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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 1-94, 2014!
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da Bahia.
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R25r
REDISCO – Revista Eletrônica de Estudos do Discurso e do
Corpo / Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,
Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo. v.5, n.1,
jan./jun. 2014.-- Vitória da Conquista: Edições UESB, 2014.
Periodicidade: Semestral
Número temático: Corpo e mulher
ISSN: 2316-1213
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1. Análise do discurso - Periódicos. 2. Discurso e
corpo - Periódicos. I. Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, Laboratório de Estudos do
Discurso e do corpo.
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Normalização
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Diagramação da Revista
Cecília Barros-Cairo
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................. 6
ARTIGOS
ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS: (RE)CONFIGURAÇÕES DO CORPO E DO HOMOEROTISMO FEMININO NA
NARRATIVA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
Adenize Franco ......................................................................................................................................... 7
POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR? SEMIOLOGIA E INTERICONICIDADE NO DISCURSO PUBLICITÁRIO
Amanda Braga ............................................................................................................................................ 16
AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA
Daniel de O. Gomes ................................................................................................................................... 27
QUEIMANDO SUTIÃS: O CORPO COMO DISCURSO E ACONTECIMENTO
Elizete de Souza Bernardes e Vanice M. Oliveira Sargentini .................................................................... 37
NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO: O MASCULINO E O FEMININO NO CINEMA
Hertz Wendel de Camargo e Rafaeli Francini Lunkes .............................................................................. 45
IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA: UMA QUESTÃO DE MODERNIDADE
Luciana Rosar Fornazari Klanovicz ........................................................................................................... 58
CORPOS EM ROTAÇÃO: DE AMÉLIA A AMELY, MULHERES DE VERDADE?
Nincia Cecilia Ribas Borges Teixeira ........................................................................................................ 69
DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY: MATERIALIDADES DA PINTURA E DEFORMAÇÕES CORPORAIS
Renan Mazzola ........................................................................................................................................... 77
SER DIFERENTE É NORMAL: GLEE E A PRODUÇÃO DE IDENTIDADES PARA AS MINORIAS SOCIAS
Maria do Rosário Gregolin e Thiago Ferreira da Silva .............................................................................. 87
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APRESENTAÇÃO
“Durante muito tempo se tentou fixar as mulheres à sua sexualidade. ‘Vocês são apenas o
seu sexo, dizia-se a elas [...]. E este sexo, acrescentaram os médicos, é frágil, quase sempre
doente e sempre indutor de doenças. ‘Vocês são a doença do homem’” . Essas palavras de
Michel Foucault, extraídas da Microfísica do Poder (1979, p. 234)1, permitem-nos situar
este volume da REDISCO - Revista Eletrônica de Estudos do Discurso e do Corpo –
relativamente ao tema que norteia os nove (9) artigos aqui publicados: o corpo das
mulheres.
Que corpo é esse construído pela diferença entre os sexos, regulado pelo discurso do
“natural”, sujeito às violências materiais e simbólicas, saturado de uma sexualidade que lhe
determinou espaços, proibições, liberdades, limites, trabalhos e exclusões? Na pluralidade
da história, há movimentos muito antigos, acelerados no século XVIII, que tentaram
responder a essa pergunta. Houve um tempo em que as respostas faziam pesar sobre o corpo
da mulher tanto a obscuridade da reprodução quanto os imperativos que o transformaram
em um mero vaso receptor, ou seja, um território de posse e de cultivo dos homens. Porque
dele emanavam mistérios e forças, transitando entre o sagrado e o laico, esse corpo se
colocou desde a noite dos tempos onipresente nos discursos de poetas, escritores, médicos,
religiosos, políticos, pais e maridos. No campo do imagético, transformou-se em objeto do
olhar e do desejo. Enfim, aquele corpo, antigamente definido, dentre outros aspectos, como
a “doença do homem”, é um corpo imerso na história, fabricado discursivamente, inserido
nas formas sociais da cultura e enredado pelas tramas normativas da aparência, sexualidade,
maternidade etc.
É, pois, para esse corpo que se voltam as discussões do presente volume. Sob olhares
díspares, os autores trazem perspectivas do campo da história, da literatura, da comunicação
social e da análise do discurso, com o intuito de pensarem na produção discursiva do corpo
das mulheres, focalizando, sobretudo, sua história – física, estética, política, ideal e material
– reinventada na encruzilhada de discursos da mídia, da literatura e das artes plásticas.
Denise Gabriel Witzel
Nilton Milanez
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
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Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 1-94, 2014!
ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS: (RE)CONFIGURAÇÕES DO CORPO E
DO HOMOEROTISMO FEMININO NA NARRATIVA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
Adenize Franco
Universidade Estadual do Norte do Paraná
Resumo: Proponho, nesse artigo, a discussão e análise acerca da (re)configuração
literária e discursiva do corpo feminino em dois contos do escritor Marcelino
Freire. Os traços e os laços que configuram a representação de relações
homoeróticas nos contos Minha flor (2003) e Declaração (2010) repercutem não
somente o tema da lesbianidade na narrativa contemporânea brasileira quanto
indagam entrelaçamentos discursivos de poder e silenciamento do amor que,
atualmente, já ousa dizer seu nome. Assim como, busco salientar que tais
narrativas (re)configuram a construção do corpo dentro das relações homoafetivas
distintamente de narrativas literárias que as precederam.
Palavras-chave: Narrativa Contemporânea Brasileira; corpo; homoerotismo
feminino; Marcelino Freire.
Abstract: Among traces, among bonds: (re)configuration of the body and of
the female homoerotism in the brazilian contemporary narrative. I propose in
this article the discussion and the analysis about the literary and discursive (re)
configuration of the female body in two short stories from the writer Marcelino
Freire. The traces and the bonds that configure the representation of the
homoerotics relationship in the short stories My flower (2003) and Declaration
(2010) deflect not only the lesbianity theme in brazilian contemporary narrative as
inquire discursives entanglements of power and silencing of the love that nowadays
dare already to say his name. Therefore, I seek emphasize that those narratives (re)
configure the construction of the body inside the homo-affective relationships
distinctly from literary narratives that precede them.
Keywords: Brazilian Contemporary Narrative; body; female homoerotism;
Marcelino Freire.
Entre corpos, entre traços: Léonie e
Pombinha
Se observarmos as pesquisas voltadas para
a configuração do homossexual (ou do
homoerotismo, da homocultura ou da
homossociabilidade) na literatura brasileira
REDISCO
teremos já formado um painel que destaca,
apresenta, analisa as obras ficcionais que
trazem personagens gays e/ou relações
homoafetivas
masculinas1.
O
marco
1
Para uma análise mais aprofundada consultar o
capítulo Essas histórias de amor maldito, de Devassos
no paraíso (2004), de J. Silvério Trevisan.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
8
evidencia-se em O cortiço (1890), de Aluísio
Azevedo, com a presença do homossexual
Albino, e em O bom crioulo (1895), de
Adolfo Caminha, que de maneira mais
enfática constrói a trama tendo como núcleo o
romance entre Amaro e Aleixo. Esse romance
é tido por muitos como o fundador do
homoerotismo na literatura brasileira. O
Ateneu (1888), de Raul Pompéia, também
figura entre as obras do final do séc. XIX que,
marcada pelo realismo-naturalismo, procura
trazer à discussão as relações homossexuais
dentro das instituições de ensino, atacando a
moral que estas prezavam. Ou seja,
denunciando as relações homossexuais
existentes no internato como marca de uma
instituição hierarquizada (fracos X fortes –
feminino X masculino) e que, considerando as
discussões de Michel Foucault em Vigiar e
Punir (1999) sobre os estados de coerção e
aos espaços pequenos, tais instituições
reputam os corpos a um estabelecimento da
ordem moral a partir do poder.
Ao entrarmos no séc. XX, teremos a
emergência de figuras decisivas da identidade
homoerótica masculina, a partir das figuras do
culpado e o solteirão que podem ser
observados em A crônica da casa assassinada
(1959), de Lúcio Cardoso, ou no conto
Frederico Paciência, de Mário de Andrade. Na
década de 60, a organização de Gasparino
Damata, Histórias do amor maldito (1967),
surge como a primeira obra de temas
propriamente gays dentro da literatura
brasileira. Conforme Santos e Wielewicki
(2005), “nesse período, a literatura
homoerótica caracteriza-se por colocar em
cena a repressão política e sexual, por buscar
uma imagem que se distancie da autonegação
e por uma narrativa direta (neonaturalista)”
(SANTOS; WIELEWICKI, 2005, p. 297).
Nos anos 90, as produções de Caio F.
Abreu, João Silvério Trevisan e Silviano
Santiago tornaram-se expoentes de uma
geração que transita entre a melancolia, a
realidade incisiva e a utopia. O temor imposto
pela AIDS transforma a experiência e o
contato com a doença em fonte de reflexão e
criação de narrativas intimistas. Além disso, a
necessidade de marcar um território, de se
fazer notar e, evidentemente, demonstrar uma
literatura de qualidade dá a perceber não
REDISCO
FRANCO
somente uma preocupação pessoal mas,
também, política.
A entrada do séc. XXI, portanto, irá colher
os frutos dessas gerações anteriores. Bernardo
Carvalho, João Gilberto Noll, Denílson
Lopes, Marcelino Freire e outros já podem
tratar a temática do homoerotismo sem a
preocupação de serem estigmatizados como
autores de literatura gay ou vilipendiados por
focarem suas narrativas nas configurações de
identidades do mesmo sexo. Observe-se o
caso de O filho da mãe (2009), de Bernardo
Carvalho, que possui como personagens
centrais um casal homossexual (Andrei e
Ruslan).
Ao mesmo tempo em que a representação
do homossexual masculino é delineada em
narrativas da literatura brasileira, algumas
delas também, ainda que com menos destaque
– apresentam personagens femininas que
apresentam orientação sexual lésbica. Aluísio
Azevedo, em O cortiço (1890), não somente
tipifica o homossexual masculino Albino
quanto o faz em relação à lésbica e prostituta
Léonie. Assim como seu contemporâneo
Adolfo Caminha, em A normalista (1893),
insinua uma relação de tônica homoerótica
entre as personagens Maria do Carmo e
Campelinho, em que estas refazem a cena da
“sensação nova” advinda da leitura do
romance O primo Basílio, de Eça de Queirós.
- É isso menina, que eu não pude
compreender bem. – E, abrindo o livro
leu: “...e ele (Basílio) quis-lhe ensinar
então a verdadeira maneira de tomar
champagne. Talvez ela não soubesse! –
Como é? – perguntou Luísa tomando o
copo. – Não é com o copo!
Horror! Ninguém que se preza bebe
champagne por um copo. O copo é bom
para o Colares... – Tomou um gole de
champagne e num beijo passou-o para a
boca dela (sic). Luisa riu...”, etc., etc.
- Como explicas tu isso?
- Tola! – fez a Campelinho. – Uma coisa
tão simples...Toma-se um gole de
champagne o de outro qualquer líquido,
junta-se boca à boca, assim... e juntou
ação às palavras.
[...] Depois, as duas curvadas sobre o
livro, unidas coxa a coxa, braço a braço,
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS
passaram à ‘sensação nova’(CAMINHA,
1998, p. 65-6).
A cena descrita revela o beijo entre as
adolescentes, a união das coxas e dos braços
evidenciando a relação entre os corpos
femininos com maior destaque para a
concretização da cena homoerótica. No
romance de Aluísio Azevedo, na relação entre
Léonie e Pombinha, a cena da relação
homoerótica
feminina
é
levada
à
materialização corporal, inclusive dentro as
prerrogativas que norteavam a estética
naturalista, como a comparação zoomórfica
com a qual o narrador finaliza a passagem que
segue:
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito
daquelas duas grossas pomas irrequietas
sobre seu mesquinho peito de donzela
impúbere e o roçar vertiginoso daqueles
cabelos ásperos e crespos nas estações mais
sensitivas da sua feminilidade, acabaram
por foguear-lhe a pólvora do sangue,
desertando-lhe a razão ao rebate dos
sentidos.
Agora, espolinhava-se toda, cerrando os
dentes, fremindo-lhe a carne em crispações
de espasmo; ao passo que a outra, por cima,
doida de luxúria, irracional, feroz,
revoluteava, em corcovos de égua, bufando
e relinchando” (AZEVEDO, 1998, p.89).
O fragmento citado refere-se ao momento
em que a personagem Pombinha é seduzida
por Léonie, enquanto a mãe tira um cochilo
no quarto ao lado. Como podemos observar,
enquadrada na estética naturalista, a narrativa
não deixa de explorar tanto as relações sociais
quanto as relações de gênero. Estas relações,
por sua vez, são alicerçadas tanto em valores
biológicos quanto morais, uma vez que
Léonie é representada como a ‘predadora’,
por disvirginar a jovem e, ainda, irá
desencadear o futuro de Pombinha que,
depois de abandonar e trair o marido, vai ao
encontro de Léonie e continua o ciclo inicial:
abre sua própria casa de prostituição e
solícita, prestativa e amiga mantém relação
com os moradores do Cortiço.
Ambas as personagens estão condicionadas
aos ímpetos corporais: os seios que se tocam,
os pelos pubianos que se roçam, os dentes que
REDISCO
9
se cerram, o sangue que folgueia. Atrelada a
comparações zoomórficas (“espolinhar”,
“irracional”, “feroz”, “corcovos de égua”), a
imagem busca comprovar o caráter de tese
que o romance implica e detem-se às
contrações físico-corporais que os corpos das
amantes revelam. A tônica da relação sexual
entre as personagens é descrita dentro desses
dois elementos: o físico absoluto e o
comparativo animalesco. O homem movido
pelos seus impulsos expõe a relação anormal
que a homossexualidade prognostificava e
que,
portanto,
tendia
às
condições
animalizantes da natureza. Por outro lado, a
relação “predadora” de Léonie institui uma
tomada de posição social de Pombinha que,
ao subverter a passividade de sua vida
anterior, se lança à atividade, consciente, de
prostituta ao seguir os desejos de seu corpo,
como afirma Silviano Santiago no artigo O
homossexual astucioso (2004), “Pombinha
deixa o noivo para seguir o corpo e os passos
da madrinha” (SANTIAGO, 2004, p. 201).
Ainda nesse artigo, Silviano Santiago
recupera as considerações de Peter Fry em
Léonie, Pombinha, Amaro e Aleixo2 (1982),
atentando para o fato de que
Pombinha não só inverte a retórica da
atividade dos homens e da passividade das
mulheres, assumindo a ‘ambição’, a
‘originalidade’, que são normalmente
atribuídas ao papel masculino, mas também
embarca numa profissão que tem por
objetivo explorar ao máximo as fraquezas
do ‘sexo forte’´.” E complementa: “Ao
rejeitar o casamento, elas rejeitam a
convivência com os homens e as relações
sexuais produtivas em favor de uma relação
de amizade e prazer sexual uma com a outra
(FRY apud SANTIAGO, 2004, p.201).
2
Nesse artigo Silviano Santiago recupera o artigo de
Peter Fry, Léonie, Pombinha, Amaro e Aleixo,
publicado em Caminhos Cruzados (1982), de
Alexandre Eulálio. Nesse artigo, Fry discute as formas
divergentes como os homossexuais são tratados em
determinadas manifestações culturais (como é o caso
da literatura de Aluísio Azevedo ou Adolfo Caminha)
ou matizados em suas representações enquanto a
sociedade da época, através de seu saneamento básico
de saúde, “tenta controlar a sexualidade e taxar todas as
atividades sexuais fora da vida em família de
degeneradas e imorais” (FRY apud SANTIAGO, 2004,
p.204)
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
10
Essa passagem, bastante determinante no
trajeto que Silviano Santiago endossa em seu
artigo, corrobora o início da prerrogativa do
crítico, o homossexual astucioso que, na linha
do malandro, deveria deixar de explicitar a
violência social contra si mesmo, ao
autoclamar para si termos, atualmente,
considerados pejorativos, “sapatão”, “bicha”,
“viado” etc… introjetando a culpa “[…] pela
conduta dita desviante, punindo a si pela
expiação e, por aí, chegando a adotar normas
contratuais de vida pública em que ele se
auto-exclui da sociedade como um todo em
vias de normatização” (SANTIAGO, 2004,
p.202). Para o crítico, é necessário romper
com essa normatização e se reler dentro da
marginalidade sem buscar expiar uma culpa
que não possui.
No que concerne à literatura de autoria
feminina, Lygia Fagundes Teles figura como
uma das autoras que apresenta em suas
narrativas
a
configuração
da
homossexualidade feminina. Em um de seus
principais livros, As meninas (1973), tematiza
o contexto político ditatorial brasileiro e
apresenta uma personagem lésbica. Tal
constatação nos conduz ao século XX e à
configuração da personagem lésbica que, na
literatura, terá destaque com uma autora
marginal: Cassandra Rios. Na década de 70, a
escritora chegou a vender cerca de 300 mil
livros por ano no Brasil. Entretanto, o teor
devasso de suas obras levou-a à obscuridade e
à própria exclusão da crítica literária.
Atualmente, pesquisas voltadas para os
estudos de gênero e de exclusão buscam
resgatar a autora e suas obras desse
obscurescimento.
Contemporaneamente, além de obras
especificamente voltadas paro o público
LGBT, encontramos autoras e autores que
apresentam a temática da homossexualidade
dentro de perspectivas que se voltam para o
mercado deste público alvo ou na esfera
literária buscando (re)configurar o modo
como as minorias sexuais são projetadas na
narrativa brasileira. É o caso do romance
Duas iguais (2004), de Cíntia Moskovich.
Trata-se da história da adolescente Clara que
se vê apaixonada pela melhor amiga Ana,
entretanto, impossibilitadas de viver esse
amor, acabam seguindo rumos diferentes.
REDISCO
FRANCO
Adultas, Clara se casa e Ana vai para Paris.
Mais tarde, acabam se reencontrando quando
Ana está com uma doença terminal e retorna
ao Brasil. Clara passa a cuidar dela e as duas
revivem, momentaneamente, esse amor
movido tanto por culpas e dúvidas quanto por
alegrias e prazeres.
Diferentemente das narrativas de cunho
homoerótico que a antecederam, a narrativa
de Cíntia Moscovich apresenta o amor entre
Clara e Ana que ousa dizer o nome, porém
não se concretiza com final feliz por conta de
suas subjetividades e por questões temporais.
Mesmo a morte, categoria crucial a que é
conduzido o romance, não aparece aqui como
castigo moral e sim, o ponto de contato que
move as duas e possibilita a realização
amorosa. A passagem que segue demonstra a
primeira relação amorosa de Clara e o
primeiro contato físico das duas e converge, à
semelhança da passagem amorosa entre
Léonie e Pombinha, para a união dos corpos
femininos.
Eu a abracei e a trouxe para mim,
querendo a saliva dela, querendo cada
poro. Queria – como queria – ela inteira, a
alma dela se pudesse. (...)As pernas de
Aninha, roliças, o sexo de Aninha, escuro.
Estirou-se a meu lado, colando o corpo no
meu, me abraçando com todos os braços e
pernas do mundo, e o que eu percebia era
o algodão de que ela era feita, assim
branca, assim leve. (...)Enroscada em
mim, me apertando como uma tenaz de
força
desconhecida,
começou
um
movimento de vaivém, roçando com
quase ferocidade o sexo contra minha
coxa, e eu entendi que era assim que duas
mulheres faziam. Aninha se masturbava
em minha perna, a respiração muitíssimo
alterada, me levando junto com ela.
Percebi que eu podia fazer o mesmo, que
uma das suas pernas estava entre as
minhas. (...) Minha amiga buscava saciarse e encontrava calma. Eu, mais
impaciente, queria o gozo que estava ali,
bem perto, acumulado no meu ventre,
quase doendo na minha barriga. Ela me
pedia que não, que eu me lembrasse que
não estava só, que estávamos finalmente
juntas e que não era preciso ter pressa
(MOSCOVICH, 2004, p.37-9).
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS
Como é possível observar, a passagem
ilustra o momento de relação amorosa entre as
personagens sem as comparações zoomórficas
estabelecidas na passagem do romance de
Aluísio Azevedo. Em Duas iguais temos a
distinção clara que o amor entre o mesmo
sexo já não é mais tratado como doença ou
desvio da moral e que resplandecem os corpos
sobre o corpo do texto. As partes corporais, as
pernas, a boca, o ventre, os braços são
seguidos por adjetivos que os enaltecem. As
pernas roliças, os sexo escuro, braços e pernas
brancos e leves como o algodão, sublimam o
contato entre as amantes. A ferocidade do ato
está centrada, não mais, num discurso de
“predador sobre a caça” mas de autoridade
sobre seu próprio corpo e sua sexualidade.
Se para Silviano Santiago, Pombinha já
revelava esse domínio, quando a partir da
relação amorosa com Léonie perde a atitude
passiva que a caracterizava, o fragmento de
Duas iguais (distante mais de um século do
romance naturalista) endossa ainda mais essa
mudança.
No caso do romance de Cíntia Moscovich,
a relação homoerótica entre Ana e Clara é
entrelaçada pelo discurso autônomo das
personagens e suas ações. Não é mais um
puro determinismo que tenta ser comprovado
pelas atitudes homossexuais. Ao contrário, a
relação homossexual entre as duas é
estabelecida por discurso próprio dentro das
identidades – cambiantes ou instáveis, como
pontua Zigmunt Baumban – sexuais definidas
e sem a implicação de subalternidade a que
era condicionada a leitura da relação amorosa
entre Pombinha e Léonie.
Entre corpos, entre laços: Minha flor e
Declaração
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha
vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
REDISCO
11
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
(Hilda Hilst, Alcoólicas)
O poema de Hilda Hilst ilustra a segunda
parte dessa discussão, a vida é dura para os
corpos do mesmo sexo que se enroscam e se
descobrem. A vida dura em sua metáfora
corporal: antebraços, ossos, unhas. Corpo
faminto como o “bico dos corvos”. As vigasossos que sustentam o corpo não são mais os
“ombros que suportam o mundo”, do poema
de Drummond, porque se a vida é crua, além
de dura, ela precisa ser devorada.
O sujeito poético do poema Alcóolicas
revela sua “experiência lésbica” com a vida,
“Deita-te comigo. Apreende a experiência
lésbica:/O êxtase de te deitares contigo.
/Beba./Estilhaça a tua própria medida”. Os
versos em destaque sinalizam a relação
“apreendida” que a vida tem consigo própria,
dentro de uma subjetividade expressa no
poema e recorrente ao desencanto, à morte e
aos amores líquidos, como a vida que por ser
líquida, se esvai. A metáfora da liquidez no
poema de Hilst (associada à própria ideia da
embriaguez que atravessa, também, o poema)
pode ser compreendida dentro das concepções
pós-modernas discutidas pelo sociólogo
Zigmunt Bauman, tanto das identidades
fluídas quanto dos relacionamentos fugazes.
Não há mais solidez e sim liquidez, já que a
própria vida é líquida.
No poema em referência, é visível a
contradição de um corpo que se percebe
faminto como os corvos, dentro de uma vida
paradoxalmente: líquida e dura. E, talvez, por
essa inconstância que o corpo, dentro das
esferas que constituem a vida: a social,
política, histórica e sexual, engendra
posicionamentos e relações dentro daquilo
que Michel Foucault irá denominar
dispositivo histórico.
Conforme Guacira Lopes Louro em
Pedagogias da sexualidade (2000), as
identidades de gênero e sexuais são “(…)
compostas e definidas por relações sociais,
elas são moldadas pelas redes de poder de
uma sociedade” (LOURO, 2000, p.06) E é,
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
12
portanto, nesse sentido que compreendemos,
de acordo com Foucault, que a sexualidade
pode e deve ser compreendida como um
dispositivo histórico quando verificamos que
ela se trata de uma invenção social que se
constituiu historicamente a partir dos vários
discursos que “regulam, normatizam,
instauram saberes, produzem ‘verdades’”
sobre o sexo.
O poema Alcoólicas ilustrou aqui, o que
Guacira Lopes Louro, a partir de Jeffrey
Weeks, assinala em seu texto: “Num mundo
de fluxo aparentemente constante, onde os
pontos fixos estão se movendo ou se
dissolvendo, seguramos o que nos parece
mais tangível, a verdade de nossas
necessidades e desejos corporais” (LOURO
apud WEEKS, 2000, p.08). Esta assertiva
converge para a necessidade de afirmação do
corpo; a partir disso é que podemos nos
reconhecer dentro de nossos desejos e
interesses aos múltiplos pertencimentos
sociais. No dizer da autora, “(…) Precisamos
de algo que dê um fundamento para nossas
ações, e então construímos nossas “narrativas
pessoais”, nossas biografias de uma forma
que lhes garanta coerência” (LOURO, 2000,
p. 07).
Filho, sua mãe é homossexual. É com essa
frase que se inicia o conto Minha Flor, de
Marcelino Freire. Integrante do livro de
contos BaléRalé (2003), a narrativa centra-se
na conversa de uma mãe ao filho. Ao retornar
a casa, às três horas da manhã, no percurso de
chegada ao prédio até o quarto do filho, vai
assumindo (em pensamento) para o filho sua
orientação homossexual, o famoso “sair do
armário”. O monólogo relata toda sua
história: a referência à viuvez com o pai do
menino há cinco anos, a entrada da jovem
Flor em sua vida, da relação homossexual que
se constituiu entre as duas, o amor que as
entrelaça, as características de cada uma, os
telefonemas e encontros marcados pelo rubor
e pela sensação de desconfiança dos outros, a
necessidade de assumir sua condição para o
filho e o encontro com este já dormindo. Tal
condição anuncia o silenciamento novamente
e retorno ao “armário” com a frase “Deixa,
filho, pra lá”.
O conto Minha flor, como foi possível
perceber nessa breve síntese do conto,
REDISCO
FRANCO
apresenta uma narrativa de teor temporal
contemporâneo. O monólogo da mãe situa o
ocorrido “no ano 2000”, ao tratar inclusive,
esse período como “moda liberada”. Esta
noção não está condicionada à relação com
Flor apenas, e sim com o entrelaçamento do
seu gênero feminino: mulher num mundo “tão
evoluído, moderno”, como a mãe caracteriza.
Estão entrelaçados a este discurso de mulher,
dona de seu corpo e seus desejos (“Flor está
comigo, passeia nas minhas coxas”) o
discurso de mãe e homossexual (“Filho, sua
mãe é homossexual”).
Para além da representação corpórea
subentendida apenas na menção das partes
físicas como as coxas, os cabelos e os lábios
(metaforizados na frase “Beijo o batom de
Flor, arranco o batom fora, a pétala”), a
relação entre a mãe e Flor é caracterizada pelo
sentimento e pelo desejo homossexual: “Flor
me beija, Flor me aquece”. Assim como, a
necessidade de constituir-se dentro de uma
identidade homossexual a partir do discurso
monológico esbarra, contudo, nos dispositivos
históricos que regulam as identidades sexuais
e de gênero, como mencionado anteriormente.
Uma das regulações que é referida no
discurso da mãe, trata-se dos papéis sexuais
desempenhados
numa
sociedade
heteronormativa:
Querido, não precisa chamar ninguém de
madrasta. Padrasto então, não tem isso, o
pessoal pergunta: quem é o homem?
Quem é a mulher? Absurdo. Eu e seu pai
fazíamos coisas que até a vida duvida.
Filho hoje eu quero chorar, desabafar, eu
quero me libertar. Preciso (FREIRE,
2003, p. 108).
A passagem acima evidencia a menção ao
discurso
normativo
das
relações
heterossexuais nos quais os papéis homem X
mulher, construídos historicamente, é que
validam a sociedade. É fato a necessidade de
atribuir rótulos aos papéis sexuais em uma
relação homossexual configurando-as dentro
do enquadramento “homem” ou “mulher” da
relação, numa tentativa de imposição de
relacionamento heteronormativo e, muitas das
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS
vezes, buscando evidenciar uma relação de
domínio de gênero sobre o outro3.
Nesse sentido, o entrelaçamento de corpos
entre a mãe e Flor subjaz o entrelaçamento
afetivo entre as duas que, ainda, esbarra na
diferença de idade, “Flor se preocupa comigo.
Faz chá, põe fita no meu cabelo. Flor tem sua
idade” (FREIRE, 2003, p. 108). Na sequência
narrativa, entretanto, a mãe busca justificar
essa diferença de idade recorrendo à
aproximação de maturidade da jovem com o
pai do menino. Processo que será recorrente
no monólogo discursivo como recurso,
possivelmente, para minimizar o conflito da
relação.
Conflito marcado pela série de quebras e
rupturas nos papéis sexuais, sociais e de
gênero que revelam, sobremaneira, a
subjetividade eminente dessa mãe que se
revela homossexual, “Olho minha vida no
espelho. Hoje não tenho medo” (FREIRE,
2003, p. 109) e que se constitui no discurso
monológico tateando em busca da maçaneta
que abrirá a porta, futuramente, de sua
completa revelação. Por enquanto, o discurso
revelador ainda é mantido no emudecimento.
Situação oposta se dará no conto
Declaração, também de Marcelino Freire,
presente no livro Amar é crime (2010). Como
o título da obra sinaliza, os contos integrantes
perfazem o caminho dos crimes passionais,
muitos deles extraídos de fatos corriqueiros e,
inclusive, noticiados pela mídia brasileira.
Neste trajeto, a narrativa em destaque,
Declaração, centra-se na história da aluna
apaixonada pela professora e a prisão desta
por abuso de menor. Entretanto, a narrativa
revela, sob inserções da voz narrativa da
adolescente, o amor entre as duas.
Descobriram que a gente saía junto. Eu ía
na casa da professora. Dormia à tardinha e
ela lia histórias. E tratava de me lamber. E
de me lavar.
3
Ressaltem-se as brincadeiras ou insultos feitos a
casais homossexuais masculinos que retratam a
subjugação, assim como relações sexuais de dominação
nas quais os homossexuais masculinos não assumem
identidade homossexual, justamente por pensarem que
ao dominarem não se inscrevem como tal porque
continuam, em seu ponto de vista, agindo como
“homem”
REDISCO
13
Mais do que qualquer uma, eu precisava
estudar. A professora não misturava as
coisas. Dava zero, se fosse o caso. Dez, na
hora dos beijos.
Veio o psicólogo: uma menina de 13 anos
fantasia sentimentos.
Qual estrutura tem?
Fui morar no silêncio (FREIRE, 2010, p.
133-134).
Semelhante ao conto Minha flor,
observamos nesta narrativa de Marcelino
Freire entrelaçamentos não somente sexuais,
mas também de posição social dos indivíduos:
aluna e professora, adulta e menor que, à parte
as transgressões sociais que dramatizaram,
unem-se pelo sentimento amoroso: “A
professora não chegou assim: como se ela
fosse de plástico. Deu a ela arrepios. E uma
vontade madura” (FREIRE, 2010, p. 136).
A “vontade madura”, sentimento que
aproxima a adolescente da personagem Flor
(“Ela parece mais velha”), será força
propulsora das suas ações no decorrer da
narrativa. A adolescente inominada inscrevese num grupo de teatro na Fundação Casa
para se apresentar na penitenciária com o
intuito de se declarar à professora.
A peça era uma homenagem a Monteiro
Lobato.
Não seria o caso de um outro texto, mais
adulto? Isso não é presídio infantil.
Era, de alguma forma.
Falaram para ela que a mulherada, muito
tempo trancafiada, volta para o útero. Para
a infância. Algumas presas chupam
chupetas. Lacinhos débeis na cabeça.
Pelo menos, agora, ora, não haverá
diferença entre a gente. Colocará sua
professora nos braços. E ninará (FREIRE,
2010, p. 139).
A passagem demonstra a inversão de
papéis entre a adolescente e professorapresidiária. Se antes, a adolescente era tratada
como criança, no discurso acima assume
outro lugar, “Colocará sua professora nos
braços. E ninará.” Além disso, é reveladora da
condição
carcerária
feminina
–
a
infantilização que toma conta das identidades
das mulheres em cárcere. A narrativa em
destaque, portanto, explora as condições de
violência, familiar e social, às quais as
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
14
FRANCO
personagens são sujeitadas, integrando-as a
três dispositivos autoritários (escola, família,
justiça) que buscam de todas as maneiras
emudecer seus sentimentos.
E esse aspecto é o ponto de divergência
entre os contos de Marcelino Freire e em
discussão neste artigo. O conto Declaração,
como o próprio título emblematiza, configurase como um discurso de afirmação amorosa
que agrega a identidade homossexual à sua
verbalização. A declaração, situada no campo
semântico da relação amorosa, consubstanciase à revelação das vontades cerceadas pelos
dispositivos sociais. Quando a aluna sobe ao
palco para se apresentar às presas, expressa
sua condição de subjetividade (apaixonada
pela professora) e tal afirmação vem
atravessada pelos elementos corporais.
Coraçãozão na mão.
Enxergou, de longe, o olhar da professora.
Ao que parece, tranquila. Talvez uma
cicatriz ou outra. Ainda mais bonita.
Minha querida.
Vim aqui para gritar. O meu amor, para
todo o sempre, meu amor, seu juiz, sem
fim.
Ninguém consegue segurar esse motim
(FREIRE, 2010, p.140).
A primeira frase, metaforicamente,
expressa a ansiedade amplificada da alunaadolescente (coraçãozão), no espaço-corpo
em que esta sensação é delineada. Na
continuidade das ações, a cicatriz – reveladora
não somente de marcas físicas, mas também,
das condições adversas às quais a professora
foi submetida – sinaliza as adversidades. O
passar do tempo e imposição aos maus tratos
do cárcere não diminuiu sua beleza, ao
contrário, é reiterada pelo advérbio ainda. Ou
seja, embora presa, no espaço violento do
cárcere, marcada pelas cicatrizes, a beleza
sobrevive. E o grito de amor e de afirmação é,
finalmente, enunciado. Inclusive para as
autoridades que normatizam as relações
amorosas (“seu juiz”).
A frase final do conto pode ser
compreendida como metáfora para o
“entrelaçamento” amoroso entre as duas
iguais, como sinalizou a adolescente na
passagem anterior (“Pelo menos, agora, ora,
REDISCO
não haverá diferença entre a gente”) e na
diferença se reconhecem. O motim,
substantivo que caracteriza um ato de
indisciplina, um levante contra as autoridades,
é utilizado aqui como expressão de resistência
a um espaço patriarcal, autoritário e que não
aceita corpos, identidades e sexualidades que
não possam ser enquadradas em cárceres
sociais ou discursivos.
Laços feitos e desfeitos
As considerações expostas partem de um
projeto inicial de pesquisa sobre narrativas (a
princípio romances) em língua portuguesa que
apresentem em seu enredo relações
homossexuais femininas. Como procurei
ressaltar no início do artigo, a configuração
do corpo feminino e das relações
homoafetivas observados na literatura
brasileira tiveram exposição na estética
realista-naturalista em que as teses científicas
“determinavam” linguisticamente, inclusive, a
composição desse quadro.
Não obstante, como revela Peter Fry, as
personagens Pombinha e Léonie sejam
tratadas com simpatia e compreensão no
romance de Aluísio Azevedo, o autor indica
indiretamente, através delas, que há apenas
dois caminhos possíveis para as mulheres do
cortiço: casar-se e continuar a vida
produzindo filhos e lavando roupa para as
madames ou ascender socialmente como
Bertoleza. No caso da dupla de personagens,
fogem à regra ao serem associadas à
prostituição e, principalmente, no fato do
autor representar a lógica da prostituição.
Conforme Fry (1982, p.41):
(…) é a visão que elas tem dos homens que
as distingue das outras mulheres do cortiço.
Tanto Léonie quanto Pombinha invertem as
relações de poder que se supõe,
convencionalmente, existirem entre os
sexos. Pombinha fica convencida da
superioridade do seu sexo sobre os homens
que são apenas escravos.
Ou seja, a relação homoafetiva que se
estabelece entre Pombinha e Léonie revela a
rejeição à relação com os homens em
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
ENTRE TRAÇOS, ENTRE LAÇOS
detrimento da amizade entre as duas e,
também, da satisfação sexual que encontram
entre si. O romance de Aluísio Azevedo, de
certa forma, guardadas as ressalvas temporais,
abre para a possibilidade de exploração da
temática, em outras vertentes, conforme
enunciamos: As meninas, de Lygia F. Telles,
Duas iguais, de Cíntia Moscovich, Efeiro
Urano, de Fernanda Youg, foram alguns dos
exemplos que podem ser revelados.
Detive-me à exploração dos contos de
Marcelino Freire para, em função do curto
espaço desse artigo, discutir a configuração
não somente do corpo feminino e lésbico na
narrativa contemporânea, mas sobretudo, para
refletir
sobre
seus
entrelaçamentos
discursivos e relações de poder, cujas
narrativas acabam por constituir.
Em ambos os contos, há o
posicionamento das mulheres em sua
compreensão identitária (mais evidente no
monólogo não dito da mãe, em Minha flor) e
sua colocação nos espaços de poder sociais (a
família, a escola e a casa de correção). Há o
conflito interno no momento de se colocarem
diante da sociedade que resulta ou no
silenciamento ou no enfrentamento. De toda
forma, configuram-se como entrelaçamentos
discursivos dos corpos iguais em situações
divergentes, nas quais a liberdade do corpo
transforma-se em discurso individual ou
coletivo para a expressão de si.
Referências
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Janeiro: Ediouro, 1998.
15
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Recebido em: 19 de outubro de 2013
Aceito em: 23 de novembro de 2013.
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FOUCAUL, Michel. Vigiar e punir:
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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 7-15, 2014
POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR?
SEMIOLOGIA E INTERICONICIDADE NO DISCURSO PUBLICITÁRIO
Amanda Braga
Universidade Estadual da Paraíba
Resumo: Este artigo tem como ponto de partida as inquietações que embaraçam o
quadro teórico e metodológico da Análise do Discurso francesa a partir da década
de 80. Em nosso pano de fundo está a transmutação das línguas de madeira em
línguas de vento e o modo como isso, atrelado às rupturas políticas e teóricas da
época, provoca uma série de descontinuidades no interior da disciplina, exigindo
que a Análise do Discurso se volte às novas materialidades discursivas e apure
caminhos de analisá-las. É a fim de demonstrar um dos caminhos possíveis que
este artigo se apresenta. Para tanto, estaremos detidos à análise de um enunciado
recentemente publicado: interessa-nos empreender sua análise a partir do roteiro
oferecido por uma ordem do olhar, fazendo trabalhar uma abordagem discursiva
que aceita o aparato semiológico na discussão sobre imagem. Nesse sentido, este é
um artigo que faz trabalhar a teoria mediante sua aplicação analítica, recorrendo às
atuais discussões de Jean-Jacques Courtine sobre discurso, imagem e memória,
bem como às leituras que daí decorrem.
