REDISCO 53 Considerações finais O encontro entre a imagem e o espectador, por meio da narrativa audiovisual, propõe, por alguns instantes, um tipo de religação de duas almas separadas pela linguagem: a alma do espectador e o mito, expressão da alma do mundo. Ao mesmo tempo em que as imagens do cinema buscam nosso olhar para estarem vivas, tornamo-nos mais vivos em nossos encontros furtivos com seus mitos. Todos esses sentidos proporcionados pelo cinema – e suas possíveis conexões com a Educação, a História, a Comunicação, a Filosofia, Psicologia e a Antropologia – devem ser considerados, no entanto há o mais importante: transforma-nos em Tirésias, permitem enxergarmos no escuro. Cada vez que um filme se apresenta ao nosso olhar, nasce uma nova realidade, funda-se um novo mundo. Certamente, um mundo onde reside o fantástico. Seu momento escatológico, seu fim, é marcado quando os créditos dos produtores da obra sobem pela tela. Sempre penso que os nomes em movimento são uma alegoria, espíritos em direção a um panteão imaginário localizado no cosmo da cultura. Diretores, produtores, atores – entre outros personagens dessa arte coletiva: “semideuses” da nossa atual cultura (ou culto?) das visualidades. As produções cinematográficas atuam em dois tempos, um veloz, iconofágico, mercadológico, em sintonia com nossa realidade cultural cambiante; e outro, permanente, relacionado à memória cultural e aos modelos fundantes dos textos da cultura (mitos), um tempo que nunca morre, o tempo do mito. Na visão lévi-straussiana, o mito é uma linguagem que trabalha em um nível muito elevado, no qual o sentido consegue, por assim dizer, deslocar-se do fundamento da linguagem na qual inicialmente se manifestou. “O mito faz parte da língua, é pela palavra que o conhecemos, ele pertence ao discurso” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 224). Mas, como apontou Pasolini (1982), sons e imagens do cinema constituem uma “língua” da realidade, portanto esse território onde circunscrevo os vínculos entre mito e cinema pertence a diferentes culturas orais: uma oralidade baseada no corpo, no gesto e Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014 54 na palavra; outra baseada em sons e imagens em movimento que mediam espectador e realidade, uma cultura oral audiovisual. A proposta deste ensaio é transitar por esse território a partir de obra fílmica. Ver um filme é sempre um prelúdio de uma mudança futura. É como entrar e sair de um rio: quando saímos do cinema não mais somos os mesmos. Nem o filme. 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O Cruzeiro, nesse período, discutia a modernidade em artigos ligados à constituição de sujeitos modernos. Nesse sentido, pode-se perceber a revista como construtora de uma subjetividade serializada, que definiu junto a uma rede conexa de máquinas produtivas, máquinas de controle social e instâncias psíquicas, um modo específico de perceber o mundo a partir de discursos de modernidade. Palavras-chave: gênero; corpo; revista; Brasil. Abstract: This article discusses the ways in which the modern woman has become a discourse in post-World War II in Brazil, and its relation to the maintenance of sexual boundaries. To do so, I used reports and images published by the Brazilian magazine O Cruzeiro, between the 1940s and 1950s. Press has figured as one of the main propagators of expectations related to an "Americanized" modernity in post-WWII Brazil. O Cruzeiro, in this period, was a magazine discussed modernity in articles related to the constitution of modern subjects. In this sense, one can perceive magazine as builder of a serialized subjectivity, which defined – with an associated net of productive machinery, social control machinery, and psychic instances – a particular world from the perspective of discourses about modernity. Keywords: gender; body; magazine; Brazil. Para Marshall Berman (1998), o século 19 foi aquele que reforçou discursivamente a ideia de homem moderno. No século seguinte, a mulher será o alvo do discurso da modernidade. Não que ela não tivesse sido objeto de investimento há dois séculos. Historicamente, em diversos períodos e ocasiões, a mulher foi alvo de debates, mas somente no século 20 é que o tema da mulher moderna ganhará repercussão. Quando REDISCO pensamos sobre a mulher moderna, ou melhor, nas construções que são feitas sobre ela na década de 1950, devemos levar em consideração, portanto, uma historicidade, que nos ajuda a pontuar que não foi mero acaso o investimento realizado sobre a mulher moderna, especialmente em revistas de circulação nacional no Brasil da época, em especial, a revista O Cruzeiro. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 57 Um ideal específico de modernidade habitou ruas e lares brasileiros na época, por meio de anúncios e reportagens, ampliação de espaços de sociabilidade, principalmente a rapazes e moças. Tal ideal, muitas vezes ligado diretamente a uma determinada camada social, acabou por se consolidar a partir de um processo nunca isento de postulações prévias sobre comportamentos (in)adequados para os “tempos modernos”. Diversos setores da sociedade brasileira esforçaram-se para posicionar idealmente a mulher no devir da modernidade. A ela e para ela foram destinadas as colunas femininas em artigos que discutiam os revezes do mundo moderno. A manutenção da feminilidade era reforçada nessas notícias à medida que seus corpos, mais livres e expostos, circulavam pelas cidades, sendo vistos e notados. Neste artigo busco perceber de que forma a mulher moderna tornou-se discurso no segundo pós-guerra, e sua possível relação com a manutenção das fronteiras sexuais, com atenção especial para as reportagens e imagens difundidas pela revista O Cruzeiro, entre as décadas de 1940 e 1950. A imprensa figurou como uma das principais divulgadoras das expectativas ligadas a uma modernidade "americanizada" no Brasil do segundo pós-guerra. O Cruzeiro, nesse período, discutia a modernidade em artigos ligados à constituição de sujeitos modernos. De acordo com Felix Guattari, a mídia e a cultura são consideradas fabricantes de subjetividades, moldadas e consumidas no registro do social, em um sistema maquínico capitalístico onde a produção dá-se em escala internacional. Ao inserirmos O Cruzeiro na perspectiva apontada por Guattari, podemos percebê-la como construtora de uma subjetividade serializada, que definiu junto a uma rede conexa de máquinas produtivas, máquinas de controle social e instâncias psíquicas, um modo de perceber o mundo. A subjetivação enreda os discursos disseminados e articulados pela imprensa, não como uma atividade unívoca da imprensa, como portadora da 'verdade', mas principalmente, envolvida em uma discussão internacional que produz assertivas positivas (discursos e imagens) com relação à adesão REDISCO KLANOVICZ de corpos e corações à modernidade desejada, pulverizada na cultura ocidental. O modelo estadunidense de modernidade, ou o American way of life, situa-se em grande parte nas revistas e jornais que circularam no Brasil no segundo pós-guerra. O fim da Segunda Guerra Mundial marcou o fim da atuação do Birô Interamericano na América Latina e, assim sendo, a influência cultural passou a se dar por meio de outras frentes, tais como as redes de informação, da qual figuravam, por exemplo, as revistas O Cruzeiro e A Manchete. É importante perceber que, embora a imprensa brasileira estivesse marcadamente articulada com agências de notícias internacionais, a revista O Cruzeiro seguiu um rumo peculiar (KLANOVICZ, 2002, p.49). Os elevados números editoriais alcançados apontam para a constituição de um público relevante, principalmente no pós-guerra. A revista fazia parte do conglomerado informacional de Assis Chateubriand, Diários Associados, que no seu auge era composto de jornais em várias regiões do país, de revistas como A Cigarra, além como a primeira estação televisiva do Brasil, já na década de 1950. Nesse período, O Cruzeiro atingiu um "milagre editorial" com uma tiragem semanal de 850 mil exemplares.1 Modernas, mas nem tanto A coluna “Da mulher para a mulher”, assinada por Maria Teresa, trouxe, em 1947, uma pequena história intitulada “Água fria na fervura” (MARIA TERESA, O Cruzeiro, 11 jan. 1947). A fervura em questão era um jovem brasileiro que fora estudar nos EUA e a água fria, uma jovem norte-americana. Em meio a uma tarde de estudos na casa da moça, o brasileiro entendeu de maneira errônea a codificação corporal da jovem americana, que 1De acordo com Accioly Netto calcula-se que cada exemplar fosse lido por cinco pessoas - nada mais do que 4 milhões de leitores a cada semana dentro de um território de 8 milhões de quilômetros quadrados, em uma população que mal passava de 50 milhões de habitantes (NETTO, A. O império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Poro Alegre: Sulinas, 1998. p.38. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA vestia um short e sentou-se de maneira que suas pernas estivessem sob a mesa: “Era uma garota moderna, ventilada, quero dizer, tinha ideias avançadas e vivia sozinha, com o seu terrier”. Quando o jovem tentou beijá-la, ela o afastou de imediato, dizendo: “It is not mutual” traduzido por nossa colunista como “Deixa disso, rapaz, que eu nem te ligo.” Aliás, esse gesto surpreendeu a colunista, já que as brasileiras talvez chamassem a polícia ou gritassem por socorro na janela. Mas a americana não; “era uma moça prática” (MARIA TERESA, O Cruzeiro, 11 jan. 1947). Havia, pois, nesse artigo, um importante estranhamento de conduta, de ambas as partes. A tradução da linguagem corporal deu-se de maneira inversa. Porém, a narração da colunista demonstrava um estranhamento criterioso sobre tais comportamentos. A praticidade da norteamericana parecia, também, incompreendida para a articulista. O comportamento do rapaz brasileiro parecia justificável por conta da situação apresentada. A questão, portanto, não era a notícia em si, mas o fato da autora imprimir-lhe significado. A sexualidade feminina preferencial, segundo Gayle Rubin (1975), em Circulação das mulheres, seria aquela que pudesse responder aos desejos dos outros (RUBIN, 1975, p.16). Nesse sentido, Eileen O’Neill (1997) argumenta que “os significados que um espectador é capaz de atribuir a uma imagem serão uma função de suas crenças sobre a produção da mesma, a maneira como ela funciona estética, cultural e politicamente e como está relacionada com os fatos sobre o mundo” (O’NEILL, 1997, p.83). Em 1947, outra notícia chamava a atenção da colunista. Uma poesia moderna sobre os homens, retirada de uma revista estadunidense, intitulada “Oh, os homens”, foi publicada na coluna “Da mulher para a mulher”: Se sorris para um homem, êle vai logo pensar que queres namorá-lo. Se não o namoras, vai te chamar de ‘iceberg’. Se deixas que êle te beije, vai dizer que devias ser mais reservada. Se não consentes, trata logo de procurar outra. REDISCO 58 Se o elogias, vai te chamar bôba; Mas se não fazes, vai logo dizer que não o compreendes. Se lhe falas de amor e de romance, pensa logo que queres casar com êle. Se não fores meiga, êle te chamará desumana. Se não deixares que êle te faça carinhos, ficará aborrecido. Mas se deixares, dirá que não te dá valor; E vai logo procurar outra pequena que goste de seus agrados. Se saíres com outros rapazes, vai te chamar de leviana; Mas se não saíres, dirá que ninguém te quer. Oh, os homens, Deus do céu! Êles lá sabem o que querem! (MARIA TERESA, O Cruzeiro, 11 jan. 1947, p.72). Da mesma forma que o exemplo anterior, nessa poesia anônima, a embaraçosa situação de não ter certeza se foi entendida ou mal interpretada dá conta, mesmo de maneira irônica, de uma tensão existente nas interpretações acerca das relações amorosas de gênero. Essa tensão interpretativa tinha relação com as práticas de si, pensadas por Michel Foucault (1985, p.101). Para ele, a adequação de si na cultura ocidental apresenta-se em uma dificuldade na maneira pela qual o indivíduo pode se constituir enquanto sujeito moral de suas condutas, e nos esforços para encontrar na aplicação de si o que pode permitir-lhe sujeitar-se a regras e finalizar sua existência (FOUCAULT, 1985, p.101). No Brasil, a constituição do sujeito no segundo pós-guerra imbricava-se com a constituição do sujeito moderno americanizado. Dispositivos discursivos perpetuavam uma vontade de saber sobre esse sujeito, especificamente sobre a mulher moderna. Assim, em meio às páginas da revista O Cruzeiro surgiam artigos os mais diversos, discutindo em que níveis – e, principalmente, em tom de conselho – de que maneira as mulheres deveriam se posicionar, adquirindo posturas modernas, para além de seus lares. Dentro do processo de modernização, observado pelas notícias e imagens publicadas, é importante lembrar que a revista Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 59 alcançava um número cada vez maior de pessoas, ao mesmo tempo, em diversas localidades do país. A partir de sua circularidade, antes mesmo da televisão se popularizar no cenário brasileiro, tecnologias inovavam o cotidiano, criando e recodificando atitudes e hábitos, antes talvez impensados, como a liberação do corpo através das roupas e dos esportes. A modernidade, segundo Françoise Thèbaud (1995) é principalmente a conquista de uma posição de sujeito, de indivíduo de corpo inteiro e de cidadã, a conquista de uma autonomia econômica, jurídica e simbólica relativamente aos pais e dos maridos. No entanto, tais autonomias estavam ainda restritas às camadas médias e altas brasileiras, que, muitas vezes, aderiam a atributos da modernidade com mais rapidez. Carmen Mayrink Veiga, em entrevista a Joaquim Ferreira dos Santos, dava conta desse pressuposto: “a grande colunista internacional da moda era a Elza Maxwell e, por coincidência, ela passou pelo Rio em 58. Fez o maior sucesso. Lembro que naquele momento o assunto girava em torno do lançamento de uma linha de baby-doll pelo Yves Saint-Laurent. Virou uma coqueluche no mundo inteiro. Nada de transparente, porque as pessoas ainda não chegavam a tanto. Mas algumas das blusas do SaintLaurent já deixavam ver alguma coisa, e eu era uma das poucas que usavam” (SANTOS, 1998, p.84). O depoimento de Carmen Mayrink Veiga demonstra uma ‘ousadia’ que poucos talvez, pudessem tentar. O cuidado com o próprio corpo, ou seja, a forma com que aparece ao olhar de outros é, na fala de jovens cariocas, um tema de extrema preocupação. No final do ano de 1950, o jornalista José Leal realizou uma reportagem sobre o que pensavam as garotas (LEAL, O Cruzeiro, 23 dez. 1950, p.58-62 e 72-6). Esse inquérito contou com a participação de seis garotas de bairros cariocas, como Tijuca, Copacabana, São Cristóvão. A reportagem, editada pelo jornalista e publicada na revista, tinha perguntas que invariavelmente tratavam de questões relativas a prendas domésticas, assim como perguntas modernas, ligadas ao uso de determinada indumentária, ressaltando, REDISCO KLANOVICZ muitas vezes, se a moça em questão era fumante ou não. Ana Maria Pinheiro, 23 anos, católica, loira, moradora do bairro Leblon, fumante, parecia aderir às novidades que a circundavam: “vou muito à praia e por isso sou assim queimada e gosto de maiôs de duas peças.” Outras não, como Helena Rosa Gonçalves de 15 anos, não fumante: “não sou como minhas colegas: detesto praias.” O depoimento de Virgínia Pereira Mendes e Maria Angela Veiga, no entanto, eram parecidos. Ambas frequentavam a praia com maiôs discretos. Maria Angela ficava assustada com o uso dos biquínis. A poetisa Ecila Azeredo gostava apenas de olhar o mar e frequentar as praias desertas, em uma investida mais contemplativa do que as demais: “quando for um dia a alguma praia longínqua gostarei de estar bem à vontade, metida em displicentes calças compridas.” É importante perceber, nessa fala, que o uso de calças compridas estava associado a uma espécie de privacidade que a praia deserta lhe proporcionaria. O uso das calças compridas para mulheres, alvo constante de etiquetas e normatizações, encontrava-se, muitas vezes, interiorizado na fala das jovens. A relação com a praia parecia, por meio desses depoimentos, ter sido incorporado no cotidiano de muitas jovens, como fora observado anteriormente. Mas a exposição de seus corpos na praia ainda estava repleta de restrições, às vezes dadas por elas mesmas, como um freio ao modernismo em si, ou até mesmo estabelecer um diferencial com as demais garotas – uma maneira de ser diferente. A individualidade também é uma marca do modernismo, uma contradição anônima dentro da cultura de massas. A praia poderia se tornar “massa” mas as atitudes pareciam estar além, mesmo nessa época, de todos os modismos aos quais estavam sujeitas. Em geral, as normatizações e etiquetas destinavam-se às mulheres das camadas médias, pois detinham acesso ampliado à educação, ao lazer, em suas variadas formas, e à cultura veiculada pela mídia em geral. Cinema, revistas e livros contribuíam na difusão de uma figura modernizante de mulher consumidora. