A EDUCAÇÃO DA PRIMEIRA INFÂNCIA: ESCOLA INFANTIL PÚBLICA EM BELO HORIZONTE (1908-1930) Ellen Rose Fernandes Figueiredo Universidade Federal de Minas Gerais [email protected] Palavras chaves: infância- educação infantil- Belo Horizonte A história das instituições de educação infantil possui um estreito vínculo com questões que se referem à história da infância, da sociedade, da assistência, da família, do trabalho e da urbanização (KUHLMANN, 1998). Grande parte dos estudos relacionados à História da infância, da criança e da educação infantil, nos revela um leque de concepções que se relacionam com essas várias temáticas. Diante disso, é imprescindível entender a função das instituições de educação infantil ao longo da história, levando em consideração a infância, a criança e as concepções pedagógicas que orientaram a produção de espaços de educação da infância. A análise da trajetória e da prática educacional na educação infantil institucionalizada relaciona-se com a imagem da criança presente em distintos períodos históricos. O papel que a criança ocupa num contexto social específico, a educação a qual está submetida e as relações sociais que lhe são permitidas nos remete diretamente a imagem e ao lugar social que lhe é atribuído. A educação infantil voltada para a primeira infância teve sua origem no século XIX, denominada como Jardim de Infância ou Kindergarten i, tendo sido idealizada e concebida pelo alemão Frederico Guilherme Froebel ii. Froebel foi um dos educadores pioneiros a dar ênfase ao estudo sobre a educação infantil. Criado em uma família religiosa, os pensamentos sobre educação desse autor sofreram significativas influências da religião luterana, além das ideias provindas das Ciências Naturais e Filosofia (ARCE,2002). A criança era por ele considerada como uma planta, que deveria ser cuidada com atenção em solo fértil, o Jardim. Nesse lugar diferentemente do que ocorre na floresta, onde o crescimento das plantas é desordeiro e selvagem, as plantas crescem aos cuidados sistemáticos das jardineiras que sabem o que é necessário para o seu desenvolvimento. No percurso de formação de seus pensamentos, Froebel trabalhou com o educador Pestalozzi que fundamentou o método Intuitivo, segundo o qual, o processo de conhecimento na infância partia do desconhecido para o conhecido, do concreto ao abstrato, ou do particular ao geral, da visão intuitiva à compreensão geral, por meio de uma associação natural com outros elementos. A percepção sensorial segundo Pestalozzi era o princípio básico para o fundamento de todo o conhecimento (ZANATTA,2005). Froebel incorporou vários princípios educacionais de Pestalozzi, mais especificamente o da percepção, para ele: “A percepção constituiria a base tanto para o conhecimento do mundo como para a linguagem (...) e o (...) contato social com o mundo deveria ser o ponto de partida de toda a educação, e esse contato deveria ser explorado desde o início da vida da criança.” (ARCE,2002,p.43) O processo de aprendizagem segundo Froebel, onde a criança fundamenta os seus conhecimentos através da concretude das coisas deveria ocorrer de forma “natural”, principalmente através da arte (canto, desenhos e pinturas) e do jogo. Para ajudar as crianças nesse processo, Froebel cria em 1838 uma fábrica de brinquedos pedagógicos. Esses brinquedos denominados de “dons” eram compostos por blocos e outras formas geométricas de madeira, que serviam de estímulos para as crianças reproduzirem atividades cotidianas de seu meio cultural (ARCE, 2002). A educação infantil institucionalizada no Brasil inicialmente importou os moldes do jardim de infância de Froebel, com a finalidade de promover o desenvolvimento integral, harmônico da parte física, moral e intelectual do educando, para que este melhor aproveitasse a instrução primária. No Brasil, segundo as fontes já levantadas, a primeira instituição a oferecer a educação para crianças menores de sete anos foi o Colégio Menezes Vieira, na cidade Rio de Janeiro no ano 1875 (BASTOS, 2001). Proveniente do setor privado, a escola infantil foi instalada em um dos melhores bairros da cidade carioca, com excelente espaço físico, construído para servir à elite e somente crianças do sexo masculino, com idade entre 4 e 6 anos de