Palavras-chave: Discurso, imagem, memória, semiologia.
Résumé: Où nous ammène l’ ordre du regard? Sémiologie et intericonicité dans
le discours publicitaire. Cet article a comme point de départ les inquietudes qui
perturbent le quadre téorique et méthodologique de l’Analyse française du
Discours dès la décennie de 80. Dans notre arrière plan il y a la transmutation des
langues de bois en langues de vent et la façon dont, associés aux ruptures politiques
et téoriques de l’époque, celle-ci provoque une série de discontinuités à l’intérieur
de la discipline, en exigeant que l’Analyse du Discours se tourne vers les nouvelles
matérialités discoursives et sélectionne des chemins pour les analyser. C’est avec
l’objectif de démontrer l’une des voies possibles que cet article se présente. Pour
cela, nous analyserons un énoncé récemment publié: nous nous intéresserons à
entreprendre son analyse à partir du manuscrit présenté par une ordre du regard, en
faisant travailler une approche discursive qui accepte l’appareil sémiologique dans
la discursion à propos de l’image. En ce sens, le présent article fait travailler la
théorie à travers son application analytique, en faisant appel aux actuelles
discussions de Jean-Jacques Courtine à propos du discours, de l’image et de la
mémoire, ainsi que des lectures qui en résultent.
Mots-Clefs: Discours, image, mémoire, sémiologie.
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
17
BRAGA
Como podem signos, veiculados pela
imagem, pela fala ou pela escrita,
pôr multidões em movimento? Eis o
que ainda constitui um mistério para
as ciências humanas.
Régis Debray
Já não é novidade que estamos, todos nós,
analistas do discurso, num momento que
resgata o espírito dos anos 80: momento de
deslocamentos, rupturas e desafios. Há, talvez
uma motivação, talvez um desconforto, que
parte não apenas do caráter sincrético que os
discursos assumem em sua produção, mas
também dos caminhos que, possivelmente,
nos levariam à sua análise. Os discursos que
se expõem, hoje, aos nossos olhos, não
trazem, no entanto, tamanho ineditismo. Em
68, ano que antecede a concepção de uma
Análise do Discurso enquanto disciplina, o
Maio de 68 já anunciava os últimos suspiros
de uma língua de madeira. O movimento
configurava-se como um momento de
transição, a partir do qual as esferas da mídia,
da política e do capitalismo fariam funcionar,
de modo cada vez mais acelerado, uma
midiatização do discurso político, ou, ainda,
uma espetacularização, segundo a fórmula de
Guy Debord (1997), do discurso político. A
revolta estudantil já não era uma revolução
midiatizada? Courtine bem o dirá que sim:
tratava-se, segundo ele, “das núpcias entre
Marx e a Coca-Cola [...], de um recobrimento
das discursividades políticas tradicionais
pelas formas breves, vivas e efêmeras do
discurso publicitário” (2011, p. 147).
Do mesmo modo, é nesse momento que o
Estruturalismo francês, imbuído de todo o
poder científico depositado na Linguística,
resgatava o projeto saussureano de uma
Semiologia cuja missão seria, como diz a tão
repetida passagem do Curso de Linguística
Geral, “estudar o funcionamento dos signos
no seio da vida social” ([1916] 2006, p. 24).
Segundo Courtine (2009), tal projeto deve ser
pensando mediante as transformações
tecnológicas que se assistia à época, mais
precisamente no que diz respeito às
transformações sofridas pelo campo das
telecomunicações num contexto pós-guerra e
REDISCO
seus efeitos no interior de uma cultura de
massa. O extensivo funcionamento das mídias
audiovisuais inaugurava uma modalidade de
transmissão de informação que já não se
restringia à voz, mas se estendia às imagens.
Não por acaso, é nesse momento que Roland
Barthes, investido do método linguístico e do
caráter científico então oferecido por ele,
estará
preocupado
em
abordar
o
funcionamento das imagens da imprensa no
interior de uma sociedade de consumo, numa
cultura de massa. Para Courtine (2009), a
criação da revista Communications – que
nasceu, em 1961, com o propósito de fazer a
crítica da comunicação de massa – bem como
os textos que Barthes oferece, nesse período,
à análise de imagens – A mensagem
fotográfica, de 1961 e A retórica das
imagens, de 1964 –, nada mais era do que um
reflexo da incursão das mídias audiovisuais
de comunicação nas esferas pública e privada.
Anos depois, durante a década de 80, a
revolução audiovisual, potencializada pela
grande mídia, colocaria em xeque o objeto
privilegiado da Análise do Discurso, isto é, o
discurso político verbalmente materializado.
A incorporação da linguagem publicitária na
linguagem política e uma composição
discursiva cada vez mais heterogênea
instauravam outra discursividade, na qual a
grande mídia tinha papel central: instalava-se
o reinado das imagens, de modo que os textos
recebiam um tratamento sincrético, fazendo
com que o discurso verbal desse lugar a
materialidades de natureza diversas. Assim,
era chegado o tempo de diminuir o abismo
entre a vida e a ciência, atentando, nas
análises, para a produção e o funcionamento
das línguas de vento que já se apresentavam
no mundo: “as novas materialidades do
mundo pós-moderno que se concretizavam no
discurso” (GREGOLIN, 2008, p. 27). Os
últimos textos de Pêcheux refletiam essa
preocupação: afinal, “em que pé estamos em
relação a Barthes?” ([1983] 2007).
É nesse momento, ao final da década de
80, que Courtine, atento à mutação das
materialidades discursivas, retomará o termo
semiologia a fim de abrir caminhos para a
análise dos discursos compostos por sistemas
semióticos verbais e não verbais levando em
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR?
conta sua dimensão histórica. Para tanto,
Courtine partia de uma crítica à tradição
saussureana, “que derivou para uma semiótica
a-histórica e formal, preocupada unicamente
com a dimensão textual dos signos”
(COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 15, nota
23). Assim, o projeto de uma Semiologia
Histórica, antes de resgatar uma tradição
saussureana, como o fez Barthes, parte de
uma tradição semiológica médica e da
emergência do paradigma indiciário de que
fala Ginzburg (1989), a fim de estender o
alcance da visada discursiva na medida em
que renegocia seus limites e seus alcances.
Atento a esse trajeto, este artigo se
apresenta com o intuito de ampliar algumas
dessas discussões mediante sua aplicação
analítica. Empreenderemos a análise de um
texto publicitário atual, sincrético, composto
por mais de um sistema semiótico.
18
Antes de colocá-lo, no entanto, como
elemento capaz de ratificar discussões
teóricas postas anteriormente, faremos o
caminho inverso: apresentaremos o texto e
seguiremos sua análise a partir do roteiro
oferecido por uma ordem do olhar,
discutindo a teoria em paralelo, a depender
das solicitações colocadas pela própria
análise. Para tanto, partiremos de uma
abordagem discursiva que aceita o aparato
semiológico na discussão sobre imagem.
Nesse sentido, recorreremos não apenas às
discussões de Courtine sobre discurso,
imagem e memória – uma vez que elas já se
assentam sob as atuais materialidades
discursivas –, mas também a algumas
discussões traçadas por Roland Barthes,
deixando em suspenso um certo excesso
estruturalista e tomando suas discussões
enquanto hipóteses, medindo sua possível
aplicabilidade aos textos atuais.
ORIGEM É RIQUEZA?
Plastic Dreams: Melissa Magazine, nº 1, 2009.
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
19
O texto apresentado na imagem foi
veiculado por um catálogo de moda durante o
inverno de 2009. O catálogo – que, nesta
edição, intitula-se Afro Mania – se chama
Plastic Dreams e é produzida pela Melissa, a
fim de divulgar sua coleção e as inspirações
das quais é fruto1
Por isso, antes de mais nada, é preciso
chamar a atenção para os gêneros que o texto
congrega: trata-se de uma revista publicitária,
de modo que as esferas da publicidade e do
jornalismo aparecem, aqui, num certo
entrelaçamento discursivo. Essa convergência
de gêneros resvala numa espécie de
apagamento da estrutura publicitária comum:
o que há, nesse texto, não é a estrutura de um
anúncio, mas a estrutura de uma grande
matéria feita para uma determinada mídia
impressa que traz, por sua vez, como pano de
fundo (e não mais que isso), o produto a ser
vendido. Há um desejo de comercializar sem,
no entanto, deixar-se entrever enquanto
publicidade.
Essa miscigenação discursiva – que nos
deixa antever, à esteira de Courtine (2008), o
estatuto
liquefeito
dos
discursos
contemporâneos – não enfraquece, entretanto,
o caráter publicitário do texto. Ao contrário
disso, o tom oferecido pela matéria
publicitária, isto é, o tom de um certo
jornalismo de entretenimento, busca aguçar,
ainda mais, o desejo de consumo, uma vez
que sua credibilidade se assenta sob os
moldes da verdade jornalística, reiterando
certa despretensão publicitária na medida em
que a torna sutil. A posição marcada pela
revista ratifica, então, a ideia de que a mídia,
ou melhor, o medium, vai melhor funcionar
quanto mais ele apaga sua condição de meio,
porque “o bom mensageiro é o que
desaparece atrás de sua mensagem, como o
anjo da Anunciação que se eclipsa
imediatamente
após
ter
aparecido”
(DEBRAY, 1995, p. 14).
1
Não apenas o texto em destaque, mas toda a revista
está
disponível
em:
<http://disb5npyjfxc3.cloudfront.net/uploads/magazine
/1/melissa-afromania.pdf/>. Acesso em 04 set. 2010.
REDISCO
BRAGA
Que subjetividades desenham os detalhes?
Da observação acima, que lança um
rápido olhar sobre o modo de produção e
recepção do texto, passamos a olhar, mais
atentamente,
para
sua
composição
propriamente dita. Percebe-se que existe uma
ordem do olhar que nos dirige,
primeiramente, ao rosto da modelo e, de lá,
estende nossos olhos ao colo, às pernas, aos
braços, fazendo-nos atentar à coloração de sua
pele, intensificada pela luz que nela incide. Os
tons usados evidenciam não apenas uma pele
negra, mas evidenciam, do mesmo modo, um
cenário negro. Pela coloração, a pele da
modelo se mistura ao cenário e ao ambiente
rural que ele anuncia. Há uma simbiose entre
a pele negra e o ambiente criado para a
fotografia: homem e natureza se (con)fundem,
entram numa fusão em que não se sabe ao
certo onde termina o humano e começa o
ambiente físico, a terra, o chão. São
elementos que parecem fazer parte do mesmo
domínio. É a pele de ouro marrom, como bem
diria Caetano2.
Dessa
homogeneidade
de
cores
evidenciadas pela luz, nossos olhos se
estendem pelo que se apresenta enquanto
ruptura: o corpo da modelo, repleto de
detalhes, estampas e acessórios, parece saltar
do papel. A fim de seguir a proposta de
Courtine no que diz respeito a uma
Semiologia Histórica, partimos, então, às
particularidades da composição textual, assim
como propõe Ginzburg (1989) ao falar de um
paradigma indiciário. O intuito é rastrear
esses sintomas – como bem o faria um
médico ao observar os sinais expressos na
superfície corporal – em busca de diagnosticar
os sentidos que produzem, as subjetividades
que expressam. Passeamos os olhos, então,
em busca desses sinais, a fim de detectar que
detalhes do texto carregariam o rótulo de
negligenciável.
Nesse
empreendimento,
chegamos não exatamente aos acessórios de
madeira e metal que se espalham pela modelo,
mas, mais precisamente, detemos-nos ao
modo com que as peças parecem ser
fabricadas e ao formato que assumem.
2
Referência à música Tigresa, de Caetano Veloso.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR?
Supondo ser feito artesanalmente, de modo
rústico, a modelo traz, ao pescoço, um
pingente que sugere tanto o formato do
continente africano, quanto o formato do
Brasil. O formato do pingente flutua nessa
ambiguidade e parece funcionar como uma
espécie de etiqueta, sugerindo uma produção
feita além-mar, entre África e Brasil. Assim, a
Melissa recorre ao formato do continente
africano para indicar a busca de uma origem
e, assim, fazer frente a um processo de
globalização que procede numa tentativa de
homogeneização cultural. Ao mesmo tempo,
recorre ao formato do mapa brasileiro para
indicar uma resignificação dessa origem aos
moldes atuais.
Além disso, há peças em metal dourado
que recobrem o pingente em madeira. Seria
ouro? Seria, quiçá, o ouro produzido na
África do Sul, um dos maiores exportadores
desse mineral do mundo? Assim como a
apresentação da peça em madeira, o acessório
em ouro também não parece ter recebido
nenhum trabalho delicado de lapidação,
configura-se como um elemento bruto. Essa
rusticidade na configuração dos acessórios
nos remete, facilmente, à construção midiática
que temos do continente africano. A
identidade cultural africana criada (e exposta)
pela grande mídia nada mais é do que a
identidade de um povo assolado pela pobreza,
pela incivilidade, pelo animalesco.
Do mesmo modo, as argolas que envolvem
seu pescoço trazem à tona uma tradição
milenar, conhecida não só entre as mulheres
africanas, mas também entre as mulheres
asiáticas. Tais argolas se configuram como
um traço que delineia uma subjetividade,
como proporá o olhar de Courtine
(COURTINE; HAROCHE, 1988), ao retomar
Ginzburg (1989). Às mulheres que fazem uso
dessa prática – que não se sabe ao certo onde,
quando ou por quais motivos nasceu –
convencionou-se atribuir o nome de
mulheres-girafas, construindo uma espécie de
zooide que busca associar, diretamente, a
aparência dessas mulheres à aparência animal,
não apenas pelo longo pescoço, mas também
pelo andar altivo que as argolas exigem. Não
por acaso, a revista Marie Claire, ao fazer
REDISCO
20
uma reportagem sobre essas comunidades,
denominou-as de zoológico de mulheres3.
Investigando, então, os detalhes que se
dão a ver na extensão do texto, chegamos ao
desenho de uma subjetividade: o modo
artesanal e rústico com que foram produzidos
os acessórios, o ouro usado na confecção do
pingente, as argolas envoltas ao pescoço e a
própria denominação que recebem as
mulheres que lançam mão de seu uso são
indícios que produzem uma identidade
africana rural, animalizada, incivilizada, rude.
Identidade atemporal, que se manifesta e
emerge sempre que se fala de África. Assim,
partindo dessa subjetividade, é possível fazer
o caminho inverso para perceber que é no
paradigma indiciário que estamos nos
detendo quando ressaltamos sua produção,
mais precisamente ao modo como Courtine o
retoma no empreendimento de uma
Semiologia Histórica.
O trabalho de Ginzburg privilegia uma
perspectiva de identificação, a do médico,
do fisiognomonista, do conhecedor de
quadros, do detective. Queremos insistir
aqui também na dimensão da expressão;
tentar agarrar, para além dos traços
imóveis,
o
movimento
de
uma
subjectividade; e colocar assim, a partir
dos signos que se manifestam à superfície
do
corpo,
a
questão
da
identidade individual que os exprimiu e
não apenas a da identificação que eles
podem permitir [...]. O trabalho de
Ginzburg abre por outro lado a
perspectiva de uma semiologia histórica.
Comporta elementos e sugestões que
permitem voltar às próprias origens dos
signos [...]. E de tornar a dar assim vida
a um projeto semiológico que derivou
para uma semiótica a-histórica e
formal, preocupada unicamente com a
dimensão
textual
dos
signos
(COURTINE; HAROCHE, 1988, p. 15,
nota 23, grifo nosso).
3
Mianmá: zoológico de mulheres. Reportagem
publicada em julho de 1996. Disponível em:
<http://marieclaire.globo.com/edic/ed114/rep_mulhergi
rafa.htm>. Acesso em: 05 jul. 2010.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
21
Assim, no momento em que buscamos
realçar a configuração de uma subjetividade
que brotava dos sinais oferecidos pelo texto,
estávamos detidos no modo como Courtine
faz uso do paradigma indiciário, cuja
característica recai sobre a capacidade
humana de auscultar os sinais que se
manifestam numa torção íntima (e ínfima)
como forma de se chegar a uma realidade
maior e mais complexa (GINZBURG, 1989).
Esse paradigma oferece, segundo Courtine, a
possibilidade
de
revitalizar
um
empreendimento semiológico que esteja
comprometido com a ampliação de uma
visada discursiva.
Se partirmos, então, da citação acima,
em geral, e das críticas que a encerram, em
particular, poderíamos dizer, grosso modo,
que a proposta de uma Semiologia Histórica,
antes de estar ligada à concepção de uma
disciplina, está ligada à construção de uma
perspectiva teórica que carrega o desejo não
apenas de devolver a espessura histórica dos
discursos, mas, além disso, de considerar uma
unidade textual baseada no caráter sincrético
que a constrói. Essa abertura não significa, no
entanto, distanciar-se dos preceitos postulados
pela Análise do Discurso. Piovezani (2009)
fala de uma reformulação conservadora, na
medida em que a perspectiva adotada por
Courtine faz irromper novas questões sobre a
composição,
a
historicidade
e
o
funcionamento do discurso contemporâneo.
Que imagens desenham os detalhes?
Ainda atentos aos detalhes, é preciso
questionar sobre as imagens que nos surgem
no momento em que analisamos as minúcias
que compõem o texto em questão. É preciso
indagar a que imagens nos remetem as
estampas que forjam a pele da modelo, o
modo como seu cabelo se apresenta, as
argolas ao pescoço, os acessórios rústicos, ou,
ainda, a própria expressão corporal da
modelo, isto é, a maneira com que a mesma se
desdobra pela extensão do texto, sentada e
com as mãos ao chão. Que imagens fazem
parte de nosso catálogo interno e que
trazemos à tona no momento em que olhamos
REDISCO
BRAGA
esse texto? Que relações estabelecem as
imagens que produzimos e as imagens que o
mundo nos oferece?
Em 1981, quando da publicação de sua
tese na Langages 62, Courtine propunha
introduzir o conceito de memória discursiva
na problemática do discurso a partir de sua
leitura de Foucault, segundo o qual “um
enunciado tem sempre margens povoadas de
outros enunciados” (FOUCAULT, [1969]
2008, p. 110), o que nos permite pensar que
uma formulação mantém, em suas margens,
formulações coexistentes, às quais ela retoma,
transforma, reformula, confronta. Assim, a
formulação primeira produziria efeitos de
memória em relação às formulações com as
quais dialogava. Courtine distinguirá, então,
que “a noção de memória discursiva diz
respeito à existência histórica do enunciado”
(2009, p. 105,106), fazendo ecoar, numa
determinada conjuntura ideológica, a posição
que convém assumir, levando-se em conta as
coisas das quais nos lembramos e o modo
como nos lembramos. É nesse jogo entre uma
memória e sua irrupção na atualidade que se
dá o funcionamento daquilo que Courtine dirá
como sendo o efeito de memória. O efeito de
memória estaria posto na relação entre
interdiscurso e intradiscurso, isto é, na relação
entre a formação de uma memória no fio do
discurso – o interdiscurso – e a sua
formulação na atualidade – o intradiscurso.
Isto porque “os enunciados existem no tempo
longo de uma memória, ao passo que as
‘formulações’ são tomadas no tempo curto da
atualidade
de
uma
enunciação”
(COURTINE, 2009, p. 106).
Atentando ao caráter semiológico presente
no conceito de enunciado tal qual proposto
por Foucault (GREGOLIN, 2008), é possível
afirmar que a noção de memória discursiva
formulada por Courtine pode apresentar-se
tanto no interior de práticas verbais, quanto
no interior de práticas não verbais. Por essa
razão, e dado o estado liquefeito das
discursividades contemporâneas, “a noção de
memória foi e permanece ainda aqui um
investimento interpretativo de grande alcance,
tanto no que concerne às palavras quanto as
imagens” (COURTINE, 2008, p. 17). Ainda
segundo Courtine (2008), é fundamental que
saibamos, pois, de que modo funciona uma
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR?
memória das imagens, bem como de que
modo essa memória atravessa, organiza e
atribui sentidos a uma imagem vista,
reconhecida e compartilhada pelos sujeitos de
uma dada cultural visual. É dessa
preocupação que decorre o conceito de
intericonicidade, que parte do pressuposto de
que “toda imagem se inscreve em uma cultura
visual, e essa cultura visual supõe a
existência, para o indivíduo, de uma memória
visual, de uma memória das imagens, toda
imagem tem um eco” (COURTINE, 2005)4.
Assim, se partimos dessa discussão, é
possível perceber que a imagem trazida pelo
texto faz surgir outras imagens, numa cadeia
enunciativa sem início nem fim. Incide, sobre
o texto, uma intericonicidade que nos remete
à existência histórica do enunciado,
deixando-nos saber que toda imagem tem um
eco, que toda imagem está inscrita numa
cultura visual e que retém uma memória
discursiva na sua produção, seja ela individual
ou coletiva. Ao apresentar-se numa certa
configuração, a imagem trazida pelo texto nos
faz surgir a imagem de um africano selvagem,
animalizado
pelo
meio,
intimamente
relacionado à ideia do safári. Imagens com as
quais nos deparamos em filmes que se passam
no continente africano, em matérias
televisivas que falam sobre a fome na África,
em documentários destinados a expor a
cultura do continente.
A modelo não apenas porta ao corpo a pele
de felinos selvagens (as listas dos tigres, as
pintas escuras das onças), como também
parece posicionar-se como um deles: sentada
ao chão de um ambiente rural, onde também
apoia suas mãos. Surge-nos, daqui, a imagem
de animais ferinos: leões, tigres, zebras,
leopardos, onças. Surge-nos a imagem de uma
África bruta, ruralizada pelo barro do cenário,
pela terra em que se expõe a modelo, pelas
peles animais que assume como sua, pelos
cabelos ao vento, pelos acessórios que porta
sem qualquer trabalho de lapidação. É no
próprio safári que se apresenta a modelo:
4
Registro audiovisual, ausência de página.
COURTINE, Jean-Jacques; MILANEZ, Nilton.
Intericonicidade: entre(vista) com Jean-Jacques
Courtine. Registro audiovisual, 2005. Disponível em:
<http://www.grudiocorpo.blogspot.com/>. Acesso em:
06 jun. 2009.
REDISCO
22
mãos ao chão, animais no corpo. Assim, a
imagem da África enquanto ambiente
selvagem estende-se, aqui, aos africanos, que,
também animalizados, passa-nos a imagem de
um verdadeiro safári humano. Todas essas
imagens, que nos surgem no exato momento
em que nos deparamos com o texto em
questão, mantém estreita relação umas com as
outras: uma relação de memória, memória das
imagens: intericonicidade.
Desse modo, percebemos que as imagens
trazidas pela publicidade se confundem ao
mesmo tempo em que alimentam o estoque de
imagens que carregamos na memória,
imagens
que,
corriqueiramente,
são
construídas pelos sujeitos de nossa cultura
visual sobre a África. Para atentar a essa
articulação, entretanto, não é preciso que
tenhamos estado num safári real, uma vez que
estamos falando de uma história das imagens
construída no encontro entre a história das
imagens vistas e a história das imagens
sugeridas:
A noção de intericonicidade é assim uma
noção complexa, porque ela supõe a
relação entre imagens externas, mas
também entre imagens internas, as
imagens da lembrança, as imagens de
rememoração, as imagens das impressões
visuais armazenadas pelo indivíduo. Não
há imagens que não faça ressurgir em nós
outras imagens, quer essas imagens
tenham sido já vistas ou simplesmente
imaginadas (COURTINE, 2011, p. 160,
161, grifo nosso).
Assim, o conceito de intericonicidade não
está posto no modo como as imagens são
produzidas no mundo, mas sim no modo
como nos relacionamos como elas, no modo
como abastecemos nossa memória imagética
de imagens produzidas externamente, ao
mesmo tempo em que acionamos a relação
dessas imagens com aquelas que nós mesmos
produzimos,
imaginamos
ou
apenas
sonhamos. É nesse jogo que se constitui a
relação de que fala Courtine. Tal relação tem
raízes nos trabalhos sobre iconologia de Hans
Belting (2006), que, numa abordagem
antropológica, propõe que as “representações
internas e externas, ou imagens mentais e
físicas, devem ser consideradas como dois
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
23
BRAGA
lados de uma mesma moeda”5, uma vez que a
interação entre imagens endógenas e
exógenas seria uma atividade intrínseca ao
homem.
Sabemos que todos temos ou que
possuímos imagens, que elas vivem em
nossos corpos ou em nossos sonhos e
esperam para serem convocadas por nossos
corpos a aparecer. [...] ao mesmo tempo
possuímos e produzimos imagens. Em cada
caso, corpos (isto é, cérebro) servem como
uma mídia viva que nos faz perceber,
projetar ou lembrar imagens, o que também
permite a nossa imaginação censurá-las ou
transformá-las (BELTING, 2006).
Percebemos, pois, que tanto na perspectiva
discursiva proposta por Courtine, quanto na
perspectiva antropológica de Belting, é com o
corpo que estamos lindando: o corpo que
interpreta, produz e serve de suporte às
imagens, diria Courtine (2005); ou o corpo
que possui, convoca, produz, projeta, lembra,
imagina, censura e transforma imagens, diria
Belting (2006). Enquanto sujeitos de uma
cultura visual, somos constantemente
atravessados por imagens que alimentam
nossa memória, na mesma medida em que
somos produtores e críticos, segundo Belting
(2006), dessas imagens, já que cabe, ao
sujeito, a possibilidade de censurá-las ou
transformá-las a partir da memória individual
ou coletiva, num sempre enlace entre
esquecimento e lembrança.
Do mesmo modo, é a partir do corpo que
podemos pensar a relação estabelecida entre
palavras e imagens. Segundo Belting:
As palavras estimulam nossa imaginação,
enquanto a imaginação, por sua vez,
transforma as palavras nas imagens que elas
significam. Neste caso, é a linguagem que
serve como um meio para transmitir
imagens. Mas aqui também ela necessita do
nosso corpo para preenchê-las com
5
Referência eletrônica, ausência de página. BELTING,
Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à
Iconologia. Revista Ghrebh, n. 8, jul. 2006.
Disponível
em:
<http://revista.cisc.org.br/ghrebh8/artigo.php?dir=artig
os&id=belting_1>. Acesso em 15 jul. 2010.
REDISCO
experiências
pessoais
(BELTING, 2006).
e
significado
Tomando o corpo enquanto mídia viva,
Belting (2006) ressalta sua capacidade em
ilustrar ou preencher de significados
imagéticos uma palavra, colocando-as como
estruturas propulsoras de imagens, depósitos
da imaginação, alocações vazias que esperam
por significados. A linguagem seria, dessa
forma, um meio condutor para que o corpo
possa ativar, produzir ou despertar imagens,
que, por sua vez, não contam com
formatações pré-concebidas, mas colocam em
jogo a relação do sujeito com a significação e
suas inúmeras possibilidades de sentido,
fazendo-as sempre singulares. Estamos
falando, portanto, de uma mudança de terreno
proporcionada pelo corpo, que condensa em
carne o verbo. Se pensamos em nosso texto,
poderíamos nos questionar sobre as imagens
que nos surgem quando escutamos,
escrevemos ou simplesmente nos deparamos
com a palavra África. Em que tipo de imagem
nossos corpos transmutam essa palavra? De
que modo preenchemos com carne a fome do
verbo?
O que nos diz sua plenitude semiológica?
Diante da análise empreendida pelos
tópicos anteriores – nos quais nos referíamos
não apenas às subjetividades traçadas pelos
indícios encontrados no texto, mas também às
imagens com as quais esses indícios se
relacionam – percebemos que toda a
configuração textual – o cenário rústico, as
peles de animais, os acessórios brutos, as
argolas ao pescoço, o cabelo armado – nos
remete à ideia de uma África animalizada.
Somos tomados pela memória de um
continente pobre, selvagem, bestial, faminto.
Todos esses sinais são, no entanto,
resignificados por um segundo sistema
semiótico que constitui, igualmente, o texto
em questão: ORIGEM É RIQUEZA: uma
verdadeira princesa afro-brasileira vivencia
aqui uma realidade lúdica cuja origem e
identidade provém do plástico. Luxo pop, os
novos modelos da coleção de inverno 2009
extraem sua nobreza da sofisticação
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR?
tecnológica, e a busca por sua essência passa
pelo que há de mais fashion e moderno no
design hoje. Acessórios em madeira, palha e
metal ajudam a desenhar o look tribal-chic,
feito de muitas estampas e cores quentes,
quebrando os tons naturais. Nos pés, cobre,
prata e vermelho esquentam ainda mais a
moda da estação.
Desse modo, na conjunção com um
segundo sistema semiótico, o texto abre
cortinas para outra possibilidade de sentido,
que se apresenta na tentativa de minar
qualquer significação que não seja aquela préestabelecida pelo roteiro publicitário. Os
índices trazidos pelo texto assumem, no
encontro com a linguagem verbal, outros
papéis. A origem já não se assenta sob a
memória ocidental de uma mama-África
pobre e selvagem, mas numa riqueza cultural,
que, resgatada pela mídia e pela moda, recebe
um lugar de nobreza, embalada por uma
essência que passa pelo que há de mais
fashion e moderno no design hoje. Os
acessórios em madeira, palha e metal, dos
quais apontávamos a ausência do trabalho de
lapidação, ajudam a desenhar o look tribalchic, de modo que já não reconhecemos, ali,
uma rusticidade na confecção, mas uma
estilização cultural ao sabor do mercado.
Converte-se, pois, a tradição em riqueza: a
nobreza está na essência, a cultural tribal é o
que há de mais sofisticado. Resgata-se a
memória de uma África primitiva para fazer
emergir
uma
nova
discursividade.
Sofisticação, origem, riqueza e identidade são
esferas que se coadunam, aqui, mediante o
trânsito de símbolos culturais, que, absolvidos
pelo
mercado,
desterritorializam-se
e
assumem outros sentidos.
Assim, é possível afirmar que a linguagem
verbal é posta, aqui, numa tentativa de fixar
determinados sentidos para uma imagem que
é, por natureza, polissêmica. Mais
precisamente, numa tentativa de subverter os
sentidos
que
possivelmente
seriam
construídos num primeiro olhar sobre o texto.
Talvez tenhamos, então, uma espécie de
fixação à esteira do que propõe Barthes
([1964] 1990, p. 32), já que essa linguagem
verbal aparece “de modo a combater o terror
dos signos incertos”. O verbo retém, aqui, a
função de inaugurar uma possibilidade de
REDISCO
24
sentido almejada pela publicidade e não
totalmente concretizada pela imagem. Tratase de uma fixação que não sanciona o dado –
já que este dado carrega uma cadeia flutuante
de significados – mas controla uma
polissemia constitutiva, na tentativa de que
apenas um sentido seja legível ao sujeito
leitor: aquele que estabelece sofisticação e
riqueza na memória de uma África selvagem.
Desse modo, tomado agora em sua
plenitude semiológica, o texto seria um
acontecimento discursivo que procura um
outro lugar para a recorrente animalização
midiática do africano. Nessa tentativa, no
entanto, o texto retorna ao discurso do
africano enquanto selvagem e produz um
batimento no interior de sua significação. Isto
porque, ao partir de uma memória a fim de
resignificá-la, o texto acaba por trabalhar na
manutenção dos índices que funcionam na
sustentação desse discurso: as peles de
animais selvagens, o penteado da modelo, os
acessórios que porta, o ambiente criado.
Afinal, como trazer à tona um discurso sobre
origem, sem exaltar a imagem da mamaÁfrica?6 E, por conseguinte, como falar dessa
mãe África sem remeter ao selvagem? Assim,
ainda que a linguagem verbal atue na tentativa
de controle dos sentidos, o caráter
polissêmico da imagem deixa possibilidades
em aberto. O resultado desse batimento, que
faz chocar as significações que compõem o
texto, vai concretizar-se de forma múltipla, a
depender dos modos de recepção que o texto
terá.
Conclusão
É na soma do seu olhar
que eu vou me conhecer inteiro
Chico Buarque
Assim, é apenas quando nossos olhos
finalmente chegam à apreensão do texto
enquanto tal que se pode entrever uma análise
global do objeto. No emaranhado de
linguagens que o compõe, o texto não apanha
6
Referência à música Mama África, de Chico César,
gravada em 1996.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
25
uma decodificação totalizante no imediato
momento em que é recebido pelo leitor. Ao
nos depararmos com um texto, há uma ordem
do olhar que emerge como roteiro de leitura e
significação. Os olhos passeiam por seus
componentes na medida em que os atribuem
sentidos. Com isso, não estamos propondo
analisar, à luz de uma abordagem estrutural,
os elementos textuais enquanto unidades
autônomas (BARTHES, [1961] 1990). Ao
contrário disso, propomos analisar o encontro
dos olhares que lançamos sobre um texto
mediante sua inscrição na história, colocandoo numa série enunciativa, de modo que
possamos, ao mesmo tempo, considerar o
discurso em sua espessura histórica e tomá-lo
sob as diversas formulações que o constitui.
Desse modo, estamos contrapondo duas
tradições semiológicas: por um lado, a
tradição saussureana estrutural, da qual
Barthes é herdeiro; e, por outro, uma tradição
médica, retomada, atualmente, por Courtine,
no empreendimento de uma Semiologia
Histórica. Da primeira, ressaltamos a
necessidade de considerá-la enquanto
hipótese, a fim de que ela mesma possa nos
responder até onde sua aplicação ainda se
mantém produtiva aos objetos atuais. Na
segunda, vislumbramos a possibilidade de
renegociar os limites de uma visada
discursiva no que diz respeito à análise das
atuais modalidades do discurso e sua
inscrição na história. Foi nessa ambivalência
semiológica que tentamos fundamentar nossa
análise, rastreando uma ordem do olhar que
nos levou à análise de cada índice apresentado
pelo texto, na tentativa de compreender de
que modo o texto desenhava subjetividades,
de que modo ele fazia emergir imagens com
as quais dialogava e, principalmente, de que
modo os olhares que lançamos sobre o texto
deixava-nos entrever uma significação global.
Na soma dos olhares de que fala Chico é
que conhecemos o texto por inteiro7: trata-se
de uma atualização dos símbolos culturais
africanos no interior de uma sociedade
capitalista, que industrializa uma memória na
tentativa de resignificá-la e a massificá-la. Há
uma plastificação cultural: uma verdadeira
princesa afro-brasileira vivencia aqui uma
7
Referência à música Tanto amar, de 1981.
REDISCO
BRAGA
realidade lúdica cuja origem e identidade
provém do plástico. Afinal, não foi mesmo
pelo plástico que ficou conhecida a Melissa?
Do plástico enquanto material de confecção
dos calçados à plastificação cultural é apenas
a configuração de um deslocamento de
sentido, a proposição do novo, a oferta de
uma nova modelagem à memória. Memória
que emerge, atualmente, a partir da
visibilidade que não apenas o público negro
brasileiro tem – a partir, principalmente, das
políticas afirmativas –, mas também o
continente
africano,
com
toda
a
espetacularização em torno da Copa do
Mundo de futebol, sediada pela África do Sul
em 2010. Assim, os holofotes da mídia em
geral se voltam à África. Em particular, os
holofotes da moda, que enxergam aí uma
oportunidade de absorver os símbolos
culturais africanos e massificá-los em escala
global.
Referências
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fotográfica. In: _______. O óbvio e o obtuso:
ensaios críticos III. Tradução de Léa Novaes.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 1125.
_______. [1964]. A retórica da imagem. In:
_______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos
III. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990, p. 27-43.
BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo:
uma nova abordagem à Iconologia. Revista
Ghrebh, n. 8, jul. 2006. Disponível em:
<http://revista.cisc.org.br/ghrebh8/artigo.php?
dir=artigos&id=belting_1>. Acesso em 15 jul.
2010.
COURTINE, Jean-Jacques. [1981]. Análise
do Discurso: o discurso comunista
endereçado aos cristãos. Tradução de
Bacharéis em Letras pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. São Carlos:
EdUFSCar, 2009.
_______; HAROCHE, Claudine. História do
rosto: exprimir e calar as suas emoções (de
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
POR ONDE NOS LEVA A ORDEM DO OLHAR?
século XVI ao início do século XIX).
Tradução de Ana Moura. Lisboa: Teorema,
1988.
_______;
MILANEZ,
Nilton.
Intericonicidade: entre(vista) com JeanJacques Courtine. Registro audiovisual, 2005.
Disponível
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<http://www.grudiocorpo.blogspot.com/>.
Acesso em: 06 jun. 2009.
_______. [1992]. Uma genealogia da Análise
do Discurso. In: _______. Metamorfoses do
discurso político: derivas da fala pública.
Tradução de Carlos Piovezani e Nilton
Milanez. São Carlos: Claraluz, 2006, p. 3757.
_______. Discursos sólidos, discursos
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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 16-26, 2014
AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA
Daniel de O. Gomes
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Resumo: O presente artigo tem o intento de investigar o conto “El Cérebro
Musical” de Cesar Aira, publicado pelas Edições Eloisa Cartoneira, em 2007.
Procuramos entender questões estéticas como: a noção de belo; os paradoxos
temporais e espaciais; a busca da musicalidade; a extrema superficialidade das
personagens femininas e o “final teatral”. Buscamos saber como se dá o efeito de
maquilagens da própria ficção, em Aira. O enredo onírico e a busca da
artificialidade destroem o pacto patriarcal de "boa escritura" de um conto.
Palavras-chave: «El Cérebro Musical"; "Cesar Aira"; beleza; personagens
femininas; maquiagem; artificialidade.
Résumé: Les maquillages de Cesar Aira. Cet article as l'intention académique
d'enquêter le conte «El Cérebro Musical" de Cesar Aira, publié par les Editions
Héloïse Cartoneira en 2007. On cherche à comprendre des questions esthétiques: la
notion de beauté; les paradoxes spatiaux et temporels; la poursuite de la musicalité;
la extrême superficialité des personnages féminins et la fin “théâtrale”. Nous
cherchons à savoir comment est l'effet de maquillages de la fiction elle-même. Le
scénario onirique et la poursuite de l'artificialité vont détruire l'alliance patriarcale
de la "bonne écriture" d'un conte.