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA Para essa figura idealizada, exigia-se, em certa medida, uma tomada de ação imediata, instigando necessidades de comprar, consumir e trabalhar. Esse acúmulo de bens financeiros teve, porém, um percurso. Carla Bassanezzi (1997) aponta, na década de 1950, um período de ascensão da classe média brasileira. No segundo pós-guerra, o país assistia a um otimismo referente ao crescimento urbano e à industrialização, aumentando as possibilidades educacionais e profissionais para homens e mulheres (BASSANEZI, 1997, p.608). A partir de dados levantados pelo geógrafo Milton Santos (1998), podemos perceber as transformações quantitativas no crescimento urbano brasileiro: “Se o índice de urbanização pouco se alterou entre o fim do período colonial até o final do século 19 e cresceu menos de quatro pontos nos trinta anos entre 1890 e 1920 (passando de 6,8% a 10,7%), foram necessários apenas vinte anos, entre 1920 e 1940, para que essa taxa triplicasse passando a 31,24%” (SANTOS, 1998a, p.22). Entre as décadas de 1940 e 1950, o crescimento do índice de urbanização alterouse rapidamente. Analisando dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1940, na população urbana contava-se 10.891.000, em uma população total de 41.326.000. Já na década de 1950, a população urbana passou a contar 18.783.000, em uma população total de 51.944.000. O índice de urbanização passou de 26,35% para 36,16% em 10 anos (SANTOS, 1998a, p.22). Esse período “de ouro”, no entanto, não aconteceu apenas no Brasil. Segundo Eric Hobsbawm (1998), a ideia dos anos 1950 foi pensada como um contraponto das décadas seguintes de crise, observado, sobretudo, por economistas a posteriori. Sob um ponto de vista capitalista, os chamados “anos dourados” representavam, principalmente para os países “desenvolvidos”, um período único, “uma fase excepcional de sua história” (HOBSBAWM, 1998, p.253). Nas páginas da revista O Cruzeiro, portanto, a idealização da mulher moderna parecia estar na ordem do dia. É o que se observa no artigo “A Mulher Moderna”, de Maria Teresa, em 14 de junho de 1947. Ser REDISCO 60 moderna é, “disputar aos homens os lugares públicos, fumar cigarros, usar e abusar da liberdade individual e afrontar a sociedade com modas ou maneiras mais ou menos extravagantes. Isto, indiscutivelmente, não se enquadra dentro do conceito correto da mulher moderna” (MARIA TERESA, O Cruzeiro, 14 jun. 1947, p.72). O debate inicial era retomado: afinal, como se manter feminina no trabalho, nas ruas, nas novas cenas que incluem as mulheres cotidianamente? A articulista, mesmo concordando com a exclusão das mulheres dos espaços públicos - exclusão historicamente instituída – sugere postar a aparição feminina, desde que esta esteja ancorada em princípios morais: “A mulher moderna, pois, é aquela que, portadora de uma moral própria, pauta a sua conduta dentro de normas ecléticas e equilibradas; é aquela enfim que, perfeitamente esclarecida sobre todos os problemas que agravam a já complicada psicose do mundo – sabe discernir, com exatidão, a perfeição humana da humana maldade” (MARIA TERESA, O Cruzeiro, 14 jun. 1947). Para a autora, o ambiente fora do conforto seguro dos lares era hostil, extremamente cruel para a sensibilidade aguçada da mulher. Era preciso, então, adaptar-se ao novo sistema de vida sem mudanças drásticas. A moral e a interiorização da culpa por seus atos parecia ser a melhor escolha para a mulher moderna. O artigo, ampliado pela circularidade da revista, tornava visível o tão desejado equilíbrio das relações amorosas e pessoais, em uma tentativa de manter a fronteira entre os sexos. Esse material de pesquisa, portanto, possibilita pensar os ideais que se projetavam nos cuidados de si da vida moderna. As palavras, imagens e linguagens são tomadas como práticas discursivas performativas. É Pierre Bourdieu (1996) quem teoriza esse enunciado performativo. Para ele, “a prévisão política é, por si só, uma pré-dição que pretende fazer acontecer o que enuncia; ela contribui praticamente para a realidade do que anuncia pelo fato de enunciá-lo, de prevê-lo e de fazê-lo prever; por torná-lo concebível e sobretudo crível, criando assim a Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 61 representação e a vontade coletivas em condições de contribuir para produzi-lo” (BOURDIEU, 1996, p. 118). Se, na Idade Média, Erasmo de Rotterdam delimitou toda uma faixa acerca da conduta humana, contemplando as principais situações da vida social e de convívio152, no século XX, as revistas, tanto femininas quanto de variedades, traziam normas que promoviam um devir desejado, idealizado, destinado principalmente às mulheres. Segundo Carla Bassanezi (1997), as seções da revista O Cruzeiro traziam imagens femininas e masculinas baseadas em papéis definidos, regras de comportamento e opiniões sobre os mais variados temas. Para ela, essas imagens, “mais do que refletir um aparente consenso social sobre a moral e os bons costumes, promoviam os valores de classe, raça e gênero dominantes de sua época” (BASSANEZI, 1997, p.609). Diferente, portanto, dos manuais estudados por Norbert Elias, que, em geral, eram menos uma questão de gênero do que de civilização (ELIAS, 1994). Poderíamos dizer, dessa forma, que é provável que no segundo pós-guerra, o ‘espelho’ civilizatório tenha sido a mulher, por conta de todo o investimento acerca de sua aparência na sociedade ocidental. Manter a diferenciação sexual em controle parece ter sido a solução encontrada para as constantes crises de masculinidade em nosso século. No segundo pós-guerra, isso não foi diferente. A mulher moderna deveria, sim, participar do mundo moderno; ser a consumidora por excelência da grande massa de mercadorias que adveio com o desenvolvimento capitalista pós-Segunda Guerra. Deveria entrar, portanto, para o mercado de trabalho e adquirir poder de compra, mas sem perder os parâmetros de sua feminilidade. Em 1953, a revista Manchete trouxe um artigo intitulado “Amor Moderno”, na coluna “Conversa Literária”, assinada por P.M.C.. Nesse artigo, o(a) autor(a) discutia o início do amor moderno e percebia uma mudança nos relacionamentos. Segundo o artigo, as mudanças tiveram início em 1929, no período entreguerras, quando “as gerações do primeiro após-guerra começaram a tratar o amor como um esporte, uma diversão, como um coquetel ou uma partida de tênis. ‘Quero viver a minha REDISCO KLANOVICZ vida’ tornou-se o ‘slogan’ da juventude” (MANCHETE, 5 set. 1953, p.57). O mais interessante, porém, encontravase no final da reportagem, quando tratava da rebelião de moços e moças contra as roupas na década de 1920: “acreditamos mesmo que as piscinas foram feitas para que as pessoas se despissem, e não ao contrário. A nudez passou a revelar grande independências de espírito. O maiô curto e apertado quis significar largueza de ideias” (MANCHETE, 5 set. 1953, p.57). Para além do entusiasmo proposto pelo articulista, é preciso ter em mente que a relação com o corpo não segue uma linha evolutiva, que indicaria uma eventual maior nudez no segundo pós-guerra. Na década de 1920 e 1930, houve todo um investimento acerca do corpo saudável, higienizado, ereto enquanto metáfora de um discurso nacionalizador em diversos países, inclusive no Brasil. Já no segundo pós-guerra, os pressupostos eram outros, embora a conceituação acerca da exposição dos corpos com práticas esportivas não tivesse terminado. As mudanças processaram outras percepções sobre o corpo despido, também no segundo pós-guerra, ligado a um ‘admirável mundo novo’ dos lazeres ao ar livre, constituinte de sujeitos modernos. Nesse período, são perceptíveis outros significados para as roupas e comportamentos modernos, demonstrando uma possível ligação com relação a um moderno ato de olhar, em contracorrente acerca dos extensos debates sobre a altura das saias e dos polegares dos biquínis. Para esse autor em 1953, era muito positivo mostrar-se: “a arte plástica já não precisava exprimir a beleza do corpo humano, que se oferecia ao natural [...] A influência da nudez na vida sexual moderna ainda não foi avaliada completamente. O certo é que o abandono do vestuário, elemento importante de sexualidade durante séculos e séculos, alterou profundamente o funcionamento psicológico do desejo” (MACHETE, 5 set. 1953, p.57). Em meio às mudanças, é possível observar que o autor a percebia e discutia a nudez com as ferramentas que tinha naquele momento. Esse olhar de otimismo com Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA relação a nudez, escrito sem respingos de preconceito, sugeria, também, uma mudança na percepção dos corpos. A exposição corporal talvez potencialize, de certa forma, a diferenciação sexual. Segundo Foucault (1993), é na sexualidade que está aquilo que nos identifica, que nos dá identidade. A forma do corpo que aparece nas fotografias, a linha bem definida de seios, cintura e quadris das mulheres, contribui para a constituição de um imaginário de mulher curvilínea. A moda contribuiu, neste sentido, perpetuando a exposição do ser feminino, nas saias, nos decotes, nas calças compridas e até mesmo no uso dos biquínis, dão a impressão de não haver dúvidas sobre a sua aparência explicitamente feminina. Se pensarmos no parâmetro do corpo masculino, a diferenciação visual é gritante, seja nos ternos sisudos, ou ainda na roupa esportiva, a qual deixava os torsos nus, em um reforço de uma aparência viril e assim, masculina. É possível, portanto, pensar a percepção visual, principalmente no século 20, possa ter contribuído como espécie de ‘firmamento’ acerca das fronteiras sexuais. Por meio das imagens e das reportagens dessas revistas fotográficas, torna-se mais visível alguns dos embates sobre o corpo exposto (e moderno). É bom lembrar: mesmo exposto, está inserido em relações humanas, sejam elas de foro sexual, social ou cultural e, assim, não isento de tensões. 62 tradicionalmente inconciliáveis: a ‘vamp’ e a virgem (PASSERINI, 1995, p.381). Na imprensa, através dos anúncios e das reportagens norte-americanas, assim como em reportagens produzidas na própria revista O Cruzeiro, essa imagem imortalizada de Gilda pode ser reconhecida na fala dos profissionais, em geral homens, acerca das mulheres fotografadas, ou melhor, das sereias. As sereias de Copacabana, como a praia, são famosas em todo o mundo. Louras do sul ou morenas do norte, na areias elas passam pelo denominador comum do sol que lhes dá um toque especial, o ‘toque copacabanal’ como já escreveu um poeta. Esta morena está com os olhos voltados para o infinito. Pensando em quê? (AMÁDIO, O Cruzeiro, 15 jan. 1949, p.13). Embora a reportagem de João Amádio, da revista O Cruzeiro, proponha uma análise da praia de Copacabana, as mulheres jovens de maiôs que a frequentam são o mote fundamental, tema em torno do qual giram as fotografias e as legendas escritas propositadamente sob elas, como exemplifica a legenda escrita acima. Na imagem 1, observa-se a referida “sereia” do jornalista e a tentativa de enxergar os signos percebidos pelo articulista: Modernas e sereias A cultura consumista, pulverizada pelos jornais, revistas e filmes no segundo pósguerra, evidencia no campo discursivo, muitas vezes, personagens em parâmetros femininos de imagens tradicionalmente irreconciliáveis. Segundo Luisa Passerini (1995), a cultura de massas desempenhou função-chave na feminização das sociedades, quer como lugar de afirmação dos valores definidos como puramente femininos, entre os quais a individualidade, o bem-estar, o amor, a felicidade, quer como amplificador de imagens sedutoras, desde a ‘cover-girl’ a essa Gilda encarnada por Rita Hayworth que representava a reunificação de dois termos REDISCO Imagem 1: A princesinha do mar. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 15 jan. 1949, p.13. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 63 Pensando a partir dos estudos de John Berger (1999), é possível inferir que, no caso da modelo de Copacabana, o significado de sua imagem mudou de acordo com a fala do jornalista, que vem imediatamente depois dela (BERGER, 1999, p. 31). Sereias são aquelas que, segundo os antigos contos, enlouqueciam e seduziam os homens com seu canto no mar fazendo-os se perder nas profundas águas do oceano, sem chance de retorno. Essa é a imagem comum destas metade-mulheres, metade-peixes. Sua aparição na imprensa é retumbante. O que salta aos nossos olhos é a ausência de homens nestas seções fotográficas, assim como de crianças, ou senhoras e senhores de gerações anteriores: “a atração máxima de Copacabana ainda são as garôtas. Pelo menos para os homens jovens...” O cartão de visitas são as sereias motivo e razão de publicidade, ligando-as a novas práticas de sociabilidades de massa. A praia populariza-se assim como as sereias, que são um atrativo a mais, além do sol e das práticas esportivas. O olhar que percorre o corpo é direcionado; para o corpo masculino o investimento é outro, como observamos anteriormente. As sereias são garotas-propaganda do ser moderno naquele período. A novidade insere-se na produção cultural de (re)significações das praias como paraíso terreno construída em conjunto à uma imagem específica de mulher. Não se trata apenas de valor comercial, mas de construção de um imaginário relativamente fácil de ser reconhecido enquanto tal. Imagens, para além das fotografias publicadas nas páginas das revistas, são constituídas a partir de valores pré-existentes na cultura, “mesmo que em estado latente ou dormente” (FIGUEIREDO, 1998. p.19). O sucesso dessa fórmula é visível. A popularização das praias se deu neste período, principalmente, por e pela imagem de corpos femininos – jovens e bonitos. Com o título “Garotas do Paraná”, (Imagem 2) em 1947, Luiz Alípio de Barros, dava conta da cidade de Curitiba/PR, seus bairros, sua história, sua organização espacial. Mas eram as garotas, no entanto, que emolduravam a cena. Só que, dessa vez, encontravam-se vestidas de maiô nas águas de REDISCO KLANOVICZ uma piscina. Sereias, vaidosas, belas, lindas jovens: esses eram os adjetivos mais utilizados nos comentários das legendas. Sereias também, que se encontravam longe do mar, segundo o jornalista, “Qual sereia dos mares de Ulisses, ela, uma bela curitibana, Imagem 2: Garotas do corta, majestosa e Paraná. O Cruzeiro, Rio de linda, as águas de Janeiro, 15 mar. 1947, p.32. uma moderna piscina. Haverá sereia mais verdadeira do que esta?” (BARROS, O Cruzeiro, 15 mar. 1947, p.32). No ano de 1948, era a vez do estado de Espírito Santo ser focalizado de maneira mais atenta pela revista (Imagem 3). Dessa vez, pouco se falava sobre a localidade, e muito sobre as mulheres. Texto, legenda e imagens em sintonia. Imagem 3: Garotas do Espírito Santo. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 24 jan. 1948, p.85. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA O país é tão rico que nele florescem as mais belas e viçosas flores da vida. Sim, não falemos dos seus minerais, nem da sua fauna, nem propriamente das suas cidades. Falemos das suas flores urbanas, das mulheres brasileiras, que povoam o país, iluminando-o com a sua graça natural, a sua beleza, a sua elegância (BANDEIRA, O Cruzeiro, 24 jan. 1948, p. 85). O investimento na constituição de mulheres sedutoras/sereias é observado também nos anúncios publicados nas revistas do segundo pós-guerra. O anúncio da loja A Exposição Carioca do maiô Star 1947, garantia modelar a plástica das jovens que o comprassem e arrematava: “Você pode ser uma assombrosa sereia” (O Cruzeiro, 1 fev. 1947, p. 31) (Imagem 4). É importante observar de modo semelhante a estética do corpo em evidência, a cintura fina e os quadris mais volumosos atentam para um parâmetro específico, próprio dos “anos dourados” e, ao mesmo tempo, salienta as formas “femininas”. 64 Nestor de Holanda, escrevendo para a seção “Rádio & TV” da revista Manchete, falava com tranquilidade da ‘sedução’ da garota-propaganda, impossível de se resistir, entrando diariamente em sua casa pela tela da recente televisão, “[...] Há momentos em que, recebendo, lá em casa, a afetuosa mensagem comercial, e mergulhado na estase a que me levam os olhos encantadores e a voz doce de quem anuncia, sinto ciúmes do liquidificador que é embalado ou da enceradeira que é adorada. É um impulso de fraco, porém de sincero. Não posso contê-lo” (HOLANDA, Manchete, 1 dez. 1956, p. 52). Imagem 5: Cafiaspirina (Anúncio da Bayer) O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16 jul. 1949, p. 45. Imagem 4: Star 1947. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 fev. 1947, p.31. REDISCO A sedução também era o mote central dos anúncios da Bayer, veiculados na imprensa brasileira durante a década de 1940. No entanto, a sedução promovida pelas mulheres ali representadas tem um teor maléfico e de perdição. As mulheres tinham seus corpos quase despidos: Eva ou Salomé são ali consideradas “Dores célebres da História.” O anúncio sugere que a traição de Eva teria sido, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 65 historicamente, “a primeira ‘grande dor de cabeça.” (O Cruzeiro, 16 jul. 1949, p. 45) O comprimido Cafiaspirina prometia aliviar as dores, usando a figura feminina sedutora como motivo de grande parte das dores (masculinas) da história. Em 1949, encontramos a mesma série de anúncios circulando na imprensa catarinense. Em outro exemplo, o protagonista (a vítima) histórico era Napoleão. O texto evidencia o pensamento de Napoleão em uma imagem feminina que o deixa sentado, sem forças e perturbado; a dor é percebida por conta das estrelas que circulam ao redor de sua cabeça: “Napoleão – um homem de força de vontade, espírito batalhador, tinha também suas lutas íntimas que lhe davam ‘grandes’ dores de cabeça” (O Estado, 13 out. 1949, p.4). Já em outro exemplo, a imagem de uma mulher dançando de maneira provocante, seria capaz de fazer os homens perderem a cabeça. A utilização da imagem bíblica de Salomé remetia a arquétipos que articulavam, assim como as demais imagens da série de anúncios, mulher à perdição, à irracionalidade e à paixão. Imagem 6: Cafiaspirina. O Cruzeiro, Rio de Janeiro: Diários Associados, 25 jun. 1949, p.97. REDISCO KLANOVICZ O recurso de ressuscitar antigos arquétipos femininos, utilizados pela série de anúncios da Bayer, além de constituir uma imagem de mulher objeto (e de consumo), contribui para a manutenção da diferença dicotômica que reforça as fronteiras sexuais. O processo de constituição de sujeitos é observado também em reportagens. No dia 30 de abril de 1949, foi escolhida a Rainha da Cidade do Rio de Janeiro/RJ na Associação Brasileira de Imprensa (ABI). O júri escolheria, dentre as funcionárias de estabelecimentos comerciários e industriais, o “tesouro dos humildes”, no sentido de “exaltar a beleza humilde da moça pobre, da menina que trabalha e constitui ou faz a graça cotidiana e imprevista da cidade” (MACIEIRA, O Cruzeiro, 30 abr. 1949, p.84). Porém, as legendas adjetivavam, nomeando sujeitos. Maria Gracinda, a miss vitoriosa, era, para Rubens Macieira, jornalista que assinava a matéria, “escultura humana, vivente e ardente”. Sua fala na entrevista concedida à rádio era também analisada pelo jornalista: “e os ouvintes ouvem a voz bonita, morena, quente de Maria Gracinda [...].” Ou seja, ela passou a ser ardente, quente, de voz morena. São através dos discursos que se posicionam sujeitos e suas experiências (SCOTT, 1998). E aqui, nessa análise, é a imagem que ilustra a frase: “o significado de uma imagem muda de acordo com o que é imediatamente visto a seu lado, ou com o que imediatamente vem depois dela. Essa autoridade que ela detém é distribuída por todo o contexto em que aparece” (BERGER, 1999, p.31). O desejo passava a ser uma mensagem decodificada pela legenda como uma das qualidades físicas daquela recém escolhida miss. Atributos recentes, mas que marcavam e constituíam sujeitos. Para determinadas mulheres, como as vedetes, o investimento era outro. Sua história imbricava-se, necessariamente, com a própria história dos cassinos. A explosão dos cassinos entre as décadas de 1930 e 1940 demonstrava ser um grande negócio, que aliava números de atrações femininas ao jogo nas verdes mesas. O dinheiro circulava em alta; alguns detinham não apenas um, mas vários cassinos. As Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA dimensões espaciais desses estabelecimentos davam a entender sua grandiosidade e luxo. As vedetes faziam parte desse mundo; mundo de plumas e paetês – um show de revista. Segundo Joaquim Ferreira dos Santos (1998), em 1946, depois do fechamento dos cassinos pelo presidente Eurico Gaspar Dutra (18831974), muitas vedetes perderam o emprego. Houve um período posterior em que alguns empresários passaram a contratar shows internacionais e que muito lembravam os tempos de atividade dos cassinos brasileiros. A ligação era imediata, na medida em que, muitos deles já haviam se apresentado em cassinos:2 Mas nesse tempo justificava-se a presença de show-girls dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, porque (a) havia publico, grande público, todas as noites, e por que (b) com o jogo livre, as roletas funcionando e os viciados gastando, as caixas dos clubes noturnos acusavam rendas fabulosas, que hoje são lembradas pelos proprietários de Cassinos e funcionários de então com uma bruta saudade – saudade e revolta, diante da monotonia noturna da nossa cidade hoje em dia (LEAL, O Cruzeiro, 15 abr. 1949). 66 Pinto, que investiram no Teatro de Revista de maneira incisiva apostando no humor e, principalmente nas vedetes. No decorrer da década de 1950, os teatros de revista eram quase um sinônimo de rentabilidade. Em 1953, rendiam, por show, cinco milhões de cruzeiros. Era um evento mercadológico que se valia de moças que dançavam, exibindo, obrigatoriamente, suas pernas. O moderno era usar o biquíni e a malícia feminina – exigidos pelo público – assim como as pequenas sátiras à política, elementos que garantiam sucesso ao teatro musicado. Segundo os repórteres da revista Manchete, Nicolau Drei e Aymoré Marella, “Há falta de boas bailarinas no teatro porque, além de ‘ballet’, são necessários outros atributos” (DREI, Manchete, 18 jul. 1953, p.28-9). Essa fala localizava-se no canto inferior direito da figura X, que sugere ao leitor que atributos seriam esses. A presença não era apenas de norteamericanas. Em 22 de fevereiro de 1950, o jornal O Estado, de Florianópolis/SC, dava publicidade à chegada de moças argentinas que trabalhariam ao lado de Bibi Ferreira, na cidade do Rio de Janeiro/RJ. A notícia era curta, mas denotava ao leitor catarinense o que poderiam esperar do espetáculo a ser montado: “Trata-se de um original em que veremos Bibi Ferreira, dançando, cantando, representando com sinceridade, com malícia, com graça e brejeirice” (O Estado, 25 fev. 1950, p.5). Esse período de transição foi mais tarde retomado por empresários, como Walter 2 As chamadas “girls” norte-americanas foram contratadas, certa vez, pelo Cassino Atlântico, e também pelo Cassino da Urca. Possivelmente, eram várias companhias, apesar de que não se tratava, nominalmente, cada uma. Para a revista, eram apenas “garotas americanas”, que se destacavam do grupo de revista pela cor do cabelo e pelas sardas no rosto. Cf. LEAL, José. “As girlies milionárias”, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 15 abr. 1949, p.24-8 e 90. REDISCO Imagem 7: DREI, Nicolau & MARELLA, Aymoré. Cinco Milhões por um ‘show’. Manchete, Rio de Janeiro, 18 jul. 1953, p. 28 e 29. Além disso, observa-se, na figura, uma moça que, durante a dança, eleva seu vestido, deixando à mostra suas pernas. Para Joaquim Ferreira dos Santos (1998), o teatro de revista Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014 67 depois foi transformado em teatro rebolado, por conta das mudanças no modo de apresentar os esquetes. A crítica a questões políticas passava por cenários sérios, ocupando também espaço em editoriais de revistas de variedades. No entanto, o humor, aliado à malícia carioca, parecia ser o veículo preferido pelo público, tanto em músicas, como em marchinhas de carnaval e, principalmente, nos teatros de revista, tendo vedetes como porta-vozes e protagonistas de cenas que misturavam, em geral, política e malícia. Corpos femininos foram se tornando visíveis depois do segundo pós-guerra, principalmente na década de 1950, porém de diferentes e específicas formas, variando conforme o sujeito que se desejava construir: a pequena, a sereia, a pecadora, a maliciosa, a ardente, a mãe, a aeromoça, a secretária, a modelo, entre outros sujeitos modernos femininos que foram sugeridos pela imprensa do período. No entanto, o investimento sobre o corpo masculino deu-se pontuando outros atributos com características distantes das características ditas “femininas”, na tentativa de manter visível e cada vez mais nítida a diferença, a fronteira entre os sexos. KLANOVICZ BERMAN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1998. BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1996. CAFIASPIRINA (Anúncio da Bayer). O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16 jul. 1949, p.45. CAFIASPIRINA (Anúncio da Bayer) O Estado, Florianópolis, 13 out. 1949, p.4. CHEGOU o primeiro grupo de argentinas que vai trabalhar ao lado de Bibi Ferreira. O Estado. Florianópolis, 25 fev. 1950, p.5. DREI, N.; MARELLA, A. Cinco Milhões por um ‘show’. Manchete. Rio de Janeiro,18 jul. 1953, p.28-9. ELIAS, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. v.1. FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993. _____. História das Sexualidades 3: o cuidado de si Rio de Janeiro: Graal, 1985. Referências AMÁDIO, J. A cidade de Copacabana I - A princesinha do Mar. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 15 jan. 1949, p.13. BANDEIRA, A. R. Garôtas do Espírito Santo. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 jan. 1948, p.85. BASSANEZI, C. Mulheres dos anos dourados. In: DEL PRIORE, M. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p.607-639. AMOR moderno (Conversa Literária). Manchete. Rio de Janeiro, 5 set. 1953, p.57. FIGUEIREDO, A.C.C.M. 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A pesquisa analisa cartuns produzidos pela artista curitibana Pryscila Vieira, o enfoque recai sobre a principal personagem da cartunista: Amely, uma boneca inflável. Amely é uma releitura da personagem Amélia, eternizada como sinônimo da mulher perfeita na música “Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mario Lago. A boneca foge aos padrões patriarcais e mostra que as conquistas femininas ainda não foram suficientemente abrangentes a ponto de liberar a mulher de certos estereótipos. Palavras-chave: Corpo, gênero, cartum. Abstract: For a long time, the woman was silenced by discourses of a culture that defined them as inferior, weak, and even sick and hysterical, and that, from a male center of power and knowledge, were, and, are also reduced to the margins. The research analyzes cartoons produced by curitibana photographer Pryscila Vieira, the focus is on the main character of cartoonist: Amely, an inflatable doll. Amely is a reinterpretation of the character Amelia, immortalized as a synonym of the perfect woman in the song "Oh how I miss Amelia" Ataulfo Alves and Mario Lago. The doll flees to patriarchal standards and shows that women's achievements were not sufficiently extensive as to release the woman from certain stereotypes. Keywords: Body, gender, cartoon. [...] o corpo é então compreendido como uma exteriorização do interior psíquico do sujeito, fazendo, dessa maneira, a fronteira entre o individual e o social (NOVAES, 2006, p. 58). A mulher esteve, por muito tempo, relegada ao espaço privado do lar, principalmente, devido aos seus cuidados com a maternidade e aos afazeres domésticos, demorando a entrar em cena enquanto sujeito que narra sua História. É possível pensar as REDISCO mulheres como um grupo diverso, mas que compartilham independentes de suas especificidades, questões comuns que convergem para o mesmo ponto; constantemente interditadas para falar, silenciada por discursos de uma cultura que as definiu como inferior, frágil, e, até mesmo, doente e histérica, e que, a partir de um centro masculino de poder e saber, são, consequentemente, reduzidas às margens. No entanto, há especificidades que as diferenciam - para não cair na redução de entender a experiência de gênero dentro de Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014 70 TEIXEIRA desdobramentos homogêneos – particularidades estas ligadas a outros sistemas de hierarquização social, como classe e raça, implicando nas experiências de gênero, portanto, nas formas de negociação estabelecidas entre as práticas e representações. Joan Scott define gênero como "[...] elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e gênero é uma maneira primordial [primary way] de significar relações de poder (SCOTT, 1986, p. 1067). A autora insere a noção de historicidade na concepção de gênero, uma vez que as diferenças entre os sexos são “percebidas”, ou seja, desnaturalizadas e historicamente constituídas. Para além dos estudos localizados, a tarefa do desenvolvimento teórico envolve o entendimento de gênero como campo de disputa do poder, utilizando a noção de poder de Michel Foucault, - do poder como relacional, como rede de relações que nos constituem, a fim de entender a dominação de gênero. O poder entendido como prática social e como tal construída historicamente, com o propósito de ativar micropoderes que se mantêm sob a dominação de saberes dominantes e que se de relações desiguais que partem das relações de força presente na sociedade. O poder, para Foucault, teria: [...] uma essência e seria um atributo, que qualificaria os que o possuem (dominantes) distinguindo-os daqueles sobre os quais se exerce (dominado). Mas, o poder não tem essência, ele é operatório. Não é atributo, mas relação: a relação de poder é o conjunto das relações de forças, que passa tanto pelas forças dominadas quanto pelas dominantes, ambas constituindo singularidades (1994, p.37). Ao rejeitar a utilização do termo gênero como substituto de mulheres, e como substituto das relações entre homens e mulheres, Scott insere o poder e a política no conceito, de maneira a historicizar a própria ideia de relação entre os sexos, e recuperar a história da construção desta relação como arena de disputa política. Assim, apoia-se na argumentação do poder visto como relacional. REDISCO Michelle Perrot (2007), no livro Minha História das Mulheres, registra sobre uma “torrente de discursos” que trazem a mulher à cena, e reconhece que esses discursos, são, em sua maioria, obra de homens e ignoram o que “as mulheres pensavam a respeito, como elas as viam ou sentiam” (2007, p. 22). Tratava-se de representações estereotipadas, fruto de um olhar masculino moldado por uma cultura machista, preconceituosa, muitas vezes, fundada e ancorada por discursos da ciência e da filosofia. Como se as mulheres para se entenderem, necessitassem da mediação do olhar do outro, o que para Foucault, demonstra que isso é uma construção, uma imaginação nociva, porque nesse processo está acontecendo uma forma de sujeição. Assim, para entender as relações de desigualdades das mulheres em relação aos homens, é que se torna necessário voltar-se para as ideias de Foucault quanto este afirma ser “o poder é como uma rede de relações sempre tensas. Não admite polaridade fixa, mas considera que homens e mulheres, através das mais diferentes práticas sociais, constituem relações em que há constantemente negociações, avanços, recuos, consentimentos, revoltas e alianças” (FOUCAULT in LOURO, 2003, p. 39-40). O poder é algo vivo no próprio tecido do corpo social, podendo-se denominar de poder o conjunto de relações presentes em toda parte, na estrutura do corpo social. O poder disciplinar é algo implícito nas organizações, a repressão se realiza através dos saberes constituídos e das relações desiguais, constituídas de acordo com os campos de força existentes na sociedade. Dessa forma, entende-se a relação mulher e poder sobre três perspectivas: a primeira diz respeito à posição da mulher na estrutura de dominação e a contraposição feminino x masculino; a segunda refere-se à pretensão de poder da mulher na sociedade moderna e o porquê a mulher tem participação tão pequena no cenário político; a terceira perspectiva remete a representação que as mulheres empoderadas tem construído com as mulheres em geral. O corpo é uma forma de identificação do feminino e do masculino, mas é especialmente tido como um estigma da Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014 CORPOS EM ROTAÇÃO representação do poder masculino. Em toda a história fica evidente a divisão entre o público, no que se refere aos papéis masculinos, e do privado, quanto aos