idade. O diretor da escola Dr. Menezes Vieira foi o responsável por traduzir os manuais escritos por Froebel destinados aos Jardins de Infância (BASTOS, 2001). O primeiro Jardim de Infância de São Paulo fundado no ano de 1875 era também vinculado ao setor privado, à Escola Americana. Essa escola baseava o seu trabalho em estudos de educadores protestantes dos Estados Unidos (LIMA,2006). Somente no ano de 1986, São Paulo inaugura seu primeiro Jardim de Infância público, anexo à Escola Normal Caetano de Campos (KUHLMANN, 2001). Os primeiros jardins de infância públicos nasceram anexos aos grupos escolares, como são os casos no Rio de Janeiro e São Paulo (SOUZA, 2011). Outro tipo de atendimento institucionalizado à criança pequena eram as creches dirigidas às mães trabalhadoras. A necessidade de espaços para a “guarda” destas crianças era emergencial. As creches são criadas no início do século XX, no contexto de urbanização e industrialização com um caráter assistencialista e com objetivos de retirar a criança pobre do trabalho, além de servirem de espaço de cuidado e proteção de crianças órfãs e filhas de trabalhadores (KRAMER, 1987). As instituições de educação infantil, tanto as creches quanto as escolas infantis, possibilitaram a entrada da mulher na vida pública, pois a inserção do trabalho feminino nos jardins de infância aconteceu pelo fato de a docência ser considerada uma extensão dos cuidados maternais. Podemos pensar também, que a expansão dessas instituições possibilitou que a mulher ocupasse outros cargos no mercado de trabalho. O atendimento à criança segundo Kramer (1995), Kishimoto (1988) e Kuhlmann Junior (2001), pode ser classificado em duas diferentes fases. A primeira delas é a fase da filantropia, que aconteceu durante o período colonial e caracterizou-se por atender crianças órfãs e abandonadas. A segunda fase denominada higienista, ocorreu durante o século XIX e início do século XX caracterizou-se pela ampliação do atendimento, surgindo os jardins-de- infância para a classe mais abastada e instituições beneficentes, ou seja, creches para as mães trabalhadoras. A primeira escola infantil pública em Minas Gerais Diferentemente dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, a primeira instituição pré-escolar de Minas Gerais, no que até hoje indicam as fontes era pública, foi estabelecida pelo governo estadual através do decreto n° 2.287 publicado no jornal oficial Minas Geraes, no dia 4 de novembro de 1908. Tal decreto criou a Escola Infantil Delfim Moreira destinada às crianças de ambos os sexos, com idade entre 4 e 6 anos, com o objetivo de desenvolvê-las intelectualmente e prepará-las para a educação primária. Outro aspecto que podemos destacar na Delfim Moreira em relação às instituições dos outros estados é o fato que instituição infantil mineira não ser denominada como Jardim de Infância, e sim Escola Infantil, o que demonstra que a escola infantil estava alinhada à cultura escolar Grupos Escolares, como segue no decreto: Decreto n. 2.287 Crea a Escola Infantil, com sede na Capital do Estado O vice Presidente do Estado de Minas Geraes, usando das atribuições que lhe confere o art.57 da Constituição Mineira e julgando de grande proveito ao ensino público, como complemento da reforma de instrucção estabelecida pela lei n. 439, de 28 de setembro de 1906, um typo de escola para creanças de ambos os sexos, desde quatro até seis annos de edade, a qual tenha por objectivo o desenvolvimento intellectual e preparo prévio para o curso primário, resolve crear a Escola Infantil, com sede na Capital do estado. Palacio da Presidencia do Estado de Minas, em Bello Horizonte, 3 de novembro de 1908. Julio Bueno Brandão. Estevão Leite de Magalhães Pinto. iii Nesse período estava em prática em Minas Gerais, a Reforma João Pinheiro de 1906 que estabeleceu os Grupos Escolares que buscavam traduzir uma organização racional da educação primária, tornando possível uma escola graduada e seriada, num espaço adequado à sua função (BAHIENSE; GOUVÊA, 2009). Os Grupos escolares tinham como objetivo agrupar e reunir em um só prédio as escolas isoladas, num modelo pedagógico de aprendizagem em que os conteúdos escolares seriam ensinados de forma graduada, em séries progressivas, organizadas