Mots-clés: «El Cérebro Musical"; "Cesar Aira"; beauté; personnages féminins;
maquillage; artificialité .
A malescrevência de Aira
Lá estava um polêmico conferencista no
“Primer
Encuentro
de
Literaturas
Americanas”, realizado em 2010, em Rosário,
desarticulando com sua fala as noções
patriarcais
habituais
com
as
quais
rotineiramente conferimos uma imagem de
literatura nacional. Tratava-se de Cesar Aira:
nascido em Coronel Pringles, escritor atual de
sucesso no universo acadêmico das pesquisas
contemporâneas; tradutor de Saint-Exupèry e
especializado na poeta argentina Pizarnik.
Aira falava-nos acerca do conceito de que
uma literatura se põe (é apropriada) como
nacional quando se pode dela falar mal.
Defenderá uma complexa noção de “el
gusto literario” que não pode ser colocado
como
anterioridade,
universalidade,
harmonização, e sim como um ato de
fundação
advindo
como
efeito
de
“recuperaciones” de uma crise que teria
abalado a normalidade vigente, através de “la
mala escritura”. Este gesto de mal escrever é
colocado em contraposição ao que
costumamos nomear classicamente como
“bien écrire”1, e que geralmente é situado
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Lembremos do pequeno texto de Benjamin, chamado
"Escrever bem": "[...] O bom escritor não diz mais do
que pensa. E isso é muito importante. É sabido que o
dizer não é apenas a expressão do pensamento, mas
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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014!
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como ação fundadora das literaturas
representacionais dos países.
Em Image I mémoire, Giorgio Agamben
tece uma notável metáfora: “Beauté qui
tombe”. Ocorreria um momento em que toda
imagem de beleza, toda poesia, em sua
elevação, repentinamente sofre uma queda, é
imantada, magnetizada, por uma inversão
vertical que Agamben chamará de um
momento de “décréation”, uma quase
suspensão entre o fazer e o não-fazer. Esta
concepção do belo é a qual associo a Aira.
Parece-me que, para Aira, o escritor qual um
bel esprit é colocado em xeque; ocorre
justamente uma inversão, onde o escritor
deveria tentar antes de mais nada ser um
agente de um mal-fazer. Aira propõe, então,
uma dessubjetivação do retrato usual do
escritor. Ele desvia, assim, da própria
remissão etimológica à palavra escriba como
aquele que bem escreve, o scribe, o copiste,
aquele que bem copia, que o executa de modo
bem feito, conforme trabalham José LuizDias, Alain Viala e outros tantos autores. Em
outra entrevista, quando ele afirma seriamente
que ninguém é obrigado a ler suas obras, seus
contos, dando a entender que eles não são tão
bem feitos quanto um clássico, está, por outro
lado, dando a entender a malescrevência
como uma potência dessubjetivadora, uma
potencia de maquilagem, de sabotagem
artificializante, dessublimadora, dos pilares
estéticos que nos guiam uma noção do belo e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
também a sua realização. Do mesmo modo, caminhar
não é apenas a expressão do desejo de alcançar uma
meta, mas também sua realização. Mas a natureza da
realização - faça justiça à meta ou se perca, luxuriante e
imprecisa, no desejo - depende do treinamento de quem
está a caminho. Quanto mais tiver disciplina e evitar os
movimentos supérfluos, desgastantes e oscilantes,
tanto mais cada postura do corpo satisfará a si própria e
tanto mais apropriada será a sua atuação. Ao mau
escritor ocorrem muitas coisas, e nisso se gasta tanto
quanto o mau corredor não treinado nos movimentos
indolentes e gesticulados dos músculos. Mas
justamente por isso, nunca pode dizer sobriamente o
que pensa. É dom do bom escritor, com seu estilo,
conceder ao pensamento o espetáculo oferecido por um
corpo gracioso e bem treinado. Nunca diz mais do que
pensou. Por isso, o seu escrito não reverte em favor
dele mesmo, mas daquilo que quer dizer.[...]".
BENJAMIN. Walter, "A imagem de Proust" in Magia
e Técnica, Arte e Política, trad. Sérgio Paulo Rouanet,
São Paulo: Brasiliense, 1996, pp.274, 275.
GOMES
da moral. Mas dirá que os “bons” já existem
demais, há tantos bons livros, então,
demoraríamos toda uma vida para ler todos os
bons escritores. De modo que o que sobra,
para quem quer escrever algo distinto e que
faça algum efeito no presente vem a ser esta
região maldita, ou, melhor digamos,
“malescrita”. O belo, portanto, não pode estar
associado mais ao bem-fazer, ou melhor, à
uma certa feminilidade sensível do bem-fazer.
Esta feminilidade dos artistas e artesãos
delicados, em geral, em contraposição a uma
construtiva, direta, objetiva linguagem
máscula. O cérebro do escritor deverá,
portanto, deixar de ser um cérebro racional –
no sentido de meramente armadura da razão,
da ordem, do bem, etc, excluindo-se a emoção
da desordem, a melodia possível da
imaginação que por exemplo Valèry
enxergava em Da Vinci. O cérebro do escritor
advém agora como “cérebro musical”. Lemos
aqui a mescla entre razão e emoção,
masculino e feminino, mal escrever e bem
escrever, onde o velho receio do perigo
musical ou do improviso dá lugar a uma
circunstância melódica do saber, do narrar.
Edward Said, em “Elaborações Musicais”,
apontara para a dilatação do campo musical
que ultrapassa e invade outros domínios não
musicais, ou seja, a música deve ser afrontada
como um campo mais amplo do que aquilo
que acreditamos ser o próprio pensamento
linguístico. É, simultaneamente, uma forma
de pensamento, mas que, ao se abrir por vezes
livremente para o universo do improviso, o
devaneio da simultaneidade com a qual a
composição se expõe pelo instrumento, por
exemplo, nos ensina com mais frequência isto
que Aira quer nos informar em seus contos. E
o que Aira nos informa é a arbitrariedade e a
errância dos elementos das histórias que
conta, como acordes dissonantes ao acaso,
navegando na partitura da ficção; ou digo
melhor: o abandono musical da ancestral
linearidade do logos é o que Aira alerta como
captura necessária no pensamento do escritor.
É deste modo que ressaltamos o conto
“Cérebro Musical” que Aira publicou pelas
edições Eloisa Cartonera, em 2007, e que,
aqui, nos servirá de objeto de investigação.
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Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014
AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA
!
Antes de mais nada, é preciso lembrar que
a intenção de Aira ao publicar suas obras
pelas Edições Eloisa Cartonera pode ser já
um exemplo deste impulso à marginalidade e
à exterioridade dos modelos vigentes que
abrigam canonicamente as obras em geral
bem escritas. Difícil associá-lo ao escopo de
ostentar o sujeito que escreve como um bel
esprit. Podemos perguntar: como pode um
autor ser perfeita e exatamente um bel esprit
quando seu nome de autor é repousado em um
livro com capa de papelão reciclado? Quando
seu objetivo é a “malescrevência”? Contudo,
não é apenas uma questão isolada de
assinatura em um veículo periférico. Aqui o
associamos a Douglas Diegues, Daniel Link,
Ricardo Piglia, Raúl Zurita, e outros. Não se
trata de considerá-los, a todos eles, periféricos
apenas pela qualidade “menor” das
impressões de alguns de seus livros, ou pelo
dado artesanal e primitivo da arte gráfica da
capa, mas sim por se vincularem a bel prazer
a um sistema editorial que, precisamente, não
é em si sistemático; um sistema editorial que
não se retrata totalmente como aparelho de
publicação, que dessubjetiva este retrato
possível do autor viril; um processo marginal
de publicações que, justamente, não se
vincula a um critério estabelecido de “bem
fazer” com a qual as editoras mais comerciais,
ou mais industriais, se valem para sublimar
autores.
A dessubjetivação pela indumentária
O enredo do conto “El Cerebro Musical”
começa com a observação detalhada do
narrador: um garoto que está em um
restaurante de um hotel, em um imaginável
evento beneficente de doações de livros, em
um provável sábado dos anos 50. Sua
observação dá-se no entre lugar entre a
austeridade e a desconfiança - ou seja, o lugar
estrito, rigoroso, que o reprime como
observador - entre seu pai (“com hábitos
austeros”) e sua mãe (“com sua invencível
desconfiança”). No fundo do salão,
transportam-se caixas de livros recebidas em
uma mesinha branca por uma personagem
interessante, Sarita Subercaseaux, a pequena
29
mulher com cabelo penteado em feitio de ovo
plumoso, rosto branco de pó de arroz e um
vestido celeste. “En aquel entonces había
reglas
bastante
estrictas
com
la
indumentária” (AIRA, 2005, p.3). Desde a
bela disposição da mesa, tudo remete a um
tempo muito passado, como se os anos 50
remetessem, por sua vez, a um tempo mais
longínquo e mais artificial. A billetera de
Pushkin (famoso poeta russo que morreu em
um duelo), de seu pai, reenvia-nos ao séc.
XVIII. Lembro, assim, das críticas que
Charles Baudelaire faz em pequeno um
capítulo de “Sobre a Modernidade”, intitulado
“Elogio da Maquilagem”. Baudelaire aponta a
falsa concepção do séc. XVIII do belo
associado à fecundidade que tem a
contraditória sublimação da natureza como
base do bem. Esta noção do belo,
artificialmente, acaba fazendo-nos esquecer
do horror do homem natural, da animalidade
de onde viemos, pois a natureza é para
Baudelaire infalivelmente hostil.
Pegando a linha do enredo que Aira
desenvolve neste conto, vemos uma
teatralização que vai da austeridade do início
de um conto um tanto áspero, em um
ambiente pequeno burguês, ao onírico mais
extremo e imprevisto, cheio de leveza e
velocidade ao final do conto. O conto inicia
neste
rigoroso
ambiente
de
livros
encaixotados olhados por uma criança
imaginativa
e
discorre
as
ações
progressivamente rumo ao fascínio livre e
sem rigor. Irá diluindo o rigor inicial até, por
exemplo, testemunharmos uma anã alada que
bota um ovo do tamanho de uma melancia.
Y la enana alada, la gran libélula,
después de cruzar varias veces con su
clap-clap aterrorizante, cada vez más
rápido, el espacio aéreo del teatro y
chocar repetidamente contra el techo y
las paredes, también se precipito a la
boca del escenario, lo que dentro de todo
era ló más razonable. La escenografía
pequeño burguesa de la compañia de
Leonor Rinaldi se la trago, y después
hubo um derrumbe generalizado de
bambalinas (AIRA, p.20).
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Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014!
30
Simplificadamente, da desordem do circo à
exatidão demagógica do teatro burguês, posso
afirmar que Aira vai aos bastidores do rigor,
mostrando o que pode a fantasia e o fascínio
por detrás da imaginação infantil. Mais que
isto, ele denota, com paralela riqueza
descritiva com a qual Baudelaire definia a
Modernidade, que nossa tendência inebriante
e harmonizadora de conferir virtudes é tãosomente sobrenatural, artificial ilusão. Nosso
rigor mental conduz apenas à correção do
universo natural; eis o que está no fim do
conto, quando acaba mostrando um ovo
equilibrado sobre um livro, que vem a ser a
imagem simbólica da Biblioteca Municipal de
Pringles. Ou seja, ele produz todo esforço
descritivo que simula o caos, nosso pânico do
que pode sair do “cérebro musical”, para
transmutá-lo em uma adoração paradisíaca.
Temos, ao final, a ordeira Biblioteca de
Pringles e todo conto é, por um lado, apenas
uma ingênua lenda de sua fundação. Mas se é
nada além disso, nada há além disso, não há
história além disso, não há sublimação de
uma ou mais histórias; há apenas um
abandono em cena, ou o fora de cena, o
“obsceno”. E nada mais obsceno que o gesto
de retratar o irretratável, narrar o que não há
além... É aqui que vemos, quem sabe, o mal
escrever como fundação, como maquilagem
sobre a maquilagem, como força constituidora
da identificação, do território da cidade.
Ingenuamente, a selvageria se esconde sob o
artifício da indumentária, a plumagem, a
maquilagem, o cérebro rosa fosforescente
qual um baú de memórias, mas que, de fato,
guarda em seu interior as fantasias que
assassinamos em nome da autossublimação.2
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
No mesmo ano em que este conto foi publicado, pela
Editorial Cartonera, o professor Raul Antelo escrevia
acerca da estética do abandono em Aira: “(...) Não há
espaço, nessa perspectiva de Aira, para a plenitude de
uma segunda história, como em Piglia ou, em menor
medida, em Bernardo Carvalho. O narrador já não
conta uma fábula; ele limita-se a apresentar um
esquema e, na medida do possível, apenas uma fórmula
ou tão somente um procedimento. Sob esse ponto de
vista, na estética do abandono é indispensável a beleza
de indiferença reivindicada por Duchamp. Nela, o
narrador, a rigor, não deve mais ter estilo
inconfundível.(...)” (ANTELO, 2005, p.113)
GOMES
Quando Baudelaire, diagnosticando a
artificialidade emergente do séc. XIX,
explicava que o pó de arroz objetiva
desaparecer as manchas informes que a
natureza cria, aproximando o ser humano da
estátua, está criticando o falso narcisismo
sublimador da modernidade. Tudo que adorna
o corpo de uma mulher – e aqui retomo a
imagem de Sarita Subercaseaux que,
reaparece subitamente no fim do conto,
transformando o machado em livro, a arma
em objeto positivo – faz parte dela mesma,
diz Baudelaire. Ele está mostrando que a
mulher, na condição de corpo feminino
marcado pela responsabilidade do belo e da
moral, não pode ser, poeticamente, separada
de sua indumentária. E isto é menos uma
crítica à vaidade feminina, obviamente, do
que ao modo narcísico e superficial com o
qual a modernidade se constituía na
artificialidade aos olhos críticos de
Baudelaire. Esta artificialidade é o que gerou
o conto moderno, é o que, em geral, motiva
tanto a literatura romântica quanto a realista; e
está clara, ainda sobrevive, na descrição do
protótipo da solteirona que é esta personagem
de Aira. Mesmo que de personagem “plana”,
no início do conto, ela passe a personagem
“redonda”, ao final, como uma análise mais
formalista observaria, não há interioridade
nesta personagem. Ou melhor, não há uma
interioridade que não seja exterioridade. É
mais uma de suas personagens maquiadas que
ali representam a superficialidade simbólica
dos papéis que todos exercemos como
sujeitos reduzidos a semiobjetos.
Ela é a imagem mesma da esterilidade,
como diz o conto, sua arrumação fria,
objetificadora, remete à dessubjetivação pela
indumentária e a maquilagem que ela se
reduz. Pergunto: seu cabelo em forma de ovo
plumoso contradiz ou não, afinal, a imagem
final do ovo que ela tem nas mãos? Pois
esperamos que ela o rompa, estamos ansiosos,
no fim do conto, para saber o que há dentro
do ovo, mas não há revelação maior que a
superfície do próprio ovo sobre o livro. A
Biblioteca de Pringles, como simbologia da
tradição que se segue sem pensar, é mais
importante que a revelação da imaginação. A
verdade, enfim, está tradicionalmente na
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Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014
AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA
!
Biblioteca como instituição máxima. Cabe ao
leitor imaginar a significação do ovo, seu
interior fantástico, porque como diria Clarice
Lispector “o ovo é obvio”, o ovo é
exterioridade plena. O ovo vem a ser antes a
imagem da esterilidade do que a da
fecundação. Tanto que o ovo deve ser
“galado”, “chocado”, “cuidado”. Como dirá
Simone Curi, estudando Lispector em sua
tese: “o ovo é devir (...), a escrita é devir (...)”
(CURI, 2001, p.149)
Mas – e o ovo? Este é exatamente um dos
subterfúgios deles: enquanto eu falava
sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo.
“Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo
fica inteiramente protegido por tantas
palavras. Falai muito é uma das instruções,
estou tão cansada.
Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu
necessário esquecimento. Meu interesseiro
esquecimento. Pois o ovo é um esquivo.
Diante de minha adoração possessiva ele
poderia retrair-se e nunca mais voltar, o que
me mataria de dor. Mas se ele for
esquecido, se eu fizer o sacrifício de viver
apenas a minha vida e esquecê-lo. Se o ovo
for impossível.” (LISPECTOR, p.214.)
Mis propias elucubraciones
Todo conto pode ser também interpretado
como a imaginação do garoto que está
enfeitiçado pela movimentação destas caixas,
algumas ruidosas, algumas cheias outras
vazias, está fascinado e, mesmo que não saiba
ler neste instante, será um futuro leitor
fanático e usuário desta Biblioteca. Logo de
início, o narrador revela que era característico
de si inventar coisas, dar-se a elucubrações e
fantasias.
31
entendia, y no entendia casi nada. ¿Quién
iba a explicármelo? (AIRA, 2005, p. 4)
Oras, todo o conto assumirá este tom
onírico, principalmente após a descrição do
“cérebro musical” e a ida ao circo, quer seja,
todo conto será uma elucubração, um dilatar
fantasioso de imagens chocantes ao ponto de
ser quase irritante no sentido de uma má
escritura, ou um enredo que se dilui pela
ausência de previsão. Neste aspecto, Aira
enfrenta o leitor mais tradicional, que,
inconscientemente ou não, espera da ficção
uma representação mimética de sua
identidade ou da beleza que a dimensão
onírica possa revelar como ordem,
moralidade, etc. A leitura, por sua vez, pode
ser uma má leitura se quiser, mas, todo modo,
o leitor deve aceitar este pacto explosivo.
¿Quién iba a explicármelo? Ou seja, o leitor é
talvez colocado nesta função infantil,
diríamos, onde a miragem musical supera
aquilo que poderíamos esperar como
realidade pacífica a ser mimetizada. Aira nos
avisa, inclusive, educadamente, de antemão,
que estamos em termos narrativos ante uma
possível armadilha imaginativa. Emboscada
que de fato se proporá, adiante, como
fantasias um tanto soltas. Mesmo o sentido
final, da Biblioteca de Pringles, não passa de
um non sense. Aira equilibra-se em uma
corda bamba entre os rigores que o fazem
contar uma história e o devaneio circular. Em
certa entrevista, Aira diz que o que lhe
interessa são os inícios de seus contos, como
terminam em geral são devaneios e
circularidades para que terminem logo e assim
que ele possa botar mãos à obra novamente,
botar mãos na massa. Se por um lado, possa
parecer um tanto arbitrário e desrespeitoso
com o leitor, em verdade, por outro lado,
trata-se tanto de um pacto ético com a
liberdade interpretativa do seu leitor –
exigindo dele uma posição menos inerte quanto de uma ética consigo mesmo que seria
de ordem blanchotiana, ao meu ver. É o que
poderíamos chamar de obsessão do recomeço.
Como diria Blanchot, ao ressaltar a frase
“Noli me legere”, o escritor não pode ler sua
obra; ele está condenado à esfera da escritura,
na infinita descoberta, diante desta dimensão
ilegível da obra, de que no espaço da criação
Lo ideal habría sido que todos los libros
dentro de uma caja fueran distintos; lo
peor, que fueran todos ejemplares del
mismo libro; pero esto último era ló más
frecuente. No sé quién me había explicado
estas cosas, o si eran resultado de mis
propias elucubraciones y fantasias; habría
sido muy característico de mi, inventarlo
todo, porque siempre estaba inventando
historias y maquinaciones para ló que no
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32
não há mais lugar para criar, é preciso por
mãos à obra, novamente. Explicaria assim
esta obsessão em Aira por finalizar alguns de
seus contos do modo mais elucubrativo
possível.
E posso afirmar que, neste “El Cerebro
Musical” o primeiro dado do fantasioso e do
elucubrativo a que o leitor estará condenado,
da dimensão onírica e atópica que nos
encontramos é a própria Sarita Subercaseux
que, segundo relato da mãe do narrador, havia
morrido há muitíssimos anos, antes mesmo do
garoto nascer. Visto que este garoto é o
narrador, logo na 3a página do conto,
estamos, então, perdidos, confundidos, cientes
que as analepses ou prolepses não
confirmarão a linearidade ou o tempo
narrativo do enredo.
Da temporalidade não linear
Michel Butor nos recorda que existe um
“branco” que fica entre os parágrafos que
contam tempos diferentes. Este branco marca
uma região temporal que frequentemente é
esquecida, é o tempo do leitor. Como cada
leitor tem um tempo para si, o tempo da
narrativa é, assim, dada em uma relatividade
com o tempo de se ler. No mais, ele destaca
três tempos, na narrativa ou na ficção, que
seriam: o tempo da aventura (o tempo interno
em que a “coisa” ocorre); o tempo da escritura
(este tempo vai refletir-se na aventura por
intermédio de um narrador) e o tempo da
leitura (o tempo que o leitor aciona ou
presentifica a “coisa”, a história). Butor
explica-nos que “O autor pode nos dar um
resumo que lemos em dois minutos, exigiu
duas horas para ser escrito e ocorreu, no plano
da aventura, em dois dias.” Mas, noto que
para Butor o tempo ainda é um elemento que
precisa ser “aplicado” sobre um espaço. Para
se estudar as anomalias do tempo é preciso
observar o espaço. Butor, por ver o tempo
muito segmentadamente acaba não admitindo
uma outra temporalidade possível que é a do
autor, da autoria, a do escritor. Para ele o
autor quando nos conta algo no ´eu´ está
sempre no interior do que conta. Este
GOMES
apagamento temporal-autoral poderia bem ser
estudado em paralelo com Foucault, mas
ocorre um contratempo que é o de apagar toda
e qualquer remissão ao tempo em prol do
espaço, do lugar, da topografia que implica no
labirinto do discurso como miragem. Tal
perigo Aira se propõe atravessar e desfrutar.
Ao estabelecer uma leitura crítica da
instantaneidade e das leis físicas a que ela se
assujeita, Agamben, em “Infância e História”,
tal como o fez Benjamin pautado em
Heidegger, lembra que a concepção de tempo
que o ocidente nos compôs traz à tona a ideia
de um “continuum” como suporte de
quantificações. Porém, isto encaminha à
experiência cristã do tempo (da linearidade)
que é muito redutora filosoficamente haja
vista elevar a irreversível imagística tanto da
“criação divina” quanto do “fim dos tempos”.
Como podemos pressupor efetivamente que o
tempo é uma linha que encaminha ao seu
próprio fim? Isto assume um significado
altamente ideológico na historicidade,
propondo o desamparo do presente. Perdemos
a fé no tempo, posto que Aira proponha, ao
contrário, a devolução infinita do presente, do
aqui-agora mesmo que como abandono, a
todo tempo, no fluxo da leitura. Aira propõe,
ao contrário, o que Susana Scramim
ressaltaria na renúncia da linearidade do
tempo: “uma imersão na temporalidade
anacrônica do presente” (SCRAMIM, 2007,
p.173)
Por outro modo, o tempo aristotélico
matemático (circular), o tempo geométrico,
também é colocado em crise em Aira, tanto
quanto o tempo metafísico cristão. Ao
destituir qualquer acesso a um plano
cronológico, ao renegar toda expectativa do
corrimento sucessivo de fatos que nos
formule
uma
imagem
integral
do
acontecimento - no conto “El Cerebro
Musical” – trabalha-se numa região temporal
da negatividade, posso dizer. Assim, a
dimensão originária está em tudo o que diz, a
todo momento, mas não é exata e
aristotelicamente circular, como se um teatro,
uma encenação, começasse e acabasse em
cada proposição, em cada micro-fato que
narra com extrema facilidade de abandono do
tempo linear.
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AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA
!
Estas encenações de Aira, este teatro da
não-linearidade que é sua obra, lembra a
aversão que a mãe do personagem tem pelo
demagógico teatro pequeno-burguês (o nome
“Leonor Rinaldi” condiz com a popular atriz
argentina falecida nos anos 70). Este teatro
cujas companhias de Pringles bancavam para
a classe mais abastada. Talvez, intimamente
como literato, Aira revele-se nesta aversão a
uma classe de leitores mais popularizada que
está acostumada com o óbvio da “boa
literatura”.
A tal punto llegaba la aversión de mamá a
esse tipo de teatro que más de uma vez,
cuando venía alguna compañia que lo
practicaba, nos había hecho cenar
temprano para ir a estacionarnos en el auto
frente al teatro (pero a cierta distancia,
disimulados en las sombras) a la hora del
comienzo de la función, para registrar a los
asistentes. Por ló general no había
sorpresas, los que acudían eran gente
humilde, de los barrios apartados, ló que
ella llamaba ‘la negrada’, y que Le merecia
apenas algún comentário despectivo, por
ejemplo ‘qué esperar de estos ignorantes’.
Pero a veces se colaba alguien de La clase
decente, y entonces sus críticas se hacían
enérgicas, sentia que su espionaje valia la
pena, y ‘ahora sabía a qué atenerse’.
(AIRA, 2005, p.8)
Quem sabe, “el cerebro musical” esteja
mais próximo da mágica circense e Aira
busque mesmo uma temporalidade irreal,
itinerante como o circo, mas que se estabelece
numa incongruência. A contradição está dada
posto que tal polaridade não possa ser
condizente com o elevado nível da literatura
de Aira, que, apesar das acrobacias, por vezes
cômicas, nada tem de popular, sendo, por sua
vez, exigente demais de um leitor erudito e
pouco paciente. Um leitor explosivo ou
bélico, tão impulsivo quanto o modo com que
as crianças precipitam-se e empurram o
cérebro musical ao chão, leitor que acate suas
pirofagias, suas fugas temporais e espaciais,
seus excessos, suas musicalidades, suas
inventividades anacrônicas. Quiçá o leitor
ideal de Aira possa ser, antes, o tigre do circo,
os anões fugitivos, do que o velho expectador
33
em si, com sua passividade do olhar sobre a
lona protetora.
Desde a temporalidade não linear, tudo nos
encaminha à fusão entre ilusão e fato, pois já
não sabemos, ao ler o conto, a real distância
entre as coisas, a real proporção das coisas. O
que pouco interessa, aparentemente. A
interioridade dos pensamentos se expõe como
origem pura, como um quebradiço ovo. Tanto
mais sobrenatural é o mundo, quanto mais
Aira o descreve com naturalidade, como se
desenhasse um ovo num papel. Quando, por
exemplo, todos buscam os três enanos, eles já
não têm a proporção real, são buscados em
baixo das pedras, nas camisetas, em
invólucros
minúsculos.
Nada
mais
sobrenatural.
Los pringlenses vivían bajo el supuesto,
ampliamente
comprobado,
de
la
transparência social y catastral del
pueblo. ¿Cómo podía ser que en esa
diminuta caja de cristal pudiera seguir
hurtándose a la mirada um objeto tan
conspicuo como tres enanos? Con el
agravante de que no eran un compacto
sino uma pareja que se escondia y un
tercero que los buscaba y a la vez se
escondia también. Un matiz de
sobrenatural empezó a cubrir el episodio.
Las dimensiones de un enano se revelaron
problemáticas, al menos para la
perturbada imaginación colectiva. ¿
Había que mirar bajo las piedras, en el
revés de las hojas, em los capullos de los
bichos canastros? Por lo pronto, las
madres miraban bajo las camitas de sus
hijos, y los niños desarmábamos los
juguetes para revisar adentro. (AIRA,
2005, p. 14)
Ele não aponta a mera ingenuidade do
povo pringlense, mas o desespero coletivo,
hiperbólico, que diminui o tamanho do alvo
para potencializar a inquietação temporal e a
sobrenatureza do fato narrado. As coisas não
tem dimensão em Aira, tudo é pequeno, tudo
é microabandono musical.
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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014!
34
A biblioteca em caixas
No 2º volume de “Rua de Mão Única”, no
fragmento em que Benjamin narra estar
“desempacotando sua biblioteca”, trabalhará o
fascínio e a tensão do momento em que os
livros chegam, lacrados em caixas, para
compor uma biblioteca. A diferença
específica com o conto de Aira é que a
biblioteca que trata Benjamin é pessoal e a de
Aira é uma Biblioteca Pública. No entanto,
tirando este aspecto, a relação se mantém, ao
meu ver. É o mesmo momento de um “suave
tédio” em que as estantes esperam os livros,
em que temos uma pré-biblioteca, uma
biblioteca a ser montada, na desordem dos
caixotes, entre pilhas de volumes.
A frieza de estátua de Sarita Subercaseaux,
com seu colar de pérolas e sua exagerada
maquilagem, em Aira, contrasta-se com a
velha imagem calorosa do colecionador de
livros, o bibliômano. Este elemento do ardor,
da paixão sagrada, o bibliômano, se oferece
em uma experiência sempre singularizante.
Temos, então uma figura da pura
exterioridade, a simplicidade exterior
congregada na personagem Subercaseaux, que
contrapõe imediatamente à interior, íntima, do
colecionador de livros, como imagem
benjaminiana ou mesmo flaubertiana. (Nestas
duas figuras, imagino o ovo em seu lado de
dentro – a gema, lado caloroso e vital – e o
lado de fora – a casca delicada e fria.)
Lembro-me das análises de Abel Barros
Baptista quando este, ao analisar o primeiro
conto que Flaubert escreveu, explica-nos que
a bibliomania começa a se apropriar do livro a
partir de sua unicidade, autenticidade, de seu
título, sua forma material, sua raridade. O
valor do livro para o verdadeiro colecionador
está menos no conteúdo propriamente dito
dos livros que possui, do que na habilidade de
reconhecimento primário das coisas, como
individualidades; são seus nomes próprios,
seus títulos, etc, que assumem valor. Tal
habilidade pode parecer superficial, no
entanto, é quase a de um feiticeiro, como diria
Flaubert. Ou seja, o valor para o colecionador,
que o constitui como bibliômano, está no
livro como objeto, mas em uma espécie de
aura, de âmago, que envolve isto e não
GOMES
exatamente como posse. A posse é sempre
impossível, inviável.
No final das contas, o bibliômano não
reduz o livro a sua pura e simples
materialidade de objeto tipográfico, o que
ocorre
é
que
sua
missão
é
a
transmissibilidade, logo ele é um mediador,
que se sacrifica para ser o amparo do livro (tal
como Giácomo). No conto de Aira, o garoto
já é um bibliômano por amar os livros em sua
unicidade, em sua transmissibilidade possível.
A figura dele, com sua extremada potência ao
onírico, é mais a do verdadeiro colecionador
benjaminiano que se sacrifica pela unicidade
do livro do que a da personagem Sra.
Subercaseaux que dirige a Biblioteca, que
recebe os livros friamente, tendo papel
decisivo na simbologia superficial e cultural
de Pringles.
Benjamin se preocupa em homenagear
com descrições o encantamento do
colecionador. Os livros em suas caixas não se
reduzem a meros pertences. Não são simples
pacotes que formam o ambiente basilar de “El
Cerebro Musical”.
Ao contrário, estes livros vão dissuadir
sofisticadamente olhares como uma arte onde
o caos se prenuncia em coautoria. Em seus
escritos sobre os livros em caixas, Walter
Benjamin faz qual uma coleção de lembranças
melódicas onde a ordem e o caos de seus
livros se avizinham do mesmo modo com o
qual este garoto narrador em Aira produz
lembranças. O cérebro musical é o do
narrador, o do autor, o do bibliômano.
Benjamin e Aira como vozes resultantes do
semi-caos da biblioteca; o valor utilitário e
funcional da biblioteca está sob as
turbulências imaginativas “centuplicadas” do
colecionador, do leitor excitado que deverá
partilhar tal experiência. Partilha infantil e
renovadora ante os livros velhos.
Para um colecionador autêntico a
aquisição de um livro velho representa o
seu renascimento. E justamente neste
ponto se acha o elemento pueril que, no
colecionador, se interpenetra com o
elemento senil. Crianças decretam a
renovação da existência por meio de uma
prática centuplicada e jamais complicada.
Pra elas colecionar é apenas um processo
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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014
AS MAQUILAGENS DE CESAR AIRA
!
de renovação; outros seriam a pintura de
objetos, o recorte de figuras e ainda a
decalcomania e assim toda a gama de
modos de apropriação infantil, desde o
tocar até o dar nome às coisas. Renovar o
mundo velho – eis o impulso mais
enraizado no colecionador ao adquirir
algo novo, e por isso o colecionador de
livros velhos está mais próximo da fonte
do colecionador que o interessado em
novas edições luxuosas (BENJAMIN,
2000, p.229).
Benjamin dirá, ainda, que “...de todas as
formas de obter livros, escrevê-los é
considerada a mais louvável”. O que Aira faz,
com seu narrador, o garoto fascinado ante
uma quase-biblioteca, é compartilhar esta
esquisita tensão colecionadora de imagens,
como tesouros descobertos, que crescem à
medida que o conto se desenvolve. As
imagens se transformam em música
dissonante, entre os espaços escandalosos do
circo e do teatro. Vamos, das caixas de livros
em um restaurante, ao triângulo amoroso
entre três anões fugitivos, um deles com a
pistola nove milímetros do dono do circo nas
mãos; passeamos com o cão Geniol e pela
exposição de um trágico cérebro fosforescente
que nunca se apaga e, no entanto, que se
rompe, até revelar um anão voador, entre
morcegos e pombas, como a fêmea de um
gárgula indomável e vivo que, como se não
bastasse, bota um ovo sem proporções... Nada
há de grotesco nesta ausência de limites.
Apesar de não haver pura “beleza”, há um
efeito majestoso que se expõe como abandono
do leitor. Será que Aira já não pensa em quem
está o lendo? Será que já foi como escritor
totalmente tomado pela errância, pela
malescrevência, ao ponto de abandonar seu
leitor? A emoção narrativa permanece nesta
bizarra coleção de imagens como “edições
luxuosas” que nos possibilita tomar
emprestados alguns exemplares sem devolver,
para que circulem livremente em nossas
fantasias particulares. Para que tenhamos
também nossa Biblioteca em caixas, nosso
arquivo incompleto, nosso cérebro musical
rompido, que não se reduz à Biblioteca de
Pringles, ou a um demagógico teatro
pequeno-burguês.
35
Referências
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Destruição da experiência e origem da
história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
_____. Beauté qui tombe. In: Image et
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BAUDELAIRE,
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Sobre
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Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996.
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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014!
36
GOMES
Entrevista de Cesar Aira. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=1SfmI9w7
7Og&feature=related Acesso em 17 julho
2012
LISPECTOR, Clarice. Atualidade do ovo e
da galinha. In: A descoberta do Mundo. Rio
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SCRAMIM, Susana. A plenitude do tempo e
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Anacronismo dos textos. Chapecó: Argos,
2007.
Recebido em:11 de setembro de 2013.
Aceito em: 27 de novembro de 2013.
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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 27-36, 2014
QUEIMANDO SUTIÃS:
O CORPO COMO DISCURSO E ACONTECIMENTO
Elizete de Souza Bernardes
Vanice M. Oliveira Sargentini
Universidade Federal de São Carlos
Resumo: O presente artigo tem como perspectiva teórica a Análise do discurso
francesa (AD), em congruência com a Semiologia Histórica, que nos permite olhar
para o objeto da AD enquanto um objeto não apenas verbal, mas, sobretudo,
semiológico e de dimensão histórica. Como objeto de análise, partimos de uma
observação que circulou na mídia, na qual o corpo apresentava-se como o
“suporte” da materialidade linguística, bem como, se construía como o próprio
discurso. Em uma visada de análise do texto misto, no qual não se separa o verbal
do não-verbal, encontraremos, nos anos 70, um enunciado que, em 2013, retorna e
se atualiza, a saber: “O meu corpo me pertence!” Dois acontecimentos, separados
por, mais ou menos, 40 anos que se entrelaçam, formando uma rede interdiscursiva
e provocando um efeito de memória (COURTINE, 2009). A partir desses dois
episódios, nos questionamos: Como o corpo se torna objeto do discurso em
enunciados que circulam na sociedade? Para tanto, lançamos mão de alguns aportes
teóricos da AD, tais como: enunciado (FOUCAULT, 1986), acontecimento
discursivo e trajeto temático (GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1994). Dessa
perspectiva, procuraremos analisar quais são os enunciados que se repetem, se
transformam e refutam outros enunciados. Enfim, buscaremos refletir como o
corpo é o próprio discurso em enunciados que circulam, atual e historicamente.
Palavras-chave: Análise do discurso francesa; Semiologia Histórica; Corpodiscurso.
Résumé: En ayant brûlé les soutiens-gorges: Le corps comme discours et
événement. Cet article est écrit du point de vue de l'Analyse du discours française
(AD), en concertation avec la sémiologie historique , qui nous permet de regarder à
l'objet de l'AD comme un objet non seulement verbale, mais, surtout ,
sémiologique et de dimension historique . Pour objet de l'analyse , nous
commençons par une observation qui a circulé dans les médias, dans lequel le
corps a été présenté comme le "soutien" de la matérialité linguistique et le corps est
construite comme le discours lui-même. Dans une analyse du texte mixte, où le
verbale et non verbale ne pas séparer, nous trouvons , dans les années 70, une
déclaration que, en 2013, retour et mises à jour , à savoir : "Mon corps m'appartient
" Deux événements séparés par plus ou moins 40 années s'entremêlent, formant un
réseau interdiscursif et provoquant un effet de mémoire (COURTINE , 2009). De
ces deux épisodes, nous nous demandons: Comment le corps devient un objet de
discours dans les états qui circulent dans la société ? Pour finir , nous avons utilisé
certaines conceptes théoriques, comme énoncé (Foucault, 1986), événement
discursif et trajet thématique (Guilhaumou et Maldidier, 1994). De ce point de vue ,
essayer d'analyser quels sont les enoncés qui se répètent, se transforment et réfutent
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014
38
BERNARDES e SARGENTINI
autres enoncés. Enfin , nous allons chercher à refléter comme le corps est il même
le discours en énoncés qui sont actuelles et historiques en circulation.
Mots-clés: Analyse du discours française; Sémiologie historique; Corps-discours.
O corpo no discurso. O discurso no corpo.
“O meu corpo é minha propriedade ...”1:
essa é parte da inscrição feita em seu corpo,
por uma tunisiana, Amina Tyler, ameaçada de
morte após esse episódio. Na imagem, a moça
apresenta-se com os seios à mostra, com um
cigarro na mão, lendo um livro, maquiada e
usando batom vermelho. Seus olhos não se
dirigem diretamente a nós. Sua expressão não
é de atenção àquele que a olha. Despida,
mostra-se à vontade, vestida pelas palavras
inscritas em seu corpo e exprime segurança na
firmeza de seu gesto. Mais que a
materialidade linguística, o próprio corpo da
mulher já é um discurso: o corpo é encarado,
assim, enquanto um lugar de inscrição da
história, como sugere Courtine (2011a).