papéis femininos. É para o âmbito da representação artística que voltaremos nosso olhar, ou seja, análise de como se dá o olhar estético do autor na captação da concepção dominante na poética do corpo feminino. A teoria feminista coloca a questão do corpo no centro da ação política e da produção teórica. São várias as posições feministas, que resultam, muitas vezes, em visões diferentes e até mesmo opostas. Simone de Beauvoir (apud XAVIER, 2007), percebe que o corpo das mulheres é importante, mas não é fundamental: A sujeição da mulher à espécie, os limites de suas capacidades individuais são fatos de extrema importância; o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele tampouco que basta para a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade; a biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da fêmea humana. Julia Kristeva e Nancy Chodorow, em uma perspectiva de construção social da subjetividade, afastam-se da posição da autora do Segundo Sexo, vendo o corpo de forma positiva, marcando socialmente o masculino e o feminino como distintos. Elas buscam a transformação de atitudes, crenças e valores, uma vez que o corpo é uma construção social, uma representação ideológica. Diferentemente das igualitaristas e construcionistas, teóricas como Luce Irigaray, Hélène Cixous, Gayatri Spivak e Judith Butler, entre outras, concebem o corpo como um objeto cultural, utilizado de formas específicas em culturas diferentes. Para elas, o corpo deve ser visto como o lugar de contestação, de lutas econômicas, políticas, sexuais e intelectuais. Observa-se, pois, que os corpos devem ser vistos mais em sua concretude histórica do REDISCO 71 que na sua concretude simplesmente biológica. Existem apenas tipos específicos de corpos, marcados pelo sexo, pela raça, pela classe social e, portanto, com fisionomias particulares. Essa multiplicidade deve solapar a dominação de modelos, levando em conta outros tipos de corpos e subjetividades Elisabeth Grosz (2000) sugere, como abordagem teórica feminista dos conceitos sobre o corpo, a recusa do dualismo mente/corpo, apontando para o entendimento de uma subjetividade corporificada, de uma corporalidade psíquica. E completa, dizendo: “O corpo deve ser visto como um lugar de inscrições, produções ou constituições sociais, políticas, culturais e geográficas. A “subjetividade corporificada” ou “corporalidade psíquica” da mulher, representada nos textos de autoria feminina, inscreve-se no contexto social de forma variada, o que nos permite o estabelecimento de uma tipologia, agrupando as personagens femininas em torno dos vários tipos de representação. Para Grosz (2000), o pensamento misógino define uma auto-justificativa conveniente para a posição social secundária das mulheres ao contê-las no interior de corpos que são representados, até construídos, como frágeis, imperfeitos, desregrados, não confiáveis, sujeitos a várias intrusões que estão fora do controle consciente. A sexualidade feminina e os poderes de reprodução das mulheres são as características culturais definidoras das mulheres e, ao mesmo tempo, essas mesmas funções tornam a mulher vulnerável, necessitando de proteção ou de tratamento especial, conforme foi variadamente prescrito pelo patriarcado. Assim, a noção que emerge é a de que os corpos das mulheres são presumidamente incapazes das realizações masculinas, sendo mais fracos, mais expostos à irregularidades hormonais, intrusões e imprevistos. Dessa forma, observa-se como ocorre a dominação masculina e a construção social e histórica dos corpos. Para Xavier (2007), é na interação com alguém ou alguma coisa que os corpos devem ser vistos. O sexo feminino carrega o peso de ser um corpo subalterno devido a questões culturais produzidas através dos tempos. Segundo Bourdieu, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014 72 TEIXEIRA "[...] a diferença biológica entre o corpo masculino e o corpo feminino é a responsável pelas diferenças de gênero socialmente construídas. Essas diferenças estão na ordem das coisas’[...] (BOURDIEU, 1999, p.17), de forma objetivada, na casa, por exemplo, em todo o mundo social e de forma já incorporada nos corpos e na cultura das pessoas. Nas palavras do Bourdieu (1999, p. 15-16): A constituição da sexualidade [...] nos fez perder o senso da cosmologia sexualizada, que se enraíza em uma tipologia sexual do corpo socializado, de seus movimentos e seus deslocamentos, imediatamente revestidos de significação social – o movimento para o alto sendo, por exemplo, associado ao masculino, como a ereção, ou a posição superior no ato sexual. Conforme o autor, as situações segundo a oposição masculino/feminino, superior/inferior, alto/baixo, direita/esquerda, em cima/embaixo, etc., o que é considerado para muitos análogo aos movimentos do corpo. Também está socialmente construída a ideia de potência sexual do homem, ou o que se espera “de um homem que seja realmente um homem” (BOURDIEU, 1998, p. 20). Assim, explica-se porque a sociedade é regulada pela ordem patriarcal e ditatorial e porque o corpo feminino é, na maioria das vezes, representado de forma subalterna. Perrot (2007) assegura que de Aristóteles a Freud, o sexo feminino era visto como um defeito, como se fosse uma fraqueza da natureza, marcado para a possessão, tanto por sua anatomia quanto por sua biologia. Mais tarde, os homens passam a cobiçar a virgindade das moças. Passa-se a discutir o prazer sexual feminino e, até hoje, discute-se o valor da maternidade. Entretanto, o universo da sexualidade feminina ainda é algo a ser explorado. “O sexo das mulheres é um poço sem fundo, onde o homem se esgota, perde suas forças e sua vida beira a impotência” (PERROT, 2008, p. 65). O que é condenado, especialmente pelas feministas, é a associação da oposição macho/fêmea com a oposição mente/corpo, responsável pela discriminação REDISCO das mulheres. Simone de Beauvior afirma que o conceito do corpo feminino é um obstáculo a ser superado para que se chegue à igualdade. Amely: mulher de verdade!? Pryscila Vieira é uma artista curitibana, uma das poucas mulheres no universo dos cartuns, modalidade na qual as mulheres aparecem mais como tema do que autoras das piadas. Por isso, os assuntos de suas tiras e a forma como as piadas e personagens são construídos revelam faces diferentes para o humor. As tirinhas de Amely são publicadas semanalmente no Caderno Equilíbrio da Folha de São Paulo, no Jornal do Metro, diário de distribuição gratuita publicado no Rio de Janeiro e São Paulo, e no blog http://pryscila-freeakomics.blogspot.com.br/. O cartum apresenta-se como uma anedota gráfica que satiriza comportamentos humanos. É um texto não verbal que veicula crítica social, pessoal ou factual e traz à tona temas que não dependem de fatos isolados para apresentar sentido ou humor. Por isso, para ler um cartum, devem ser ativados conhecimentos que nem sempre estão explícitos no texto, o que auxiliam na compreensão e geração de sentido. A principal personagem da cartunista Pryscila Vieira é Amely, uma boneca inflável. A primeira vista, Amely é apenas uma boneca inflável, ou seja, um objeto sexual perfeito. Ela é desejada, plasticamente bonita e feliz. No entanto, Amely acaba por frustrar homens ao mesmo tempo em que se projeta como salvação de mulheres. Ela gera todo este impacto por dois motivos: ela pensa e fala. O nome Amely é uma releitura da personagem Amélia, eternizada como sinônimo da mulher perfeita na música “Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mario Lago. A personagem de Vieira diferencia-se muito do conceito de mulher de verdade representado pela Amélia da música, pois quebra os paradigmas de resignação feminina. Como se pode observar no cartum: Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014 CORPOS EM ROTAÇÃO 73 Uma questão abordada constantemente é a preocupação da mulher com o corpo, como modo de se tornar desejável ao sexo oposto. Na figura 1, há a releitura de personagens do clássico O Mágico de Oz. Enquanto os personagens tradicionais procuram o mágico para pedir cérebro, coragem e coração, Amely, solicita mais 200 ml de silicone. Figura 1. Disponível em :<http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/> Acesso em 28 de novembro de 2013. A personagem de Vieira tem vontade, iniciativa e independência. Os quadrinhos da Amely tratam dos sentimentos e pensamentos de alguém que não esperamos que os tenha, muito menos que os expresse tão veementemente, o drama comum da mulher moderna. Em uma entrevista concedida ao blog Lady´s Comics, Pryscila Vieira explica de que forma a personagem rompe com as expectativas: Amely chega por encomenda à casa de seu comprador com dois grandes e irreversíveis “defeitos de fabricação” segundo o publico masculino: o primeiro é que ela pensa. O segundo defeito é que ela fala… e muito! Isto a transpõe do patamar de “mulher inflável” para o de “mulher infalível”. Amely torna-se “a mulher de verdade”. Adquire vontade, iniciativa e independência apesar de seus “proprietários” não esperarem nada dela além do que um objeto sexual proporciona. Os quadrinhos da Amely tratam dos sentimentos e pensamentos de alguém que não esperamos que os tenha, muito menos que os expresse tão veementemente. Infelizmente no mundo machista que vivemos, algumas mulheres ainda se deparam com situações semelhantes na sociedade e no mercado de trabalho. (Disponível em: http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/) Figura 2. Disponível em :<http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/> Acesso em 28 de novembro de 2013. Por meio da personagem Amely, a cartunista esboça um corpo a serviço do prazer. Marcel Mauss (2003) afirma que a expressão corporal traz as marcas do contexto cultural ao qual o indivíduo pertence. O corpo, para Mauss, sofre a ação da coletividade e se constitui em modalidade de expressão dos valores da sociedade no qual se insere, que varia com sociedades, épocas, posições sociais. Amely incorpora valores que emanam da mídia, que elege uma variedade atributos que definem como devem ser as características físicas do indivíduo de sua sociedade. A fixação de tais atributos permite a identificação dos indivíduos entre si e possibilita a comunicação entre eles, mobilizando normas e regras aprendidas socialmente. Assim, essa instituição "educa" e auxilia na construção de identidades. Neste sentido, a mídia se tornou, nas últimas décadas, uma poderosa instância de produção do conhecimento. Como afirma Rosa Fischer (1999, p.18): Nos quadrinhos de Amely, ocorre o desfile de diversos temas que tangem o universo feminino. O humor é o espaço que a cartunista se apropria para tecer críticas à situação da mulher na sociedade moderna. Se considerarmos que a mídia, hoje, é responsável por um imenso volume de trocas simbólicas e materiais em dimensões globais, abre-se para a educação um novo conjunto de problemas, numa dinâmica social que exige não só medidas urgentes por parte das políticas públicas educacionais, mas igualmente uma reflexão mais acurada REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014 74 TEIXEIRA sobre as relações entre educação e cultura [...]. Amely , vítima dessa pressão social é impulsionada pela mídia a reproduzir de forma incessante a imagem estereotipada do “belo” que é parte do sistema capitalista. O corpo perfeito é um "dever" feminino. A disciplina, a dor, e a angústia da imposição não são vistas como uma violência, mas são prazer, uma realização pessoal diretamente relacionada a auto-estima. Ser magra, jovem, esbelta, estar na moda, etc., portanto, “ser bela” é uma conquista. A imagem do belo corpo traduz o anseio atual. Esculpidos nas academias de ginástica ou remodelados e formatados em clínicas particulares e hospitais, pelo body building ou body modification, transformálos está na ordem do dia. [...] quer seja por meio desta, quer seja por meio de cosméticos, de forma efêmera ou permanente, o corpo é sempre transformado em signo cultural, como capital do qual fala Bourdieu (NOVAES, 2011, p. 485). Vieira, utiliza Amely para demonstrar que essa imagem idealizada, e inacessível para todas as mulheres, e possibilita o aparecimento de sentimentos de insuficiência, culpabilidade e de vergonha de seu corpo e de si mesma. Essa “rejeição” da própria aparência provoca barreiras e isolamento social a muitas mulheres, ao mesmo tempo em que estimula uma competitividade que as submetem as intervenções das tecnologias da beleza para se tornarem atraentes, para o olhar do outro, no caso de Amely " Preciso de mais 200 ml de silicone" . Mesmo que se considere os aspectos da beleza que preocupam as mulheres frívolos, eles não podem deixar de serem vistos como instrumentos ideológicos e de relações de poder, pelos quais a sociedade, por meio da mídia exerce o controle sobre as mulheres, não apenas sobre sua aparência, mas também sobre seus hábitos e comportamentos, pois para Louro: Os grupos sociais que ocupam posições centrais tem a possibilidade de representar REDISCO não apenas a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também pelos “outros”, apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se os direitos de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos. (LOURO, 2003, p.16) Ao colocar uma boneca inflável como protagonista, a artista critica à transformação do corpo da mulher em objeto. Porém, Amely em nada se compara a uma mulher-objeto, pois tem ideias próprias e é cheia de personalidade. Os quadrinhos da Amely tratam dos sentimentos e pensamentos de alguém que não esperamos que os tenha, muito menos que os expresse tão veementemente. Infelizmente no mundo machista que vivemos, algumas mulheres ainda se deparam com situações semelhantes na sociedade e no mercado de trabalho. (Disponível em: http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/). Foucault, na obra Microfísica do Poder, questiona a condição da mulher e a redução do gênero feminino ao seu sexo. “Vocês são apenas o seu sexo, dizia-se a elas [...]. E este sexo, acrescentaram os médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor de doenças. ‘Vocês são a doença do homem’ ”. (FOUCAULT, 2008, p. 234). Embora muitas evoluções tenham dado à mulher uma posição diferente na sociedade, é possível perceber que, ainda hoje, essa condição do corpo sexualizado prevalece em algumas situações. No cartum, vislumbra-se uma situação em que o corpo feminino é tratado apenas biologicamente. Figura 3. Disponível em :<http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/> Acesso em 28 de novembro de 2013 Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014 CORPOS EM ROTAÇÃO Na terceira tira, satiriza-se o período prémenstrual feminino e os estereótipos comportamentais tidos como verdades nesse período. A cartunista cria uma situação em que o corpo feminino encontra-se totalmente fragilizado e descontrolado. Neste caso, coube ao homem o dever de agir sobre esse corpo, retirando-o do espaço público, onde poderia se tornar perigoso. Christine Delphy, Colette Guillamin apud Swan identificam, com pertinência, “a classe dos homens”, uma ampla coalizão em um sistema histórico e social, o patriarcado, que lhes confere “naturalmente” autoridade, prestígio e a posse das mulheres também enquanto classe, que apaga todas as singularidades. Recorre-se à literatura para fazer uma intertextualidade que provoca o riso. Amely se tranforma em Gregor Samsa, o monstruoso personagem de Kafka em “A metamorfose”, que se transforma em inseto. A metáfora de Kafka é bem significativa, pois ao se tornar um inseto, Gregor Samsa perde sua função social no seio da família da qual foi por muito tempo provedor. Aos poucos, vai sendo esquecido por essa família, mostrando que as relações humanas possuem um caráter meramente funcional. Em Microfísica do poder, Foucault afirma que para sexualizar o corpo feminino e mantêlo sob controle, muitas redes de micro poderes foram acionadas, retificando que esse corpo era doente e fragilizado. “Este movimento antigo se acelerou no século XVIII, chegando à patologização da mulher: o corpo da mulher torna-se objeto médico por excelência”. (FOUCAULT, 2008, p. 234). A sexualidade, nesta perspectiva não está no domínio do “natural”, do biológico, mas na produção discursiva do sexo-necessidade, do sexo-verdade, do sexo- identidade, do sexovida. Diz Foucault O dispositivo da sexualidade tem como razão de ser não apenas se reproduzir, mas proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar os corpos de maneira cada vez mais detalhada e de controlar as populações de forma cada vez mais global (FOUCAULT, 2008, p. 141). REDISCO 75 O dispositivo, portanto, inventa os corpos e os possui, cria-os ao defini-los, ao emoldálos enfatizando o prazer, sem defini-lo nem questioná-lo, para melhor apagar os traços de sua construção e domesticação. Para Rago (1998), “[...] o corpo feminino é uma questão de poder, um lugar estratégico da esfera privada e pública, um ponto de apoio da biopolítica”, (p.495). Ao citar Foucault ela explica que um dos primeiros personagens femininos a ser sexualizado foi a mulher ociosa, a quem sempre deveria ser atribuído a um lote de obrigações conjugais e maternais. Essa histerização da mulher exigiu uma medicalização minuciosa de seu corpo e de seu sexo, feito em nome da responsabilidade que elas teriam em relação à saúde dos seus filhos, da solidez da instituição familiar e da salvação da sociedade (RAGO, 1998, p. 475). Na tira, o estereótipo da mulher com TPM também é animalizado. A maioria das representações femininas nesse período mostra uma mulher que perde o controle de si mesma, deixando-se dominar pelos hormônios e pelo biológico. A TPM marca as mulheres com o sinal da fraqueza e da instabilidade. É um momento de permissão social para que as mulheres liberem suas revoltas e descontentamentos, sua irritabilidade face a situações impostas às mulheres, sem a pecha da histeria e outras. A TPM, porém, é um outro sentido dado à famosa histeria, já que qualquer manifestação mais forte e mais firme, é logo atribuída à TPM, logo, sem valor, já que devidas às funções de seu corpo. A boneca Amely foge aos padrões patriarcais e mostra que as conquistas femininas ainda não foram suficientemente abrangentes a ponto de liberar a mulher de certos estereótipos. Pryscila Vieira desvela o cenário atual da sociedade em relação às mulheres. As imagens que emergem nos cartuns de Vieira apontam para o cotidiano, a experiência das mulheres e suas crises existenciais. A contestação toma a forma da boneca inflável que pensa, tem vida e sente. Nesse sentido Amely é a materialização da Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014 76 TEIXEIRA “mulher de verdade" enquanto Amélia é a projeção do desejo masculino. http://ladyscomics.com.br/entrevista-pryscilavieira. Referências VIEIRA, P. Pryscila-freakomics. Disponível em: http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/. BOURDIEU, Pierre. In: LINS, Daniel (Org.). A dominação masculina revisitada. Campinas (SP): [s.n.],1998. p.11-28. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008. GROSZ, Elisabeth. 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Disponível em: http://intervencoesfeministas.mpbnet.com.br/t extos/tania-entre_a_vida_ea_morte.pdf.> Acesso em 24 de novembro de 2013. VIEIRA, P. Entrevista Lady´s Comics. Disponível em: REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014 DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY: MATERIALIDADES DA PINTURA E DEFORMAÇÕES CORPORAIS Renan Mazzola Universidade Estadual Paulista Resumo: Este artigo a) explicita o diálogo existente entre Michel Foucault e Erwin Panofsky; b) analisa aspectos estéticos das deformidades corporais na arte. A teoria da arte que subjaz às análises foucaultianas das materialidades pictóricas ancora-se nos estudos de Panofsky. Esse diálogo evidencia-se na fase de “interpretação iconológica”, em que a sintomatologia cultural encontra lugar de destaque. Essa sintomatologia é buscada nas análises que realizamos de três obras de arte europeias: As três graças, de P. P. Rubens; O nascimento de Vênus, de S. Botticelli; e Tétis implorando a Júpiter, de J. A. D. Ingres. Palavras-chave: Michel Foucault, Erwin Panofsky, discurso, pintura. corpo. Résumé: Dialogues entre foucault et panofsky: matérialités de la peinture et difformités corporelles. Cet article a) précise le dialogue existant entre Michel Foucault et Erwin Panofsky; b) analyse les aspects esthétiques de difformités corporelles dans l'art. La théorie de l'art qui sous-tend l'analyse foucaldienne de la matérialité picturale est fondée sur des études de Panofsky. Ce dialogue est évident dans la phase d '«interprétation iconologique», dans laquelle la symptomatologie culturelle trouve sa place de premier plan. Cette symptomatologie est recherchée dans les analyses que nous effectuons sur trois œuvres de l'art européen: Les trois grâces, de P. P. Rubens; La naissance de Vénus, de S. Botticelli; et Thétis implorant Jupiter, de J. A. D. Ingres. Mots-clés: Michel Foucault, Erwin Panofsky, discours, peinture, corps. Introdução Entre Foucault (2000) e Panofsky (2009), alguns diálogos foram traçados com relação à materialidade plástica dos enunciados. A partir deles, intencionamos analisar alguns aspectos estéticos das deformidades corporais na arte. Trata-se de visualizar, a partir das categorias e metodologia propostas por Panofsky, a dimensão discursiva de uma imagem clássica. Para isso, esta investigação divide-se em duas partes: a) Foucault leitor de REDISCO Panofsky, em que se busca no texto As palavras e as imagens, de Foucault (2000) as referências aos ensaios presentes em Significado nas artes visuais, de Panofsky (2009), explicitando-se o método proposto por este último; b) A deformidade e o belo, em que se realizam análises de deformidades corporais presentes nas artes plásticas como requisito para a conquista do efeito de harmonia, movimento e belo. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 78 MAZZOLA Foucault leitor de Panofsky As palavras e as imagens1, de Foucault (2000), faz referência direta a alguns ensaios2 de Panofsky (2009). Foucault propõe-se a dizer o que encontrou de novo nesses textos, debruçando-se sobre dois exemplos: a análise das relações entre o discurso e o visível, e a análise da função representativa da pintura nos Essais d’iconologie. O primeiro exemplo remete à fecunda polêmica entre palavra vs. imagem, materialidades distintas com complexos laços de sentido. Por outro lado, a relação discurso vs. imagem é de outra natureza, uma vez que “discurso” remete a múltiplas definições teóricas, a depender do mirante do qual se está partindo. Cremos que ao falar de discurso, Foucault remete ao seu próprio posicionamento arqueológico. Esse texto sobre Panofsky é de 1967, momento em que Foucault está inserido nas reflexões que tomarão forma em A arqueologia do saber, de 1969. Este momento foi também o auge do estruturalismo francês, que colocava em evidência a disciplina linguística: Estamos convencidos, sabemos que tudo fala em uma cultura: as estruturas da linguagem dão forma à ordem das coisas. [...] analisar um capitel, uma iluminura era manifestar o que “isso queria dizer”: restaurar o discurso lá onde, para falar mais diretamente, ele estava despojado de suas palavras. (FOUCAULT, 2000, p.78-79, grifo do autor). O interesse de Foucault no historiador da arte reside no fato de Panofsky elevar o privilégio do discurso, “não para reivindicar a autonomia do universo plástico, mas para 1 “Les mots et les images”. Le nouvel observateur, n. 154, 25 out. 1967, p. 49-50. 2 O livro Significado nas artes visuais é uma coleção de ensaios de Panofsky. Fazemos referência especificamente à Introdução e ao primeiro capítulo desse livro, pois neles se encontra a metodologia desenvolvida por Panofsky, tema das reflexões de Foucault. A Introdução foi publicada com o mesmo título em The meaning of the Humanities, T. M. Greene (Ed.), Princeton, Princeton University Press, 1940, p.89-118. O primeiro capítulo foi publicado como “Introductory” em Studies in Iconology: Humanistic Themes in the Art of the Renaissance, Nova York, Oxford University Press, 1939, p.3-31. REDISCO descrever a complexidade de suas relações: entrecruzamento, isomorfismo, transformação, tradução, em suma, toda essa franja do visível e do dizível que caracteriza uma cultura em um momento de sua história.” (FOUCAULT, 2000, p.79, grifo do autor). As relações entre palavra e imagem3 nas artes são exploradas da seguinte forma: enquanto uma mesma fonte literária pode originar diversos motivos plásticos (a Mitologia nos fala do rapto de Europa e as artes plásticas podem representá-lo de forma violenta ou não; ou então a Bíblia nos fala de Cristo e as artes plásticas lhe atribuem uma certa aparência, etc.), um mesmo motivo plástico pode simbolizar diferentes valores e temas (a mulher nua que é Vício na Idade Média e Amor na Renascença). Para Foucault (2000 p.79), “o discurso e a forma se movimentam um em direção ao outro.” Podemos dizer portanto que a pintura e a literatura, em momentos determinados da história da arte, são caracterizadas por um movimento de atração e repulsão, regido segundo complexas relações. Eles não se tornam, por isso, nem totalmente independentes, nem totalmente dependentes. Nessa fusão, eles mantêm suas individualidades. Tampouco a arte, enquanto forma, esconde um dizer: “Naquilo que os homens fazem, tudo não é, afinal de contas, um ruído decifrável. O discurso e a figura têm, cada um, seu modo de ser, mas eles mantêm entre si relações complexas e embaralhadas. É seu funcionamento recíproco que se trata de descrever.” (FOUCAULT, 2000, p.80). Em um segundo momento de As palavras e as imagens, Foucault remete ao paradigma da representação4 que dominou a pintura ocidental até o final do século XIX. A partir de Gombrich (2001, p.570, trad. nossa) podemos compreender esse paradigma 3 Remetemos aos estudos de Bazin (1989, p.189): “a decifração de uma imagem só pode ser feita com a ajuda de textos literários que a esclareçam.” Ele referese aos textos clássicos gregos e romanos, míticos e religiosos, dos quais se parte para a representação de certos motivos, tipos, figuras, etc. 4 Não ignoramos as reflexões do próprio Foucault sobre a epistémé da representação presentes em As palavras e as coisas. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY segundo graus de figuratividade: “Nós fizemos notar frequentemente que o termo ‘abstrato’ não é muito feliz, e propusemos substituí-lo por ‘não-figurativo’.”5 As pinturas abstratas, por exemplo, são não-figurativas, isto é, não mantêm necessariamente uma relação com objetos, homens, animais, coisas ou deuses tal como foram representados em escolas anteriores. Alguns nomes do paradigma não-figurativo são Wassily Kandinsky (1866-1944) e Piet Mondrian (1872-1944). Para Foucault, quatro regras manipulam a representação presente em um quadro do século XVI: a) o estilo; b) a convenção; c) a tipologia; d) a sintomatologia. Da articulação desses quatro elementos, emerge uma obra de arte. “A representação não é exterior nem indiferente à forma. Ela está ligada a esta por um funcionamento que pode ser descrito [...]” (FOUCAULT, 2000, p.80). As relações entre discurso vs. imagem, sobretudo quando se trata de abordar a materialidade visual segundo suas próprias combinações, envolvem muitos riscos teóricos. Foucault (2000, p.80) afirma: “Ora, colocam-se múltiplos problemas – e bastante difíceis de resolver quando se deseja ultrapassar os limites da língua.” A partir de Panofsky (2009), compreenderemos minimamente as formas de classificação dos elementos visuais de uma pintura, que foram retomadas por Foucault (2000) no tratamento da dimensão discursiva das imagens. A princípio, temos que o campo da história da arte compõe o campo das ciências do homem. A história da arte é uma disciplina humanística: “Historicamente, a palavra humanitas tem dois significados claramente distinguíveis, o primeiro oriundo do contraste entre o homem e o que é menos que este; o segundo, entre o homem e o que é mais que ele. No primeiro caso, humanitas significa um valor, no segundo, uma limitação.” (PANOFSKY, 2009, p.20). No primeiro caso, o conceito de “humanidade” remete à qualidade que distingue o homem dos animais; no segundo caso, particularmente na 5 On a souvent fait remarquer que le terme « abstrait » n'est pas très heureux et on a proposé d'y substituer « non-figuratif ». REDISCO 79 Idade Média, remete a algo oposto a “divindade”. Dessa concepção ambivalente de humanitas nasceu o humanismo. Do prisma humanístico, é inevitável distinguir, dentro do campo da criação, as esferas da natureza e da cultura, “e definir a primeira com referência à última, isto é, natureza como a totalidade do mundo acessível aos sentidos, excetuando-se os registros deixados pelo homem.” (PANOFSKY, 2009, p.23, grifo do autor). O humanista, portanto, estudará esses registros, porque eles têm a qualidade de emergir da corrente do tempo. A história da arte nasce dessa necessidade de interpretação dos registros, vestígios simbólicos que auxiliam na compreensão do próprio homem. Essencialmente, as humanidades e a ciência6 estão em uma relação de complementaridade, e não de oposição. Segundo Panofsky (2009, p.24-25), “enquanto a ciência tenta transformar a caótica variedade dos fenômenos naturais no que se poderia chamar de cosmo da natureza, as humanidades tentam transformar a caótica variedade dos registros humanos no que se poderia chamar de cosmo da cultura.” O historiador da arte é um humanista cujo material primário consiste nos registros que lhe chegam sob a forma de obra de arte. Para Panofsky (2009, p.30), “nem sempre a obra de arte é criada como propósito exclusivo de ser apreciada, ou, para usar uma expressão mais acadêmica, ser experimentada esteticamente.” Para experimentar esteticamente todo objeto (seja ele natural ou feito pelo homem) é preciso não relacioná-lo, intelectual ou emocionalmente, com nada fora do objeto mesmo. A maioria dos objetos que exigem experiência estética são obras de arte. Alguns deles, mesmo concebidos sem o propósito de apreciação, exigem ser 6 Panofsky (2009, p.24) contrapõe os papéis de humanista e cientista, na medida em que “o cientista trabalha com registros humanos, sobretudo com as obras de seus predecessores. Mas, ele os trata não como algo a ser investigado e sim como algo que o ajuda na investigação. Noutras palavras, interessa-se pelos registros, não à medida que emergem da corrente do tempo, mas à medida que são absorvidos por ela.” Para Panofsky (2009), a “ciência” representa as ciências exatas e biológicas – “naturais” –; enquanto as humanidades tratam a “cultura”. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 80 MAZZOLA apreciados. A obra de arte, sob certa perspectiva de abordagem – seja ela literatura, pintura, escultura, arquitetura, música – desdobra-se em forma e conteúdo. Essas duas dimensões, no entanto, são apreendidos simultaneamente no momento da apreciação (experimentação estética). Como decodificar, portanto, a forma7 de uma obra de arte? Como separar a simultaneidade de elementos visuais que, em seu conjunto, significam em uma imagem? Panofsky (2009, p.36) elenca três componentes: Quem quer que se defronte com uma obra de arte, seja recriando-a esteticamente, seja investigando-a racionalmente, é afetado por seus três componentes: forma materializada, ideia (ou seja, tema, nas artes plásticas) e conteúdo. [...] Na experiência estética realiza-se a unidade desses três elementos, e todos três entram no que chamamos de gozo estético da arte. A forma, o tema e o conteúdo, em conjunto, contribuem para a significação da arte visual. Um dos elementos da forma, e talvez o principal deles, é o traço, que transforma o caos das formas no cosmos perceptível, reconhecível e interpretável. Talvez o traço seja uma das categorias primárias fundantes para as artes visuais. Ao distinguir entre o uso da linha como “contorno” e, para citar Balzac, o uso da linha como “le moyen par lequel l'homme se rend compte de l'effet de la lumière sur les objets”, referimo-nos ao mesmo problema, embora dando ênfase especial a um outro: “linha versus áreas de cor”. Se refletirmos sobre o assunto, veremos que há um número limitado desses problemas […] [que] pode em última análise derivar de uma antítese básica: diferenciação versus continuidade. (PANOFSKY, 2009, p.41). 7 “[...] o elemento ‘forma’ está presente em todo objeto sem exceção [...]