de acordo com a idade do aluno (FARIA FILHO, 1996), instituindo a avaliação anual do aluno no sistema educacional. Gizele de Souza (2011) ressalta a importância de se pensar o lugar da educação primária na constituição dos Jardins de Infância no Brasil, pois nota-se que muitos dos jardins eram anexados aos grupos escolares, como o primeiro jardim de infância de Sergipe (LEAL, 2004) e o jardim de infância em João Pessoa (CARVALHO, 2003). Segundo Faria Filho (1995), para as diretoras de grupos escolares que atendiam as crianças pobres, a escola infantil era sentida, pela sua falta. Uma delas, a do 3º grupo da capital, falava insistentemente no assunto em seus relatórios, tendo como preocupação o baixo índice de aprovação dos seus alunos. No ano de 1911 a mesma diretora fez três sugestões: a primeira foi de abolir o dispositivo do Regimento dos Grupos Escolares, determinava que os alunos de uma professora ausente fossem redistribuídos entre as turmas das professoras presentes; a segunda foi a exigência de uma frequência mínima legal para que o aluno fosse submetido a exame, o que eliminaria, desde já, os faltosos, obrigando maior vigilância dos pais; a terceira, defendia ou o desdobramento do curso primário em 5 anos ou a criação de escolas infantis em número suficiente para preparar todas as crianças para o 1º ano do primário. Na época da inauguração da Escola Infantil Delfim Moreira, Belo Horizonte ainda em processo final de construção, não possuía mais que 26.400 habitantes (VIEIRA, 1993). A nova capital mineira foi planejada e dividida em três zonas, a urbana, suburbana e rural, de forma que as diferentes classes sociais ocupassem espaços geográficos distintos (VAGO, 2002). O fato de a Escola Infantil Delfim Moreira estar localizada na parte central da cidade, não significou a restrição do acesso de crianças de outras localidades e classes sociais. No decreto de n° 2.939 de 1910, que regulamenta as atividades de responsabilidade da diretora da escola, é –lhe atribuída a responsabilidade de dividir as turmas de acordo com a localidade de moradia do aluno para facilitar o trabalho das professoras, que deveriam buscar e levar as crianças até o ponto de bonde todos os dias. A diretora da Escola Infantil Delfim Moreira deveria: (...) 11. Dividi-las por turmas, tomando por critério a zona da cidade em que residirem, e distribuir cada turma a uma das professoras. 12. Determinar as professoras que recebam os alunos de sua turma no ponto de bondes, previamente indicado pelos paes, e que, depois das aulas, de novos entreguem nesse mesmo lugar.(...) iv O deslocamento dessas crianças e a adequação da cidade para promover o transporte para esses alunos nos faz refletir sobre a relação da cidade com a escola. Ao final das aulas as crianças, eram acompanhadas por suas professoras até o ponto de um bonde especial que as levariam para a casa. Essa cena cotidiana na vida belorizontina foi tema da crônica “Até amanhã, Jardim” de Carlos Drummond de Andrade, publicada no Jornal Minas Gerais. “Depois, os meninos vieram saindo, cada um com a sua malinha a tiracolo, e com as professoras bonitas tomando conta da turma para a travessia dessa Broadway sertaneja que é a Avenida Afonso Pena às quatro da tarde. Lá iam os Adões sem pecado e as Evas sem malícia, depois de um dia feliz na intimidade das coisas boas que este mundo ainda tem: frutas e brinquedos, jogos e bonecos. Esperava-os no Bar do Ponto, um bonde especial. Não sei, mas tive a impressão de que o condutor e o motorneiro desse bonde eram também sujeitos especiais, diáfanos e inconsúteis. Peço muitas desculpas aos leitores, mas para mim eram dois anjos disfarçados” Para Vieira (2007), mesmo que a educação infantil em Minas Gerais tenha surgido para e com a elite, as crianças de famílias pobres também tiveram acesso à educação, tendo, é claro, uma diferenciação no trato, como no relato a seguir: A escola possuía dois turnos. No turno da manhã recebia crianças dos bairros para fora da orla da Avenida do Contorno, verdadeiro cordão sanitário, que demarcava a cidade planejada. As crianças do turno da tarde, bem aquinhoadas, promoviam campanhas de ajuda aos seus colegas mais pobres que vinham pela manhã e aí permaneciam para almoçar. Traziam-se