!
Figura 1 – Amina Tyler
1
!
Essa imagem, vista como um enunciado, em
um sentido foucaultiano (que não está restrito
à linguagem verbal), ganhou destaque em
vários meios de comunicação no mundo
inteiro.
1
No corpo da tunisiana, lemos na íntegra: “Foda-se sua
moralidade” e “Meu corpo é minha propriedade e não é
a honra de ninguém”. Tradução do árabe para o
português feita pela Folha de São Paulo, em 19 de abril
de
2003.
Disponível
em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/104625-meucorpo-me-pertence.shtml. Acesso em: 11 jun 2013.
REDISCO
O conjunto da obra, longe de ser um elemento
neutro e transparente, resgata algo que diz
antes e alhures e que faz o sentido ecoar no
tempo presente. Um enunciado que faz
ressoar uma memória e ao mesmo tempo em
que há esse resgate, há também uma
atualização.
Se voltarmos para os nos 70, com efeito,
encontraremos o seguinte enunciado: “Nosso
corpo nos pertence”, dito por um grupo
feminista e que naquela época clamava pela
liberdade do corpo feminino. Dois
acontecimentos, separados por mais ou menos
40 anos, que na relação interdiscursiva se
cruzam e criam a possibilidade de atualização,
provocando um efeito de memória
(COURTINE, 2009).
A partir desses dois episódios, tomados
aqui como acontecimentos discursivos que se
inter-relacionam, nos questionamos: Quais os
efeitos de sentidos que se produzem em cada
momento? Como o corpo se torna objeto do
discurso em enunciados que circulam na
sociedade? Quais as mutações discursivas de
um acontecimento a outro? Em outros termos,
o que entra em um regime de
(des)continuidade histórica nesses dois
recortes?
Para tentarmos responder a essas
questões, mobilizaremos alguns conceitos,
tais como: enunciado (FOUCAULT, 1986),
acontecimento discursivo, e trajeto temático
(GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1994). As
reflexões sobre o que se tem denominado de
Semiologia Histórica, nos parece salutar para
essa análise, haja vista que a AD permite
trabalhar com os efeitos de sentido do
discurso,
a
partir
da
materialidade
semiológica,
considerando
o
sujeito
historicamente construído e a história,
enquanto construída pelos discursos e
constituidora de discursos.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014
QUEIMANDO SUTIÃS
Dessa perspectiva, procuraremos analisar
quais são os efeitos de memória que se
repetem, se modificam, se adaptam, se opõem
e transformam os enunciados, conforme
estudos propostos por M. Foucault (1986).
Ademais, buscaremos refletir como o corpo é
o próprio (efeito do) discurso em enunciados
que circulam, atual e historicamente.
39
Em um breve percurso pelos caminhos
trilhados pela AD, notamos alguns
deslocamentos teórico-metodológicos. Com
efeito, em um exercício de pensar sobre sua
própria obra e percurso, M. Pêcheux (1990)
avalia que seus estudos se organizam em três
épocas2: a primeira, com a Análise
Automática do Discurso, que parte de uma
lógica matemática e lexical para se chegar ao
processo discursivo, pretendendo, de forma
central, inter-relacioná-lo com a ideologia, os
sujeitos e o quadro sócio-histórico; a segunda
época delineia alguma relativização de
conceitos
anteriores
e,
assim,
um
“afrouxamento” teórico-metodológico. Na
terceira fase, por fim, há um redirecionamento
das reflexões que embasavam a AD.
Nessa terceira época, Michel Pêcheux se
debruçará, por exemplo, para a análise de um
enunciado ordinário (on a gagné) em seu
livro, de 1983, O discurso: estrutura ou
acontecimento. Esse período marca a
ampliação do olhar dos analistas do discurso
sobre os seus objetos, visto que, na análise,
Pêcheux revela que as discursividades
integram tanto uma estrutura quanto um
acontecimento. On a gagné, um grito que
surgiu no campo de futebol, ganhou as ruas
quando da eleição política do então
presidente, em 1981. A partir desse
deslocamento operado pela análise de um
enunciado ordinário, abre-se espaço para que
as formulações cotidianas pudessem fazer
parte dos corpora em AD.
A imagem, por exemplo, ganha destaque
nessa terceira época. Na apresentação feita
por Pêcheux, em 1983, intitulado Papel da
Memória3, o conferencista comenta que: “A
questão da imagem encontra [...] outro viés:
não mais a imagem legível na transparência,
porque um discurso a atravessa e a constitui,
mas a imagem opaca e muda, aquela da qual a
memória ‘perdeu o trajeto de leitura’”
(PÊCHEUX, 2010, p.55).
Seguindo a trilha da AD, em direção a um
alargamento do objeto de análise, a imagem, a
sonoridade, o comportamento, as práticas não
discursivas também entraram no foco das
pesquisas nesta área. Não se tratava de
esquecer o enunciado linguístico, mas,
sobretudo, era preciso estar atentos às demais
materialidades
que
acompanhavam
o
linguístico. O objeto de estudo da disciplina é,
pois, semiológico: assim como o enunciado
linguístico é assinalado por uma historicidade
discursiva, os objetos semiológicos não estão
dissociados da história.
A Semiologia Histórica (COURTINE,
2011b), então, se apresenta como um caminho
a se desenhar na análise de enunciados em
“todos os seus registros” (FOUCAULT,
1986). Os gestos de leituras, na
contemporaneidade, deverão dar conta de
todas as multimodalidades semiológicas
presentes na mídia, nos sites virtuais, na
televisão. Uma inscrição linguística é
acompanhada de outros signos, como o corpo,
os seios nus, a maquiagem, tal como
observamos na Figura 1. Enfim, como lembra
Jean-Jacques Courtine (op. cit., p.150): “os
discursos estão imbricados em práticas nãoverbais, o verbo não pode mais ser dissociado
do corpo e do gesto, a expressão pela
linguagem conjuga-se com aquela do rosto, de
modo que não podemos mais separar
linguagem e imagem”. Essas materialidades
semiológicas – que extravasam o plano verbal
– entram numa rede interdiscursiva. Suas
condições de produção estão historicamente
assinaladas.
2
3
AD em diálogo com a Semiologia Histórica
A construção da disciplina nessas três fases, pode ser
lida no texto escrito por Pêcheux em 1983: PÊCHEUX,
M. A AD: três épocas. In.: GADET, F. e HAK, F.
(org). Por uma análise automática do discurso. Uma
introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas:
Pontes, 1990.
REDISCO
PÊCHEUX, M. O papel da memória. In: ACHARD,
P. O papel da memória. Campinas: Pontes, 2010. Na
tradução para o português, o título do livro coincide
com o título da fala de Pêcheux na Mesa Redonda
“Linguagem e sociedade”, realizada na Escola Normal
Superior de Paris em abril de 1983.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014
40
BERNARDES e SARGENTINI
O conceito de condições de produção, com
efeito, sofreu alguns deslocamentos no quadro
teórico da AD. Ao articular a história com o
discurso, Courtine (2009) propõe pensar as
condições de produção longe de ser um pano
de fundo, um contexto, uma teatralidade,
tampouco um “ringue de boxe”, numa
perspectiva de um confronto interindividual.
Para Courtine (2009), essas duas perspectivas
apagam a densidade histórica dos enunciados,
ou seja, tanto em um combate, quanto em um
mero contexto da situação, os enunciados não
seriam atravessados e constituídos pela
história, mas apenas “personagens” nesses
cenários.
Ao refletir sobre o conceito de condições
de produção, Courtine (2009, p. 86) retoma o
conceito foucaultiano de enunciado. Esse
teria quatro propriedades: (i) está ligado a um
referencial; (ii) mantém com um sujeito uma
relação determinada; (iii) tem um domínio
associado; (iv) apresenta uma existência
material. Compreendido dessa forma, o
conceito de enunciado possibilita-nos analisar
as condições de emergência e de dizibilidade
envolvidas na produção dos discursos,
auxilia-nos a avaliar a rede de discursos que
estão no entorno dos enunciados, além de
apresentar-nos as diversas formas de
materialidade verbo-visual que compõem os
enunciados.
Feitas essas considerações preliminares no
campo em que este texto se inscreve,
passemos para a análise que aqui propomos.
E elas queimam o sutiã...: o corpo como
lugar do acontecimento
Nosso corpo nos pertence!” Eis o grito que
ecoava entre as mulheres que, no começo
dos anos de 1970, protestavam contra as
leis que interditavam o aborto, pouco tempo
antes que os movimentos homossexuais
retomassem o mesmo slogan. O discurso e
as estruturas estavam comprometidos com o
poder, enquanto o corpo estava ao lado das
categorias oprimidas e marginalizadas da
sociedade: as minorias de raça, de classe ou
de gênero pensavam ter somente seu corpo
para se oporem ao discurso do poder e à
linguagem,
ambos
instrumentos
de
silenciamento do corpo. (COURTINE,
REDISCO
2006, p. 8-9 apud SARGENTINI et al.,
2009, p. 13).
O enunciado “Nosso corpo nos
pertence!” surgiu na década de 70, com os
movimentos feministas, que reclamavam uma
autonomia em relação aos seus corpos,
especialmente com relação à maternidade e
proibição da prática do aborto. Em outras
palavras, o enunciado se inscrevia em
determinadas condições de produção nas
quais as interdições para o aborto
discursivizavam práticas a respeito do corpo
feminino, que era o próprio objeto, sujeito à
vigilância e punição de uma ordem vinda do
outro (e não das próprias mulheres).
Em 2013, uma tunisiana escreve em seu
próprio corpo: “o meu corpo é minha
propriedade”, parafraseando o primeiro
enunciado. Contudo, o enunciado alarga as
reivindicações feitas com o corpo e pelo
corpo. Este se torna discurso (i) contra a
violência doméstica; (ii) diz respeito também
ao modo das mulheres se vestirem (“de saia
ou burca, o meu corpo não tem nada a ver
com você!” – diz um dos enunciados das
feministas dos dias atuais); (iii) além de
impor-se como instrumento para a legalização
do aborto.
Há nesses dois momentos, cujo foco é o
corpo, uma memória que se atualiza. Nos
anos 70, a categoria das mulheres, em
conjunto, se encontra no pronome “nosso”,
marcando uma totalização da subjetividade
feminina. O grito atual, destacado pelo
pronome “meu” (o meu corpo me pertence!),
marca uma subjetividade individualizante.
Com efeito, ainda que haja esse movimento
de atualização de uma memória discursiva, os
efeitos dessa ecoam. Há, em certa medida,
rupturas (ou ampliação dos discursos que
atravessam o enunciado) e continuidades
discursivas com o momento anterior.
Observamos, deste modo, que a base
repetível, assinalada na formulação linguística
– com algumas diferenças frente ao emprego
dos pronomes, no plural e no singular – se
torna única em cada momento e, portanto,
irrepetível. Para cada ocorrência do
enunciado, encontramos o que é possível se
dizer, as condições históricas que permitem as
enunciabilidades, o “conjunto das regras que
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014
QUEIMANDO SUTIÃS
caracterizam
uma
prática
discursiva”
(FOUCAULT, 1986, p. 147). Por essa razão,
nessas duas temporalidades do movimento
feminista, o mesmo enunciado toma
proporções diferentes por implicar condições
de produção distintas.
Por
conseguinte,
a
noção
de
acontecimento discursivo dá margem para que
analisemos o enunciado “Nosso corpo nos
pertence”. O trajeto temático, entre 1970 e
2013, faz irromper um efeito de memória na
atualidade dos dois acontecimentos. Nessa
esteira, “a análise de um trajeto temático
remete ao conhecimento de tradições
retóricas, de formas de escrita, de usos da
linguagem, mas, sobretudo, interessa-se pelo
novo no interior da repetição” (grifo nosso)
(GUILHAUMOU e MALDIDIER, 1994, p.
166).
Falamos de trajeto temático na questão do
corpo da mulher para definir o conjunto de
(re)configurações textuais que, de um
acontecimento a outro, associam o corpo da
mulher, a linguagem e marcação pronominal
nos dois acontecimentos, e as discursividades
(machistas) que também se apresentam no
enunciado. Na formulação linguística,
resgatamos a espessura histórica e a memória
discursiva. Esta consiste no ponto de encontro
entre os diferentes dizeres sobre o corpo da
mulher, in absentia, numa linha vertical
(interdiscurso) e o que efetivamente foi dito,
numa linha horizontal (intradiscurso), in
praesentia. Assim,
Os objetos que chamamos “enunciados”, na
formação dos quais se constitui o saber
próprio de uma FD, existem no tempo
longo de uma memória, ao passo que as
“formulações” são tomadas no tempo curto
da atualidade de uma enunciação. É então,
exatamente, a relação entre interdiscurso e
intradiscurso que se representa neste
particular efeito discursivo, por ocasião do
qual uma formulação-origem retorna na
atualidade de uma “conjuntura discursiva”,
e que designamos como efeito de memória.
(COURTINE, 2009, p. 106).
A partir da observação dos enunciados,
efeitos de memória (COURTINE, 2009) são
apreendidos no eixo da formulação. Há, nesse
REDISCO
41
sentido, um “campo associado”4 que repete,
refuta e transforma os enunciados, conforme
trabalhamos com Foucault (2012, p. 119).
Essa propriedade do enunciado traz à baila a
presença de outra Formação Discursiva no
interior desse acontecimento discursivo.
Quando dizemos nosso corpo nos
pertence, pomos em virtualidade a questão de
que, em algum momento, os dizeres sobre o
corpo da mulher pertenciam não a “nós”, de
forma inclusiva. (Se assim não o fosse, não
havia necessidade de emergir tal enunciado).
Contudo, o outro era a autoridade que tinha o
direito de dizer sobre o corpo da mulher. Esse
outro é quem dita a ordem: quem decide,
quem regulamenta, quem oprime, quem vigia,
quem pune, enfim, quem exerce o poder sobre
o corpo da mulher. O grito contra essa
opressão se imprime no corpo. Quem, a partir,
de então, teria o poder de decidir sobre seu
próprio corpo eram as próprias mulheres.
Seus corpos passam a serem “então
concebidos como um lugar privilegiado de
refúgio e resistência aos poderes opressores”.
(SARGENTINI e PIOVEZANI, 2009, p. 1213).
Quando as feministas refutam essa
“tirania” sobre seus corpos, nos deparamos
com uma continuidade discursiva que se
revela como um denominador comum entre
os dois acontecimentos. Por outro lado, a
subjetividade é marcada distintamente entre
ambos. As relações de poder, então, sofrem
uma transformação e, daí, dizer que o
linguístico se permuta: dos pronomes
possessivos, plurais e totalizantes “nosso\nos”
para o individualizante e singular “meu\me”.
As (des)continuidades discursivas produzidas
de um enunciado ao outro ressoam em outros
domínios. A partir da observação das duas
imagens abaixo, podemos refletir sobre o
referencial enunciativo.
Com efeito, Courtine (2009), ao mobilizar
a noção de referencial enunciativo, conforme
proposta em A Arqueologia do saber (1986, p.
4
Segundo Foucault (1986, p. 113-114), “qualquer
enunciado se encontra assim especificado: não há
enunciado em geral, livre, neutro e independente; mas
sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de
um conjunto, desempenhando um papel no meio dos
outros, nele se apoiando e deles se distinguindo: ele se
integra sempre em um jogo enunciativo [...]”.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014
42
BERNARDES e SARGENTINI
120-121), citará que tal referencial “forma o
lugar, a condição, o campo de emergência, a
instância de diferenciação dos indivíduos ou
dos objetos, dos estados de coisas e das
relações que são postas em jogo pelo próprio
enunciado”.
Na década de 70, Leila Diniz exibe sua
maternidade na praia, vestindo um biquíni –
comportamento, para a época, considerado
como um “escândalo”. Quarenta anos mais
tarde, a atriz Betty Faria recebe críticas por
exibir sua idade – muito acima do “permitido”
a ser visto publicamente – vestindo um
biquíni. O corpo das duas mulheres
discursivizam por eles mesmos e põe em
circulação um efeito de memória do
enunciado: “Nosso\meu corpo nos\me
pertence”.
Figura 2 – “Leila Diniz, em 1971, e Betty Faria, em
2013”1
A referencialidade do enunciado, em um
gesto de leitura, relaciona-se com a
possibilidade de emergência desses dois
enunciados, marcados diferentemente em suas
subjetividades, em seus pronomes. Não se
trata aqui de vincular a imagem com o
enunciado linguístico, colocando-o em pé de
igualdade, mas, sobretudo, ao analisarmos o
“campo de emergência” dessas imagens, nos
memorizaremos do corpo como atravessado
pela história, pelos discursos.
Portanto, como reforça Courtine (2011b, p.
159), “a imagem não obedece absolutamente
a um modelo de língua”. A proposição da
noção de intericonicidade entre imagens
externas leva-nos a considerar essa rede de
formulações dizíveis:
considerar as relações entre imagens que
produzem os sentidos: imagens exteriores
ao sujeito, como quando uma imagem pode
ser inscrita em uma série de imagens, uma
arqueologia, de modo semelhante ao
enunciado em uma rede de formulações, em
Foucault. (COURTINE, 2011b, p. 160).
As duas imagens pode ser inscritas em uma
série, cujos gestos são muitos semelhantes: a
praia, o uso do biquíni, o gesto que evidencia
segurança e espontaneidade. Inseridas na
densidade histórica, as imagens que são
atravessadas e constituídas por um discurso,
sofrem “interdição”. Com efeito, as duas
atrizes, em diferentes épocas, receberam
diversas críticas por não entrarem na ordem
do discurso. Houve, nesse sentido, por parte
dos espectadores, o que Davallon (2010, p.
31) denominou de “acordo de olhares”.
Segundo o autor: “tudo se passa então como
se a imagem colocasse no horizonte de sua
percepção a presença de outros espectadores
possíveis tendo o mesmo ponto de vista”.
O “acordo de olhares” entre os leitores das
duas imagens, tanto de Leila Diniz quanto de
Betty Faria conferiu a interdição, o
“escândalo” e a reprovação do “espectador
concreto que é convidado a vir ocupar a fim
de poder dar sentido ao que ele tem sob os
olhos” (DAVALLON, 2010, p. 31).
Assim, no intercâmbio entre as duas
temporalidades – anos 70 e o ano de 2013 – o
corpo, sendo ele mesmo o discurso entra
nessa rede enunciativa. De um lado, a
maternidade, de outro a idade da mulher –
ambas atuando como um enfrentamento a um
discurso assentado em uma determinada
posição social, histórica e discursiva.
A maternidade como ícone de uma
totalização, de um plural, de um “nosso”
carregado de uma ruptura discursiva do que
até então era o “certo”, o “politicamente
correto”, isto é, não mostrar a gestação em
público. A maternidade era, pois, um
procedimento discursivo de exclusão: o corpo
de gestante como um tabu do objeto que não
pode ser exibido em um lugar público, com
trajes menores.
A intericonicidade supõe, portanto, dar um
tratamento discursivo às imagens, supõe
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014
QUEIMANDO SUTIÃS
Em 2013, o tabu do objeto é o corpo idoso
que, numa rede intericônica, sofre outros
(des)contínuos procedimentos de exclusão do
discurso. O sujeito (mulher gestante e mulher
idosa) não teria, portanto, o direito de dizer
com o seu corpo, abertamente, sobre a
maternidade e a “melhor idade”.
A posição sujeito, uma das características
do enunciado, é concebida como uma
“relação determinada que se estabelece em
uma formulação entre um sujeito enunciador
e o sujeito do saber5 de uma dada Formação
Discursiva. Essa relação é uma relação de
identificação cujas modalidades variam,
produzindo diferentes efeitos-sujeito no
discurso”. (COURTINE, 2009, p. 88).
Os efeitos-sujeitos dão licença para
compreendermos que sujeitos universais de
distintas Formações Discursivas entram em
confronto. Os corpos das mulheres imprimem
uma refutação aos sujeitos que dizem “todos
sabem ou veem que” a elas não é permitido
discursivizarem seus corpos desse modo –
seja em relação à maternidade, à melhor
idade, às interdições do aborto, etc..
A deriva operada por esses diferentes
efeitos-sujeito no discurso nas duas imagens,
bem como nos enunciados linguísticos do
movimento feminista de ontem e de hoje
(nosso corpo nos pertence!) marcam a quarta
propriedade do enunciado. A existência
material quer dizer que “a enunciação é um
acontecimento que não se repete. Ela tem uma
singularidade situada e datada que não se
pode reduzir” (FOUCAULT, 1986 apud
COURTINE, 2009, p. 91). Isso se dá em
função de que há um tempo, um lugar, um
sujeito que realiza a enunciação.
5
Esse sujeito do saber de uma dada FD é “o lugar do
sujeito universal próprio a uma determinada FD, a
instância de onde se pode enunciar ‘todos sabem ou
veem que’ para todo sujeito enunciador vindo situar-se
num lugar determinado, inscrito nessa FD, por ocasião
de uma formulação. Assim, é o ponto onde se ancora a
estabilidade referencial dos elementos de um saber.
Esse lugar, então, só é vazio na apareência: ele é
preenchido de fato pelo sujeito do saber próprio a uma
FD e existe na identificação pela qual os sujeitos
enunciadores vêm encontrar nela os elementos de saber
(enunciados) pré-construídos de que eles se apropriam
como objetos de seu discurso”. (COURTINE, 2009, p.
87-8).
REDISCO
43
Nesse sentido, ainda que haja uma
formulação/enunciado repetível entre os dois
acontecimentos (enunciações), estes, por
serem, historicamente situados e singulares,
são da ordem do irrepetível:
a oposição enunciado/enunciação permite
aqui pensar o discurso na unidade e na
diversidade, na coerência e na dispersão,
na repetição e na variação (COURTINE,
2009, p. 91).
Considerações finais
O corpo impresso na história e a história
impressa no corpo (COURTINE, 2011a): esse
foi nosso ponto de partida para a análise de
alguns enunciados que circulam na sociedade.
E não é de hoje. A História se constrói nessa
relação de regularidades e dispersão dos
discursos, estes “devem ser tratados como
práticas descontínuas, que se cruzam por
vezes, mas também se ignoram ou se
excluem” (FOUCAULT, 2011, p. 53).
O corpo, então, nas análises feitas neste
artigo, discursivizam uma série de
interdiscursos. Não só na materialidade
linguística, mas também , segundo nos ensina
a Semiologia Histórica, na materialidade das
imagens que têm densidade discursiva. Tanto
é assim que, em uma rede intericônica, elas
entram em descontinuidades, sofrendo
procedimentos de exclusão, de interdição e de
autoridade de quem pode dizer sobre.
Referências
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político. O discurso comunista endereçado
aos cristãos. São Carlos: Edufscar, 2009.
_______. Déchiffrer le corps: penser avec
Foucault. Jérôme Millon, 2011a.
________. Discurso e imagens : para uma
arqueologia
do
imaginário.
In. SARGENTINI, V. et al. Discurso,
Semiologia e História. São Carlos : Claraluz,
2011b.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014
44
BERNARDES e SARGENTINI
DAVALLON, J. A imagem, uma arte de
memória ? In. : ACHARD, P. et al. Papel da
Memória. Campinas : Pontes, 2010.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 21
ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
________. O sujeito e o poder. In.: Rabinow,
P. & Dreyfus, H. Michel Foucault. Uma
trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense
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________. A arqueologia do saber. 2 ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1986.
GUILHAUMOU, J e MALDIDIER, D.
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lado da História. In: ORLANDI (org.) Gestos
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Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1994.
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Campinas : Pontes, 2010.
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acontecimento. 6. ed. Campinas: Pontes,
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________. A AD: três épocas. In.: GADET,
F. e HAK, F. (org). Por uma análise
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obra de Michel Pêcheux. Campinas: Pontes,
1990.
SARGENTINI, V. e PIOVEZANI, C
Políticas de sentido, práticas da expressão e
história do corpo. Uma apresentação da obras
de Jean Jacques Courtine ao leitor brasileiro.
In.: COURTINE, J.J. Análise do discurso
político. O discurso comunista endereçado
aos cristãos. São Carlos : Edufscar, 2009.
Recebido em: 12 de outubro de 2013
Aceito em: 05 de dezembro de 2013.
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 37-44, 2014
NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO:
O MASCULINO E O FEMININO NO CINEMA
Hertz Wendel de Camargo
Universidade Estadual de Londrina e Universidade Estadual do Centro-Oeste
Rafaeli Francini Lunkes
Universidade Estadual do Centro-Oeste
Resumo: A partir da análise das estruturas narrativas entre o mito de Tirésias e o
filme “Tirésia” (Bertrand Bonello, França, 2003) desenvolvemos um texto de
natureza ensaística que perpassa os discursos acerca do masculino e do feminino no
imaginário cultural, bem como a busca do corpo feminino ideal presentes no
conceito de um corpo fantástico e transgênero. Mito e imaginário se mesclam no
filme analisado e despertam diferentes saberes que explicam, em parte, a nossa
metafísica relação com o cinema e, portanto, com a busca elementar da satisfação
do sujeito-espectador do autoconhecimento e do conhecimento do outro, próprio do
ser humano.
Palavras-chave: mito, cinema, discurso, sexualidade.
Abstract: Mythical narratives about the hybrid body: male and feminine in
cinema. From the narratives of the myth of Tiresias and the movie "Tiresia"
(Bertrand Bonello, France, 2003) we have developed an essayistic nature text that
pervades discourses about male and female in the cultural imaginary as well the
search of the ideal female body present in the concept of a fantastic and
transgender body. Myth and imagination mingle in the film analyzed and arouse
different knowledges that explain, partly, our metaphysical relationship with
cinema and, therefore, the elemental quest for subject-spectator satisfaction of selfknowledge and knowledge of others, for the human beings.
Keywords: mith, cinema, discourse, sexuality.
Da seminal mitologia grega, destacamos
uma figura mítica instigante, Tirésias,
personagem singular, cego, que viveu a
experiência de ser homem e mulher, detentor
do dom da clarividência e possuidor do
fascínio desperto por todo oráculo. Com
presença recorrente nas criações poéticas e
dramatúrgicas da Grécia antiga, Tirésias
chega ao cinema. O filme Tirésia (2003),
dirigido pelo francês Bertrand Bonello, será
REDISCO
aqui contemplado com o intuito de revelar
algumas das conexões entre mito e cinema.
Destacaremos também a natureza educativa
do cinema, ao passo que o mito em questão
torna possível diversos tipos de abordagens
sejam em situações educativas ou,
simplesmente, como produto cultural
consumido na atualidade. Entendemos que o
personagem central possui (no mito) Tirésias
mostra um corpo ora masculino ora feminino,
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
46
de uma mesma alma; enquanto que (no filme)
possui um corpo híbrido, apresentando
concomitantemente as significações de macho
e fêmea, masculinidade e feminilidade na
imagem da transexual Tirésia.
No filme, esse binarismo arquetípico
polarizado pelo feminino e pelo masculino
está arraigado no imaginário ocidental. Sob a
camada aparente do discurso, essa relação de
opostos é parte de uma estrutura presente em
diversas binaridades na cultura. Do início ao
fim da obra fílmica em questão, pares de
opostos são representados em imagens, falas e
sons, que dão sentido à narrativa, construindo
o significado a partir das polaridades ser/não
ser, homem-mulher, masculino-feminino,
nascer-renascer, vida-morte, atração-rejeição,
amor-ódio, luz-sombra, segredo-revelação,
pureza-impureza, cidade-natureza, indivíduosociedade, eu-outro, singular-plural, céuinferno,
virtude-pecado.
Binaridades
emergentes no decorrer da narrativa fílmica,
compondo o universo de significações do
filme de Bonello.
Portanto, vemos nessas polaridades, a
imagem arquetípica de forças positivas e
negativas que compõem, ao mesmo tempo, a
realidade e a natureza humana, pois “os
símbolos binários, ou os pares, são
inumeráveis, em todas as tradições” e “estão
na origem de todo pensamento, de toda
manifestação,
de
todo
movimento”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p.
346). Compreender como mito e cinema estão
imbricados no filme Tirésia (2003) e como
eles traçam um discurso sobre a sexualidade e
o corpo transexual, é um dos caminhos que
seguiremos em nossa análise.
A natureza binária do homem
A biologia nos ensina que os seres vivos
possuem uma origem dual, a começar por sua
constituição orgânica composta por cadeias
(binárias) de carbono – o mesmo se aplica ao
homem. Os seres pluricelulares, na
reprodução sexuada, nascem da integração de
dois gametas – masculino e feminino – onde
cada um contém metade das informações
genéticas para a composição de um novo ser.
Na reprodução assexuada, os seres
REDISCO
CAMARGO E LUNKES
unicelulares dividem-se, originando dois
novos seres, e cada um originando dois
outros, sucessiva e infinitamente, enquanto
houver condições. No universo vivo da
natureza, esse é o movimento dinâmico e
alternado entre unidade e divisão, que nega a
principal força oponente da vida: a morte.
Esse binarismo biológico constitui a
primeira realidade do homem. Ciente da
morte inevitável, o ser humano cria uma
segunda realidade em que pode ser imortal,
selando definitivamente sua natureza binária:
o homem é natureza e cultura, sobrevive
como filho da fecunda relação entre a
realidade e o imaginário. Em relação à
realidade primeira, para Morin (1997, p. 80),
o imaginário é uma estrutura antagônica e
complementar sem a qual não haveria o real
para o homem ou nem mesmo a realidade
humana. A cultura constitui “uma espécie de
sistema neurovegetativo que irriga, segundo
seus entrelaçamentos, a vida real de
imaginário, e o imaginário de vida real” (p.
81).
Considerando a natureza comportamental
do homem, entendemos que a realidade
psicológica do homem também se estabelece
em binaridades. A partir do surgimento da
consciência, o homem rompe sua natureza
urobórica, desperta do estado inconsciente de
integração com o cosmo.
Nesse estado inicial, não havia distinção
entre Eu e Tu, dentro e fora, ou entre
homens e coisas, assim como não havia
uma linha divisória clara entre o homem e
os animais, o homem e o homem, o homem
e o mundo. Tudo participava de todas as
demais coisas, vivia no mesmo estado
indiviso e cambiante, no mundo do
inconsciente, como num mundo de sonhos
de cuja tecedura de símbolos, imagens e
entidades ainda vive dentro de nós um
reflexo dessa situação primordial da
existência na promiscuidade. (NEUMANN,
1990, p. 91).
Para o autor, como consequência, o mundo
torna-se ambivalente para o ego nascente a
partir da experimentação em si do prazer e da
dor. Dessa maneira:
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO
Dia e noite, posterior e anterior, superior e
inferior, interior e exterior, eu e tu,
masculino e feminino, surgem desse
desenvolvimento de opostos, diferenciandose da promiscuidade original; e também aos
opostos como sagrado e profano, bem e
mal, agora e destinado um lugar no mundo
(Idem, p. 91).
Parte desse estado primordial de
inconsciência sobrevive na psique, pois “[...]
tão logo se torna consciente e adquire um ego,
o homem passa a sentir-se um ser dividido,
visto que também possui um poderoso outro
lado que resiste ao processo de tornar-se
consciente” (NEUMANN, 1990, p. 99). Nesse
aspecto, a psique é síntese da relação de
opostos – consciente e inconsciente (pessoal e
coletivo) –, amplamente estudada pelo
psicólogo e psiquiatra Carl Gustav Jung como
fenômeno de dissociação psíquica.
Conforme a natureza, a cultura está
construída sobre bases binárias, “em
permanente resposta dialógica a suas
condições biológicas, alimentando essa
dinâmica binária” (CONTRERA, 2003, p.
71). Bystrina (1995) postula que a estrutura
fundamental dos códigos culturais é
determinada pela oposição e “tais oposições
binárias dominam com enorme força o
pensamento da nossa cultura particular e o
desenvolvimento da cultura em geral”. Para o
autor,
No início da cultura humana a oposição
mais importante era vida-morte. E toda a
estrutura dos códigos terciários ou culturais
se desenvolveu a partir dessa oposição
básica: saúde-doença, prazer-desprazer,
céu-terra, espírito-matéria, movimentorepouso, homem-mulher, amigo-inimigo,
direita-esquerda, sagrado-profano, pazguerra, [...].
Segundo Bystrina (1995), as binaridades
acabam naturalmente organizadas em
polaridades valoradas de maneira que sempre
uma representa a negação da outra. “A
necessidade de dar valor vem em primeiro
lugar para, logo em seguida, subsidiar a
decisão. A polaridade existe, portanto, para
facilitar
a
decisão,
a
atitude,
o
comportamento, a ação”. Desta forma,
REDISCO
47
presentes em diferentes discursos e
materialidades,
as
estruturas
binárias
funcionam como diretrizes ou instruções para
as atividades e os comportamentos humanos.
O homem, portanto, começa a demarcar os
polos binários desde o início da sua
existência. “Onde não existe perigo não há
sinal, não há desafio. Isso significa que os
conceitos, idéias ou objetos que não possuem
seu correspondente pólo negativo não podem
ser sinalizados, não podem ser demarcados”
(BYSTRINA, 1995). Para Capra (2006), o
equilíbrio entre os pólos é representado por
uma estrutura “taoística”, neste sentido
[...] todas as manifestações do Tao são
geradas pela interação dinâmica desses dois
pólos arquetípicos, os quais estão
associados a numerosas imagens de opostos
colhidas na natureza e na vida social. [...]
são pólos extremos de um único todo. Nada
é apenas yin ou apenas yang. [...] A ordem
natural é de equilíbrio dinâmico entre yin e
yang (p. 33).
Yin e yang são arquétipos da cultura
oriental, mas surgem como estruturas
discursivas em diferentes materialidades na
cultura ocidental, em padrões binários. No
oriente, yang é associado ao homem e yin à
mulher, a díade homem-mulher possui um
apelo intenso na publicidade, no cinema, na
televisão, pois remete à união dos corpos, à
sexualidade e ao erotismo que, no filme de
Bonello
surgem
como
elementos
compositores
do
argumento.
O
entrelaçamento de yin (feminino, fêmea,
mulher) e yang (masculino, macho, homem)
contém, a um só tempo, todas as semioses
biológicas, antropológicas e míticas atreladas
à fertilidade e à criação da vida, às relações de
poder e de gênero.
Em vista das imagens originais associadas
aos pólos arquetípicos, diríamos que o yin
pode ser interpretado como correspondente
à atividade receptiva, consolidadora,
cooperativa; o yang, à atividade agressiva,
expansiva e competitiva. A ação yin tem
consciência do meio ambiente, a ação yang
está consciente do eu (CAPRA, 2006, p.
35).
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
48
Capra descreve que essa concepção binária
da natureza humana no oriente é muito
diferente da nossa cultura patriarcal ocidental,
que estabeleceu uma ordem rígida em que se
supõe que todos os homens são masculinos e
as mulheres femininas, distorcendo os
sentidos desses conceitos ao conferir aos
homens os papéis de protagonistas e a maioria
dos privilégios da sociedade. Os produtos do
cinema são compostos por textos que refletem
os traços da cultura e do tempo onde está
inserido, dessa maneira, tomamos o filme
como um enunciado que participa da
manutenção das formas de ser e estar na
sociedade, ao mesmo tempo em que a obra
rompe com esses mesmos paradigmas, é
provocativa e incômoda ao olhar do
espectador. Por se tratar de texto imaginativo,
o cinema, por si só, está em oposição à
realidade do espectador.
Portanto, o encontro entre o
espectador e a obra fílmica, esse encontro que
momentaneamente chamaremos de dialético,
tem como síntese uma resposta às questões
existenciais por meio do olhar. O
conhecimento, a composição da memória
cultural, os discursos acontecem (ou os
paradigmas reforçados) nesses encontros.
Mito e Cinema: Aproximações
Para o senso comum, o termo mito está
relacionado aos sentidos de fábula, lenda,
história inventada ou inverídica, uma história
que não corresponde à realidade. Também
pode ser a representação de fatos ou
personagens reais, mas exagerada pela
imaginação popular; além disso, o mito pode
estar relacionado a uma pessoa de
significativo papel na sociedade. Na cultura
de massas, por exemplo, esse papel
geralmente está atrelado aos ídolos: cantores,
modelos, esportistas, atores e suas
conturbadas histórias pessoais. De qualquer
maneira, o mito é sempre uma história repleta
de imagens, lugares e personagens marcantes
e alegóricos, desejosos de serem decifrados e,
por que não dizer, devorarem e serem
devorados de várias maneiras: por meio da
televisão, do rádio, dos jornais e revistas, da
publicidade, por meio do cinema.
REDISCO
CAMARGO E LUNKES
Para compreendermos o filme como mito
atualizado, é necessário entendermos que o
mito, da mesma forma que o filme,
[...] não é um símbolo, mas a expressão
direta de seu objeto. Não é uma
explicação que satisfaça um interesse
científico, mas a ressurreição de uma
realidade primordial mediante um relato
para satisfazer profundas necessidades
religiosas, aspirações morais, convenções
sociais e reivindicações, inclusive, para
atender às demandas práticas. O mito
cumpre na cultura primitiva uma função
indispensável: ele exprime, enaltece e
codifica as crenças; protege e legitima a
moralidade; garante a eficiência do ritual
e contém regras que orientam o homem.
É, portanto, um ingrediente vital da
civilização, não apenas uma simples
narrativa, mas uma força ativa à qual se
recorre constantemente. O mito não é uma
explicação intelectual ou uma fantasia
artística, mas um mapa para a fé primitiva
e a sabedoria moral (MALINOWSKI,
1949, p. 30, tradução minha).
Mucci (2010) destaca a distinção, em
todo mito, de quatro planos que se confundem
na estrutura discursiva: a) no plano estético,
enquanto narrativa, o mito evidencia o
encadeamento de sequências, constituindo
uma história que produz significâncias para
quem narra e para quem recebe a mensagem;
b) nos planos teórico e prático, o mito
instaura-se como conhecimento, um saber,
que se deseja explicativo, na medida em que
organiza o relato e estrutura o mundo; c) no
plano da linguagem, como história-gênese, o
mito nomeia as coisas, hierarquiza-as, é uma
historia fundadora que garante a veracidade
(ou a naturalização) de um discurso; d) no
plano cultural, o mito é autoridade, é História,
pois, ao narrar “o tempo, o espaço, o lugar e a
função do ser humano, o mito é, sempre, mito
das origens, e o conjunto de mitos confundese com a própria história da sociedade em que
se engendrou e que a engendrou” (MUCCI,
2010, p. 202).