. Se escrevo a um amigo, convidandoo para jantar, minha carta é, em primeiro lugar, uma comunicação. Porém, quanto mais eu deslocar a ênfase para a forma do meu escrito, tanto mais ele se tornará uma obra de caligrafia; e quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem [...] mais a carta se converterá em uma obra de literatura ou poesia.” (PANOFSKY, 2009, p.32). REDISCO Diferenciação, de um lado, porque coloca em contraste o claro do escuro, o liso e o marcado, o exterior e o interior. Continuidade, de outro, porque as formas têm uma extensão limitada pelo traço – o cosmos das formas. Fundamentalmente, essas reflexões demonstram como o historiador de arte posiciona-se frente aos objetos artísticos e de que forma ele os caracteriza, descreve, diagnostica, interpreta. Assim, ele descreve o objeto de sua experiência recriativa e reconstrói as intenções artísticas em termos que subentendam conceitos teóricos genéricos. É nesse movimento que a história da arte e a teoria da arte se complementam. Para Panofsky (2009), há três fases de apreensão da arte visual, segundo as quais podemos visualizar um método: i. descrição pré-iconográfica; ii. análise iconográfica; iii. interpretação iconológica. Para compreendermos essas três fases, é preciso distinguir iconografia e iconologia. Segundo Panofsky (2009, p.47), “Iconografia é o ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem [temas secundários ou convencionais] das obras de arte em contraposição à sua forma [temas primários ou naturais].” Esses temas ou mensagens possuem três níveis: I. Tema primário ou natural, subdividido em formal ou expressional. É apreendido pela identificação das formas puras, ou seja: certas configurações de linha e cor, ou determinados pedaços de bronze ou pedra de forma peculiar, como representativos de objetos naturais tais que seres humanos, animais, plantas, casas, ferramentas e assim por diante; pela identificação de suas relações mútuas como acontecimentos; e pela percepção de algumas qualidades expressionais, como o caráter pesaroso de uma pose ou gesto, ou a atmosfera caseira e pacífica de um interior. O mundo das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários ou naturais pode ser chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração desses Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY 81 motivos constituiria uma descrição préiconográfica de uma obra de arte. bronze, ou o uso peculiar das sombras em seus desenhos, são sintomáticos de uma mesma atitude básica que é discernível em todas as outras qualidades específicas de seu estilo (PANOFSKY, 2009, p.50-52). II. Tema secundário ou convencional: é apreendido pela percepção de que uma figura masculina com uma faca representa São Bartolomeu, que uma figura feminina com um pêssego na mão é a personificação da veracidade, que um grupo de figuras, sentadas a uma mesa de jantar numa certa disposição e pose, representa a Última Ceia, ou que duas figuras combatendo entre si, numa dada posição, representam a Luta entre o Vício e a Virtude. Assim fazendo, ligamos os motivos artísticos e as combinações de motivos artísticos (composições) com assuntos e conceitos. Motivos reconhecidos como portadores de um significado secundário ou convencional podem chamar-se imagens, sendo que combinações de imagens são o que os antigos teóricos de arte chamavam de invenzioni; nós costumamos dar-lhes o nome de estórias e alegorias. A identificação de tais imagens, estórias e alegorias é o domínio daquilo que é normalmente conhecido por “iconografia”.8 III. Significado intrínseco ou conteúdo: é apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, de um período, classe social, crença religiosa ou filosófica – qualificados por uma personalidade e condensados numa obra. Uma interpretação realmente exaustiva do significado intrínseco ou conteúdo poderia até nos mostrar técnicas características de um certo país, período ou artista, por exemplo, a preferência de Michelangelo pela escultura em pedra, em vez de em 8 “De fato, ao falarmos do “tema em oposição à forma”, referimo-nos, principalmente, à esfera dos temas secundários ou convencionais, ou seja, ao mundo dos assuntos específicos ou conceitos manifestados em imagens, estórias e alegorias, em oposição ao campo dos temas primários ou naturais manifestados nos motivos artísticos. ‘Análise formal’, segundo Wölfflin, é uma análise dos motivos e combinações de motivos (composições), pois, no sentido exato da palavra, uma análise formal deveria evitar expressões como ‘homem’, ‘cavalo’ ou ‘coluna’ [...]. É obvio que uma análise iconográfica correta pressupõe uma identificação exata dos motivos.” (PANOFSKY, 2009, p.51). REDISCO Some-se a isso a seguinte afirmação: Enquanto nos limitarmos a afirmar que o famoso afresco de Leonardo da Vinci mostra um grupo de treze homens em volta a uma mesa de jantar e que esse grupo de homens representa a Última Ceia, tratamos a obra de arte como tal e interpretamos suas características composicionais e iconográficas como qualificações e propriedades a ela inerentes. Mas, quando tentamos compreendê-la como um documento da personalidade de Leonardo, ou da civilização da Alta Renascença italiana, ou de uma atitude religiosa particular, tratamos a obra de arte como um sintoma de algo mais que se expressa numa variedade incontável de outros sintomas e interpretamos suas características composicionais e iconográficas como evidência mais particularizada desse “algo mais”. A descoberta e interpretação desses valores “simbólicos” (que, muitas vezes, são desconhecidos pelo próprio artista e podem, até, diferir enfaticamente do que ele conscientemente tentou expressar) é o objeto do que se poderia designar por “iconologia” em oposição a “iconografia”. (PANOFSKY, 2009, p.52-53). A fase (iii), de interpretação iconológica, requer o elemento histórico para que possa se realizar. É nesse momento (da apreensão da obra de arte) que cremos ser possível traçar um diálogo com a análise do discurso através do componente histórico que rege a sintomatologia9 representada no conjunto de obras de arte e das práticas discursivas de um mesmo período. É na fase da interpretação iconológica que o historiador de arte vai além dos limites da moldura do quadro para compreendê-lo, buscando as condições de produção das pinturas, os fatores sóciohistóricos que possibilitaram a existência de tal obra, os sujeitos envolvidos, etc. Portanto, a fase em que podemos estabelecer um diálogo entre a teoria da arte e 9 Cf. Foucault (2000, p.80). Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 82 MAZZOLA a teoria discursiva é a da interpretação iconológica, sem claro ignorar a contribuição das fases anteriores, quais sejam, da descrição pré-iconográfica e da análise iconográfica. O sufixo “grafia” vem do verbo grego graphein, “escrever”; implica um método de proceder puramente descritivo, ou até mesmo estatístico. A iconografia é, portanto, a descrição e classificação das imagens, assim como a etnografia é a descrição e classificação das raças humanas. [...] Assim, concebo a iconologia como uma iconografia que se torna interpretativa e, desse modo, converte-se em parte integral do estudo da arte, em vez de ficar limitada ao papel do exame estatístico preliminar. [...] Iconologia, portanto, é um método que advém da síntese mais que da análise. (PANOFSKY, 2009, p.53-54). A interpretação iconológica permite observar os discursos que atravessam os quadros, isto é, permite considerar o significado da obra segundo seu exterior constitutivo. Na análise iconográfica, embora por vezes é suficiente o conhecimento dos temas e conceitos específicos através de fontes literárias, método referido por Bazin (1989), isso não garante sua exatidão. “Para captar esses princípios, necessitamos de uma faculdade mental comparável à de um clínico nos seus diagnósticos [...]” (PANOFSKY, 2009, p.62, grifo nosso). Podemos lançar mão ainda de três estratégias para a compreensão de uma obra de arte sem incorrermos ao erro provocado por uma descrição pré-iconográfica dos motivos baseada somente em nossa experiência prática, ou então, pela análise iconográfica das imagens, estórias e alegorias baseada em fontes literárias. São elas, segundo Panofsky (2009): i. história dos estilos: busca compreender como, sob diferentes condições históricas, objetos e fatos foram expressos pelas formas; ii. história dos tipos: busca compreender como, sob diferentes condições históricas, temas específicos REDISCO e conceitos foram expressos por objetos e fatos; iii. história dos sintomas culturais: busca compreender como, sob diferentes condições históricas, as tendências gerais e essenciais da mente humana foram expressas por temas específicos e conceitos. A terceira fase de apreensão da obra de arte, a interpretação iconológica, ocupa-se do terceiro nível dos temas ou mensagens descrito por nós anteriormente: o significado intrínseco ou conteúdo. O diálogo que esboçamos entre a história da arte e da análise do discurso, por meio do componente histórico, não se deu aleatoriamente: para Panofsky (2009, p.63), “É na pesquisa de significados intrínsecos ou conteúdo que as diversas disciplinas humanísticas se encontram num plano comum, em vez de servirem apenas de criadas umas das outras.” A seguir, um breve exercício de análise, a partir da pintura barroca10 de Rubens (15771640): Fig. 1 - P. P. Rubens. As três graças. Cerca de 1635. Óleo sobre tela, 220,5 x 182cm. Madri, Museu do Prado. Fonte: http://www.museodelprado.es 10 Lembramos que, na pintura, o barroco (final do séc. XVI a meados do séc. XVIII) e o Renascimento (séc. XIV a XVI) compartilham o interesse pela Antiguidade Clássica; mas o barroco marca-se, principalmente, pelo esplendor exuberante. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY i. Descrição pré-iconográfica: refere-se à enumeração dos motivos (formas puras reconhecidas como portadoras de significado primário ou natural). No quadro, reconhecemos (percebemos, a partir de traços, cores, volumes) três figuras femininas nuas em movimento de dança: duas das graças olham numa direção e a terceira, na direção oposta. Elas estão envolvidas por um véu, e suas expressões são de alegria. Da mesma forma, reconhecemos elementos da natureza ao redor delas, como uma árvore que lhes serve de moldura à esquerda, uma guirlanda de flores ao alto, e uma paisagem pitoresca ao fundo, com cabras pastando. Há ainda uma fonte, à direita, onde observamos a escultura de um menino que segura uma cornucópia da qual jorra a água. Disto se constitui a descrição pré-iconográfica: a) identificação de formas puras e b) percepção de algumas qualidades expressionais. ii. Análise iconográfica: refere-se à ligação de motivos ou combinações de motivos (composições) com assuntos e conceitos. É o que chamamos de “imagens”; e as combinações dessas imagens chamam-se de “estórias” e “alegorias”. Assim, os três motivos femininos juntos em movimento de dança configuram a imagem das Três Graças, deusas gregas da dança e do movimento (Aglaia, Tália e Eufrosina), filhas de Zeus com Eurínome; são seguidoras de Afrodite e dançarinas do Olimpo, cabia a elas enfeitarem Afrodite (Vênus) quando esta saía para seduzir11. Inicialmente, elas presidiam todos os prazeres humanos, e foram assim retratadas por Rafael, em sua versão do quadro. Posteriormente, passaram a representar a conversação e os trabalhos do espírito, e dessa maneira foram retratadas por Rubens. A fonte, à direita do quadro, em conjunto com a cornucópia segurada pelo querubim, é, na mitologia grega, um símbolo de abundância e nutrição. Este nível de apreensão artística pressupõe muito mais familiaridade com objetos e fatos. Pressupõe a familiaridade com 83 temas específicos ou conceitos, tal como são transmitidos através das fontes literárias, quer obtidos por leitura deliberada ou tradição oral. O sentido, nesse caso, é convencional. iii. Interpretação iconológica: trata-se de observar o significado intrínseco ou conteúdo de uma obra; de tratá-la como um sintoma da sociedade, segundo Foucault (2000). Neste nível, é mais explícita a apreensão das atitudes básicas de uma nação, de um período, de uma classe social, de crenças religiosas ou filosóficas, etc. Por exemplo, compreendemos o estatuto privilegiado que possuíam as pinturas cujos temas eram as narrativas mitológicas nesse contexto do barroco europeu, em geral, e flamengo, em particular. Podemos identificar também um certo padrão de beleza feminina do século XVII, sem desconsiderar a questão do estilo (WÖLFFLIN, 1989, p.2-3), encarnado pelas Três Graças; as formas rechonchudas representavam um padrão de elegância daquele momento histórico. A deformidade e o belo Algo parece chamar atenção quando nos detemos por um instante na pintura de Rubens (fig. 1) e observamos a Graça que se encontra de costas para nós, espectadores. O dorso dessa figura central, mais especificamente sua coluna, parece adotar uma curvatura artificial, embora o conjunto desse motivo (As Três Graças) reflita naturalidade e harmonia do movimento. Seria essa posição corporal impossível de ser atingida? Aventamos essa hipótese com base em relatos bastante conhecidos sobre o sacrifício de um certo realismo anatômico – isto é, da exata correspondência do corpo retratado e do corpo real – em função da conquista de determinados efeitos estéticos. 11 O heleno Hesíodo catalogou as três filhas de Zeus com Eurínome em sua Teogonia. (Cf. Matyszak, 2010, p.115). REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 84 MAZZOLA Fig. 2 - P. P. Rubens. As três graças. Detalhe. Cerca de 1635. Óleo sobre tela. 220,5 x 182cm Madri, Museu do Prado. Fonte: http://www.museodelprado.es No caso da pintura de Rubens, um certo exagero na curvatura da coluna de uma das Graças (fig. 2) contribui/resulta em um efeito estético de movimento harmônico. Bulfinch (2006) enumera que as Graças eram deusas da dança, do banquete, de todas as diversões sociais e das belas-artes. Entre essas práticas, Rubens evidencia em sua tela a habilidade da dança. A harmonia do movimento é o efeito estético almejado. Gombrich (2001, p.264) assim descreve a harmonia conseguida em O nascimento de Vênus, a despeito de algumas estranhezas anatômicas (fig. 3) da deusa grega: Sua pintura apresenta uma harmonia perfeita. É verdade que Botticelli sacrificou uma parte dos elementos essenciais aos olhos de seu predecessor: suas figuras não possuem a mesma solidez e não são desenhadas tão corretamente como aquelas de Pollaiuolo ou de Masaccio. [...] A Vênus de Botticelli é tão bela que nós percebemos com dificuldade o estranho comprimento de seu pescoço, seus ombros caídos e a falta de jeito com que seu braço esquerdo se prende ao corpo.12 Fig. 3 - Botticelli. O nascimento de Vênus. Detalhe. Cerca de 1485. Têmpera sobre tela. 172,5 x 278,5cm. Florença, Galleria degli Uffizi. Fonte: Gombrich (2001, p.265) Essas liberdades de Botticelli (1446-1510) com relação à anatomia feminina acrescentam, segundo Gombrich (2001, p.264) beleza e harmonia à composição, “porque elas contribuem a nos dar a impressão de uma criatura infinitamente terna e delicada vagando em direção à nossa costa como um dom dos deuses.”13 Se Botticelli optasse por uma maior fidelidade anatômica na representação de sua Vênus, talvez o efeito de delicadeza e ternura não fosse atingido – 12 Fig. 4 - J. A. D. Ingres. Tétis implorando a Júpiter. Detalhe. 1811. Óleo sobre tela. 327 x 260cm. Aix-enProvence, Musée Granet. Fonte: Bulfinch (2006, p.211) REDISCO Sa peinture présente une harmonie parfaite. Il est vrai que Botticelli a sacrifié une partie des éléments essentiels aux yeux de son prédécesseur : ses figures n'ont pas la même solidité et elles ne sont pas dessinées aussi correctement que celles de Pollaiuolo ou de Masaccio. […] La Vénus de Botticelli est si belle que nous remarquons à peine l'étrange longueur de son cou, ses épaules tombantes et la maladresse avec laquelle son bras gauche s'attache à son corps. 13 [...] parce qu'elles contribuent à nous donner l'impression d'une créature infiniment tendre et délicate voguant vers nos rivages comme un don des dieux. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY pelo menos não da forma como entrou para um cânone e para uma memória. J. A. D. Ingres (1780-1867), de igual maneira, foi alvo frequente de críticas sobre as estranhezas anatômicas encontradas em suas obras. Vale lembrar que ele manteve-se conservador em um contexto em que se forjava pouco a pouco uma nova concepção para as artes. A França viu nascer, no século XIX, uma grande revolução pictural, que os historiadores da arte costumam dividir em três fases (cf. GOMBRICH, 2001, p.512): a) Romantismo, representado por E. Delacroix (1798-1863); b) Realismo, representado por G. Courbet (1819-1877); c) Impressionismo, determinado por E. Manet (1832-1883). Nesse contexto, J. A. D. Ingres prezava pela “precisão absoluta no estudo do modelo vivo, e desprezava o improviso e a desordem.” (GOMBRICH, 2001, p.504). Foi, por isso, muito criticado por seus contemporâneos que consideravam insuportável sua perfection glacée. Selecionamos, então, um detalhe da obra Tétis implorando a Júpiter, de Ingres (fig. 4), em que se evidencia a estranheza do pescoço de Tétis. A pintura ilustra uma cena da Ilíada, de Homero, em que Tétis implora para Júpiter intervir na guerra de Tróia, poupando a vida de seu filho, Aquiles. “Tétis dirigiu-se imediatamente ao palácio de Jove [Júpiter], a quem pediu que fizesse os gregos se arrependerem da injustiça praticada contra seu filho, concedendo o sucesso às armas troianas.” (BULFINCH, 2006, p.211). Essa pintura foi escolhida por Ingres para ser enviada ao Salão de Paris. O tema de Tétis implorando a Júpiter [...] foi julgado impróprio para um grande quadro de história. Quanto ao tratamento – linearismo exagerado, deformações anatômicas intoleráveis, desprezo total da perspectiva –, ele só podia alienar ainda mais os juízes acadêmicos. A independência, para não dizer excentricidade, de Ingres é concentrada na figura feminina: o pescoço estranhamente estendido de Tétis, achatamento da figura de modo que pernas direita e esquerda se confundam, tudo contribui para fazer dele um corpo abstrato, distante, estranho e ao REDISCO 85 mesmo tempo estranhamente sensual.14 (ZERNER, 2005, p.98). Essa pintura não foi bem recebida no Salão. A forma como Ingres representou o pescoço da divindade grega constitui uma estranheza anatômica. No entanto, bem como os braços de Vênus contribuem para o efeito de ternura e delicadeza, o pescoço de Tétis, para Zerner (2005, p.98) contribui para o efeito de desejo: “É, em uma palavra, a própria inscrição do desejo”15. Uma posição exagerada do pescoço, é certo, mas é a forma que Ingres encontrou para representar um pedido. As consequências da decisão de Júpiter recairiam diretamente sobre Aquiles. O que chamamos aqui de “estranheza” ou “deformidade” anatômica do enunciado visual é, na verdade, requisito para os efeitos de sentido que a obra veicula. Esses detalhes são cuidadosamente planejados pelos grandes artistas a fim de atingir o efeito almejado. Palavras finais A partir do diálogo entre Foucault e Panofsky, demonstramos uma via de análise para enunciados visuais no campo das artes plásticas. Particularmente, destacamos um ponto de contato entre a análise iconográfica (Panofsky) e a análise discursiva (Foucault) que emerge da dimensão histórica das artes. Essa dimensão histórica é responsável por reger as práticas discursivas de uma época, que podem ser apreendidas em análises iconológicas. Com Foucault (2000), ressaltamos que o enunciado visual engloba 14 le sujet de Jupiter et Thétis [...] fut jugé tout à fait impropre pour un grand tableau d'histoire. Quant au traitement – linéarisme outré, déformations anatomiques intolérables, mépris total de la perspective –, il ne pouvait qu'aliéner plus encore les juges académiques. L’indépendance, pour ne pas dire l'excentricité, d'Ingres est concentrée dans la figure féminine ; le cou bizarrement développé (goitre, a-t-on dit) de Thétis, l'aplatissement de la figure de sorte que jambe droite et gauche se confondent, tout concourt à en faire un corps abstrait, distant, étrange et en même temps étrangement sensuel. 15 C'est, en un mot, l'inscription même du désir. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 86 uma sintomatologia cultural indispensável aos olhos do analista de discursos. As estranhezas anatômicas encontradas nas pinturas europeias analisadas demonstram que não é preciso haver uma correspondência fiel entre o corpo real e o corpo representado, desde que eles funcionem segundo os efeitos estéticos almejados pelos artistas. P. P. Rubens, S. Botticelli e J. A. D. Ingres, por meio de técnicas e práticas, souberam todos, em sacrifício da anatomia, fazer emergir o movimento, a ternura e o desejo. MAZZOLA Recebido em: 19 de setembro de 2013 Aceito em: 24 de novembro de 2013. Referências BAZIN, G. História da história da arte: de Vasari a nossos dias. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BULFINCH, T. O livro de ouro da Mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. FOUCAULT, M. As palavras e as imagens. In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 78-81. (Ditos & Escritos, v II). GOMBRICH, E. H. Histoire de l’art. Paris : Phaidon, 2001. MATYSZAK, P. The Greek and Roman myths: a guide to the classical stories. London: Thames and Hudson, 2010. PANOFSKY. E. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2009. WÖLFFLIN, H. Conceitos fundamentais da história da arte: o problema da evolução dos estilos na arte mais recente. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ZERNER, H. Le regard des artistes. In : CORBIN, A. (Dir.). Histoire du corps: 2. de la Révolution à la Grande Guerre. Paris : Éditions du Seuil, 2005. p.87-120. REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014 SER DIFERENTE É NORMAL: GLEE E A PRODUÇÃO DE IDENTIDADES PARA AS MINORIAS SOCIAS Maria do Rosário Gregolin Thiago Ferreira da Silva Universidade Estadual Paulista Resumo: Neste artigo, partindo da análise de um episódio do seriado Glee, buscamos demonstrar que na cultura do espetáculo, da mídia e do politicamente correto em que vivemos contemporaneamente, os veículos midiáticos funcionam como produtores de efeitos de identidade, construindo grupos imaginários de pertencimento de que os indivíduos são “convidados” a participar. Partindo do pensamento de Michel Foucault a respeito do discurso e da produção de subjetividades, discutimos alguns modos pelos quais, nos discursos produzidos e veiculados pelo seriado Glee, são produzidas identidades para as chamadas minorias sociais. Palavras-chave: Identidade; Minorias; Seriado; Mídia; Análise do Discurso. Résumé: Être different est normal: Glee et la production d’identités pour les minorités sociales. Dans ce travail, nous analysons un episode de la série télévisée Glee pour démontrer que dans la culture du spectacle, des médias et du politiquement correct contemporaine, les véhicules des médias travaillent comme des producteurs d’effets d’identité et forment des groupes imaginaires d’appartenance qui « invitent » les individus à les joindre. Nous partons de la pensée de Michel Foucault sur le discours et la production de subjectivités pour discuter les façons de production d’identités pour les minorités sociales dans les discours produits et diffusés par la série télévisée Glee. Mots-clés : Identité ; Minorités ; Série Télévisée ; Médias ; Analyse du Discours. Introdução Foucault analisa, na terceira fase de sua obra (principalmente em sua História da Sexualidade em 3 volumes), uma sociedade em que os discursos têm uma função básica de legitimação, de controle das subjetividades produzidas, em que, por exemplo, apenas as sexualidades legitimadas podem e devem ser exercidas. E como sabemos quais são as sexualidades “legítimas”? Vários são os REDISCO discursos legitimadores: o da medicina, principalmente; o da psicologia, não necessariamente associado ao anterior; o discurso jurídico; o discurso das ciências de modo geral. Porém, atualmente há outro discurso que legitima não apenas a sexualidade, mas identidades ou subjetividades que podem ser assumidas e exercidas: a mídia, obviamente, mais do que veicular os discurso dessas instituições tradicionais, constrói e faz circular seu Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014 88 GREGOLIN E SILVA próprio discurso, (re)produzindo os modos de “ser” legítimos e silenciando os ilegítimos. Assim sendo, o seriado Glee insere-se basicamente em uma vontade de verdade do politicamente correto, sendo constituído como uma espécie de aclamação das chamadas minorias sociais, funcionando como legitimador de subjetividades que, até certo momento recente, deveriam ser silenciadas, pois O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não tem eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-loão desaparecer – sejam atos ou palavras (FOUCAULT, 2010b, p.10). Procuraremos então observar, como movimento analítico no presente artigo, como no discurso da série Glee são “legitimadas” diferentes “minorias”, e como outras são relegadas à exclusão que se dá na ausência de verbo, no jogo positivo entre poderes e resistências na produção dos enunciados da série. Embora seja importante evitar incorrer em uma hipercategorização ao adotar, nos aportes teóricos da AD francesa, o pensamento metodológico de Michel Foucault, não podemos deixar de refletir a respeito de uma categoria que, tanto para Foucault quanto para Pêcheux e também outros autores que trabalham com o conceito de discurso, é considerada a unidade básica do próprio discurso: o conceito de enunciado. Para Foucault, diferentemente de pensamentos como o de Benveniste ou do próprio Michel Pêcheux, o que caracterizaria uma sentença, uma proposição ou mesmo uma imagem enquanto um enunciado é, para além da enunciação ou de seu contexto de produção, aquilo que o autor chama de função enunciativa (FOUCAULT, 2010a, p.99). Assim, para que seja exercida uma função enunciativa, Foucault afirma que algumas condições devem ser preenchidas: essa função enunciativa deve obedecer a um conjunto de condições de possibilidade, ou seja, condições sociais, culturais e históricas que permitiriam REDISCO a emergência de um determinado enunciado em uma determinada sociedade ou contexto cultural; a função enunciativa pressupõe também a existência de uma posição sujeito, ou seja, a posição que um sujeito deve assumir para que um enunciado seja efetivamente enunciado; é também indispensável a existência de um campo associado, já que, para Foucault, todo e qualquer enunciado “tem sempre suas margens povoadas de outros enunciados” (2010a, p. 110); e por fim, para que se exerça uma função enunciativa, é necessária uma materialidade, por meio da qual o enunciado possa se manifestar concretamente; a materialidade, ainda segundo Foucault, está necessariamente ligada a um funcionamento institucional. Além disso, Foucault afirma que o ato de descrever um enunciado nada mais é do que descrever a posição que deve ser assumida por qualquer indivíduo para que seja seu sujeito. Assim, Foucault associa a descrição do enunciado diretamente à descrição dos sujeitos produzidos no e pelo enunciado. Consideramos portanto que o conceito de enunciado como concebido por Michel Foucault não é uma categoria de análise estanque e invariável, mas complexa e com materializações diversas, permitindo compreender o enunciado em uma dimensão mais ampla – mesmo semiológica – que abandona a concepção de enunciado centrada na materialidade linguística, e que permite observar a produção de enunciados no seio de uma determinada sociedade, ligada ao funcionamento institucional dessa sociedade, e aos sujeitos que são produzidos e veiculados em uma determinada cultura, em um dado momento histórico. Eu nasci assim: Glee e a exaltação do “ser diferente” Realizaremos, neste artigo, uma breve análise do episódio de Glee denominado Born this way, 18º episódio da segunda temporada da série. Buscaremos demonstrar que neste episódio são produzidos e veiculados efeitos de sentido que procuram “convencer” o enunciatário de certas posturas e valores, Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014 SER DIFERENTE É NORMAL descrevendo os processos enunciativos que criam efeitos de realidade e de identificação entre o público-enunciatário da série e os valores promovidos pelo próprio programa. O episódio analisado não foi selecionado ao acaso: trata-se de um episódio bastante representativo desses valores básicos de aceitação (e mais do que isso, de exaltação) do diferente que perpassam toda a série. O próprio título do episódio, Born this way, já remete o “leitor” a esses valores. Born this way é uma música da artista pop contemporânea Lady Gaga, que prega, em suas músicas e na construção de sua própria imagem midiática, a importância e o valor daqueles que são “diferentes”, as chamadas minorias (sejam minorias raciais, étnicas, sociais, de orientação sexual, etc.). Para seus fãs, Born this way é o próprio hino da aceitação e exaltação de todo aquele que é excluído, diferente ou rejeitado por qualquer que seja o motivo. Assim sendo, em seu título o episódio já remete a toda essa vontade de verdade contemporânea do politicamente correto que é também a postura assumida pelo seriado Glee. O episódio é também mais longo do que praticamente todos os outros episódios de Glee produzidos até hoje. Os episódios da série possuem sempre uma média de 43 a 45 minutos, enquanto este episódio em particular tem quase 58 minutos de duração, cerca de 12 minutos a mais que o padrão da série. Desse modo, na sua constituição enquanto enunciado em um determinado discurso, o episódio já se destaca de todos os outros. Além disso, no contexto da série, o episódio é uma espécie de divisor de águas, e os acontecimentos que nele se dão colocam “de volta nos eixos” alguns elementos bastante conflituosos na história narrada pelo programa e dão novos rumos para outros. Kurt, o garoto homossexual que foi obrigado a mudar de escola por sofrer bullying constante (incluindo uma ameaça de morte) retorna à escola que é o cenário central da narrativa com uma nova visão a respeito de si mesmo e um namorado considerado uma espécie de príncipe encantado; Rachel, a judia talentosa e autoconfiante da trama, entra em conflito com sua imagem e decide fazer uma cirurgia plástica em seu nariz; e Emma, a REDISCO 89 conselheira escolar apaixonada por Will, professor que lidera o clube de coral, finalmente assume e se propõe a lidar com o fato de ser portadora de um caso grave de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Ao final do episódio, Kurt está restabelecido em sua escola original, com seus amigos, protegido do bullying e de volta ao núcleo da trama, Rachel, após um esforço coletivo do clube, decide não mudar seu nariz e Emma consegue a aprovação de Will por lidar de forma madura com seus “problemas de saúde”. Desse modo, o episódio selecionado torna-se um representante muito significativo daquilo que é em essência o seriado Glee, e oferece uma construção bastante interessante e profícua para a análise que pretendemos desenvolver. Com o intuito de evitar uma descrição exaustiva e pouco útil de tudo que ocorre no episódio selecionado, optamos, por uma questão de método e praticidade, por desenvolver nossa análise focando-nos nas performances de três músicas – e os acontecimentos em torno dessas músicas – que destacam muito claramente essa tentativa de uma valorização do “ser diferente” dentro da narrativa: um mash-up das músicas I Feel Pretty e Unpretty, apresentado por volta dos 12 minutos de episódio; Somewhere Only We Know, cantada aos 32 minutos; e Born This Way, música que dá título ao episódio e também o encerra. Cremos que este percurso analítico será bastante importante para observar a resignificação dessas músicas inseridas neste contexto específico e os efeitos de sentido que daí resultam. Buscarei demonstrar que ao reconstruir no interior da série uma música retirada do cotidiano do espectadorenunciatário, o sujeito enunciador desencadeia um processo que chamamos de re-significação dessa música, transformando também a própria relação entre o enunciatário e a música-enunciado, o que é fundamental na construção de uma de uma marca ou franquia que visa a criar uma relação “afetiva” com seu consumidor. Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014 90 A relação do jovem com sua aparência e a “ditadura da beleza” – I Feel Pretty/Unpretty Se nos permitirmos, por alguns momentos, observar a narrativa do episódio em questão em termos de conflitos, podemos observar que esse se constrói em torno de diversos conflitos entre aceitação e rejeição, entre a aparência ditada pelos padrões de beleza contemporâneos e a importância da essência que a estes deveria se opor. Já no início do episódio, durante um ensaio para preparar os alunos para o concurso nacional de glee clubs1, Rachel, a estrela do clube, é acidentalmente atingida no nariz por Finn, sua paixão impossível que também é o pior dançarino do clube. Levada às pressas para um atendimento médico, Rachel recebe do doutor a informação de que seu nariz está quebrado e que esta seria uma ótima oportunidade para realizar uma “pequena intervenção de vaidade” para remodelar seu nariz, considerado grande. A garota se surpreende e diz que tem medo de modificar sua respiração e “afetar seu talento”, ao que o médico replica afirmando que uma correção de seu desvio de septo poderia inclusive aprimorar suas habilidades vocais. A partir daí se desenvolve o primeiro grande conflito do episódio. Rachel anuncia ao clube de coral que vai realizar a cirurgia plástica para diminuir seu nariz, o que desperta uma discussão a respeito do que cada um no grupo está insatisfeito em relação a si mesmo e que gostaria de modificar. Alarmado, Will, o professor responsável pelo clube, decide intervir, a fim de demonstrar a importância da aceitação das particularidades de cada um, propondo para a semana uma atividade em que cada aluno deve assumir a característica pessoal de que mais se envergonha e cantar a respeito dela, levando os alunos a refletir sobre a “gravidade” de querer modificar a própria aparência por meio de cirurgias e outras técnicas apenas para se encaixar em determinado padrão de beleza. 