ovos, queijos e verduras para enriquecer a alimentação (VIEIRA, 2007, p.3). Verifica-se que na organização do atendimento à infância da cidade, reproduzia-se a lógica de segmentação dos espaços, de acordo com o pertencimento social dos sujeitos. Embora as diferentes classes sociais devessem ser atendidas pela escola infantil, a organização do tempo buscava reproduzir a diferenciação sócioespacial. A demanda por Escolas Infantil em Belo Horizonte era grande, mesmo com a existência de instituições particulares que ofertavam a educação infantil para crianças entre 3 e 7 anos como é o caso da Associação Amante da Instrucção e do Trabalhov. A Escola Infantil Delfim Moreira contava com apenas quatro turmas e um espaço físico limitado para a construção de novas salas. Segundo Vieira (1993), em 1914 com o decreto nº4.086-5/1/1914 a Escola Infantil Delfim Moreira foi dividida em duas seções: a 1ª seção funcionava em prédio construído na antiga Praça Alexandre Stockler, recebendo a denominação de Escola Infantil Bueno Brandão, e a Escola Infantil Delfim Moreira passa a ser a 2ª seção, funcionando no mesmo local, na rua Espírito Santo, n°850, de forma a atender a ampliação da demanda. No seu programa pedagógico as professoras deveriam seguir o Programa da Escola Infantil vique tinha o seguinte preceito “Nihil est in intellectu quod non fuerit in sensu” vii, que é base de método intuitivo onde a aprendizagem se dá pelos sentidos, nesse programa estão presentes também a indicação de utilização dos jogos de Froebel, cantos, dança e o ensino de medidas, moral e urbanidade. As professoras tinham como missão: (...) de desenvolver intelligencias, despertar faculdades, ou antes, educar os sentidos, preparando pequenos cérebros com elementos para receberem proveitosamente a instrucção que lhes vai ser dada nas escolas primárias.” viii Partindo do objetivo da escola infantil que era preparar a criança para o ensino primário, a Escola Infantil Delfim Moreira, se baseava na ideia de turmas seriadas (1°ano, 2°ano) dos Grupos Escolares. As crianças eram submetidas à exames das matérias que ali eram ensinadas, como linguagem, coisas da natureza, contabilidade, desenho, lições de forma e canto de acordo com o ano do curso. Esses exames eram avaliados por uma banca, composta pelo examinador, pelas professoras e pela diretora da escola. Observa-se que a estreita vinculação entre a escola infantil e a escola primária produzira a reprodução da cultura escolar daquele segmento, entre as crianças pequenas, em que a avaliação assumia cada vez maior centralidade naquele período histórico. Considerações finais A História da educação infantil em Minas ainda um pouco tímida, mas não menos irrelevante, tem possibilitado desvendar suas formas de aplicação e importância no cenário da história da educação mineira. A Escola Infantil Delfim Moreira foi criada com a finalidade principal de preparar as crianças para o ensino primário, e dessa incorporou certas características, como a seriação e a avaliação dos alunos. Mesmo tendo esse diálogo com o ensino primário, a escola infantil contemplava as singularidades da infância e de sua educação através das práticas froebelianas, que se baseavam na prática do canto e do aprender através do brincar. O que se avalia também a partir da análise das fontes é uma relevante relação da Escola Infantil Delfim Moreira com a cidade de Belo Horizonte. A Escola Infantil Delfim Moreira mesmo situada na região central da cidade não foi frequentada apenas pelas crianças que moravam naquela região. Através da escola infantil, crianças que moravam em regiões periféricas, tinham a possibilidade de certa forma, frequentar o centro da capital belorizontina. Ao final da aula uma condutora levava as crianças pela cidade até o ponto bonde e as acompanhavam até seus pontos de destino. A história da educação infantil através do entrelaçamento da participação dos sujeitos sociais e iniciativas governamentais de Minas Gerais, possibilita superar sínteses generalistas fundadas em estudos desenvolvidos noutros contextos na escrita da história da educação infantil, tendo sempre o cuidado de evitar o reducionismo e a superficialidade. FONTES Arquivo Público Mineiro. 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