No plano estético, o cinema opera com o
encadeamento de sons e imagens, criando
sentidos para os produtores do filme e para o
público. O filme também se instaura como um
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO
saber sobre o mundo, promovendo uma
educação estética e visual, tal qual uma janela
que se abre diante do espectador, em um
panorama
que
articula
diferentes
conhecimentos sobre a realidade. Como
linguagem, o cinema escolhe, seleciona,
organiza o que é mais importante e menos
relevante a ser ouvido-visto, e, como analisou
Pasolini (1982), as escolhas estéticas do
cinema implicam sempre escolhas políticas. O
cinema, ao apresentar uma forma de ver,
ouvir, perceber o real, por meio do fato ou da
ficção, torna-se uma autoridade, pois
apresenta sempre modelos (exemplos) de ser e
estar em sociedade. Por todos esses conceitos,
o cinema mantém diálogos com o mito.
Nesse sentido, o mito mantém uma
aderência natural às artes baseadas na
narrativa fantástica, tais como o cinema. A
aproximação entre o cinema e o mito ocorre
em dois níveis: o primeiro é que toda
estrutura fílmica é também uma narrativa
mítica; o segundo nível é que, como narrativa,
todo mito pode servir de roteiro para diversas
criações cinematográficas. O mito é umas
primeiras formas de interação com a realidade
na história humana. Em essência, o mito é
narrativa, ritual e memória. Não é difícil
verificarmos que essa estrutura narrativoritualística-simbólica se repete no sistema do
cinema.
APROXIMAÇÕES ENTRE MITO E CINEMA
MITO
CINEMA
Narrativas fantásticas,
trágicas, com lugares,
Os filmes são narrativas que
personagens e situações
contêm situações, personagens
impressionantes com forte
e lugares impressionantes,
influência na vida do
influentes na vida das pessoas.
homem.
O mito promove a
Narrativas ficcionais e
conscientização de si, do
realísticas promovem a
outro e da realidade do
conscientização de si, do outro
homem.
e da realidade social.
O mito oferece modelos a
O cinema opera com modelos
serem seguidos e contribui
de ser e estar em sociedade,
para a ordem social.
considerados ideais.
O tempo mítico não possui
O tempo do filme é circular
começo, meio e fim, é um
em sua linearidade.
tempo circular, metafísico.
O ritual de ir ao cinema
O ritual desloca o
promove um deslocamento do
espectador para o tempo do
espectador para o tempo da
mito.
narrativa fílmica. Na duração
O ritual é a encenação do
do filme, o tempo vivido é um
mito.
tempo não cronológico.
REDISCO
49
É pela narração que se constroem os mitos
e com eles a memória dos homens. E não
há como se construir a memória sem uma
linguagem que a expresse (COUTINHO,
2003, p. 27).
Como sistema de signos e códigos
(linguagem), o mito possui uma estrutura que
tende a se organizar em narrativa. Com
estrutura análoga ao sonho, à alucinação e à
vidência
–
exemplos
culturalmente
conhecidos de sequência de sons e imagens
em movimento –, o texto cinematográfico,
como sistema sígnico, forma uma teia de
expressão para o mito. Ao constatar que “o
discurso escrito, assim como a fotografia, o
cinema, a reportagem, o esporte, os
espetáculos, a publicidade, tudo isso pode
servir de suporte à fala mítica” (BARTHES,
2001, p. 132), vemos ampliado o campo
fenomenológico do mito e podemos afirmar,
portanto, que o mito é uma linguagem que
parasita outras linguagens. Em contrapartida,
o mito também pode ser parasitado pela
linguagem do cinema. Nesse sentido, refirome às narrativas míticas que funcionam como
pré-roteiros para a criação fílmica, como é o
caso do mito do vidente Tirésias, base para o
roteiro do filme Tirésia (2003), em análise.
Quem tem mais prazer no amor: o homem
ou a mulher?
Tirésias é um personagem paradoxal da
mitologia grega: o profeta era cego e vidente,
previa o futuro. Vinculado ao Oráculo de
Delfos, situado no templo de Apolo, Tirésias
possui presença marcante em muitos mitos,
entre eles o mito de Narciso, quando é
procurado pela mãe logo após o nascimento
do filho, revelando ao vidente seu receio por
ter dado à luz uma criança com a beleza igual,
ou maior, que a dos deuses. No mito de
Édipo, Tirésias é quem revela a Laio, rei de
Tebas, que seria assassinado pelo próprio
filho e, mais tarde, revelaria a Édipo que
matou o pai e casou-se com Jocasta, sua mãe.
O principal paradoxo de Tirésias era sua
experiência na vivência dos dois gêneros.
Segundo uma das versões do mito, quando
jovem, Tirésias subiu ao monte Citéron para
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
50
CAMARGO E LUNKES
orar. Em sua caminhada, deparou-se com um
casal de serpentes místicas que copulavam.
Ao separar as serpentes, Tirésias mata a
serpente fêmea e, em seguida, é transformado
em mulher. Por sete anos, viveu como
prostituta. Depois desse período, volta ao
monte e encontra outro casal de serpentes. Ao
matar um dos répteis, dessa vez o macho,
volta a ser homem.
Mais tarde, por ser um conhecedor das
peculiaridades de ambos os gêneros, Tirésias
foi convocado por Zeus e Hera para resolver
um impasse: os deuses desejavam saber quem
desfrutava mais dos prazeres do sexo, se era o
homem ou a mulher. Zeus dizia que era a
mulher a sentir mais prazer na relação sexual.
E Hera afirmava ser o homem a ter mais
prazer. Em delicada posição, mesmo sabendo
que sua resposta desagradaria um dos deuses,
“Tirésias respondeu sem hesitar que o prazer
da mulher era muitas vezes maior que o do
homem” (CURY, 2008, p. 387) e, ainda, que
o prazer da mulher era proporcionado pelo
homem. Entendendo que, por ser homem, o
profeta privilegiou o gênero masculino, e
“indignada com ele por haver revelado um
dos segredos do sexo feminino, Hera
castigou-o com a cegueira, mas em
compensação Zeus deu-lhe o dom da profecia
e uma vida tão longa quanto a de sete
gerações humanas” (CURY, 2008, p. 387).
CONTEMPLANDO O FILME
Na introdução do filme, por alguns
minutos, o diretor propõe ao espectador
imagens de atividades vulcânicas, a terra em
ebulição, líquida e incandescente. Ao se
abster dos créditos iniciais, o filme conduz o
olhar pelas imagens disformes que remetem à
criação do mundo, aos primórdios do planeta,
referência a um determinado in illo tempore,
tempo e espaço míticos. As imagens da lava,
substância
em
transformação
e
transformadora, em sintonia com a Sétima
Sinfonia de Beethoven, funcionam como uma
premonição à narrativa. A introdução se finda
com o surgimento do nome do personagem
que dá título à obra: Tirésia.
O personagem Terranova é um homem que
caminha pelas ruas da cidade, visita um
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO
museu, o templo das musas. É um esteta, um
poeta. Nas primeiras cenas, observa estátuas
gregas, cópias de corpos. “O original é vulgar,
somente a cópia é perfeita”, professa em
pensamento. Na cena seguinte, vai à periferia
parisiense, local frequentado por travestis,
garotos de programa, cafetões, vários deles
brasileiros. Imagens que remetem às cenas de
prostituição do filme “Tudo sobre minha
mãe”. Aquele ambiente significa para
Terranova um jardim (das delícias?) onde
deseja encontrar uma flor que julga perfeita.
Protegido pelas sombras do bosque
noturno, longe da movimentação, encontra-se
o recluso Tirésia, uma travesti brasileira de
voz melódica, melancólica. Entoa uma canção
folclórica, Teresinha de Jesus, parece
expressar seu desejo de voltar ao país de
origem, um lamento, um canto de saudade.
Ao mesmo tempo, a canção, uma cantiga de
ninar, parece uma tentativa de o personagem
adormecer a si mesmo, uma busca pelo sonho
perdido pelos caminhos obscuros, a cada
passo, para dentro do bosque. A canção
aborda as relações entre Teresinha e três tipos
masculinos: o pai, o irmão e o noivo. As
relações semânticas entre os nomes
Teresinha/Teresa e Tirésia não são inocentes:
Tirésia é a “Teresinha”, objeto de desejo de
muitos tipos de homens: amantes, pais,
irmãos, noivos. Tirésia pertence a todos, e
ninguém lhe pertence, e canta:
Terezinha de Jesus de uma queda foi-se ao
chão. Acudiram três cavalheiros, todos de
chapéu na mão. O primeiro era seu pai. O
segundo seu irmão.
O terceiro foi aquele a quem a Tereza deu a
mão. Terezinha levantou-se, levantou-se lá
do chão. E sorrindo disse ao noivo: eu te
dou meu coração.
Da laranja eu quero um gomo, do limão
quero um pedaço.
Da menina mais bonita quero um beijo e
um abraço.
Como sereia, atrai a atenção do homem
que busca não o sexo, não o michê, mas
carrega pretensões poéticas: deseja para si a
flor mais perfeita daquele jardim. E a
encontra, um ser dúbio, macho-fêmea, e a
sequestra somente para si.
REDISCO
51
Tirésia é enclausurada. O tempo todo
vigiada, controlada pelo olhar do voyeur. Em
cativeiro, seu canto se transforma em gritos
de desespero e, gradativamente, passa para
lamentos até chegar ao silêncio e à confissão
do amor pelo próprio algoz. Os dois sexos
habitam seu corpo, faz questão de exibir-se,
mostrar o pênis e lembrar Terranova da sua
condição. Tal qual um ser híbrido – um
centauro, uma medusa, um ser meio homem e
meio animal – reitera para si e para o outro:
“É isso que eu sou, um monstro”. Tenta
demover o sequestrador do amor platônico,
contemplativo, de trazê-lo de volta à
realidade, desconstruindo a poesia de sua
duplicidade.
[...] Você não tira um travesti da “vida”; ele
é que pode te tirar da tua. Ele tem tudo; ele
é auto-suficiente. Ele é um casal; se você
entrar, você é o terceiro e pode ser excluído.
O travesti sabe tudo que um homem quer,
pois, como seu desejo é masculino, ele
conhece a mulher ideal. Só o homem pode
ser a mulher ideal (JABOR, 2009, p. 171).
Aos poucos, privado dos hormônios,
Tirésia se transforma, sua voz se agrava, sua
barba cresce, o homem sob a pele feminina
ressurge, vem à tona. Insatisfeito com a
degradação da poética ambiguidade de sua
“flor perfeita”, Terranova entra em conflito. O
algoz pressente que aquele ser que representa
a totalidade de dois sexos coexistindo no
mesmo corpo está se dividindo. Sai a mulherespetáculo, entra o homem-oráculo, outro tipo
de espetacularidade.
Entre aceitar e destruir seu objeto de
desejo, Terranova escolhe descartar sua
vítima. Antes, à força, priva-lhe da visão,
fere-lhe os olhos. Cega e abandonada no
campo, é preciso Tirésia desprover-se da
possibilidade de ver-se bela e perfeita, romper
definitivamente sua relação narcísica com o
corpo idealizado de mulher, para abrir-se à
clarividência, prever o futuro, ver além das
aparências e do presente.
[...] Será preciso deixar de aparentar para
ser. Tirésia, o travesti, é espetáculo.
Encenação. Pois seu sequestrador tenta
apossar-se de sua beleza, trancá-la, não
deixar que ele(a) seja espetáculo público.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
52
CAMARGO E LUNKES
Tentará descobrir o que há abaixo da
superfície, por trás das evidências, o ser
escondido pela aparência. Quer investigar
o que existe atrás da máscara. Porque a
imagem esconde (SANTOS, 2013).
A trama, agora, transcorre em um ambiente
rural. Tirésia, ferido, tem seu corpo
descartado como um objeto, vazio de sentidos
para Terranova. A cidade, espaço do profano,
ficou para trás, o campo torna-se o cenário
para o metafísico, o sagrado, o oráculo. Uma
jovem encontra Tirésia, leva-o para casa e,
com o apoio do pai, cuida de seus ferimentos.
Ele não profere palavras, vive em silêncio. De
cabelos curtos e vestes que lhe cobrem o
corpo desprovido de vaidades, o homem
Tirésia passa a prever o futuro dos moradores
do vilarejo. Seu eu é descentralizado,
desprovido de significado, os sentidos agora
residem nos outros. Tirésia passa a ser a voz
dos outros, narciso que olha para dentro de si
e não mais para fora. Uma janela aberta aos
acontecimentos futuros.
Nessa segunda fase do filme, o diretor
realiza diversos jogos de cena, brinca com a
percepção do espectador. Tirésia passa a ser
interpretado pelo ator brasileiro Thiago Teles,
inicialmente interpretado pela atriz brasileira
Clara Choveaux. O ator francês Laurent
Lucas, que na primeira fase interpreta
Terranova, agora dá vida a outro personagem,
o padre François. O padre literalmente cuida e
contempla as rosas de um jardim e logo se
interessa pelo vidente, que desperta
concomitantemente inveja, ira e fascínio.
As dualidades marcam o filme. Tirésia, um
ser andrógino, homem e mulher ao mesmo
tempo. Uma atriz e um ator interpretam o
mesmo personagem. O mesmo ator dá vida
aos personagens Terranova e François. A
cidade é o espaço do profano, e o campo, o do
sagrado. As palavras e as visões. Oposição
entre o eu verdadeiro e o eu construído.
Tensão entre a identidade biológica e a
identidade de gênero. Natureza e cultura em
conflito. Da primeira para a segunda fase do
filme, um Tirésia morre, e outro renasce.
Impossível ver o filme e não estabelecer
diálogos com o mito da alma gêmea, criado
por Platão, narrado em seu livro O Banquete.
Na tentativa de definir o que é o amor, o
REDISCO
filósofo descreve uma festa onde todos os
convidados traçam elogios a Eros, deus do
amor. O momento mais marcante acontece
quando o comediógrafo Aristófanes faz um
discurso reconhecido como “a teoria da alma
gêmea”.
Aristófanes profere que, no início dos
tempos, os homens eram seres completos.
Possuíam duas cabeças voltadas para direções
opostas. Quatro pernas e quatro braços
permitiam a esses seres movimentos
circulares, multidirecionais, muita agilidade e
rapidez no deslocamento.
Seres de
corporeidade esférica, circular, e tinham três
gêneros: os masculinos eram filhos do Sol, os
femininos eram filhos da Terra, e os
andróginos eram filhos da Lua. Entretanto,
consideravam-se perfeitos e foram capazes de
subir ao Olimpo para enfrentar os deuses.
Depois de perdida a batalha para os deuses,
Zeus castiga os homens por sua ousadia. Com
uma espada, cortou os homens ao meio,
separando-os em duas partes. Zeus pede para
Apolo cicatrizar o ferimento e voltar a face
dos homens para o lado da fenda (o umbigo)
para que sempre lembrassem do poder divino.
De volta a terra, cada parte saiu
desesperada à procura de sua metade. A
saudade é o sentimento do desejo de voltar a
ser inteiro, um sentimento de que algo está
faltando. “Dessa forma, o ser que antes era
completo homem-homem gerou o casal
homossexual masculino; o ser mulher-mulher,
o casal homossexual feminino. E o andrógino
(parte homem, parte mulher) gerou o casal
heterossexual” (CABRAL, 2013). Portanto,
imagina-se, durante o ato sexual-amoroso,
que cada metade encontra, por alguns
instantes, sua plenitude e outra vez sente-se
inteira. Uma poética explicação sobre o
surgimento dos gêneros.
Tirésia, curiosamente, divide-se para
depois tornar-se inteiro. Antes, transita por
um processo de transformação. Sendo
travesti, nasceu homem. Construiu-se mulher
para, mais tarde, desnudar-se de sua própria
imagem de mulher, revelando-se um homem
mais distante do profano, beirando a
assexualidade, sem desejo de seduzir ou ser
seduzido. Tirésia torna-se pleno porque agora
não é apenas um homem, mas traz em seu
corpo e em sua alma todos os outros gêneros
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
NARRATIVAS MÍTICAS SOBRE O CORPO HÍBRIDO
– masculino, feminino, andrógino – em forma
de memórias, marcas, ecos.
O travesti não enfrenta a moral vigente; eles
enfrentam a biologia. A garota de programa
é conservadora, serve ao sistema sexual
vigente. O travesti é revolucionário, quer
mudar o mundo. O veado ama o homem; o
travesti ama a mulher, mas ele não quer ser
mulher, ele quer muito mais, ele não se
contenta com pouco, ele é barroco,
maneirista (não existem travestis clássicos).
Há algo de clone no travesti, algo de robô,
pois eles nascem de dentro de si mesmos,
eles são da ordem da invenção, da poesia. O
travesti não quer ter uma identidade; ele
almeja uma ambigüidade sempre deslizante,
sempre cambiante [...] (JABOR, 2009, p.
170).
O filme ainda nos permite verificar que a
alegoria dos homens separados de sua metade
explica as relações entre razão e instinto que
compõem a psique humana. Cada um de nós
traz no corpo e na alma uma memória, uma
saudade atemporal do estado de seres
completos que um dia fomos. A psicologia
profunda descreve esse estado como
urobórico1 (NEUMANN, 1990), um estado
inconsciente, de sombras. A luz se faz a partir
do surgimento da consciência na espécie
humana, representa o momento da ruptura, da
divisão.
Mas a imagem cinematográfica também
duplica a realidade e só o faz por meio da luz.
As realidades do cinema existem por meio da
luz, uma luz dupla: a luz que imprime as
imagens do mundo na película, e a luz da
projeção, que permite imaginar outros
mundos “na parede da caverna escura” das
salas de cinema.
1
O termo é uma referência à imagem alquímica
chamada de uróboros, representada pela serpente que
devora a própria calda. O estado urobórico do homem
significa um estado de inconsciência, antes de surgir a
consciência, momento em que a psique humana é
dividida em sua representação básica: consciente e
inconsciente.
REDISCO
53
Considerações finais
O encontro entre a imagem e o espectador,
por meio da narrativa audiovisual, propõe, por
alguns instantes, um tipo de religação de duas
almas separadas pela linguagem: a alma do
espectador e o mito, expressão da alma do
mundo. Ao mesmo tempo em que as imagens
do cinema buscam nosso olhar para estarem
vivas, tornamo-nos mais vivos em nossos
encontros furtivos com seus mitos. Todos
esses sentidos proporcionados pelo cinema –
e suas possíveis conexões com a Educação, a
História, a Comunicação, a Filosofia,
Psicologia e a Antropologia – devem ser
considerados, no entanto há o mais
importante: transforma-nos em Tirésias,
permitem enxergarmos no escuro.
Cada vez que um filme se apresenta ao nosso
olhar, nasce uma nova realidade, funda-se um
novo mundo. Certamente, um mundo onde
reside
o
fantástico.
Seu
momento
escatológico, seu fim, é marcado quando os
créditos dos produtores da obra sobem pela
tela. Sempre penso que os nomes em
movimento são uma alegoria, espíritos em
direção a um panteão imaginário localizado
no cosmo da cultura. Diretores, produtores,
atores – entre outros personagens dessa arte
coletiva: “semideuses” da nossa atual cultura
(ou culto?) das visualidades.
As produções cinematográficas atuam em
dois tempos, um veloz, iconofágico,
mercadológico, em sintonia com nossa
realidade cultural cambiante; e outro,
permanente, relacionado à memória cultural e
aos modelos fundantes dos textos da cultura
(mitos), um tempo que nunca morre, o tempo
do mito. Na visão lévi-straussiana, o mito é
uma linguagem que trabalha em um nível
muito elevado, no qual o sentido consegue,
por assim dizer, deslocar-se do fundamento da
linguagem na qual inicialmente se
manifestou. “O mito faz parte da língua, é
pela palavra que o conhecemos, ele pertence
ao discurso” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p.
224). Mas, como apontou Pasolini (1982),
sons e imagens do cinema constituem uma
“língua” da realidade, portanto esse território
onde circunscrevo os vínculos entre mito e
cinema pertence a diferentes culturas orais:
uma oralidade baseada no corpo, no gesto e
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
54
na palavra; outra baseada em sons e imagens
em movimento que mediam espectador e
realidade, uma cultura oral audiovisual. A
proposta deste ensaio é transitar por esse
território a partir de obra fílmica.
Ver um filme é sempre um prelúdio de uma
mudança futura. É como entrar e sair de um
rio: quando saímos do cinema não mais
somos os mesmos. Nem o filme.
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Aceito em: 24 de outubro de 2013.
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p.45-55, 2014
IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA: UMA QUESTÃO
DE MODERNIDADE
Luciana Rosar Fornazari Klanovicz
Universidade Estadual do Centro-Oeste
Resumo: Este artigo discute as maneiras pelas quais a mulher moderna tornou-se
discurso no segundo pós-guerra no Brasil, e sua possível relação com a
manutenção das fronteiras sexuais. Para isso, foram utilizadas reportagens e
imagens difundidas pela revista O Cruzeiro, entre as décadas de 1940 e 1950. A
imprensa figurou como uma das principais divulgadoras das expectativas ligadas a
uma modernidade "americanizada" no Brasil do segundo pós-guerra. O Cruzeiro,
nesse período, discutia a modernidade em artigos ligados à constituição de sujeitos
modernos. Nesse sentido, pode-se perceber a revista como construtora de uma
subjetividade serializada, que definiu junto a uma rede conexa de máquinas
produtivas, máquinas de controle social e instâncias psíquicas, um modo específico
de perceber o mundo a partir de discursos de modernidade.
Palavras-chave: gênero; corpo; revista; Brasil.
Abstract: This article discusses the ways in which the modern woman has become
a discourse in post-World War II in Brazil, and its relation to the maintenance of
sexual boundaries. To do so, I used reports and images published by the Brazilian
magazine O Cruzeiro, between the 1940s and 1950s. Press has figured as one of
the main propagators of expectations related to an "Americanized" modernity in
post-WWII Brazil. O Cruzeiro, in this period, was a magazine discussed modernity
in articles related to the constitution of modern subjects. In this sense, one can
perceive magazine as builder of a serialized subjectivity, which defined – with an
associated net of productive machinery, social control machinery, and psychic
instances – a particular world from the perspective of discourses about modernity.
Keywords: gender; body; magazine; Brazil.
Para Marshall Berman (1998), o século 19
foi aquele que reforçou discursivamente a
ideia de homem moderno. No século seguinte,
a mulher será o alvo do discurso da
modernidade. Não que ela não tivesse sido
objeto de investimento há dois séculos.
Historicamente, em diversos períodos e
ocasiões, a mulher foi alvo de debates, mas
somente no século 20 é que o tema da mulher
moderna ganhará repercussão. Quando
REDISCO
pensamos sobre a mulher moderna, ou
melhor, nas construções que são feitas sobre
ela na década de 1950, devemos levar em
consideração, portanto, uma historicidade,
que nos ajuda a pontuar que não foi mero
acaso o investimento realizado sobre a mulher
moderna, especialmente em revistas de
circulação nacional no Brasil da época, em
especial, a revista O Cruzeiro.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
57
Um ideal específico de modernidade
habitou ruas e lares brasileiros na época, por
meio de anúncios e reportagens, ampliação de
espaços de sociabilidade, principalmente a
rapazes e moças. Tal ideal, muitas vezes
ligado diretamente a uma determinada
camada social, acabou por se consolidar a
partir de um processo nunca isento de
postulações prévias sobre comportamentos
(in)adequados para os “tempos modernos”.
Diversos setores da sociedade brasileira
esforçaram-se para posicionar idealmente a
mulher no devir da modernidade. A ela e para
ela foram destinadas as colunas femininas em
artigos que discutiam os revezes do mundo
moderno. A manutenção da feminilidade era
reforçada nessas notícias à medida que seus
corpos, mais livres e expostos, circulavam
pelas cidades, sendo vistos e notados.
Neste artigo busco perceber de que forma a
mulher moderna tornou-se discurso no
segundo pós-guerra, e sua possível relação
com a manutenção das fronteiras sexuais, com
atenção especial para as reportagens e
imagens difundidas pela revista O Cruzeiro,
entre as décadas de 1940 e 1950.
A imprensa figurou como uma das
principais divulgadoras das expectativas
ligadas a uma modernidade "americanizada"
no Brasil do segundo pós-guerra. O Cruzeiro,
nesse período, discutia a modernidade em
artigos ligados à constituição de sujeitos
modernos. De acordo com Felix Guattari, a
mídia e a cultura são consideradas fabricantes
de subjetividades, moldadas e consumidas no
registro do social, em um sistema maquínico
capitalístico onde a produção dá-se em escala
internacional. Ao inserirmos O Cruzeiro na
perspectiva apontada por Guattari, podemos
percebê-la como construtora de uma
subjetividade serializada, que definiu junto a
uma rede conexa de máquinas produtivas,
máquinas de controle social e instâncias
psíquicas, um modo de perceber o mundo. A
subjetivação
enreda
os
discursos
disseminados e articulados pela imprensa, não
como uma atividade unívoca da imprensa,
como
portadora
da
'verdade',
mas
principalmente, envolvida em uma discussão
internacional que produz assertivas positivas
(discursos e imagens) com relação à adesão
REDISCO
KLANOVICZ
de corpos e corações à modernidade desejada,
pulverizada na cultura ocidental.
O modelo estadunidense de modernidade,
ou o American way of life, situa-se em grande
parte nas revistas e jornais que circularam no
Brasil no segundo pós-guerra. O fim da
Segunda Guerra Mundial marcou o fim da
atuação do Birô Interamericano na América
Latina e, assim sendo, a influência cultural
passou a se dar por meio de outras frentes,
tais como as redes de informação, da qual
figuravam, por exemplo, as revistas O
Cruzeiro e A Manchete.
É importante perceber que, embora a
imprensa brasileira estivesse marcadamente
articulada com agências de notícias
internacionais, a revista O Cruzeiro seguiu um
rumo peculiar (KLANOVICZ, 2002, p.49).
Os elevados números editoriais alcançados
apontam para a constituição de um público
relevante, principalmente no pós-guerra. A
revista fazia parte do conglomerado
informacional de Assis Chateubriand, Diários
Associados, que no seu auge era composto de
jornais em várias regiões do país, de revistas
como A Cigarra, além como a primeira
estação televisiva do Brasil, já na década de
1950. Nesse período, O Cruzeiro atingiu um
"milagre editorial" com uma tiragem semanal
de 850 mil exemplares.1
Modernas, mas nem tanto
A coluna “Da mulher para a mulher”,
assinada por Maria Teresa, trouxe, em 1947,
uma pequena história intitulada “Água fria na
fervura” (MARIA TERESA, O Cruzeiro, 11
jan. 1947). A fervura em questão era um
jovem brasileiro que fora estudar nos EUA e a
água fria, uma jovem norte-americana. Em
meio a uma tarde de estudos na casa da moça,
o brasileiro entendeu de maneira errônea a
codificação corporal da jovem americana, que
1De acordo com Accioly Netto calcula-se que cada
exemplar fosse lido por cinco pessoas - nada mais do
que 4 milhões de leitores a cada semana dentro de um
território de 8 milhões de quilômetros quadrados, em
uma população que mal passava de 50 milhões de
habitantes (NETTO, A. O império de papel: os
bastidores de O Cruzeiro. Poro Alegre: Sulinas, 1998.
p.38.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA
vestia um short e sentou-se de maneira que
suas pernas estivessem sob a mesa: “Era uma
garota moderna, ventilada, quero dizer, tinha
ideias avançadas e vivia sozinha, com o seu
terrier”. Quando o jovem tentou beijá-la, ela o
afastou de imediato, dizendo: “It is not
mutual” traduzido por nossa colunista como
“Deixa disso, rapaz, que eu nem te ligo.”
Aliás, esse gesto surpreendeu a colunista, já
que as brasileiras talvez chamassem a polícia
ou gritassem por socorro na janela. Mas a
americana não; “era uma moça prática”
(MARIA TERESA, O Cruzeiro, 11 jan.
1947). Havia, pois, nesse artigo, um
importante estranhamento de conduta, de
ambas as partes. A tradução da linguagem
corporal deu-se de maneira inversa. Porém, a
narração da colunista demonstrava um
estranhamento
criterioso
sobre
tais
comportamentos. A praticidade da norteamericana parecia, também, incompreendida
para a articulista. O comportamento do rapaz
brasileiro parecia justificável por conta da
situação apresentada. A questão, portanto, não
era a notícia em si, mas o fato da autora
imprimir-lhe significado. A sexualidade
feminina preferencial, segundo Gayle Rubin
(1975), em Circulação das mulheres, seria
aquela que pudesse responder aos desejos dos
outros (RUBIN, 1975, p.16). Nesse sentido,
Eileen O’Neill (1997) argumenta que “os
significados que um espectador é capaz de
atribuir a uma imagem serão uma função de
suas crenças sobre a produção da mesma, a
maneira como ela funciona estética, cultural e
politicamente e como está relacionada com os
fatos sobre o mundo” (O’NEILL, 1997, p.83).
Em 1947, outra notícia chamava a
atenção da colunista. Uma poesia moderna
sobre os homens, retirada de uma revista
estadunidense, intitulada “Oh, os homens”,
foi publicada na coluna “Da mulher para a
mulher”:
Se sorris para um homem, êle vai logo
pensar que queres namorá-lo.
Se não o namoras, vai te chamar de
‘iceberg’.
Se deixas que êle te beije, vai dizer que
devias ser mais reservada.
Se não consentes, trata logo de procurar
outra.
REDISCO
58
Se o elogias, vai te chamar bôba;
Mas se não fazes, vai logo dizer que não o
compreendes.
Se lhe falas de amor e de romance, pensa
logo que queres casar com êle.
Se não fores meiga, êle te chamará
desumana.
Se não deixares que êle te faça carinhos,
ficará aborrecido.
Mas se deixares, dirá que não te dá valor;
E vai logo procurar outra pequena que goste
de seus agrados.
Se saíres com outros rapazes, vai te chamar
de leviana;
Mas se não saíres, dirá que ninguém te
quer.
Oh, os homens, Deus do céu! Êles lá sabem
o que querem! (MARIA TERESA, O
Cruzeiro, 11 jan. 1947, p.72).
Da mesma forma que o exemplo anterior,
nessa poesia anônima, a embaraçosa situação
de não ter certeza se foi entendida ou mal
interpretada dá conta, mesmo de maneira
irônica, de uma tensão existente nas
interpretações acerca das relações amorosas
de gênero. Essa tensão interpretativa tinha
relação com as práticas de si, pensadas por
Michel Foucault (1985, p.101). Para ele, a
adequação de si na cultura ocidental
apresenta-se em uma dificuldade na maneira
pela qual o indivíduo pode se constituir
enquanto sujeito moral de suas condutas, e
nos esforços para encontrar na aplicação de si
o que pode permitir-lhe sujeitar-se a regras e
finalizar sua existência (FOUCAULT, 1985,
p.101).
No Brasil, a constituição do sujeito no
segundo pós-guerra imbricava-se com a
constituição
do
sujeito
moderno
americanizado.
Dispositivos
discursivos
perpetuavam uma vontade de saber sobre esse
sujeito, especificamente sobre a mulher
moderna. Assim, em meio às páginas da
revista O Cruzeiro surgiam artigos os mais
diversos, discutindo em que níveis – e,
principalmente, em tom de conselho – de que
maneira as mulheres deveriam se posicionar,
adquirindo posturas modernas, para além de
seus lares.
Dentro do processo de modernização,
observado pelas notícias e imagens
publicadas, é importante lembrar que a revista
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
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alcançava um número cada vez maior de
pessoas, ao mesmo tempo, em diversas
localidades do país. A partir de sua
circularidade, antes mesmo da televisão se
popularizar no cenário brasileiro, tecnologias
inovavam
o
cotidiano,
criando
e
recodificando atitudes e hábitos, antes talvez
impensados, como a liberação do corpo
através das roupas e dos esportes. A
modernidade, segundo Françoise Thèbaud
(1995) é principalmente a conquista de uma
posição de sujeito, de indivíduo de corpo
inteiro e de cidadã, a conquista de uma
autonomia econômica, jurídica e simbólica
relativamente aos pais e dos maridos. No
entanto, tais autonomias estavam ainda
restritas às camadas médias e altas brasileiras,
que, muitas vezes, aderiam a atributos da
modernidade com mais rapidez. Carmen
Mayrink Veiga, em entrevista a Joaquim
Ferreira dos Santos, dava conta desse
pressuposto: “a grande colunista internacional
da moda era a Elza Maxwell e, por
coincidência, ela passou pelo Rio em 58. Fez
o maior sucesso. Lembro que naquele
momento o assunto girava em torno do
lançamento de uma linha de baby-doll pelo
Yves Saint-Laurent. Virou uma coqueluche
no mundo inteiro. Nada de transparente,
porque as pessoas ainda não chegavam a
tanto. Mas algumas das blusas do SaintLaurent já deixavam ver alguma coisa, e eu
era uma das poucas que usavam” (SANTOS,
1998, p.84).
O depoimento de Carmen Mayrink Veiga
demonstra uma ‘ousadia’ que poucos talvez,
pudessem tentar. O cuidado com o próprio
corpo, ou seja, a forma com que aparece ao
olhar de outros é, na fala de jovens cariocas,
um tema de extrema preocupação. No final do
ano de 1950, o jornalista José Leal realizou
uma reportagem sobre o que pensavam as
garotas (LEAL, O Cruzeiro, 23 dez. 1950,
p.58-62 e 72-6). Esse inquérito contou com a
participação de seis garotas de bairros
cariocas, como Tijuca, Copacabana, São
Cristóvão. A reportagem, editada pelo
jornalista e publicada na revista, tinha
perguntas que invariavelmente tratavam de
questões relativas a prendas domésticas,
assim como perguntas modernas, ligadas ao
uso de determinada indumentária, ressaltando,
REDISCO
KLANOVICZ
muitas vezes, se a moça em questão era
fumante ou não. Ana Maria Pinheiro, 23 anos,
católica, loira, moradora do bairro Leblon,
fumante, parecia aderir às novidades que a
circundavam: “vou muito à praia e por isso
sou assim queimada e gosto de maiôs de duas
peças.” Outras não, como Helena Rosa
Gonçalves de 15 anos, não fumante: “não sou
como minhas colegas: detesto praias.” O
depoimento de Virgínia Pereira Mendes e
Maria Angela Veiga, no entanto, eram
parecidos. Ambas frequentavam a praia com
maiôs discretos. Maria Angela ficava
assustada com o uso dos biquínis. A poetisa
Ecila Azeredo gostava apenas de olhar o mar
e frequentar as praias desertas, em uma
investida mais contemplativa do que as
demais: “quando for um dia a alguma praia
longínqua gostarei de estar bem à vontade,
metida em displicentes calças compridas.” É
importante perceber, nessa fala, que o uso de
calças compridas estava associado a uma
espécie de privacidade que a praia deserta lhe
proporcionaria.
O uso das calças compridas para
mulheres, alvo constante de etiquetas e
normatizações, encontrava-se, muitas vezes,
interiorizado na fala das jovens. A relação
com a praia parecia, por meio desses
depoimentos, ter sido incorporado no
cotidiano de muitas jovens, como fora
observado anteriormente. Mas a exposição de
seus corpos na praia ainda estava repleta de
restrições, às vezes dadas por elas mesmas,
como um freio ao modernismo em si, ou até
mesmo estabelecer um diferencial com as
demais garotas – uma maneira de ser
diferente.
A individualidade também é uma marca
do modernismo, uma contradição anônima
dentro da cultura de massas. A praia poderia
se tornar “massa” mas as atitudes pareciam
estar além, mesmo nessa época, de todos os
modismos aos quais estavam sujeitas. Em
geral, as normatizações e etiquetas
destinavam-se às mulheres das camadas
médias, pois detinham acesso ampliado à
educação, ao lazer, em suas variadas formas, e
à cultura veiculada pela mídia em geral.
Cinema, revistas e livros contribuíam na
difusão de uma figura modernizante de
mulher consumidora.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA
Para essa figura idealizada, exigia-se, em
certa medida, uma tomada de ação imediata,
instigando necessidades de comprar, consumir
e trabalhar. Esse acúmulo de bens financeiros
teve, porém, um percurso. Carla Bassanezzi
(1997) aponta, na década de 1950, um período
de ascensão da classe média brasileira. No
segundo pós-guerra, o país assistia a um
otimismo referente ao crescimento urbano e à
industrialização,
aumentando
as
possibilidades educacionais e profissionais
para homens e mulheres (BASSANEZI, 1997,
p.608). A partir de dados levantados pelo
geógrafo Milton Santos (1998), podemos
perceber as transformações quantitativas no
crescimento urbano brasileiro: “Se o índice de
urbanização pouco se alterou entre o fim do
período colonial até o final do século 19 e
cresceu menos de quatro pontos nos trinta
anos entre 1890 e 1920 (passando de 6,8% a
10,7%), foram necessários apenas vinte anos,
entre 1920 e 1940, para que essa taxa
triplicasse passando a 31,24%” (SANTOS,
1998a, p.22).
Entre as décadas de 1940 e 1950, o
crescimento do índice de urbanização alterouse rapidamente. Analisando dados estatísticos
do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) de 1940, na população
urbana contava-se 10.891.000, em uma
população total de 41.326.000. Já na década
de 1950, a população urbana passou a contar
18.783.000, em uma população total de
51.944.000. O índice de urbanização passou
de 26,35% para 36,16% em 10 anos
(SANTOS, 1998a, p.22).
Esse período “de ouro”, no entanto, não
aconteceu apenas no Brasil. Segundo Eric
Hobsbawm (1998), a ideia dos anos 1950 foi
pensada como um contraponto das décadas
seguintes de crise, observado, sobretudo, por
economistas a posteriori. Sob um ponto de
vista capitalista, os chamados “anos
dourados” representavam, principalmente
para os países “desenvolvidos”, um período
único, “uma fase excepcional de sua história”
(HOBSBAWM, 1998, p.253).