1 Um glee clube é uma espécie de grupo de coral performático, em que as apresentações não se resumem apenas a cantar músicas, mas abrangem todo um aparato performático que inclui coreografias, figurino, interpretações etc. REDISCO GREGOLIN E SILVA É nesse momento que se dá a primeira performance que destacamos para esta análise. Rachel decide tomar como modelo para seu “novo nariz” o nariz de Quinn, a garota loira-perfeita do clube. Ao mesmo tempo em que as medidas do nariz de Quinn são tomadas e aplicadas em uma simulação fotográfica do rosto de Rachel as duas garotas apresentam em dueto, em cenas intercaladas do consultório médico e da sala do glee club, um mash-up (uma espécie de mistura entre duas músicas que possuem uma base similar) das músicas Unpretty, da banda feminina TLC, que fala justamente da necessidade imposta de modificar a própria aparência com maquiagem e procedimentos estéticos a fim de se inserir num determinado padrão, e I Feel Pretty, do musical West Side Story, música que constrói a imagem de uma garota que se sente bela e perfeita exatamente como é. Podemos constatar, nestes momentos iniciais do episódio, uma construção já bastante complexa que produz, no discurso, uma posição-sujeito que contraria os valores produzidos e veiculados pelo discurso da série, que está insatisfeita com a sua condição de “ser diferente”, de estar fora de um determinado padrão e está disposta a se submeter àquilo que é considerado, nessa construção discursiva, uma sujeição aos mecanismos de poder exercidos nos dispositivos da medicina e da estética. É importante observar, no caso de um tipo de texto essencialmente sincrético que trabalha com a confluência de linguagens tão complexas e distintas como a música, a imagem em movimento e a própria linguagem verbal, como o funcionamento da materialidade é essencial na construção dos sentidos produzidos nesse discurso. No caso desta primeira performance, são construídas cenas em que estão em foco, prioritariamente, os rostos e especificamente os narizes das duas personagens, que colocam em conflito e embate, neste momento, um discurso que preza pela sujeição à “ditadura da beleza” e aquele que deve funcionar como produzido num determinado jogo de resistências. O rosto de Rachel, com seu nariz grande e machucado, é a todo momento colocado pela câmera estrategicamente em oposição ao rosto Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014 SER DIFERENTE É NORMAL de Quinn, a garota com o nariz pequeno e perfeito, como se observa, por exemplo, na transição de cenas que se dá entre os 2 minutos e 38 segundos e os 2 minutos e 42 segundos do episódio, quando a câmera faz um fechamento de cena tendo como centro o nariz de Rachel e a abertura da próxima cena se dá com foco no nariz de Quinn. Também enquanto as garotas apresentam seu dueto, seus rostos estão sempre em close ou em primeiro plano, estabelecendo sempre uma oposição visual entre o rosto de Rachel, com expressões de melancolia e mesmo um certo sofrimento, e o rosto de Quinn, sereno em toda a realização da música (Fig. 1). Figura 1: Quinn e Rachel cantam I feel pretty/Unpretty Por fim, é constatável no próprio arranjo da música a expressão desse “drama” inicial, a necessidade de sujeição à uma norma de beleza física como forma de ser aceito na sociedade. Apesar de Unpretty ser uma música que possui um arranjo com andamento originalmente mais lento, I Feel Pretty é, em seu contexto original (o clássico musical West Side Story), uma música extremamente alegre, dinâmica, em que o eu-lírico declara sua alegria e satisfação por ter encontrado o “amor verdadeiro”. Ao ser inserida no contexto do episódio a música ganha um arranjo bem mais lento que, associado à mesclagem que se faz com as letras das duas canções, o momento da narrativa em que se realiza e a própria expressão dramática adotada principalmente por Rachel ao cantar a música transforma completamente seu sentido; o resultado é uma música triste que condiz exatamente com os questionamentos e perturbações dos personagens nesse momento da narrativa. REDISCO 91 Um lugar para ser aceito – Somewhere Only We Know A segunda performance destacada para análise ocorre entre os 31 minutos e 48 segundos e os 34 minutos e 5 segundos do episódio. Neste momento, Kurt, que havia sido obrigado a trocar de escola para evitar o bullying e ameaças constantes pelo fato de ser gay, está retornando à Wilian McKinley High School, escola onde se passa a maior parte da trama do seriado, após ter passado um semestre na Dalton Academy, um colégio de garotos que possui uma política de tolerância zero com qualquer tipo de preconceito. Neste colégio Kurt conheceu seu futuro namorado Blaine, que o ensinou a ter orgulho de si mesmo e de sua condição de homossexual, além da coragem para enfrentar “de cabeça erguida” qualquer dificuldade ou preconceito a que possa ser submetido. Desse modo, o garoto se sente preparado para retornar à sua antiga escola, aos seus velhos amigos e ao glee club, para poder demonstrar e ensinar a outros aquilo que havia aprendido com Blaine. É no momento da despedida entre Kurt, Blaine e seus amigos da Dalton Academy que Blaine e estes últimos cantam, em homenagem ao amigo que se despede, a música Somewhere Only We Know. Numa performance bastante emocionada no pátio da escola, Blaine se despede de seu amigo e namorado, ao mesmo tempo que o “devolve” para sua escola, seus amigos, enfim, seu “lugar”. Gravada originalmente pela banda de rock alternativo Keane, Somewhere Only We Know é uma música que basicamente constrói a imagem de um eu-lírico que busca um lugar para pertencer, e parece convidar alguém próximo, um amigo ou amante, talvez, para repousar neste “lugar que só nós conhecemos”. A música fala da juventude que passa, da ânsia por encontrar seu lugar no mundo e, mais do que isso, dos caminhos percorridos na busca por esse lugar, e é exatamente isso que está sendo representado neste momento do episódio. Kurt percorreu, em sua juventude, caminhos difíceis e acidentados, bastante solitários, como tantas vezes ele repete ao longo do seriado, mas Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014 92 parece estar finalmente encontrando esse lugar mítico de paz e conforto, representado pela escola e os amigos a que retorna e que o fazem sentir “em casa”, o amor inesperado que recebe de Blaine e pela própria aceitação, já que tanto o retorno à escola como seu namoro seriam impossíveis se Kurt não tivesse aprendido a aceitar, respeitar e orgulhar-se de si mesmo. Temos, já nesse momento, a proposição de uma subjetividade diferente daquela materializada na figura de Rachel no início do episódio; enuncia-se, na figura de Kurt e em seu percurso, a possibilidade de não estar em conformidade com os mecanismos de poder que tem por objetivo uma normalização, a produção de “corpos dóceis”. O garoto aprendeu a aceitar-se, está feliz e realizado com sua “diferença” e, mais do que isso, encontra nessa “diferença” o próprio motivo de sua felicidade. É também após o retorno de Kurt que Rachel, inspirada pelo amigo e todo o clube, decide desistir da cirurgia plástica e manter seu nariz. Figura 2: Em tomada externa, Blaine e seus amigos cantam Somewhere only we know No caso de Somewhere Only We Know, é observável, na materialidade do discurso, uma performance bem mais dinâmica e “solta”, em relação a I Feel Pretty/Unpretty. Apesar de ser uma canção também relativamente lenta, há muito mais movimento na cena construída. Os garotos que cantam a música se deslocam pela cena e, mesmo que não haja propriamente uma coreografia, é bastante visível que há uma “dança” nesta performance, ao contrário da primeira analisada, em que as garotas permanecem sentadas praticamente todo o tempo. Há REDISCO GREGOLIN E SILVA também uma grande mudança no ambiente em que a cena se passa. Enquanto em I Feel Pretty/Unpretty são feitas tomadas exclusivamente internas, Somewhere Only We Know se passa outdoors, ou seja, ao ar livre, o que até este momento não costumava acontecer com frequência no seriado (Fig. 2). Tomadas externas foram bastante raras nas duas primeiras temporadas de Glee, mas esse efeito de sentido de libertação produzido no momento em que o sujeito encontra seu “lugar” parece ser reiterado por meio desse recurso cinematográfico. O orgulho de ser “minoria” – Born This Way A performance que encerra o episódio pode ser considerada também o seu clímax. Como já foi mencionado, Will, o professor responsável pelo glee club, preocupado com a atitude de seus alunos em relação às próprias aparências e “defeitos”, propõe uma lição semanal em que cada um assuma a característica de que mais se envergonha e cante a respeito dela. Além disso, ao fim da semana, Will propõe que todos, incluindo ele mesmo e Emma, conselheira estudantil, utilizem camisetas onde estas características estariam descritas em uma palavra ou frase. É nesse momento, quando Kurt já está de volta à escola e Rachel desistiu de fazer sua cirurgia plástica, que os alunos apresentam a música Born This Way, o hino da aceitação e aclamação da diferença. Enquanto vestem camisetas com rótulos como “Likes boys”, no caso de Kurt, “Nose”, no caso de Rachel, e “Brown eyes”, no caso de Tina, a garota oriental que quer ser como as modelos que vê nas revistas, e cantam “I’m beautiful in my way/’Cause God makes no mistakes/I’m on the right track, baby/I was born this way!” 2, os alunos percebem o quanto tem orgulho de suas diferenças, e como são esses elementos que os fazem “especiais”, com exceção de Santana, a garota lésbica que se recusa a assumir sua sexualidade e permanece no 2 GLEE, 2011. “Eu sou lindo do meu jeito/Porque Deus não comete erros/Eu estou no caminho certo, baby/ Eu nasci assim!” (tradução nossa). Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014 SER DIFERENTE É NORMAL auditório assistindo a performance de seus amigos com uma expressão de frustração. Figura 3: Performance de Born this way Como se pode observar no próprio teor da letra da música cantada, neste momento do episódio são reafirmadas as subjetividades propostas pela série, quando os alunos percebem o quanto tem orgulho de suas diferenças, e como são esses elementos que os fazem “especiais”. Assim, os efeitos de sentido que subjazem a esses enunciados construídos tanto visualmente quanto verbalmente, estão reiterando as funções enunciativas de exaltação e orgulho das diferenças, representados tanto pelo discurso de Glee quanto em todo o processo discursivo construído em torno de uma artista como Lady Gaga, a autoproclamada madrinha dos homossexuais, deslocados e freaks (esquisitos, aberrações) de modo geral. Também o fato de Kurt protagonizar essa apresentação reforça esses sentidos de autoaceitação e resistência pois, como já demonstramos, o garoto é sempre tomado na série como uma espécie de modelo a ser seguido no que diz respeito à coragem de assumir sua posição e lidar com as conseqüências. É interessante destacar, no entanto, alguns efeitos de sentido que se manifestam um pouco mais sutilmente por trás da aparente clareza dessa performance, começando pela escolha dos rótulos utilizados. Como já mencionamos, o rótulo utilizado por Kurt (o garoto homossexual) é “Likes Boys”, e não “Gay” ou “Homossexual”, como se poderia esperar. Assim, o garoto que “gosta de garotos” está assumindo seu próprio rótulo, e não o rótulo que lhe é destinado pela REDISCO 93 sociedade. Ou seja: na escolha lexical desse enunciado, fica discursivamente implícito o fato de que Kurt está aceitando e assumindo aquilo que é, enquanto se rebela e recusa aquilo que os outros dizem que ele seja, um valor essencial para o modelo identitário oferecido não apenas pelo personagem de Kurt, mas em todo o discurso da série. Similarmente, Artie, que é sempre identificado como “o garoto na cadeira de rodas” ou “o cadeirante”, nessa performance em especial carrega o rótulo de “Four Eyes” (quatro olhos). Desse modo, reiterando a imagem de “guerreiro que não precisa de ninguém” construída para Artie desde o início da série e que atingiu seu ápice na performance de Stronger, já discutida aqui, o rótulo em sua camiseta parece deixar claro que o fato de não poder andar não representa para Artie um problema maior do que o problema de usar óculos, já que o personagem deveria escolher para si um rótulo que representasse sua maior vulnerabilidade. É ainda mais interessante perceber que a preocupação de Artie não está no problema de visão que o leva a usar óculos – mas sim no resultado estético de se usar os óculos, ou seja, os “quatro olhos”. Por fim, todos esses efeitos de sentido possuem ainda um realce final que passa facilmente despercebido pelo espectadorenunciatário, mas que ao mesmo tempo é facilmente identificável: durante essa performance, todos os personagens estão utilizando tênis Converse preto. Uma espécie de “Coca-cola” das marcas de calçados, os mundialmente famosos tênis All Star são como um símbolo de liberdade e ao mesmo tempo de pertencimento a um seleto grupo – e, mais do que isso, um grande símbolo da globalização para a juventude. Considerações finais Observamos, na breve análise desenvolvida mas principalmente ao longo de todo o trabalho que temos desenvolvido a respeito do discurso de exaltação e das práticas de produção de identidades para as minorias no seriado Glee, que este se Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014 94 GREGOLIN E SILVA apresenta (propositalmente, sem dúvida) como um discurso de resistência: Glee seria o lugar em que todos os deslocados, os excluídos e os não aceitos são bem vindos, em que ser diferente não é um problema, mas uma regra, e mais do que isso, um privilégio. Porém, pode-se facilmente constatar que por trás dessa fachada inclusiva e politicamente correta, o que realmente se constrói nesse discurso é também uma forma de controle e de exclusão, em que o sujeito que se identifica com os modelos propostos deve, enquanto aparenta aceitar suas diferenças, na verdade ajustar-se a determinadas regras que o tornem o minimamente diferente possível: se na série há a representação da homossexualidade, esta deve ser incluída no mais rígido padrão patriarcal e tradicional existente, onde uma figura feminina, passiva e frágil deve ser protegida e guiada pela figura forte e dominante do “macho”. Se representa-se o deficiente físico, este é representado exatamente como o não-deficiente, tendo seus maiores problemas mais em questões estéticas do que no próprio fato de sua deficiência. Se há uma aparência de discurso libertário quando Rachel decide não realizar sua cirurgia plástica, essa aparência se desmancha quando se observa que o fato de a garota não realizar a cirurgia configura um sacrifício: ela abre mão de ser bela para poder manter sua particularidade e seu talento; fica claro então que ela apenas seria bela se tivesse um nariz “pequeno e perfeito” como o de Quinn. Foucault afirma, no volume I de sua História da Sexualidade, que nas sociedades modernas criou-se um hábito em que Ao nosso ver, podemos afirmar o mesmo em relação às práticas discursivas de produção de identidade para as minorias na mídia contemporaneamente. Deve-se falar das minorias não apenas para dar a visibilidade que por tantos anos foi negada ou para quebrar tabus. Deve-se “falar” das minorias para então poder controla-las no plano do discurso, legitimando sempre as práticas que devem ser adotadas, mas relegando ao indispensável silêncio aquelas que ainda não podem (ou não devem) ser aceitas. Referências FOUCAULT, M. O Sujeito e o Poder. In: RABINOW, P; DREYFUS, H. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. _____. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. _____. História da Sexulidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010b. GLEE. A segunda temporada completa. Los Angeles: Twentieth Fox Home Entertainement, 2011. Recebido em: 12 de outubro de 2013 Aceito em: 05 de dezembro de 2013. Deve-se falar do sexo, e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito, mesmo se o locutor preservar para si a distinção (é para mostra-lo que servem essas declarações solenes e liminares; cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se” (p.30-31; grifo nosso). REDISCO Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014