Nas páginas da revista O Cruzeiro,
portanto, a idealização da mulher moderna
parecia estar na ordem do dia. É o que se
observa no artigo “A Mulher Moderna”, de
Maria Teresa, em 14 de junho de 1947. Ser
REDISCO
60
moderna é, “disputar aos homens os lugares
públicos, fumar cigarros, usar e abusar da
liberdade individual e afrontar a sociedade
com modas ou maneiras mais ou menos
extravagantes. Isto, indiscutivelmente, não se
enquadra dentro do conceito correto da
mulher moderna” (MARIA TERESA, O
Cruzeiro, 14 jun. 1947, p.72).
O debate inicial era retomado: afinal,
como se manter feminina no trabalho, nas
ruas, nas novas cenas que incluem as
mulheres cotidianamente? A articulista,
mesmo concordando com a exclusão das
mulheres dos espaços públicos - exclusão
historicamente instituída – sugere postar a
aparição feminina, desde que esta esteja
ancorada em princípios morais: “A mulher
moderna, pois, é aquela que, portadora de
uma moral própria, pauta a sua conduta
dentro de normas ecléticas e equilibradas; é
aquela enfim que, perfeitamente esclarecida
sobre todos os problemas que agravam a já
complicada psicose do mundo – sabe
discernir, com exatidão, a perfeição humana
da humana maldade” (MARIA TERESA, O
Cruzeiro, 14 jun. 1947).
Para a autora, o ambiente fora do
conforto seguro dos lares era hostil,
extremamente cruel para a sensibilidade
aguçada da mulher. Era preciso, então,
adaptar-se ao novo sistema de vida sem
mudanças drásticas. A moral e a
interiorização da culpa por seus atos parecia
ser a melhor escolha para a mulher moderna.
O artigo, ampliado pela circularidade da
revista, tornava visível o tão desejado
equilíbrio das relações amorosas e pessoais,
em uma tentativa de manter a fronteira entre
os sexos.
Esse material de pesquisa, portanto,
possibilita pensar os ideais que se projetavam
nos cuidados de si da vida moderna. As
palavras, imagens e linguagens são tomadas
como práticas discursivas performativas. É
Pierre Bourdieu (1996) quem teoriza esse
enunciado performativo. Para ele, “a prévisão política é, por si só, uma pré-dição que
pretende fazer acontecer o que enuncia; ela
contribui praticamente para a realidade do que
anuncia pelo fato de enunciá-lo, de prevê-lo e
de fazê-lo prever; por torná-lo concebível e
sobretudo
crível,
criando
assim
a
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
61
representação e a vontade coletivas em
condições de contribuir para produzi-lo”
(BOURDIEU, 1996, p. 118).
Se, na Idade Média, Erasmo de
Rotterdam delimitou toda uma faixa acerca da
conduta humana, contemplando as principais
situações da vida social e de convívio152, no
século XX, as revistas, tanto femininas quanto
de variedades, traziam normas que
promoviam um devir desejado, idealizado,
destinado principalmente às mulheres.
Segundo Carla Bassanezi (1997), as seções da
revista O Cruzeiro traziam imagens femininas
e masculinas baseadas em papéis definidos,
regras de comportamento e opiniões sobre os
mais variados temas. Para ela, essas imagens,
“mais do que refletir um aparente consenso
social sobre a moral e os bons costumes,
promoviam os valores de classe, raça e gênero
dominantes de sua época” (BASSANEZI,
1997, p.609). Diferente, portanto, dos
manuais estudados por Norbert Elias, que, em
geral, eram menos uma questão de gênero do
que de civilização (ELIAS, 1994).
Poderíamos dizer, dessa forma, que é
provável que no segundo pós-guerra, o
‘espelho’ civilizatório tenha sido a mulher,
por conta de todo o investimento acerca de
sua aparência na sociedade ocidental. Manter
a diferenciação sexual em controle parece ter
sido a solução encontrada para as constantes
crises de masculinidade em nosso século. No
segundo pós-guerra, isso não foi diferente. A
mulher moderna deveria, sim, participar do
mundo moderno; ser a consumidora por
excelência da grande massa de mercadorias
que adveio com o desenvolvimento capitalista
pós-Segunda Guerra. Deveria entrar, portanto,
para o mercado de trabalho e adquirir poder
de compra, mas sem perder os parâmetros de
sua feminilidade.
Em 1953, a revista Manchete trouxe um
artigo intitulado “Amor Moderno”, na coluna
“Conversa Literária”, assinada por P.M.C..
Nesse artigo, o(a) autor(a) discutia o início do
amor moderno e percebia uma mudança nos
relacionamentos. Segundo o artigo, as
mudanças tiveram início em 1929, no período
entreguerras, quando “as gerações do primeiro
após-guerra começaram a tratar o amor como
um esporte, uma diversão, como um coquetel
ou uma partida de tênis. ‘Quero viver a minha
REDISCO
KLANOVICZ
vida’ tornou-se o ‘slogan’ da juventude”
(MANCHETE, 5 set. 1953, p.57).
O mais interessante, porém, encontravase no final da reportagem, quando tratava da
rebelião de moços e moças contra as roupas
na década de 1920: “acreditamos mesmo que
as piscinas foram feitas para que as pessoas se
despissem, e não ao contrário. A nudez
passou a revelar grande independências de
espírito. O maiô curto e apertado quis
significar largueza de ideias” (MANCHETE,
5 set. 1953, p.57).
Para além do entusiasmo proposto pelo
articulista, é preciso ter em mente que a
relação com o corpo não segue uma linha
evolutiva, que indicaria uma eventual maior
nudez no segundo pós-guerra. Na década de
1920 e 1930, houve todo um investimento
acerca do corpo saudável, higienizado, ereto
enquanto metáfora de um discurso
nacionalizador em diversos países, inclusive
no Brasil. Já no segundo pós-guerra, os
pressupostos eram outros, embora a
conceituação acerca da exposição dos corpos
com práticas esportivas não tivesse
terminado.
As mudanças processaram outras
percepções sobre o corpo despido, também no
segundo pós-guerra, ligado a um ‘admirável
mundo novo’ dos lazeres ao ar livre,
constituinte de sujeitos modernos.
Nesse período, são perceptíveis outros
significados para as roupas e comportamentos
modernos, demonstrando uma possível
ligação com relação a um moderno ato de
olhar, em contracorrente acerca dos extensos
debates sobre a altura das saias e dos
polegares dos biquínis. Para esse autor em
1953, era muito positivo mostrar-se: “a arte
plástica já não precisava exprimir a beleza do
corpo humano, que se oferecia ao natural [...]
A influência da nudez na vida sexual moderna
ainda não foi avaliada completamente. O
certo é que o abandono do vestuário,
elemento importante de sexualidade durante
séculos e séculos, alterou profundamente o
funcionamento psicológico do desejo”
(MACHETE, 5 set. 1953, p.57).
Em meio às mudanças, é possível
observar que o autor a percebia e discutia a
nudez com as ferramentas que tinha naquele
momento. Esse olhar de otimismo com
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA
relação a nudez, escrito sem respingos de
preconceito, sugeria, também, uma mudança
na percepção dos corpos.
A exposição corporal talvez potencialize,
de certa forma, a diferenciação sexual.
Segundo Foucault (1993), é na sexualidade
que está aquilo que nos identifica, que nos dá
identidade. A forma do corpo que aparece nas
fotografias, a linha bem definida de seios,
cintura e quadris das mulheres, contribui para
a constituição de um imaginário de mulher
curvilínea. A moda contribuiu, neste sentido,
perpetuando a exposição do ser feminino, nas
saias, nos decotes, nas calças compridas e até
mesmo no uso dos biquínis, dão a impressão
de não haver dúvidas sobre a sua aparência
explicitamente feminina. Se pensarmos no
parâmetro
do
corpo
masculino,
a
diferenciação visual é gritante, seja nos ternos
sisudos, ou ainda na roupa esportiva, a qual
deixava os torsos nus, em um reforço de uma
aparência viril e assim, masculina. É possível,
portanto, pensar a percepção visual,
principalmente no século 20, possa ter
contribuído como espécie de ‘firmamento’
acerca das fronteiras sexuais.
Por meio das imagens e das reportagens
dessas revistas fotográficas, torna-se mais
visível alguns dos embates sobre o corpo
exposto (e moderno). É bom lembrar: mesmo
exposto, está inserido em relações humanas,
sejam elas de foro sexual, social ou cultural e,
assim, não isento de tensões.
62
tradicionalmente inconciliáveis: a ‘vamp’ e a
virgem (PASSERINI, 1995, p.381).
Na imprensa, através dos anúncios e das
reportagens norte-americanas, assim como em
reportagens produzidas na própria revista O
Cruzeiro, essa imagem imortalizada de Gilda
pode ser reconhecida na fala dos
profissionais, em geral homens, acerca das
mulheres fotografadas, ou melhor, das sereias.
As sereias de Copacabana, como a praia, são
famosas em todo o mundo. Louras do sul ou
morenas do norte, na areias elas passam pelo
denominador comum do sol que lhes dá um
toque especial, o ‘toque copacabanal’ como já
escreveu um poeta. Esta morena está com os
olhos voltados para o infinito. Pensando em
quê? (AMÁDIO, O Cruzeiro, 15 jan. 1949,
p.13). Embora a reportagem de João Amádio,
da revista O Cruzeiro, proponha uma análise
da praia de Copacabana, as mulheres jovens
de maiôs que a frequentam são o mote
fundamental, tema em torno do qual giram as
fotografias
e
as
legendas
escritas
propositadamente sob elas, como exemplifica
a legenda escrita acima. Na imagem 1,
observa-se a referida “sereia” do jornalista e a
tentativa de enxergar os signos percebidos
pelo articulista:
Modernas e sereias
A cultura consumista, pulverizada pelos
jornais, revistas e filmes no segundo pósguerra, evidencia no campo discursivo, muitas
vezes, personagens em parâmetros femininos
de imagens tradicionalmente irreconciliáveis.
Segundo Luisa Passerini (1995), a cultura de
massas desempenhou função-chave na
feminização das sociedades, quer como lugar
de afirmação dos valores definidos como
puramente femininos, entre os quais a
individualidade, o bem-estar, o amor, a
felicidade, quer como amplificador de
imagens sedutoras, desde a ‘cover-girl’ a essa
Gilda encarnada por Rita Hayworth que
representava a reunificação de dois termos
REDISCO
Imagem 1: A princesinha do mar. O
Cruzeiro, Rio de Janeiro, 15 jan. 1949, p.13.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
63
Pensando a partir dos estudos de John
Berger (1999), é possível inferir que, no caso
da modelo de Copacabana, o significado de
sua imagem mudou de acordo com a fala do
jornalista, que vem imediatamente depois dela
(BERGER, 1999, p. 31).
Sereias são aquelas que, segundo os
antigos contos, enlouqueciam e seduziam os
homens com seu canto no mar fazendo-os se
perder nas profundas águas do oceano, sem
chance de retorno. Essa é a imagem comum
destas metade-mulheres, metade-peixes. Sua
aparição na imprensa é retumbante.
O que salta aos nossos olhos é a ausência
de homens nestas seções fotográficas, assim
como de crianças, ou senhoras e senhores de
gerações anteriores: “a atração máxima de
Copacabana ainda são as garôtas. Pelo menos
para os homens jovens...” O cartão de visitas
são as sereias motivo e razão de publicidade,
ligando-as a novas práticas de sociabilidades
de massa. A praia populariza-se assim como
as sereias, que são um atrativo a mais, além
do sol e das práticas esportivas. O olhar que
percorre o corpo é direcionado; para o corpo
masculino o investimento é outro, como
observamos anteriormente. As sereias são
garotas-propaganda do ser moderno naquele
período.
A novidade insere-se na produção cultural
de (re)significações das praias como paraíso
terreno construída em conjunto à uma
imagem específica de mulher. Não se trata
apenas de valor comercial, mas de construção
de um imaginário relativamente fácil de ser
reconhecido enquanto tal. Imagens, para além
das fotografias publicadas nas páginas das
revistas, são constituídas a partir de valores
pré-existentes na cultura, “mesmo que em
estado latente ou dormente” (FIGUEIREDO,
1998. p.19). O sucesso dessa fórmula é
visível. A popularização das praias se deu
neste período, principalmente, por e pela
imagem de corpos femininos – jovens e
bonitos.
Com o título “Garotas do Paraná”,
(Imagem 2) em 1947, Luiz Alípio de Barros,
dava conta da cidade de Curitiba/PR, seus
bairros, sua história, sua organização espacial.
Mas eram as garotas, no entanto, que
emolduravam a cena. Só que, dessa vez,
encontravam-se vestidas de maiô nas águas de
REDISCO
KLANOVICZ
uma piscina. Sereias,
vaidosas,
belas,
lindas jovens: esses
eram os adjetivos
mais utilizados nos
comentários
das
legendas.
Sereias
também, que se
encontravam longe
do mar, segundo o
jornalista,
“Qual
sereia dos mares de
Ulisses, ela, uma
bela
curitibana, Imagem 2: Garotas do
corta, majestosa e Paraná. O Cruzeiro, Rio de
linda, as águas de Janeiro, 15 mar. 1947, p.32.
uma
moderna
piscina. Haverá sereia mais verdadeira do que
esta?” (BARROS, O Cruzeiro, 15 mar. 1947,
p.32).
No ano de 1948, era a vez do estado de
Espírito Santo ser focalizado de maneira mais
atenta pela revista (Imagem 3). Dessa vez,
pouco se falava sobre a localidade, e muito
sobre as mulheres. Texto, legenda e imagens
em sintonia.
Imagem 3: Garotas do Espírito Santo. O Cruzeiro,
Rio de Janeiro, 24 jan. 1948, p.85.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA
O país é tão rico que nele florescem as mais
belas e viçosas flores da vida. Sim, não
falemos dos seus minerais, nem da sua
fauna, nem propriamente das suas cidades.
Falemos das suas flores urbanas, das
mulheres brasileiras, que povoam o país,
iluminando-o com a sua graça natural, a sua
beleza, a sua elegância (BANDEIRA, O
Cruzeiro, 24 jan. 1948, p. 85).
O investimento na constituição de
mulheres sedutoras/sereias é observado
também nos anúncios publicados nas revistas
do segundo pós-guerra. O anúncio da loja A
Exposição Carioca do maiô Star 1947,
garantia modelar a plástica das jovens que o
comprassem e arrematava: “Você pode ser
uma assombrosa sereia” (O Cruzeiro, 1 fev.
1947, p. 31) (Imagem 4). É importante
observar de modo semelhante a estética do
corpo em evidência, a cintura fina e os
quadris mais volumosos atentam para um
parâmetro específico, próprio dos “anos
dourados” e, ao mesmo tempo, salienta as
formas “femininas”.
64
Nestor de Holanda, escrevendo para a
seção “Rádio & TV” da revista Manchete,
falava com tranquilidade da ‘sedução’ da
garota-propaganda, impossível de se resistir,
entrando diariamente em sua casa pela tela da
recente televisão, “[...] Há momentos em que,
recebendo, lá em casa, a afetuosa mensagem
comercial, e mergulhado na estase a que me
levam os olhos encantadores e a voz doce de
quem anuncia, sinto ciúmes do liquidificador
que é embalado ou da enceradeira que é
adorada. É um impulso de fraco, porém de
sincero. Não posso contê-lo” (HOLANDA,
Manchete, 1 dez. 1956, p. 52).
Imagem 5: Cafiaspirina (Anúncio da Bayer) O
Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16 jul. 1949, p. 45.
Imagem 4: Star 1947. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 fev.
1947, p.31.
REDISCO
A sedução também era o mote central dos
anúncios da Bayer, veiculados na imprensa
brasileira durante a década de 1940. No
entanto, a sedução promovida pelas mulheres
ali representadas tem um teor maléfico e de
perdição. As mulheres tinham seus corpos
quase despidos: Eva ou Salomé são ali
consideradas “Dores célebres da História.” O
anúncio sugere que a traição de Eva teria sido,
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
65
historicamente, “a primeira ‘grande dor de
cabeça.” (O Cruzeiro, 16 jul. 1949, p. 45) O
comprimido Cafiaspirina prometia aliviar as
dores, usando a figura feminina sedutora
como motivo de grande parte das dores
(masculinas) da história.
Em 1949, encontramos a mesma série de
anúncios circulando na imprensa catarinense.
Em outro exemplo, o protagonista (a vítima)
histórico era Napoleão. O texto evidencia o
pensamento de Napoleão em uma imagem
feminina que o deixa sentado, sem forças e
perturbado; a dor é percebida por conta das
estrelas que circulam ao redor de sua cabeça:
“Napoleão – um homem de força de vontade,
espírito batalhador, tinha também suas lutas
íntimas que lhe davam ‘grandes’ dores de
cabeça” (O Estado, 13 out. 1949, p.4). Já em
outro exemplo, a imagem de uma mulher
dançando de maneira provocante, seria capaz
de fazer os homens perderem a cabeça. A
utilização da imagem bíblica de Salomé
remetia a arquétipos que articulavam, assim
como as demais imagens da série de anúncios,
mulher à perdição, à irracionalidade e à
paixão.
Imagem 6: Cafiaspirina. O Cruzeiro, Rio de
Janeiro: Diários Associados, 25 jun. 1949, p.97.
REDISCO
KLANOVICZ
O recurso de ressuscitar antigos arquétipos
femininos, utilizados pela série de anúncios
da Bayer, além de constituir uma imagem de
mulher objeto (e de consumo), contribui para
a manutenção da diferença dicotômica que
reforça as fronteiras sexuais.
O processo de constituição de sujeitos é
observado também em reportagens. No dia 30
de abril de 1949, foi escolhida a Rainha da
Cidade do Rio de Janeiro/RJ na Associação
Brasileira de Imprensa (ABI). O júri
escolheria, dentre as funcionárias de
estabelecimentos comerciários e industriais, o
“tesouro dos humildes”, no sentido de
“exaltar a beleza humilde da moça pobre, da
menina que trabalha e constitui ou faz a graça
cotidiana
e
imprevista
da
cidade”
(MACIEIRA, O Cruzeiro, 30 abr. 1949,
p.84).
Porém,
as
legendas
adjetivavam,
nomeando sujeitos. Maria Gracinda, a miss
vitoriosa, era, para Rubens Macieira,
jornalista que assinava a matéria, “escultura
humana, vivente e ardente”. Sua fala na
entrevista concedida à rádio era também
analisada pelo jornalista: “e os ouvintes
ouvem a voz bonita, morena, quente de Maria
Gracinda [...].” Ou seja, ela passou a ser
ardente, quente, de voz morena. São através
dos discursos que se posicionam sujeitos e
suas experiências (SCOTT, 1998). E aqui,
nessa análise, é a imagem que ilustra a frase:
“o significado de uma imagem muda de
acordo com o que é imediatamente visto a seu
lado, ou com o que imediatamente vem
depois dela. Essa autoridade que ela detém é
distribuída por todo o contexto em que
aparece” (BERGER, 1999, p.31). O desejo
passava a ser uma mensagem decodificada
pela legenda como uma das qualidades físicas
daquela recém escolhida miss. Atributos
recentes, mas que marcavam e constituíam
sujeitos.
Para determinadas mulheres, como as
vedetes, o investimento era outro. Sua história
imbricava-se, necessariamente, com a própria
história dos cassinos. A explosão dos cassinos
entre as décadas de 1930 e 1940 demonstrava
ser um grande negócio, que aliava números de
atrações femininas ao jogo nas verdes mesas.
O dinheiro circulava em alta; alguns detinham
não apenas um, mas vários cassinos. As
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
IMAGENS DE MULHERES DO SEGUNDO PÓS-GUERRA
dimensões espaciais desses estabelecimentos
davam a entender sua grandiosidade e luxo.
As vedetes faziam parte desse mundo; mundo
de plumas e paetês – um show de revista.
Segundo Joaquim Ferreira dos Santos (1998),
em 1946, depois do fechamento dos cassinos
pelo presidente Eurico Gaspar Dutra (18831974), muitas vedetes perderam o emprego.
Houve um período posterior em que alguns
empresários passaram a contratar shows
internacionais e que muito lembravam os
tempos de atividade dos cassinos brasileiros.
A ligação era imediata, na medida em que,
muitos deles já haviam se apresentado em
cassinos:2
Mas nesse tempo justificava-se a presença
de show-girls dos Estados Unidos no Rio de
Janeiro, porque (a) havia publico, grande
público, todas as noites, e por que (b) com o
jogo livre, as roletas funcionando e os
viciados gastando, as caixas dos clubes
noturnos acusavam rendas fabulosas, que
hoje são lembradas pelos proprietários de
Cassinos e funcionários de então com uma
bruta saudade – saudade e revolta, diante da
monotonia noturna da nossa cidade hoje em
dia (LEAL, O Cruzeiro, 15 abr. 1949).
66
Pinto, que investiram no Teatro de Revista de
maneira incisiva apostando no humor e,
principalmente nas vedetes.
No decorrer da década de 1950, os teatros
de revista eram quase um sinônimo de
rentabilidade. Em 1953, rendiam, por show,
cinco milhões de cruzeiros. Era um evento
mercadológico que se valia de moças que
dançavam, exibindo, obrigatoriamente, suas
pernas.
O moderno era usar o biquíni e a malícia
feminina – exigidos pelo público – assim
como as pequenas sátiras à política, elementos
que garantiam sucesso ao teatro musicado.
Segundo os repórteres da revista Manchete,
Nicolau Drei e Aymoré Marella, “Há falta de
boas bailarinas no teatro porque, além de
‘ballet’, são necessários outros atributos”
(DREI, Manchete, 18 jul. 1953, p.28-9). Essa
fala localizava-se no canto inferior direito da
figura X, que sugere ao leitor que atributos
seriam esses.
A presença não era apenas de norteamericanas. Em 22 de fevereiro de 1950, o
jornal O Estado, de Florianópolis/SC, dava
publicidade à chegada de moças argentinas
que trabalhariam ao lado de Bibi Ferreira, na
cidade do Rio de Janeiro/RJ. A notícia era
curta, mas denotava ao leitor catarinense o
que poderiam esperar do espetáculo a ser
montado: “Trata-se de um original em que
veremos Bibi Ferreira, dançando, cantando,
representando com sinceridade, com malícia,
com graça e brejeirice” (O Estado, 25 fev.
1950, p.5).
Esse período de transição foi mais tarde
retomado por empresários, como Walter
2
As chamadas “girls” norte-americanas foram
contratadas, certa vez, pelo Cassino Atlântico, e
também pelo Cassino da Urca. Possivelmente, eram
várias companhias, apesar de que não se tratava,
nominalmente, cada uma. Para a revista, eram apenas
“garotas americanas”, que se destacavam do grupo de
revista pela cor do cabelo e pelas sardas no rosto. Cf.
LEAL, José. “As girlies milionárias”, O Cruzeiro, Rio
de Janeiro, 15 abr. 1949, p.24-8 e 90.
REDISCO
Imagem 7: DREI, Nicolau & MARELLA, Aymoré.
Cinco Milhões por um ‘show’. Manchete, Rio de
Janeiro, 18 jul. 1953, p. 28 e 29.
Além disso, observa-se, na figura, uma
moça que, durante a dança, eleva seu vestido,
deixando à mostra suas pernas. Para Joaquim
Ferreira dos Santos (1998), o teatro de revista
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
67
depois foi transformado em teatro rebolado,
por conta das mudanças no modo de
apresentar os esquetes. A crítica a questões
políticas passava por cenários sérios,
ocupando também espaço em editoriais de
revistas de variedades. No entanto, o humor,
aliado à malícia carioca, parecia ser o veículo
preferido pelo público, tanto em músicas,
como em marchinhas de carnaval e,
principalmente, nos teatros de revista, tendo
vedetes como porta-vozes e protagonistas de
cenas que misturavam, em geral, política e
malícia.
Corpos femininos foram se tornando
visíveis depois do segundo pós-guerra,
principalmente na década de 1950, porém de
diferentes e específicas formas, variando
conforme o sujeito que se desejava construir:
a pequena, a sereia, a pecadora, a maliciosa, a
ardente, a mãe, a aeromoça, a secretária, a
modelo, entre outros sujeitos modernos
femininos que foram sugeridos pela imprensa
do período. No entanto, o investimento sobre
o corpo masculino deu-se pontuando outros
atributos com características distantes das
características ditas “femininas”, na tentativa
de manter visível e cada vez mais nítida a
diferença, a fronteira entre os sexos.
KLANOVICZ
BERMAN, M. Tudo o que é sólido
desmancha no ar: a aventura da
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Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16 jul. 1949, p.45.
CAFIASPIRINA (Anúncio da Bayer) O
Estado, Florianópolis, 13 out. 1949, p.4.
CHEGOU o primeiro grupo de argentinas que
vai trabalhar ao lado de Bibi Ferreira. O
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um ‘show’. Manchete. Rio de Janeiro,18 jul.
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REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 56-68, 2014
CORPOS EM ROTAÇÃO:
DE AMÉLIA A AMELY, MULHERES DE VERDADE?
Nincia Cecilia Ribas Borges Teixeira
Universidade Estadual do Centro-Oeste
Resumo: Por muito tempo, a mulher foi silenciada por discursos de uma cultura
que as definiu como inferior, frágil, e, até mesmo, doente e histérica, e que, a partir
de um centro masculino de poder e saber, foram, e, ainda são, reduzidas às
margens. A pesquisa analisa cartuns produzidos pela artista curitibana Pryscila
Vieira, o enfoque recai sobre a principal personagem da cartunista: Amely, uma
boneca inflável. Amely é uma releitura da personagem Amélia, eternizada como
sinônimo da mulher perfeita na música “Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo
Alves e Mario Lago. A boneca foge aos padrões patriarcais e mostra que as
conquistas femininas ainda não foram suficientemente abrangentes a ponto de
liberar a mulher de certos estereótipos.
Palavras-chave: Corpo, gênero, cartum.
Abstract: For a long time, the woman was silenced by discourses of a culture that
defined them as inferior, weak, and even sick and hysterical, and that, from a male
center of power and knowledge, were, and, are also reduced to the margins. The
research analyzes cartoons produced by curitibana photographer Pryscila Vieira,
the focus is on the main character of cartoonist: Amely, an inflatable doll. Amely is
a reinterpretation of the character Amelia, immortalized as a synonym of the
perfect woman in the song "Oh how I miss Amelia" Ataulfo Alves and Mario
Lago. The doll flees to patriarchal standards and shows that women's achievements
were not sufficiently extensive as to release the woman from certain stereotypes.
Keywords: Body, gender, cartoon.
[...] o corpo é então compreendido
como uma exteriorização do interior
psíquico do sujeito, fazendo, dessa
maneira, a fronteira entre o
individual e o social (NOVAES,
2006, p. 58).
A mulher esteve, por muito tempo,
relegada ao espaço privado do lar,
principalmente, devido aos seus cuidados com
a maternidade e aos afazeres domésticos,
demorando a entrar em cena enquanto sujeito
que narra sua História. É possível pensar as
REDISCO
mulheres como um grupo diverso, mas que
compartilham
independentes
de
suas
especificidades, questões comuns que
convergem
para
o
mesmo
ponto;
constantemente interditadas para falar,
silenciada por discursos de uma cultura que as
definiu como inferior, frágil, e, até mesmo,
doente e histérica, e que, a partir de um centro
masculino de poder e saber, são,
consequentemente, reduzidas às margens.
No entanto, há especificidades que as
diferenciam - para não cair na redução de
entender a experiência de gênero dentro de
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014
70
TEIXEIRA
desdobramentos
homogêneos
–
particularidades estas ligadas a outros
sistemas de hierarquização social, como
classe e raça, implicando nas experiências de
gênero, portanto, nas formas de negociação
estabelecidas
entre
as
práticas
e
representações.
Joan Scott define gênero como "[...]
elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos, e gênero é uma maneira primordial
[primary way] de significar relações de poder
(SCOTT, 1986, p. 1067). A autora insere a
noção de historicidade na concepção de
gênero, uma vez que as diferenças entre os
sexos
são
“percebidas”,
ou
seja,
desnaturalizadas
e
historicamente
constituídas. Para além dos estudos
localizados, a tarefa do desenvolvimento
teórico envolve o entendimento de gênero
como campo de disputa do poder, utilizando
a noção de poder de Michel Foucault, - do
poder como relacional, como rede de relações
que nos constituem, a fim de entender a
dominação de gênero. O poder entendido
como prática social e como tal construída
historicamente, com o propósito de ativar
micropoderes que se mantêm sob a
dominação de saberes dominantes e que se de
relações desiguais que partem das relações de
força presente na sociedade.
O poder, para Foucault, teria:
[...] uma essência e seria um atributo, que
qualificaria os que o possuem (dominantes)
distinguindo-os daqueles sobre os quais se
exerce (dominado). Mas, o poder não tem
essência, ele é operatório. Não é atributo,
mas relação: a relação de poder é o
conjunto das relações de forças, que passa
tanto pelas forças dominadas quanto pelas
dominantes,
ambas
constituindo
singularidades (1994, p.37).
Ao rejeitar a utilização do termo gênero
como substituto de mulheres, e como
substituto das relações entre homens e
mulheres, Scott insere o poder e a política no
conceito, de maneira a historicizar a própria
ideia de relação entre os sexos, e recuperar a
história da construção desta relação como
arena de disputa política. Assim, apoia-se na
argumentação do poder visto como relacional.
REDISCO
Michelle Perrot (2007), no livro Minha
História das Mulheres, registra sobre uma
“torrente de discursos” que trazem a mulher à
cena, e reconhece que esses discursos, são, em
sua maioria, obra de homens e ignoram o que
“as mulheres pensavam a respeito, como elas
as viam ou sentiam” (2007, p. 22). Tratava-se
de representações estereotipadas, fruto de um
olhar masculino moldado por uma cultura
machista, preconceituosa, muitas vezes,
fundada e ancorada por discursos da ciência e
da filosofia. Como se as mulheres para se
entenderem, necessitassem da mediação do
olhar do outro, o que para Foucault,
demonstra que isso é uma construção, uma
imaginação nociva, porque nesse processo
está acontecendo uma forma de sujeição.
Assim, para entender as relações de
desigualdades das mulheres em relação aos
homens, é que se torna necessário voltar-se
para as ideias de Foucault quanto este
afirma ser “o poder é como uma rede de
relações sempre tensas. Não admite
polaridade fixa, mas considera que homens e
mulheres, através das mais diferentes práticas
sociais, constituem relações em que há
constantemente negociações, avanços, recuos,
consentimentos,
revoltas
e
alianças”
(FOUCAULT in LOURO, 2003, p. 39-40). O
poder é algo vivo no próprio tecido do corpo
social, podendo-se denominar de poder o
conjunto de relações presentes em toda parte,
na estrutura do corpo social. O poder
disciplinar é algo implícito nas organizações,
a repressão se realiza através dos saberes
constituídos e das relações desiguais,
constituídas de acordo com os campos de
força existentes na sociedade.
Dessa forma, entende-se a relação mulher e
poder sobre três perspectivas: a primeira diz
respeito à posição da mulher na estrutura de
dominação e a contraposição feminino x
masculino; a segunda refere-se à pretensão de
poder da mulher na sociedade moderna e o
porquê a mulher tem participação tão pequena
no cenário político; a terceira perspectiva
remete a representação que as mulheres
empoderadas tem construído com as mulheres
em geral.
O corpo é uma forma de identificação do
feminino e do masculino, mas é
especialmente tido como um estigma da
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014
CORPOS EM ROTAÇÃO
representação do poder masculino. Em toda a
história fica evidente a divisão entre o
público, no que se refere aos papéis
masculinos, e do privado, quanto aos papéis
femininos. É para o âmbito da representação
artística que voltaremos nosso olhar, ou seja,
análise de como se dá o olhar estético do
autor na captação da concepção dominante na
poética do corpo feminino.
A teoria feminista coloca a questão do
corpo no centro da ação política e da
produção teórica. São várias as posições
feministas, que resultam, muitas vezes, em
visões diferentes e até mesmo opostas.
Simone de Beauvoir (apud XAVIER, 2007),
percebe que o corpo das mulheres é
importante, mas não é fundamental:
A sujeição da mulher à espécie, os limites
de suas capacidades individuais são fatos de
extrema importância; o corpo da mulher é
um dos elementos essenciais da situação
que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele
tampouco que basta para a definir. Ele só
tem realidade vivida enquanto assumido
pela consciência através das ações e no seio
de uma sociedade; a biologia não basta para
fornecer uma resposta à pergunta que nos
preocupa: por que a mulher é o Outro?
Trata-se de saber como a natureza foi nela
revista através da história; trata-se de saber
o que a humanidade fez da fêmea humana.
Julia Kristeva e Nancy Chodorow, em uma
perspectiva de construção social da
subjetividade, afastam-se
da posição da
autora do Segundo Sexo, vendo o corpo de
forma positiva, marcando socialmente o
masculino e o feminino como distintos. Elas
buscam a transformação de atitudes, crenças e
valores, uma vez que o corpo é uma
construção social, uma representação
ideológica. Diferentemente das igualitaristas e
construcionistas, teóricas como Luce Irigaray,
Hélène Cixous, Gayatri Spivak e Judith
Butler, entre outras, concebem o corpo como
um objeto cultural, utilizado de formas
específicas em culturas diferentes. Para elas, o
corpo deve ser visto como o lugar de
contestação, de lutas econômicas, políticas,
sexuais e intelectuais.
Observa-se, pois, que os corpos devem ser
vistos mais em sua concretude histórica do
REDISCO
71
que na sua concretude simplesmente
biológica. Existem apenas tipos específicos de
corpos, marcados pelo sexo, pela raça, pela
classe social e, portanto, com fisionomias
particulares. Essa multiplicidade deve solapar
a dominação de modelos, levando em conta
outros tipos de corpos e subjetividades
Elisabeth Grosz (2000) sugere, como
abordagem teórica feminista dos conceitos
sobre o corpo, a recusa do dualismo
mente/corpo, apontando para o entendimento
de uma subjetividade corporificada, de uma
corporalidade psíquica. E completa, dizendo:
“O corpo deve ser visto como um lugar de
inscrições, produções ou constituições sociais,
políticas, culturais e geográficas. A
“subjetividade
corporificada”
ou
“corporalidade
psíquica”
da
mulher,
representada nos textos de autoria feminina,
inscreve-se no contexto social de forma
variada, o que nos permite o estabelecimento
de uma tipologia, agrupando as personagens
femininas em torno dos vários tipos de
representação.
Para Grosz (2000), o pensamento misógino
define uma auto-justificativa conveniente para
a posição social secundária das mulheres ao
contê-las no interior de corpos que são
representados, até construídos, como frágeis,
imperfeitos, desregrados, não confiáveis,
sujeitos a várias intrusões que estão fora do
controle consciente. A sexualidade feminina e
os poderes de reprodução das mulheres são as
características culturais definidoras das
mulheres e, ao mesmo tempo, essas mesmas
funções tornam a mulher vulnerável,
necessitando de proteção ou de tratamento
especial, conforme foi variadamente prescrito
pelo patriarcado. Assim, a noção que emerge
é a de que os corpos das mulheres são
presumidamente incapazes das realizações
masculinas, sendo mais fracos, mais expostos
à irregularidades hormonais, intrusões e
imprevistos.
Dessa forma, observa-se como ocorre a
dominação masculina e a construção social e
histórica dos corpos. Para Xavier (2007), é na
interação com alguém ou alguma coisa que os
corpos devem ser vistos. O sexo feminino
carrega o peso de ser um corpo subalterno
devido a questões culturais produzidas através
dos tempos. Segundo Bourdieu,
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014
72
TEIXEIRA
"[...] a diferença biológica entre o corpo
masculino e o corpo feminino é a
responsável pelas diferenças de gênero
socialmente construídas. Essas diferenças
estão
na
ordem
das
coisas’[...]
(BOURDIEU, 1999, p.17),
de forma objetivada, na casa, por exemplo,
em todo o mundo social e de forma já
incorporada nos corpos e na cultura das
pessoas. Nas palavras do Bourdieu (1999, p.
15-16):
A constituição da sexualidade [...] nos fez
perder o senso da cosmologia sexualizada,
que se enraíza em uma tipologia sexual do
corpo socializado, de seus movimentos e
seus
deslocamentos,
imediatamente
revestidos de significação social – o
movimento para o alto sendo, por exemplo,
associado ao masculino, como a ereção, ou
a posição superior no ato sexual.
Conforme o autor, as situações segundo a
oposição masculino/feminino, superior/inferior,
alto/baixo, direita/esquerda, em cima/embaixo,
etc., o que é considerado para muitos análogo
aos movimentos do corpo. Também está
socialmente construída a ideia de potência
sexual do homem, ou o que se espera “de um
homem que seja realmente um homem”
(BOURDIEU, 1998, p. 20). Assim, explica-se
porque a sociedade é regulada pela ordem
patriarcal e ditatorial e porque o corpo feminino
é, na maioria das vezes, representado de forma
subalterna.
Perrot (2007) assegura que de Aristóteles a
Freud, o sexo feminino era visto como um
defeito, como se fosse uma fraqueza da
natureza, marcado para a possessão, tanto por
sua anatomia quanto por sua biologia. Mais
tarde, os homens passam a cobiçar a virgindade
das moças. Passa-se a discutir o prazer sexual
feminino e, até hoje, discute-se o valor da
maternidade. Entretanto, o universo da
sexualidade feminina ainda é algo a ser
explorado.
“O sexo das mulheres é um poço
sem fundo, onde o homem se esgota, perde suas
forças e sua vida beira a impotência”
(PERROT, 2008, p. 65). O que é condenado,
especialmente pelas feministas, é a associação
da oposição macho/fêmea com a oposição
mente/corpo, responsável pela discriminação
REDISCO
das mulheres. Simone de Beauvior afirma que o
conceito do corpo feminino é um obstáculo a
ser superado para que se chegue à igualdade.
Amely: mulher de verdade!?
Pryscila Vieira é uma artista curitibana,
uma das poucas mulheres no universo dos
cartuns, modalidade na qual as mulheres
aparecem mais como tema do que autoras das
piadas. Por isso, os assuntos de suas tiras e a
forma como as piadas e personagens são
construídos revelam faces diferentes para o
humor. As tirinhas de Amely são publicadas
semanalmente no Caderno Equilíbrio da
Folha de São Paulo, no Jornal do Metro,
diário de distribuição gratuita publicado no
Rio de Janeiro e São Paulo, e no blog
http://pryscila-freeakomics.blogspot.com.br/.
O
cartum apresenta-se como uma
anedota gráfica que satiriza comportamentos
humanos. É um texto não verbal que veicula
crítica social, pessoal ou factual e traz à tona
temas que não dependem de fatos isolados
para apresentar sentido ou humor. Por isso,
para ler um cartum, devem ser ativados
conhecimentos que nem sempre estão
explícitos no texto, o que auxiliam na
compreensão e geração de sentido.
A principal personagem da cartunista
Pryscila Vieira é Amely, uma boneca inflável.
A primeira vista, Amely é apenas uma boneca
inflável, ou seja, um objeto sexual perfeito.
Ela é desejada, plasticamente bonita e feliz.
No entanto, Amely acaba por frustrar homens
ao mesmo tempo em que se projeta como
salvação de mulheres. Ela gera todo este
impacto por dois motivos: ela pensa e fala. O
nome Amely é uma releitura da personagem
Amélia, eternizada como sinônimo da mulher
perfeita na música “Ai que saudades da
Amélia”, de Ataulfo Alves e Mario Lago. A
personagem de Vieira diferencia-se muito do
conceito de mulher de verdade representado
pela Amélia da música, pois quebra os
paradigmas de resignação feminina. Como se
pode observar no cartum:
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014
CORPOS EM ROTAÇÃO
73
Uma questão abordada constantemente é a
preocupação da mulher com o corpo, como
modo de se tornar desejável ao sexo oposto.
Na figura 1, há a releitura de personagens do
clássico O Mágico de Oz. Enquanto os
personagens tradicionais procuram o mágico
para pedir cérebro, coragem e coração,
Amely, solicita mais 200 ml de silicone.
Figura
1.
Disponível
em
:<http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/> Acesso em 28 de
novembro de 2013.
A personagem de Vieira tem vontade,
iniciativa e independência. Os quadrinhos da
Amely tratam dos sentimentos e pensamentos
de alguém que não esperamos que os tenha,
muito menos que os expresse tão
veementemente, o drama comum da mulher
moderna.
Em uma entrevista concedida ao blog
Lady´s Comics, Pryscila Vieira explica de que
forma a personagem rompe com as
expectativas:
Amely chega por encomenda à casa de seu
comprador com dois grandes e irreversíveis
“defeitos de fabricação” segundo o publico
masculino: o primeiro é que ela pensa. O
segundo defeito é que ela fala… e muito!
Isto a transpõe do patamar de “mulher
inflável” para o de “mulher infalível”.
Amely torna-se “a mulher de verdade”.
Adquire vontade, iniciativa e independência
apesar de seus “proprietários” não
esperarem nada dela além do que um objeto
sexual proporciona. Os quadrinhos da
Amely tratam
dos sentimentos e
pensamentos de alguém que não esperamos
que os tenha, muito menos que os expresse
tão veementemente. Infelizmente no mundo
machista que vivemos, algumas mulheres
ainda
se
deparam
com
situações
semelhantes na sociedade e no mercado de
trabalho. (Disponível em: http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/)
Figura
2.
Disponível
em
:<http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/> Acesso em 28 de novembro de
2013.
Por meio da personagem Amely, a
cartunista esboça um corpo a serviço do
prazer. Marcel Mauss (2003) afirma que a
expressão corporal traz as marcas do contexto
cultural ao qual o indivíduo pertence. O
corpo, para Mauss,
sofre a ação da
coletividade e se constitui em modalidade de
expressão dos valores da sociedade no qual se
insere, que varia com sociedades, épocas,
posições sociais. Amely incorpora valores
que emanam da mídia, que elege uma
variedade atributos que definem como devem
ser as características físicas do indivíduo de
sua sociedade. A fixação de tais atributos
permite a identificação dos indivíduos entre si
e possibilita a comunicação entre eles,
mobilizando normas e regras aprendidas
socialmente. Assim, essa instituição "educa"
e auxilia na construção de identidades. Neste
sentido, a mídia se tornou, nas últimas
décadas, uma poderosa instância de produção
do conhecimento. Como afirma Rosa Fischer
(1999, p.18):
Nos quadrinhos de Amely, ocorre o desfile
de diversos temas que tangem o universo
feminino. O humor é o espaço que a
cartunista se apropria para tecer críticas à
situação da mulher na sociedade moderna.
Se considerarmos que a mídia, hoje, é
responsável por um imenso volume de
trocas simbólicas e materiais em
dimensões globais, abre-se para a
educação um novo conjunto de
problemas, numa dinâmica social que
exige não só medidas urgentes por parte
das políticas públicas educacionais, mas
igualmente uma reflexão mais acurada
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014
74
TEIXEIRA
sobre as relações entre educação e cultura
[...].
Amely , vítima dessa pressão social é
impulsionada pela mídia a reproduzir de
forma incessante a imagem estereotipada do
“belo” que é parte do sistema capitalista. O
corpo perfeito é um "dever" feminino. A
disciplina, a dor, e a angústia da imposição
não são vistas como uma violência, mas são
prazer, uma realização pessoal diretamente
relacionada a auto-estima. Ser magra, jovem,
esbelta, estar na moda, etc., portanto, “ser
bela” é uma conquista.
A imagem do belo corpo traduz o anseio
atual. Esculpidos nas academias de
ginástica ou remodelados e formatados em
clínicas particulares e hospitais, pelo body
building ou body modification, transformálos está na ordem do dia. [...] quer seja por
meio desta, quer seja por meio de
cosméticos, de forma efêmera ou
permanente, o corpo é sempre transformado
em signo cultural, como capital do qual fala
Bourdieu (NOVAES, 2011, p. 485).
Vieira, utiliza Amely para demonstrar que
essa imagem idealizada, e inacessível para
todas as mulheres, e possibilita o
aparecimento de sentimentos de insuficiência,
culpabilidade e de vergonha de seu corpo e de
si mesma. Essa “rejeição” da própria
aparência provoca barreiras e isolamento
social a muitas mulheres, ao mesmo tempo
em que estimula uma competitividade que as
submetem as intervenções das tecnologias da
beleza para se tornarem atraentes, para o olhar
do outro, no caso de Amely " Preciso de mais
200 ml de silicone" .
Mesmo que se considere os aspectos da
beleza que preocupam as mulheres frívolos,
eles não podem deixar de serem vistos como
instrumentos ideológicos e de relações de
poder, pelos quais a sociedade, por meio da
mídia exerce o controle sobre as mulheres,
não apenas sobre sua aparência, mas também
sobre seus hábitos e comportamentos, pois
para Louro:
Os grupos sociais que ocupam posições
centrais tem a possibilidade de representar
REDISCO
não apenas a si mesmos, mas também de
representar os outros. Eles falam por si e
também pelos “outros”, apresentam como
padrão sua própria estética, sua ética ou
sua ciência e arrogam-se os direitos de
representar (pela negação ou pela
subordinação) as manifestações dos
demais grupos. (LOURO, 2003, p.16)
Ao colocar uma boneca inflável como
protagonista, a artista critica à transformação
do corpo da mulher em objeto. Porém, Amely
em nada se compara a uma mulher-objeto,
pois tem ideias próprias e é cheia de
personalidade.
Os quadrinhos da Amely tratam dos
sentimentos e pensamentos de alguém que
não esperamos que os tenha, muito menos
que os expresse tão veementemente.
Infelizmente no mundo machista que
vivemos, algumas mulheres ainda se
deparam com situações semelhantes na
sociedade e no mercado de trabalho.
(Disponível
em:
http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/).
Foucault, na obra Microfísica do Poder,
questiona a condição da mulher e a redução
do gênero feminino ao seu sexo. “Vocês são
apenas o seu sexo, dizia-se a elas [...]. E este
sexo, acrescentaram os médicos, é frágil,
quase sempre doente e sempre indutor de
doenças. ‘Vocês são a doença do homem’ ”.
(FOUCAULT, 2008, p. 234). Embora muitas
evoluções tenham dado à mulher uma posição
diferente na sociedade, é possível perceber
que, ainda hoje, essa condição do corpo
sexualizado prevalece em algumas situações.
No cartum, vislumbra-se uma situação em que
o corpo feminino é tratado apenas
biologicamente.
Figura 3. Disponível em :<http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/> Acesso em 28 de novembro de 2013
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014
CORPOS EM ROTAÇÃO
Na terceira tira, satiriza-se o período prémenstrual feminino e os estereótipos
comportamentais tidos como verdades nesse
período. A cartunista cria uma situação em
que o corpo feminino encontra-se totalmente
fragilizado e descontrolado. Neste caso, coube
ao homem o dever de agir sobre esse corpo,
retirando-o do espaço público, onde poderia
se tornar perigoso. Christine Delphy, Colette
Guillamin apud Swan
identificam, com
pertinência, “a classe dos homens”, uma
ampla coalizão em um sistema histórico e
social, o patriarcado, que lhes confere
“naturalmente” autoridade, prestígio e a posse
das mulheres também enquanto classe, que
apaga todas as singularidades.
Recorre-se à literatura para fazer uma
intertextualidade que provoca o riso. Amely
se tranforma em Gregor Samsa, o monstruoso
personagem de Kafka em “A metamorfose”,
que se transforma em inseto. A metáfora de
Kafka é bem significativa, pois ao se tornar
um inseto, Gregor Samsa perde sua função
social no seio da família da qual foi por muito
tempo provedor. Aos poucos, vai sendo
esquecido por essa família, mostrando que as
relações humanas possuem um caráter
meramente funcional.
Em Microfísica do poder, Foucault afirma
que para sexualizar o corpo feminino e mantêlo sob controle, muitas redes de micro
poderes foram acionadas, retificando que esse
corpo era doente e fragilizado. “Este
movimento antigo se acelerou no século
XVIII, chegando à patologização da mulher: o
corpo da mulher torna-se objeto médico por
excelência”. (FOUCAULT, 2008, p. 234).
A sexualidade, nesta perspectiva não está
no domínio do “natural”, do biológico, mas na
produção discursiva do sexo-necessidade, do
sexo-verdade, do sexo- identidade, do sexovida. Diz Foucault
O dispositivo da sexualidade tem como
razão de ser não apenas se reproduzir, mas
proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar
os corpos de maneira cada vez mais
detalhada e de controlar as populações de
forma cada vez mais global (FOUCAULT,
2008, p. 141).
REDISCO
75
O dispositivo, portanto, inventa os corpos
e os possui, cria-os ao defini-los, ao emoldálos enfatizando o prazer, sem defini-lo nem
questioná-lo, para melhor apagar os traços de
sua construção e domesticação.
Para Rago (1998), “[...] o corpo feminino
é uma questão de poder, um lugar estratégico
da esfera privada e pública, um ponto de
apoio da biopolítica”, (p.495). Ao citar
Foucault ela explica que um dos primeiros
personagens femininos a ser sexualizado foi a
mulher ociosa, a quem sempre deveria ser
atribuído a um lote de obrigações conjugais e
maternais. Essa histerização da mulher
exigiu uma medicalização minuciosa de
seu corpo e de seu sexo, feito em nome da
responsabilidade que elas teriam em
relação à saúde dos seus filhos, da solidez
da instituição familiar e da salvação da
sociedade (RAGO, 1998, p. 475).
Na tira, o estereótipo da mulher com
TPM também é animalizado. A maioria das
representações femininas nesse período
mostra uma mulher que perde o controle de si
mesma,
deixando-se
dominar
pelos
hormônios e pelo biológico. A TPM marca as
mulheres com o sinal da fraqueza e da
instabilidade. É um momento de permissão
social para que as mulheres liberem suas
revoltas
e
descontentamentos,
sua
irritabilidade face a situações impostas às
mulheres, sem a pecha da histeria e outras. A
TPM, porém, é um outro sentido dado à
famosa histeria, já que qualquer manifestação
mais forte e mais firme, é logo atribuída à
TPM, logo, sem valor, já que devidas às
funções de seu corpo.
A boneca Amely foge aos padrões
patriarcais e mostra que as conquistas
femininas ainda não foram suficientemente
abrangentes a ponto de liberar a mulher de
certos estereótipos. Pryscila Vieira desvela o
cenário atual da sociedade em relação às
mulheres. As imagens que emergem nos
cartuns de Vieira apontam para o cotidiano, a
experiência das mulheres e suas crises
existenciais. A contestação toma a forma da
boneca inflável que pensa, tem vida e sente.
Nesse sentido Amely é a materialização da
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014
76
TEIXEIRA
“mulher de verdade" enquanto Amélia é a
projeção do desejo masculino.
http://ladyscomics.com.br/entrevista-pryscilavieira.
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http://pryscilafreeakomics.blogspot.com.br/.
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VIEIRA, P. Entrevista Lady´s Comics.
Disponível
em:
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 69-76, 2014
DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY:
MATERIALIDADES DA PINTURA E DEFORMAÇÕES CORPORAIS
Renan Mazzola
Universidade Estadual Paulista
Resumo: Este artigo a) explicita o diálogo existente entre Michel Foucault e Erwin
Panofsky; b) analisa aspectos estéticos das deformidades corporais na arte. A teoria
da arte que subjaz às análises foucaultianas das materialidades pictóricas ancora-se
nos estudos de Panofsky. Esse diálogo evidencia-se na fase de “interpretação
iconológica”, em que a sintomatologia cultural encontra lugar de destaque. Essa
sintomatologia é buscada nas análises que realizamos de três obras de arte
europeias: As três graças, de P. P. Rubens; O nascimento de Vênus, de S.
Botticelli; e Tétis implorando a Júpiter, de J. A. D. Ingres.
Palavras-chave: Michel Foucault, Erwin Panofsky, discurso, pintura. corpo.
Résumé: Dialogues entre foucault et panofsky: matérialités de la peinture et
difformités corporelles. Cet article a) précise le dialogue existant entre Michel
Foucault et Erwin Panofsky; b) analyse les aspects esthétiques de difformités
corporelles dans l'art. La théorie de l'art qui sous-tend l'analyse foucaldienne de la
matérialité picturale est fondée sur des études de Panofsky. Ce dialogue est évident
dans la phase d '«interprétation iconologique», dans laquelle la symptomatologie
culturelle trouve sa place de premier plan. Cette symptomatologie est recherchée
dans les analyses que nous effectuons sur trois œuvres de l'art européen: Les trois
grâces, de P. P. Rubens; La naissance de Vénus, de S. Botticelli; et Thétis
implorant Jupiter, de J. A. D. Ingres.
Mots-clés: Michel Foucault, Erwin Panofsky, discours, peinture, corps.
Introdução
Entre Foucault (2000) e Panofsky (2009),
alguns diálogos foram traçados com relação à
materialidade plástica dos enunciados. A
partir deles, intencionamos analisar alguns
aspectos estéticos das deformidades corporais
na arte. Trata-se de visualizar, a partir das
categorias e metodologia propostas por
Panofsky, a dimensão discursiva de uma
imagem clássica. Para isso, esta investigação
divide-se em duas partes: a) Foucault leitor de
REDISCO
Panofsky, em que se busca no texto As
palavras e as imagens, de Foucault (2000) as
referências aos ensaios presentes em
Significado nas artes visuais, de Panofsky
(2009), explicitando-se o método proposto
por este último; b) A deformidade e o belo,
em que se realizam análises de deformidades
corporais presentes nas artes plásticas como
requisito para a conquista do efeito de
harmonia, movimento e belo.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
78
MAZZOLA
Foucault leitor de Panofsky
As palavras e as imagens1, de Foucault
(2000), faz referência direta a alguns ensaios2
de Panofsky (2009). Foucault propõe-se a
dizer o que encontrou de novo nesses textos,
debruçando-se sobre dois exemplos: a análise
das relações entre o discurso e o visível, e a
análise da função representativa da pintura
nos Essais d’iconologie. O primeiro exemplo
remete à fecunda polêmica entre palavra vs.
imagem, materialidades distintas com
complexos laços de sentido. Por outro lado, a
relação discurso vs. imagem é de outra
natureza, uma vez que “discurso” remete a
múltiplas definições teóricas, a depender do
mirante do qual se está partindo. Cremos que
ao falar de discurso, Foucault remete ao seu
próprio posicionamento arqueológico. Esse
texto sobre Panofsky é de 1967, momento em
que Foucault está inserido nas reflexões que
tomarão forma em A arqueologia do saber, de
1969. Este momento foi também o auge do
estruturalismo francês, que colocava em
evidência a disciplina linguística:
Estamos convencidos, sabemos que tudo
fala em uma cultura: as estruturas da
linguagem dão forma à ordem das coisas.
[...] analisar um capitel, uma iluminura era
manifestar o que “isso queria dizer”:
restaurar o discurso lá onde, para falar mais
diretamente, ele estava despojado de suas
palavras. (FOUCAULT, 2000, p.78-79,
grifo do autor).
O interesse de Foucault no historiador da
arte reside no fato de Panofsky elevar o
privilégio do discurso, “não para reivindicar a
autonomia do universo plástico, mas para
1
“Les mots et les images”. Le nouvel observateur, n.
154, 25 out. 1967, p. 49-50.
2
O livro Significado nas artes visuais é uma coleção de
ensaios
de
Panofsky.
Fazemos
referência
especificamente à Introdução e ao primeiro capítulo
desse livro, pois neles se encontra a metodologia
desenvolvida por Panofsky, tema das reflexões de
Foucault. A Introdução foi publicada com o mesmo
título em The meaning of the Humanities, T. M. Greene
(Ed.), Princeton, Princeton University Press, 1940,
p.89-118. O primeiro capítulo foi publicado como
“Introductory” em Studies in Iconology: Humanistic
Themes in the Art of the Renaissance, Nova York,
Oxford University Press, 1939, p.3-31.
REDISCO
descrever a complexidade de suas relações:
entrecruzamento,
isomorfismo,
transformação, tradução, em suma, toda essa
franja do visível e do dizível que caracteriza
uma cultura em um momento de sua história.”
(FOUCAULT, 2000, p.79, grifo do autor).
As relações entre palavra e imagem3 nas
artes são exploradas da seguinte forma:
enquanto uma mesma fonte literária pode
originar diversos motivos plásticos (a
Mitologia nos fala do rapto de Europa e as
artes plásticas podem representá-lo de forma
violenta ou não; ou então a Bíblia nos fala de
Cristo e as artes plásticas lhe atribuem uma
certa aparência, etc.), um mesmo motivo
plástico pode simbolizar diferentes valores e
temas (a mulher nua que é Vício na Idade
Média e Amor na Renascença). Para Foucault
(2000 p.79), “o discurso e a forma se
movimentam um em direção ao outro.”
Podemos dizer portanto que a pintura e a
literatura, em momentos determinados da
história da arte, são caracterizadas por um
movimento de atração e repulsão, regido
segundo complexas relações. Eles não se
tornam,
por
isso,
nem
totalmente
independentes, nem totalmente dependentes.
Nessa
fusão,
eles
mantêm
suas
individualidades. Tampouco a arte, enquanto
forma, esconde um dizer: “Naquilo que os
homens fazem, tudo não é, afinal de contas,
um ruído decifrável. O discurso e a figura
têm, cada um, seu modo de ser, mas eles
mantêm entre si relações complexas e
embaralhadas. É seu funcionamento recíproco
que se trata de descrever.” (FOUCAULT,
2000, p.80).
Em um segundo momento de As palavras e
as imagens, Foucault remete ao paradigma da
representação4 que dominou a pintura
ocidental até o final do século XIX. A partir
de Gombrich (2001, p.570, trad. nossa)
podemos compreender esse paradigma
3
Remetemos aos estudos de Bazin (1989, p.189): “a
decifração de uma imagem só pode ser feita com a
ajuda de textos literários que a esclareçam.” Ele referese aos textos clássicos gregos e romanos, míticos e
religiosos, dos quais se parte para a representação de
certos motivos, tipos, figuras, etc.
4
Não ignoramos as reflexões do próprio Foucault sobre
a epistémé da representação presentes em As palavras e
as coisas.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY
segundo graus de figuratividade: “Nós
fizemos notar frequentemente que o termo
‘abstrato’ não é muito feliz, e propusemos
substituí-lo por ‘não-figurativo’.”5 As pinturas
abstratas, por exemplo, são não-figurativas,
isto é, não mantêm necessariamente uma
relação com objetos, homens, animais, coisas
ou deuses tal como foram representados em
escolas anteriores. Alguns nomes do
paradigma não-figurativo são Wassily
Kandinsky (1866-1944) e Piet Mondrian
(1872-1944).
Para Foucault, quatro regras manipulam a
representação presente em um quadro do
século XVI: a) o estilo; b) a convenção; c) a
tipologia; d) a sintomatologia. Da articulação
desses quatro elementos, emerge uma obra de
arte. “A representação não é exterior nem
indiferente à forma. Ela está ligada a esta por
um funcionamento que
pode ser descrito
[...]” (FOUCAULT, 2000, p.80).
As relações entre discurso vs. imagem,
sobretudo quando se trata de abordar a
materialidade visual segundo suas próprias
combinações, envolvem muitos riscos
teóricos. Foucault (2000, p.80) afirma: “Ora,
colocam-se múltiplos problemas – e bastante
difíceis de resolver
quando se deseja
ultrapassar os limites da língua.” A partir de
Panofsky
(2009),
compreenderemos
minimamente as formas de classificação dos
elementos visuais de uma pintura, que foram
retomadas por Foucault (2000) no tratamento
da dimensão discursiva das imagens. A
princípio, temos que o campo da história da
arte compõe o campo das ciências do homem.
A história da arte é uma disciplina
humanística: “Historicamente, a palavra
humanitas tem dois significados claramente
distinguíveis, o primeiro oriundo do contraste
entre o homem e o que é menos que este; o
segundo, entre o homem e o que é mais que
ele. No primeiro caso, humanitas significa um
valor, no segundo, uma limitação.”
(PANOFSKY, 2009, p.20). No primeiro caso,
o conceito de “humanidade” remete à
qualidade que distingue o homem dos
animais; no segundo caso, particularmente na
5
On a souvent fait remarquer que le terme « abstrait »
n'est pas très heureux et on a proposé d'y substituer
« non-figuratif ».
REDISCO
79
Idade Média, remete a algo oposto a
“divindade”.
Dessa
concepção
ambivalente
de
humanitas nasceu o humanismo. Do prisma
humanístico, é inevitável distinguir, dentro do
campo da criação, as esferas da natureza e da
cultura, “e definir a primeira com referência à
última, isto é, natureza como a totalidade do
mundo acessível aos sentidos, excetuando-se
os registros deixados pelo homem.”
(PANOFSKY, 2009, p.23, grifo do autor). O
humanista, portanto, estudará esses registros,
porque eles têm a qualidade de emergir da
corrente do tempo. A história da arte nasce
dessa necessidade de interpretação dos
registros, vestígios simbólicos que auxiliam
na compreensão do próprio homem.
Essencialmente, as humanidades e a
ciência6 estão em uma relação de
complementaridade, e não de oposição.
Segundo Panofsky (2009, p.24-25), “enquanto
a ciência tenta transformar a caótica variedade
dos fenômenos naturais no que se poderia
chamar de cosmo da natureza, as
humanidades tentam transformar a caótica
variedade dos registros humanos no que se
poderia chamar de cosmo da cultura.”
O historiador da arte é um humanista cujo
material primário consiste nos registros que
lhe chegam sob a forma de obra de arte. Para
Panofsky (2009, p.30), “nem sempre a obra
de arte é criada como propósito exclusivo de
ser apreciada, ou, para usar uma expressão
mais
acadêmica,
ser
experimentada
esteticamente.”
Para
experimentar
esteticamente todo objeto (seja ele natural ou
feito pelo homem) é preciso não relacioná-lo,
intelectual ou emocionalmente, com nada fora
do objeto mesmo. A maioria dos objetos que
exigem experiência estética são obras de arte.
Alguns deles, mesmo concebidos sem o
propósito de apreciação, exigem ser
6
Panofsky (2009, p.24) contrapõe os papéis de
humanista e cientista, na medida em que “o cientista
trabalha com registros humanos, sobretudo com as
obras de seus predecessores. Mas, ele os trata não
como algo a ser investigado e sim como algo que o
ajuda na investigação. Noutras palavras, interessa-se
pelos registros, não à medida que emergem da corrente
do tempo, mas à medida que são absorvidos por ela.”
Para Panofsky (2009), a “ciência” representa as
ciências exatas e biológicas – “naturais” –; enquanto as
humanidades tratam a “cultura”.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
80
MAZZOLA
apreciados. A obra de arte, sob certa
perspectiva de abordagem – seja ela literatura,
pintura, escultura, arquitetura, música –
desdobra-se em forma e conteúdo. Essas duas
dimensões, no entanto, são apreendidos
simultaneamente no momento da apreciação
(experimentação estética). Como decodificar,
portanto, a forma7 de uma obra de arte? Como
separar a simultaneidade de elementos visuais
que, em seu conjunto, significam em uma
imagem? Panofsky (2009, p.36) elenca três
componentes:
Quem quer que se defronte com uma obra
de arte, seja recriando-a esteticamente, seja
investigando-a racionalmente, é afetado por
seus
três
componentes:
forma
materializada, ideia (ou seja, tema, nas artes
plásticas) e conteúdo. [...] Na experiência
estética realiza-se a unidade desses três
elementos, e todos três entram no que
chamamos de gozo estético da arte.
A forma, o tema e o conteúdo, em
conjunto, contribuem para a significação da
arte visual. Um dos elementos da forma, e
talvez o principal deles, é o traço, que
transforma o caos das formas no cosmos
perceptível, reconhecível e interpretável.
Talvez o traço seja uma das categorias
primárias fundantes para as artes visuais.
Ao distinguir entre o uso da linha como
“contorno” e, para citar Balzac, o uso da
linha como “le moyen par lequel l'homme
se rend compte de l'effet de la lumière sur
les objets”, referimo-nos ao mesmo
problema, embora dando ênfase especial a
um outro: “linha versus áreas de cor”. Se
refletirmos sobre o assunto, veremos que há
um número limitado desses problemas […]
[que] pode em última análise derivar de
uma antítese básica: diferenciação versus
continuidade. (PANOFSKY, 2009, p.41).
7
“[...] o elemento ‘forma’ está presente em todo objeto
sem exceção [...]. Se escrevo a um amigo, convidandoo para jantar, minha carta é, em primeiro lugar, uma
comunicação. Porém, quanto mais eu deslocar a ênfase
para a forma do meu escrito, tanto mais ele se tornará
uma obra de caligrafia; e quanto mais eu enfatizar a
forma de minha linguagem [...] mais a carta se
converterá em uma obra de literatura ou poesia.”
(PANOFSKY, 2009, p.32).
REDISCO
Diferenciação, de um lado, porque coloca
em contraste o claro do escuro, o liso e o
marcado, o exterior e o interior. Continuidade,
de outro, porque as formas têm uma extensão
limitada pelo traço – o cosmos das formas.
Fundamentalmente,
essas
reflexões
demonstram como o historiador de arte
posiciona-se frente aos objetos artísticos e de
que forma ele os caracteriza, descreve,
diagnostica, interpreta. Assim, ele descreve o
objeto de sua experiência recriativa e
reconstrói as intenções artísticas em termos
que
subentendam
conceitos
teóricos
genéricos. É nesse movimento que a história
da arte e a teoria da arte se complementam.
Para Panofsky (2009), há três fases de
apreensão da arte visual, segundo as quais
podemos visualizar um método:
i. descrição pré-iconográfica;
ii. análise iconográfica;
iii. interpretação iconológica.
Para compreendermos essas três fases, é
preciso distinguir iconografia e iconologia.
Segundo Panofsky (2009, p.47), “Iconografia
é o ramo da história da arte que trata do tema
ou mensagem [temas secundários ou
convencionais] das obras de arte em
contraposição à sua forma [temas primários
ou naturais].” Esses temas ou mensagens
possuem três níveis:
I. Tema primário ou natural, subdividido
em formal ou expressional. É apreendido
pela identificação das formas puras, ou
seja: certas configurações de linha e cor,
ou determinados pedaços de bronze ou
pedra de forma peculiar, como
representativos de objetos naturais tais
que seres humanos, animais, plantas,
casas, ferramentas e assim por diante; pela
identificação de suas relações mútuas
como acontecimentos; e pela percepção
de algumas qualidades expressionais,
como o caráter pesaroso de uma pose ou
gesto, ou a atmosfera caseira e pacífica de
um interior. O mundo das formas puras
assim reconhecidas como portadoras de
significados primários ou naturais pode
ser chamado de mundo dos motivos
artísticos. Uma enumeração desses
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY
81
motivos constituiria uma descrição préiconográfica de uma obra de arte.
bronze, ou o uso peculiar das sombras em
seus desenhos, são sintomáticos de uma
mesma atitude básica que é discernível em
todas as outras qualidades específicas de
seu estilo (PANOFSKY, 2009, p.50-52).
II. Tema secundário ou convencional: é
apreendido pela percepção de que uma
figura masculina com uma faca representa
São Bartolomeu, que uma figura feminina
com um pêssego na mão é a
personificação da veracidade, que um
grupo de figuras, sentadas a uma mesa de
jantar numa certa disposição e pose,
representa a Última Ceia, ou que duas
figuras combatendo entre si, numa dada
posição, representam a Luta entre o Vício
e a Virtude. Assim fazendo, ligamos os
motivos artísticos e as combinações de
motivos artísticos (composições) com
assuntos
e
conceitos.
Motivos
reconhecidos como portadores de um
significado secundário ou convencional
podem chamar-se imagens, sendo que
combinações de imagens são o que os
antigos teóricos de arte chamavam de
invenzioni; nós costumamos dar-lhes o
nome de estórias e alegorias. A
identificação de tais imagens, estórias e
alegorias é o domínio daquilo que é
normalmente
conhecido
por
“iconografia”.8
III. Significado intrínseco ou conteúdo: é
apreendido pela determinação daqueles
princípios subjacentes que revelam a
atitude básica de uma nação, de um
período, classe social, crença religiosa ou
filosófica – qualificados por uma
personalidade e condensados numa obra.
Uma interpretação realmente exaustiva do
significado intrínseco ou conteúdo poderia
até nos mostrar técnicas características de
um certo país, período ou artista, por
exemplo, a preferência de Michelangelo
pela escultura em pedra, em vez de em
8
“De fato, ao falarmos do “tema em oposição à
forma”, referimo-nos, principalmente, à esfera dos
temas secundários ou convencionais, ou seja, ao mundo
dos assuntos específicos ou conceitos manifestados em
imagens, estórias e alegorias, em oposição ao campo
dos temas primários ou naturais manifestados nos
motivos artísticos. ‘Análise formal’, segundo Wölfflin,
é uma análise dos motivos e combinações de motivos
(composições), pois, no sentido exato da palavra, uma
análise formal deveria evitar expressões como
‘homem’, ‘cavalo’ ou ‘coluna’ [...]. É obvio que uma
análise
iconográfica
correta
pressupõe
uma
identificação exata dos motivos.” (PANOFSKY, 2009,
p.51).
REDISCO
Some-se a isso a seguinte afirmação:
Enquanto nos limitarmos a afirmar que o
famoso afresco de Leonardo da Vinci
mostra um grupo de treze homens em volta
a uma mesa de jantar e que esse grupo de
homens representa a Última Ceia, tratamos
a obra de arte como tal e interpretamos suas
características
composicionais
e
iconográficas como qualificações e
propriedades a ela inerentes. Mas, quando
tentamos
compreendê-la
como
um
documento da personalidade de Leonardo,
ou da civilização da Alta Renascença
italiana, ou de uma atitude religiosa
particular, tratamos a obra de arte como um
sintoma de algo mais que se expressa numa
variedade incontável de outros sintomas e
interpretamos
suas
características
composicionais e iconográficas como
evidência mais particularizada desse “algo
mais”. A descoberta e interpretação desses
valores “simbólicos” (que, muitas vezes,
são desconhecidos pelo próprio artista e
podem, até, diferir enfaticamente do que ele
conscientemente tentou expressar) é o
objeto do que se poderia designar por
“iconologia” em oposição a “iconografia”.
(PANOFSKY, 2009, p.52-53).
A fase (iii), de interpretação iconológica,
requer o elemento histórico para que possa se
realizar. É nesse momento (da apreensão da
obra de arte) que cremos ser possível traçar
um diálogo com a análise do discurso através
do componente histórico que rege a
sintomatologia9 representada no conjunto de
obras de arte e das práticas discursivas de um
mesmo período. É na fase da interpretação
iconológica que o historiador de arte vai além
dos limites da moldura do quadro para
compreendê-lo, buscando as condições de
produção das pinturas, os fatores sóciohistóricos que possibilitaram a existência de
tal obra, os sujeitos envolvidos, etc.
Portanto, a fase em que podemos
estabelecer um diálogo entre a teoria da arte e
9
Cf. Foucault (2000, p.80).
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
82
MAZZOLA
a teoria discursiva é a da interpretação
iconológica, sem claro ignorar a contribuição
das fases anteriores, quais sejam, da descrição
pré-iconográfica e da análise iconográfica.
O sufixo “grafia” vem do verbo grego
graphein, “escrever”; implica um método
de proceder puramente descritivo, ou até
mesmo estatístico. A iconografia é,
portanto, a descrição e classificação das
imagens, assim como a etnografia é a
descrição e classificação das raças
humanas. [...] Assim, concebo a iconologia
como uma iconografia que se torna
interpretativa e, desse modo, converte-se
em parte integral do estudo da arte, em vez
de ficar limitada ao papel do exame
estatístico preliminar. [...] Iconologia,
portanto, é um método que advém da
síntese mais que da análise. (PANOFSKY,
2009, p.53-54).
A interpretação iconológica permite
observar os discursos que atravessam os
quadros, isto é, permite considerar o
significado da obra segundo seu exterior
constitutivo. Na análise iconográfica, embora
por vezes é suficiente o conhecimento dos
temas e conceitos específicos através de
fontes literárias, método referido por Bazin
(1989), isso não garante sua exatidão. “Para
captar esses princípios, necessitamos de uma
faculdade mental comparável à de um clínico
nos seus diagnósticos [...]” (PANOFSKY,
2009, p.62, grifo nosso).
Podemos lançar mão ainda de três
estratégias para a compreensão de uma obra
de arte sem incorrermos ao erro provocado
por uma descrição pré-iconográfica dos
motivos baseada somente em nossa
experiência prática, ou então, pela análise
iconográfica das imagens, estórias e alegorias
baseada em fontes literárias. São elas,
segundo Panofsky (2009):
i. história dos estilos: busca
compreender como, sob diferentes
condições históricas, objetos e fatos
foram expressos pelas formas;
ii. história dos tipos: busca
compreender como, sob diferentes
condições históricas, temas específicos
REDISCO
e conceitos foram expressos por
objetos e fatos;
iii. história dos sintomas culturais:
busca compreender como, sob
diferentes condições históricas, as
tendências gerais e essenciais da
mente humana foram expressas por
temas específicos e conceitos.
A terceira fase de apreensão da obra de
arte, a interpretação iconológica, ocupa-se do
terceiro nível dos temas ou mensagens
descrito por nós anteriormente: o significado
intrínseco ou conteúdo. O diálogo que
esboçamos entre a história da arte e da análise
do discurso, por meio do componente
histórico, não se deu aleatoriamente: para
Panofsky (2009, p.63), “É na pesquisa de
significados intrínsecos ou conteúdo que as
diversas
disciplinas
humanísticas
se
encontram num plano comum, em vez de
servirem apenas de criadas umas das outras.”
A seguir, um breve exercício de análise, a
partir da pintura barroca10 de Rubens (15771640):
Fig. 1 - P. P. Rubens. As três graças. Cerca de 1635.
Óleo sobre tela, 220,5 x 182cm. Madri, Museu do
Prado. Fonte: http://www.museodelprado.es
10
Lembramos que, na pintura, o barroco (final do séc.
XVI a meados do séc. XVIII) e o Renascimento (séc.
XIV a XVI) compartilham o interesse pela Antiguidade
Clássica; mas o barroco marca-se, principalmente, pelo
esplendor exuberante.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY
i. Descrição pré-iconográfica: refere-se à
enumeração dos motivos (formas puras
reconhecidas como portadoras de significado
primário
ou
natural).
No
quadro,
reconhecemos (percebemos, a partir de traços,
cores, volumes) três figuras femininas nuas
em movimento de dança: duas das graças
olham numa direção e a terceira, na direção
oposta. Elas estão envolvidas por um véu, e
suas expressões são de alegria. Da mesma
forma, reconhecemos elementos da natureza
ao redor delas, como uma árvore que lhes
serve de moldura à esquerda, uma guirlanda
de flores ao alto, e uma paisagem pitoresca ao
fundo, com cabras pastando. Há ainda uma
fonte, à direita, onde observamos a escultura
de um menino que segura uma cornucópia da
qual jorra a água. Disto se constitui a
descrição pré-iconográfica: a) identificação de
formas puras e b) percepção de algumas
qualidades expressionais.
ii. Análise iconográfica: refere-se à
ligação de motivos ou combinações de
motivos (composições) com assuntos e
conceitos. É o que chamamos de “imagens”; e
as combinações dessas imagens chamam-se
de “estórias” e “alegorias”. Assim, os três
motivos femininos juntos em movimento de
dança configuram a imagem das Três Graças,
deusas gregas da dança e do movimento
(Aglaia, Tália e Eufrosina), filhas de Zeus
com Eurínome; são seguidoras de Afrodite e
dançarinas do Olimpo, cabia a elas enfeitarem
Afrodite (Vênus) quando esta saía para
seduzir11. Inicialmente, elas presidiam todos
os prazeres humanos, e foram assim retratadas
por Rafael, em sua versão do quadro.
Posteriormente, passaram a representar a
conversação e os trabalhos do espírito, e dessa
maneira foram retratadas por Rubens. A
fonte, à direita do quadro, em conjunto com a
cornucópia segurada pelo querubim, é, na
mitologia grega, um símbolo de abundância e
nutrição. Este nível de apreensão artística
pressupõe muito mais familiaridade com
objetos e fatos. Pressupõe a familiaridade com
83
temas específicos ou conceitos, tal como são
transmitidos através das fontes literárias, quer
obtidos por leitura deliberada ou tradição oral.
O sentido, nesse caso, é convencional.
iii. Interpretação iconológica: trata-se de
observar o significado intrínseco ou conteúdo
de uma obra; de tratá-la como um sintoma da
sociedade, segundo Foucault (2000). Neste
nível, é mais explícita a apreensão das
atitudes básicas de uma nação, de um período,
de uma classe social, de crenças religiosas ou
filosóficas, etc. Por exemplo, compreendemos
o estatuto privilegiado que possuíam as
pinturas cujos temas eram as narrativas
mitológicas nesse contexto do barroco
europeu, em geral, e flamengo, em particular.
Podemos identificar também um certo padrão
de beleza feminina do século XVII, sem
desconsiderar
a
questão
do
estilo
(WÖLFFLIN, 1989, p.2-3), encarnado pelas
Três Graças; as formas rechonchudas
representavam um padrão de elegância
daquele momento histórico.
A deformidade e o belo
Algo parece chamar atenção quando nos
detemos por um instante na pintura de Rubens
(fig. 1) e observamos a Graça que se encontra
de costas para nós, espectadores. O dorso
dessa figura central, mais especificamente sua
coluna, parece adotar uma curvatura artificial,
embora o conjunto desse motivo (As Três
Graças) reflita naturalidade e harmonia do
movimento. Seria essa posição corporal
impossível de ser atingida?
Aventamos essa hipótese com base em
relatos bastante conhecidos sobre o sacrifício
de um certo realismo anatômico – isto é, da
exata correspondência do corpo retratado e do
corpo real – em função da conquista de
determinados efeitos estéticos.
11
O heleno Hesíodo catalogou as três filhas de Zeus
com Eurínome em sua Teogonia. (Cf. Matyszak, 2010,
p.115).
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
84
MAZZOLA
Fig. 2 - P. P. Rubens. As três graças.
Detalhe. Cerca de 1635. Óleo sobre tela.
220,5 x 182cm Madri, Museu do Prado.
Fonte: http://www.museodelprado.es
No caso da pintura de Rubens, um certo
exagero na curvatura da coluna de uma das
Graças (fig. 2) contribui/resulta em um efeito
estético de movimento harmônico. Bulfinch
(2006) enumera que as Graças eram deusas da
dança, do banquete, de todas as diversões
sociais e das belas-artes. Entre essas práticas,
Rubens evidencia em sua tela a habilidade da
dança. A harmonia do movimento é o efeito
estético almejado.
Gombrich (2001, p.264) assim
descreve a harmonia conseguida em O
nascimento de Vênus, a despeito de algumas
estranhezas anatômicas (fig. 3) da deusa
grega:
Sua pintura apresenta uma harmonia
perfeita. É verdade que Botticelli sacrificou
uma parte dos elementos essenciais aos
olhos de seu predecessor: suas figuras não
possuem a mesma solidez e não são
desenhadas tão corretamente como aquelas
de Pollaiuolo ou de Masaccio. [...] A Vênus
de Botticelli é tão bela que nós percebemos
com dificuldade o estranho comprimento de
seu pescoço, seus ombros caídos e a falta de
jeito com que seu braço esquerdo se prende
ao corpo.12
Fig. 3 - Botticelli. O nascimento de
Vênus. Detalhe. Cerca de 1485. Têmpera
sobre tela. 172,5 x 278,5cm. Florença,
Galleria degli Uffizi. Fonte: Gombrich
(2001, p.265)
Essas liberdades de Botticelli (1446-1510)
com
relação
à
anatomia
feminina
acrescentam, segundo Gombrich (2001,
p.264) beleza e harmonia à composição,
“porque elas contribuem a nos dar a
impressão de uma criatura infinitamente terna
e delicada vagando em direção à nossa costa
como um dom dos deuses.”13 Se Botticelli
optasse por uma maior fidelidade anatômica
na representação de sua Vênus, talvez o efeito
de delicadeza e ternura não fosse atingido –
12
Fig. 4 - J. A. D. Ingres. Tétis
implorando a Júpiter. Detalhe. 1811.
Óleo sobre tela. 327 x 260cm. Aix-enProvence, Musée Granet.
Fonte: Bulfinch (2006, p.211)
REDISCO
Sa peinture présente une harmonie parfaite. Il est
vrai que Botticelli a sacrifié une partie des éléments
essentiels aux yeux de son prédécesseur : ses figures
n'ont pas la même solidité et elles ne sont pas dessinées
aussi correctement que celles de Pollaiuolo ou de
Masaccio. […] La Vénus de Botticelli est si belle que
nous remarquons à peine l'étrange longueur de son
cou, ses épaules tombantes et la maladresse avec
laquelle son bras gauche s'attache à son corps.
13
[...] parce qu'elles contribuent à nous donner
l'impression d'une créature infiniment tendre et
délicate voguant vers nos rivages comme un don des
dieux.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
DIÁLOGOS ENTRE FOUCAULT E PANOFSKY
pelo menos não da forma como entrou para
um cânone e para uma memória.
J. A. D. Ingres (1780-1867), de igual
maneira, foi alvo frequente de críticas sobre
as estranhezas anatômicas encontradas em
suas obras. Vale lembrar que ele manteve-se
conservador em um contexto em que se
forjava pouco a pouco uma nova concepção
para as artes. A França viu nascer, no século
XIX, uma grande revolução pictural, que os
historiadores da arte costumam dividir em três
fases (cf. GOMBRICH, 2001, p.512): a)
Romantismo, representado por E. Delacroix
(1798-1863); b) Realismo, representado por
G. Courbet (1819-1877); c) Impressionismo,
determinado por E. Manet (1832-1883).
Nesse contexto, J. A. D. Ingres prezava pela
“precisão absoluta no estudo do modelo vivo,
e desprezava o improviso e a desordem.”
(GOMBRICH, 2001, p.504). Foi, por isso,
muito criticado por seus contemporâneos que
consideravam insuportável sua perfection
glacée.
Selecionamos, então, um detalhe da obra
Tétis implorando a Júpiter, de Ingres (fig. 4),
em que se evidencia a estranheza do pescoço
de Tétis. A pintura ilustra uma cena da Ilíada,
de Homero, em que Tétis implora para Júpiter
intervir na guerra de Tróia, poupando a vida
de seu filho, Aquiles. “Tétis dirigiu-se
imediatamente ao palácio de Jove [Júpiter], a
quem pediu que fizesse os gregos se
arrependerem da injustiça praticada contra seu
filho, concedendo o sucesso às armas
troianas.” (BULFINCH, 2006, p.211). Essa
pintura foi escolhida por Ingres para ser
enviada ao Salão de Paris.
O tema de Tétis implorando a Júpiter [...]
foi julgado impróprio para um grande
quadro de história. Quanto ao tratamento –
linearismo
exagerado,
deformações
anatômicas intoleráveis, desprezo total da
perspectiva –, ele só podia alienar ainda
mais
os
juízes
acadêmicos.
A
independência,
para
não
dizer
excentricidade, de Ingres é concentrada na
figura feminina: o pescoço estranhamente
estendido de Tétis, achatamento da figura
de modo que pernas direita e esquerda se
confundam, tudo contribui para fazer dele
um corpo abstrato, distante, estranho e ao
REDISCO
85
mesmo tempo estranhamente sensual.14
(ZERNER, 2005, p.98).
Essa pintura não foi bem recebida no
Salão. A forma como Ingres representou o
pescoço da divindade grega constitui uma
estranheza anatômica. No entanto, bem como
os braços de Vênus contribuem para o efeito
de ternura e delicadeza, o pescoço de Tétis,
para Zerner (2005, p.98) contribui para o
efeito de desejo: “É, em uma palavra, a
própria inscrição do desejo”15. Uma posição
exagerada do pescoço, é certo, mas é a forma
que Ingres encontrou para representar um
pedido. As consequências da decisão de
Júpiter recairiam diretamente sobre Aquiles.
O que chamamos aqui de “estranheza” ou
“deformidade” anatômica do enunciado visual
é, na verdade, requisito para os efeitos de
sentido que a obra veicula. Esses detalhes são
cuidadosamente planejados pelos grandes
artistas a fim de atingir o efeito almejado.
Palavras finais
A partir do diálogo entre Foucault e
Panofsky, demonstramos uma via de análise
para enunciados visuais no campo das artes
plásticas. Particularmente, destacamos um
ponto de contato entre a análise iconográfica
(Panofsky) e a análise discursiva (Foucault)
que emerge da dimensão histórica das artes.
Essa dimensão histórica é responsável por
reger as práticas discursivas de uma época,
que podem ser apreendidas em análises
iconológicas.
Com
Foucault
(2000),
ressaltamos que o enunciado visual engloba
14
le sujet de Jupiter et Thétis [...] fut jugé tout à fait
impropre pour un grand tableau d'histoire. Quant au
traitement – linéarisme outré, déformations
anatomiques intolérables, mépris total de la
perspective –, il ne pouvait qu'aliéner plus encore les
juges académiques. L’indépendance, pour ne pas dire
l'excentricité, d'Ingres est concentrée dans la figure
féminine ; le cou bizarrement développé (goitre, a-t-on
dit) de Thétis, l'aplatissement de la figure de sorte que
jambe droite et gauche se confondent, tout concourt à
en faire un corps abstrait, distant, étrange et en même
temps étrangement sensuel.
15
C'est, en un mot, l'inscription même du désir.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
86
uma sintomatologia cultural indispensável aos
olhos do analista de discursos.
As estranhezas anatômicas encontradas
nas pinturas europeias analisadas demonstram
que não é preciso haver uma correspondência
fiel entre o corpo real e o corpo representado,
desde que eles funcionem segundo os efeitos
estéticos almejados pelos artistas. P. P.
Rubens, S. Botticelli e J. A. D. Ingres, por
meio de técnicas e práticas, souberam todos,
em sacrifício da anatomia, fazer emergir o
movimento, a ternura e o desejo.
MAZZOLA
Recebido em: 19 de setembro de 2013
Aceito em: 24 de novembro de 2013.
Referências
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Martins Fontes, 1989.
ZERNER, H. Le regard des artistes. In :
CORBIN, A. (Dir.). Histoire du corps: 2. de
la Révolution à la Grande Guerre. Paris :
Éditions du Seuil, 2005. p.87-120.
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 77-86, 2014
SER DIFERENTE É NORMAL: GLEE E A PRODUÇÃO DE IDENTIDADES
PARA AS MINORIAS SOCIAS
Maria do Rosário Gregolin
Thiago Ferreira da Silva
Universidade Estadual Paulista
Resumo: Neste artigo, partindo da análise de um episódio do seriado Glee,
buscamos demonstrar que na cultura do espetáculo, da mídia e do politicamente
correto em que vivemos contemporaneamente, os veículos midiáticos funcionam
como produtores de efeitos de identidade, construindo grupos imaginários de
pertencimento de que os indivíduos são “convidados” a participar. Partindo do
pensamento de Michel Foucault a respeito do discurso e da produção de
subjetividades, discutimos alguns modos pelos quais, nos discursos produzidos e
veiculados pelo seriado Glee, são produzidas identidades para as chamadas
minorias sociais.
Palavras-chave: Identidade; Minorias; Seriado; Mídia; Análise do Discurso.
Résumé: Être different est normal: Glee et la production d’identités pour les
minorités sociales. Dans ce travail, nous analysons un episode de la série télévisée
Glee pour démontrer que dans la culture du spectacle, des médias et du
politiquement correct contemporaine, les véhicules des médias travaillent comme
des producteurs d’effets d’identité et forment des groupes imaginaires
d’appartenance qui « invitent » les individus à les joindre. Nous partons de la
pensée de Michel Foucault sur le discours et la production de subjectivités pour
discuter les façons de production d’identités pour les minorités sociales dans les
discours produits et diffusés par la série télévisée Glee.
Mots-clés : Identité ; Minorités ; Série Télévisée ; Médias ; Analyse du Discours.
Introdução
Foucault analisa, na terceira fase de sua
obra (principalmente em sua História da
Sexualidade em 3 volumes), uma sociedade
em que os discursos têm uma função básica
de legitimação, de controle das subjetividades
produzidas, em que, por exemplo, apenas as
sexualidades legitimadas podem e devem ser
exercidas. E como sabemos quais são as
sexualidades “legítimas”? Vários são os
REDISCO
discursos legitimadores: o da medicina,
principalmente; o da psicologia, não
necessariamente associado ao anterior; o
discurso jurídico; o discurso das ciências de
modo geral. Porém, atualmente há outro
discurso que legitima não apenas a
sexualidade,
mas
identidades
ou
subjetividades que podem ser assumidas e
exercidas: a mídia, obviamente, mais do que
veicular os discurso dessas instituições
tradicionais, constrói e faz circular seu
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014
88
GREGOLIN E SILVA
próprio discurso, (re)produzindo os modos de
“ser” legítimos e silenciando os ilegítimos.
Assim sendo, o seriado Glee insere-se
basicamente em uma vontade de verdade do
politicamente correto, sendo constituído como
uma espécie de aclamação das chamadas
minorias
sociais,
funcionando
como
legitimador de subjetividades que, até certo
momento recente, deveriam ser silenciadas,
pois
O que não é regulado para a geração ou por
ela transfigurado não tem eira, nem beira,
nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo
tempo expulso, negado e reduzido ao
silêncio. Não somente não existe, como não
deve existir e à menor manifestação fá-loão desaparecer – sejam atos ou palavras
(FOUCAULT, 2010b, p.10).
Procuraremos então observar, como
movimento analítico no presente artigo, como
no discurso da série Glee são “legitimadas”
diferentes “minorias”, e como outras são
relegadas à exclusão que se dá na ausência de
verbo, no jogo positivo entre poderes e
resistências na produção dos enunciados da
série.
Embora seja importante evitar incorrer em
uma hipercategorização ao adotar, nos aportes
teóricos da AD francesa, o pensamento
metodológico de Michel Foucault, não
podemos deixar de refletir a respeito de uma
categoria que, tanto para Foucault quanto para
Pêcheux e também outros autores que
trabalham com o conceito de discurso, é
considerada a unidade básica do próprio
discurso: o conceito de enunciado.
Para
Foucault,
diferentemente
de
pensamentos como o de Benveniste ou do
próprio Michel Pêcheux, o que caracterizaria
uma sentença, uma proposição ou mesmo
uma imagem enquanto um enunciado é, para
além da enunciação ou de seu contexto de
produção, aquilo que o autor chama de função
enunciativa (FOUCAULT, 2010a, p.99).
Assim, para que seja exercida uma função
enunciativa, Foucault afirma que algumas
condições devem ser preenchidas: essa função
enunciativa deve obedecer a um conjunto de
condições de possibilidade, ou seja, condições
sociais, culturais e históricas que permitiriam
REDISCO
a emergência de um determinado enunciado
em uma determinada sociedade ou contexto
cultural; a função enunciativa pressupõe
também a existência de uma posição sujeito,
ou seja, a posição que um sujeito deve
assumir para que um enunciado seja
efetivamente
enunciado;
é
também
indispensável a existência de um campo
associado, já que, para Foucault, todo e
qualquer enunciado “tem sempre suas
margens povoadas de outros enunciados”
(2010a, p. 110); e por fim, para que se exerça
uma função enunciativa, é necessária uma
materialidade, por meio da qual o enunciado
possa se manifestar concretamente; a
materialidade, ainda segundo Foucault, está
necessariamente ligada a um funcionamento
institucional. Além disso, Foucault afirma que
o ato de descrever um enunciado nada mais é
do que descrever a posição que deve ser
assumida por qualquer indivíduo para que
seja seu sujeito. Assim, Foucault associa a
descrição do enunciado diretamente à
descrição dos sujeitos produzidos no e pelo
enunciado.
Consideramos portanto que o conceito de
enunciado como concebido por Michel
Foucault não é uma categoria de análise
estanque e invariável, mas complexa e com
materializações
diversas,
permitindo
compreender o enunciado em uma dimensão
mais ampla – mesmo semiológica – que
abandona a concepção de enunciado centrada
na materialidade linguística, e que permite
observar a produção de enunciados no seio de
uma determinada sociedade, ligada ao
funcionamento institucional dessa sociedade,
e aos sujeitos que são produzidos e veiculados
em uma determinada cultura, em um dado
momento histórico.
Eu nasci assim: Glee e a exaltação do “ser
diferente”
Realizaremos, neste artigo, uma breve
análise do episódio de Glee denominado Born
this way, 18º episódio da segunda temporada
da série. Buscaremos demonstrar que neste
episódio são produzidos e veiculados efeitos
de sentido que procuram “convencer” o
enunciatário de certas posturas e valores,
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014
SER DIFERENTE É NORMAL
descrevendo os processos enunciativos que
criam efeitos de realidade e de identificação
entre o público-enunciatário da série e os
valores promovidos pelo próprio programa.
O episódio analisado não foi selecionado
ao acaso: trata-se de um episódio bastante
representativo desses valores básicos de
aceitação (e mais do que isso, de exaltação)
do diferente que perpassam toda a série. O
próprio título do episódio, Born this way, já
remete o “leitor” a esses valores. Born this
way é uma música da artista pop
contemporânea Lady Gaga, que prega, em
suas músicas e na construção de sua própria
imagem midiática, a importância e o valor
daqueles que são “diferentes”, as chamadas
minorias (sejam minorias raciais, étnicas,
sociais, de orientação sexual, etc.). Para seus
fãs, Born this way é o próprio hino da
aceitação e exaltação de todo aquele que é
excluído, diferente ou rejeitado por qualquer
que seja o motivo. Assim sendo, em seu título
o episódio já remete a toda essa vontade de
verdade contemporânea do politicamente
correto que é também a postura assumida
pelo seriado Glee.
O episódio é também mais longo do que
praticamente todos os outros episódios de
Glee produzidos até hoje. Os episódios da
série possuem sempre uma média de 43 a 45
minutos, enquanto este episódio em particular
tem quase 58 minutos de duração, cerca de 12
minutos a mais que o padrão da série. Desse
modo, na sua constituição enquanto
enunciado em um determinado discurso, o
episódio já se destaca de todos os outros.
Além disso, no contexto da série, o
episódio é uma espécie de divisor de águas, e
os acontecimentos que nele se dão colocam
“de volta nos eixos” alguns elementos
bastante conflituosos na história narrada pelo
programa e dão novos rumos para outros.
Kurt, o garoto homossexual que foi obrigado
a mudar de escola por sofrer bullying
constante (incluindo uma ameaça de morte)
retorna à escola que é o cenário central da
narrativa com uma nova visão a respeito de si
mesmo e um namorado considerado uma
espécie de príncipe encantado; Rachel, a judia
talentosa e autoconfiante da trama, entra em
conflito com sua imagem e decide fazer uma
cirurgia plástica em seu nariz; e Emma, a
REDISCO
89
conselheira escolar apaixonada por Will,
professor que lidera o clube de coral,
finalmente assume e se propõe a lidar com o
fato de ser portadora de um caso grave de
Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Ao
final do episódio, Kurt está restabelecido em
sua escola original, com seus amigos,
protegido do bullying e de volta ao núcleo da
trama, Rachel, após um esforço coletivo do
clube, decide não mudar seu nariz e Emma
consegue a aprovação de Will por lidar de
forma madura com seus “problemas de
saúde”. Desse modo, o episódio selecionado
torna-se um representante muito significativo
daquilo que é em essência o seriado Glee, e
oferece uma construção bastante interessante
e profícua para a análise que pretendemos
desenvolver.
Com o intuito de evitar uma descrição
exaustiva e pouco útil de tudo que ocorre no
episódio selecionado, optamos, por uma
questão de método e praticidade, por
desenvolver nossa análise focando-nos nas
performances de três músicas – e os
acontecimentos em torno dessas músicas –
que destacam muito claramente essa tentativa
de uma valorização do “ser diferente” dentro
da narrativa: um mash-up das músicas I Feel
Pretty e Unpretty, apresentado por volta dos
12 minutos de episódio; Somewhere Only We
Know, cantada aos 32 minutos; e Born This
Way, música que dá título ao episódio e
também o encerra.
Cremos que este percurso analítico será
bastante importante para observar a resignificação dessas músicas inseridas neste
contexto específico e os efeitos de sentido que
daí resultam. Buscarei demonstrar que ao
reconstruir no interior da série uma música
retirada do cotidiano do espectadorenunciatário,
o
sujeito
enunciador
desencadeia um processo que chamamos de
re-significação dessa música, transformando
também a própria relação entre o enunciatário
e a música-enunciado, o que é fundamental na
construção de uma de uma marca ou franquia
que visa a criar uma relação “afetiva” com seu
consumidor.
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014
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A relação do jovem com sua aparência e a
“ditadura da beleza” – I Feel
Pretty/Unpretty
Se nos permitirmos, por alguns momentos,
observar a narrativa do episódio em questão
em termos de conflitos, podemos observar que
esse se constrói em torno de diversos conflitos
entre aceitação e rejeição, entre a aparência
ditada
pelos
padrões
de
beleza
contemporâneos e a importância da essência
que a estes deveria se opor. Já no início do
episódio, durante um ensaio para preparar os
alunos para o concurso nacional de glee
clubs1, Rachel, a estrela do clube, é
acidentalmente atingida no nariz por Finn, sua
paixão impossível que também é o pior
dançarino do clube. Levada às pressas para
um atendimento médico, Rachel recebe do
doutor a informação de que seu nariz está
quebrado e que esta seria uma ótima
oportunidade para realizar uma “pequena
intervenção de vaidade” para remodelar seu
nariz, considerado grande. A garota se
surpreende e diz que tem medo de modificar
sua respiração e “afetar seu talento”, ao que o
médico replica afirmando que uma correção
de seu desvio de septo poderia inclusive
aprimorar suas habilidades vocais. A partir
daí se desenvolve o primeiro grande conflito
do episódio. Rachel anuncia ao clube de coral
que vai realizar a cirurgia plástica para
diminuir seu nariz, o que desperta uma
discussão a respeito do que cada um no grupo
está insatisfeito em relação a si mesmo e que
gostaria de modificar. Alarmado, Will, o
professor responsável pelo clube, decide
intervir, a fim de demonstrar a importância da
aceitação das particularidades de cada um,
propondo para a semana uma atividade em
que cada aluno deve assumir a característica
pessoal de que mais se envergonha e cantar a
respeito dela, levando os alunos a refletir
sobre a “gravidade” de querer modificar a
própria aparência por meio de cirurgias e
outras técnicas apenas para se encaixar em
determinado padrão de beleza.
1
Um glee clube é uma espécie de grupo de coral
performático, em que as apresentações não se resumem
apenas a cantar músicas, mas abrangem todo um
aparato performático que inclui coreografias, figurino,
interpretações etc.
REDISCO
GREGOLIN E SILVA
É nesse momento que se dá a primeira
performance que destacamos para esta
análise. Rachel decide tomar como modelo
para seu “novo nariz” o nariz de Quinn, a
garota loira-perfeita do clube. Ao mesmo
tempo em que as medidas do nariz de Quinn
são tomadas e aplicadas em uma simulação
fotográfica do rosto de Rachel as duas garotas
apresentam em dueto, em cenas intercaladas
do consultório médico e da sala do glee club,
um mash-up (uma espécie de mistura entre
duas músicas que possuem uma base similar)
das músicas Unpretty, da banda feminina
TLC, que fala justamente da necessidade
imposta de modificar a própria aparência com
maquiagem e procedimentos estéticos a fim
de se inserir num determinado padrão, e I
Feel Pretty, do musical West Side Story,
música que constrói a imagem de uma garota
que se sente bela e perfeita exatamente como
é.
Podemos constatar, nestes momentos
iniciais do episódio, uma construção já
bastante complexa que produz, no discurso,
uma posição-sujeito que contraria os valores
produzidos e veiculados pelo discurso da
série, que está insatisfeita com a sua condição
de “ser diferente”, de estar fora de um
determinado padrão e está disposta a se
submeter àquilo que é considerado, nessa
construção discursiva, uma sujeição aos
mecanismos de poder exercidos nos
dispositivos da medicina e da estética.
É importante observar, no caso de um tipo
de texto essencialmente sincrético que
trabalha com a confluência de linguagens tão
complexas e distintas como a música, a
imagem em movimento e a própria linguagem
verbal,
como
o
funcionamento
da
materialidade é essencial na construção dos
sentidos produzidos nesse discurso. No caso
desta primeira performance, são construídas
cenas em que estão em foco, prioritariamente,
os rostos e especificamente os narizes das
duas personagens, que colocam em conflito e
embate, neste momento, um discurso que
preza pela sujeição à “ditadura da beleza” e
aquele que deve funcionar como produzido
num determinado jogo de resistências. O rosto
de Rachel, com seu nariz grande e
machucado, é a todo momento colocado pela
câmera estrategicamente em oposição ao rosto
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SER DIFERENTE É NORMAL
de Quinn, a garota com o nariz pequeno e
perfeito, como se observa, por exemplo, na
transição de cenas que se dá entre os 2
minutos e 38 segundos e os 2 minutos e 42
segundos do episódio, quando a câmera faz
um fechamento de cena tendo como centro o
nariz de Rachel e a abertura da próxima cena
se dá com foco no nariz de Quinn.
Também enquanto as garotas apresentam
seu dueto, seus rostos estão sempre em close
ou em primeiro plano, estabelecendo sempre
uma oposição visual entre o rosto de Rachel,
com expressões de melancolia e mesmo um
certo sofrimento, e o rosto de Quinn, sereno
em toda a realização da música (Fig. 1).
Figura 1: Quinn e Rachel cantam I feel pretty/Unpretty
Por fim, é constatável no próprio arranjo
da música a expressão desse “drama” inicial,
a necessidade de sujeição à uma norma de
beleza física como forma de ser aceito na
sociedade. Apesar de Unpretty ser uma
música que possui um arranjo com andamento
originalmente mais lento, I Feel Pretty é, em
seu contexto original (o clássico musical West
Side Story), uma música extremamente alegre,
dinâmica, em que o eu-lírico declara sua
alegria e satisfação por ter encontrado o
“amor verdadeiro”. Ao ser inserida no
contexto do episódio a música ganha um
arranjo bem mais lento que, associado à
mesclagem que se faz com as letras das duas
canções, o momento da narrativa em que se
realiza e a própria expressão dramática
adotada principalmente por Rachel ao cantar a
música transforma completamente seu
sentido; o resultado é uma música triste que
condiz exatamente com os questionamentos e
perturbações dos personagens nesse momento
da narrativa.
REDISCO
91
Um lugar para ser aceito – Somewhere
Only We Know
A segunda performance destacada para
análise ocorre entre os 31 minutos e 48
segundos e os 34 minutos e 5 segundos do
episódio. Neste momento, Kurt, que havia
sido obrigado a trocar de escola para evitar o
bullying e ameaças constantes pelo fato de ser
gay, está retornando à Wilian McKinley High
School, escola onde se passa a maior parte da
trama do seriado, após ter passado um
semestre na Dalton Academy, um colégio de
garotos que possui uma política de tolerância
zero com qualquer tipo de preconceito. Neste
colégio Kurt conheceu seu futuro namorado
Blaine, que o ensinou a ter orgulho de si
mesmo e de sua condição de homossexual,
além da coragem para enfrentar “de cabeça
erguida” qualquer dificuldade ou preconceito
a que possa ser submetido. Desse modo, o
garoto se sente preparado para retornar à sua
antiga escola, aos seus velhos amigos e ao
glee club, para poder demonstrar e ensinar a
outros aquilo que havia aprendido com
Blaine.
É no momento da despedida entre Kurt,
Blaine e seus amigos da Dalton Academy que
Blaine e estes últimos cantam, em
homenagem ao amigo que se despede, a
música Somewhere Only We Know. Numa
performance bastante emocionada no pátio da
escola, Blaine se despede de seu amigo e
namorado, ao mesmo tempo que o “devolve”
para sua escola, seus amigos, enfim, seu
“lugar”.
Gravada originalmente pela banda de rock
alternativo Keane, Somewhere Only We Know
é uma música que basicamente constrói a
imagem de um eu-lírico que busca um lugar
para pertencer, e parece convidar alguém
próximo, um amigo ou amante, talvez, para
repousar neste “lugar que só nós
conhecemos”. A música fala da juventude que
passa, da ânsia por encontrar seu lugar no
mundo e, mais do que isso, dos caminhos
percorridos na busca por esse lugar, e é
exatamente isso que está sendo representado
neste momento do episódio. Kurt percorreu,
em sua juventude, caminhos difíceis e
acidentados, bastante solitários, como tantas
vezes ele repete ao longo do seriado, mas
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92
parece estar finalmente encontrando esse
lugar mítico de paz e conforto, representado
pela escola e os amigos a que retorna e que o
fazem sentir “em casa”, o amor inesperado
que recebe de Blaine e pela própria aceitação,
já que tanto o retorno à escola como seu
namoro seriam impossíveis se Kurt não
tivesse aprendido a aceitar, respeitar e
orgulhar-se de si mesmo.
Temos, já nesse momento, a proposição de
uma
subjetividade
diferente
daquela
materializada na figura de Rachel no início do
episódio; enuncia-se, na figura de Kurt e em
seu percurso, a possibilidade de não estar em
conformidade com os mecanismos de poder
que tem por objetivo uma normalização, a
produção de “corpos dóceis”. O garoto
aprendeu a aceitar-se, está feliz e realizado
com sua “diferença” e, mais do que isso,
encontra nessa “diferença” o próprio motivo
de sua felicidade. É também após o retorno de
Kurt que Rachel, inspirada pelo amigo e todo
o clube, decide desistir da cirurgia plástica e
manter seu nariz.
Figura 2: Em tomada externa, Blaine e seus amigos
cantam Somewhere only we know
No caso de Somewhere Only We Know, é
observável, na materialidade do discurso, uma
performance bem mais dinâmica e “solta”, em
relação a I Feel Pretty/Unpretty. Apesar de
ser uma canção também relativamente lenta,
há muito mais movimento na cena construída.
Os garotos que cantam a música se deslocam
pela cena e, mesmo que não haja
propriamente uma coreografia, é bastante
visível que há uma “dança” nesta
performance, ao contrário da primeira
analisada, em que as garotas permanecem
sentadas praticamente todo o tempo. Há
REDISCO
GREGOLIN E SILVA
também uma grande mudança no ambiente
em que a cena se passa. Enquanto em I Feel
Pretty/Unpretty
são
feitas
tomadas
exclusivamente internas, Somewhere Only We
Know se passa outdoors, ou seja, ao ar livre, o
que até este momento não costumava
acontecer com frequência no seriado (Fig. 2).
Tomadas externas foram bastante raras nas
duas primeiras temporadas de Glee, mas esse
efeito de sentido de libertação produzido no
momento em que o sujeito encontra seu
“lugar” parece ser reiterado por meio desse
recurso cinematográfico.
O orgulho de ser “minoria” – Born This
Way
A performance que encerra o episódio
pode ser considerada também o seu clímax.
Como já foi mencionado, Will, o professor
responsável pelo glee club, preocupado com a
atitude de seus alunos em relação às próprias
aparências e “defeitos”, propõe uma lição
semanal em que cada um assuma a
característica de que mais se envergonha e
cante a respeito dela. Além disso, ao fim da
semana, Will propõe que todos, incluindo ele
mesmo e Emma, conselheira estudantil,
utilizem camisetas onde estas características
estariam descritas em uma palavra ou frase. É
nesse momento, quando Kurt já está de volta
à escola e Rachel desistiu de fazer sua cirurgia
plástica, que os alunos apresentam a música
Born This Way, o hino da aceitação e
aclamação da diferença. Enquanto vestem
camisetas com rótulos como “Likes boys”, no
caso de Kurt, “Nose”, no caso de Rachel, e
“Brown eyes”, no caso de Tina, a garota
oriental que quer ser como as modelos que vê
nas revistas, e cantam “I’m beautiful in my
way/’Cause God makes no mistakes/I’m on
the right track, baby/I was born this way!” 2,
os alunos percebem o quanto tem orgulho de
suas diferenças, e como são esses elementos
que os fazem “especiais”, com exceção de
Santana, a garota lésbica que se recusa a
assumir sua sexualidade e permanece no
2
GLEE, 2011. “Eu sou lindo do meu jeito/Porque
Deus não comete erros/Eu estou no caminho
certo, baby/ Eu nasci assim!” (tradução nossa).
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014
SER DIFERENTE É NORMAL
auditório assistindo a performance de seus
amigos com uma expressão de frustração.
Figura 3: Performance de Born this way
Como se pode observar no próprio teor da
letra da música cantada, neste momento do
episódio são reafirmadas as subjetividades
propostas pela série, quando os alunos
percebem o quanto tem orgulho de suas
diferenças, e como são esses elementos que os
fazem “especiais”. Assim, os efeitos de
sentido que subjazem a esses enunciados
construídos tanto visualmente quanto
verbalmente, estão reiterando as funções
enunciativas de exaltação e orgulho das
diferenças, representados tanto pelo discurso
de Glee quanto em todo o processo discursivo
construído em torno de uma artista como
Lady Gaga, a autoproclamada madrinha dos
homossexuais,
deslocados
e
freaks
(esquisitos, aberrações) de modo geral.
Também o fato de Kurt protagonizar essa
apresentação reforça esses sentidos de
autoaceitação e resistência pois, como já
demonstramos, o garoto é sempre tomado na
série como uma espécie de modelo a ser
seguido no que diz respeito à coragem de
assumir sua posição e lidar com as
conseqüências.
É interessante destacar, no entanto, alguns
efeitos de sentido que se manifestam um
pouco mais sutilmente por trás da aparente
clareza dessa performance, começando pela
escolha dos rótulos utilizados. Como já
mencionamos, o rótulo utilizado por Kurt (o
garoto homossexual) é “Likes Boys”, e não
“Gay” ou “Homossexual”, como se poderia
esperar. Assim, o garoto que “gosta de
garotos” está assumindo seu próprio rótulo, e
não o rótulo que lhe é destinado pela
REDISCO
93
sociedade. Ou seja: na escolha lexical desse
enunciado, fica discursivamente implícito o
fato de que Kurt está aceitando e assumindo
aquilo que é, enquanto se rebela e recusa
aquilo que os outros dizem que ele seja, um
valor essencial para o modelo identitário
oferecido não apenas pelo personagem de
Kurt, mas em todo o discurso da série.
Similarmente, Artie, que é sempre
identificado como “o garoto na cadeira de
rodas” ou “o cadeirante”, nessa performance
em especial carrega o rótulo de “Four Eyes”
(quatro olhos). Desse modo, reiterando a
imagem de “guerreiro que não precisa de
ninguém” construída para Artie desde o início
da série e que atingiu seu ápice na
performance de Stronger, já discutida aqui, o
rótulo em sua camiseta parece deixar claro
que o fato de não poder andar não representa
para Artie um problema maior do que o
problema de usar óculos, já que o personagem
deveria escolher para si um rótulo que
representasse sua maior vulnerabilidade. É
ainda mais interessante perceber que a
preocupação de Artie não está no problema de
visão que o leva a usar óculos – mas sim no
resultado estético de se usar os óculos, ou
seja, os “quatro olhos”.
Por fim, todos esses efeitos de sentido
possuem ainda um realce final que passa
facilmente despercebido pelo espectadorenunciatário, mas que ao mesmo tempo é
facilmente identificável: durante essa
performance, todos os personagens estão
utilizando tênis Converse preto. Uma espécie
de “Coca-cola” das marcas de calçados, os
mundialmente famosos tênis All Star são
como um símbolo de liberdade e ao mesmo
tempo de pertencimento a um seleto grupo –
e, mais do que isso, um grande símbolo da
globalização para a juventude.
Considerações finais
Observamos,
na
breve
análise
desenvolvida mas principalmente ao longo de
todo o trabalho que temos desenvolvido a
respeito do discurso de exaltação e das
práticas de produção de identidades para as
minorias no seriado Glee, que este se
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014
94
GREGOLIN E SILVA
apresenta (propositalmente, sem dúvida)
como um discurso de resistência: Glee seria o
lugar em que todos os deslocados, os
excluídos e os não aceitos são bem vindos, em
que ser diferente não é um problema, mas
uma regra, e mais do que isso, um privilégio.
Porém, pode-se facilmente constatar que
por trás dessa fachada inclusiva e
politicamente correta, o que realmente se
constrói nesse discurso é também uma forma
de controle e de exclusão, em que o sujeito
que se identifica com os modelos propostos
deve, enquanto aparenta aceitar suas
diferenças, na verdade ajustar-se a
determinadas regras que o tornem o
minimamente diferente possível: se na série
há a representação da homossexualidade, esta
deve ser incluída no mais rígido padrão
patriarcal e tradicional existente, onde uma
figura feminina, passiva e frágil deve ser
protegida e guiada pela figura forte e
dominante do “macho”. Se representa-se o
deficiente físico, este é representado
exatamente como o não-deficiente, tendo seus
maiores problemas mais em questões estéticas
do que no próprio fato de sua deficiência. Se
há uma aparência de discurso libertário
quando Rachel decide não realizar sua
cirurgia plástica, essa aparência se desmancha
quando se observa que o fato de a garota não
realizar a cirurgia configura um sacrifício: ela
abre mão de ser bela para poder manter sua
particularidade e seu talento; fica claro então
que ela apenas seria bela se tivesse um nariz
“pequeno e perfeito” como o de Quinn.
Foucault afirma, no volume I de sua
História da Sexualidade, que nas sociedades
modernas criou-se um hábito em que
Ao nosso ver, podemos afirmar o mesmo
em relação às práticas discursivas de
produção de identidade para as minorias na
mídia contemporaneamente. Deve-se falar das
minorias não apenas para dar a visibilidade
que por tantos anos foi negada ou para
quebrar tabus. Deve-se “falar” das minorias
para então poder controla-las no plano do
discurso, legitimando sempre as práticas que
devem ser adotadas, mas relegando ao
indispensável silêncio aquelas que ainda não
podem (ou não devem) ser aceitas.
Referências
FOUCAULT, M. O Sujeito e o Poder. In:
RABINOW, P; DREYFUS, H. Michel
Foucault. Uma trajetória filosófica. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.
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Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
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de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010b.
GLEE. A segunda temporada completa. Los
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Twentieth
Fox
Home
Entertainement, 2011.
Recebido em: 12 de outubro de 2013
Aceito em: 05 de dezembro de 2013.
Deve-se falar do sexo, e falar publicamente,
de uma maneira que não seja ordenada em
função da demarcação entre o lícito e o
ilícito, mesmo se o locutor preservar para si
a distinção (é para mostra-lo que servem
essas declarações solenes e liminares;
cumpre falar do sexo como de uma coisa
que não se deve simplesmente condenar ou
tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de
utilidade, regular para o bem de todos,
fazer funcionar segundo um padrão ótimo.
O sexo não se julga apenas, administra-se”
(p.30-31; grifo nosso).
REDISCO
Vitória da Conquista, v. 5, n. 1, p. 87-94, 2014
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redisco - vol. 5 - nº. 1