Políticas para a Primeira Infância: notas sobre experiências internacionais Brasília, janeiro de 2005 ©UNESCO 2005 Edição publicada pelo Escritório da UNESCO no Brasil. Políticas para a Primeira Infância: notas sobre experiências internacionais Edições UNESCO Conselho Editorial Jorge Werthein Cecilia Braslavsky Juan Carlos Tedesco Adama Ouane Célio da Cunha Comitê para a Área de Educação Alvana Bof Célio da Cunha Candido Gomes Katherine Grigsby Marilza Machado Gomes Regattieri Revisão e diagramação: Eduardo Perácio (DPE Studio) Revisão técnica: Angela Rabelo Barreto, Alvana Bof e Julia Buarque Assistente editorial: Rachel Gontijo de Araújo Projeto gráfico: Edson Fogaça e Paulo Valério Tradução: Patrícia Zimbres Desenho infantil da capa: Maria Augusta Botafogo Proença ©UNESCO, 2004 Políticas para a primeira infância : notas sobre experiências internacionais. – Brasília: UNESCO, 2005. 114p. 1. Educação infantil–Políticas Educacionais. 2. Políticas Governamentais–Crianças. I. UNESCO 85-7652-025-7 CDD: 372 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura Representação no Brasil SAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar. 70070-914 – Brasília – DF – Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 322-4261 E-mail: [email protected] SUMÁRIO Apresentação à edição brasileira.....................................................................7 Apresentação........................................................................................................ 9 1. Primeira infância – cuidados? desenvolvimento? educação?........... 11 2. A integração da primeira infância na educação: o caso da Suécia......................................................................................... 17 3. Relação entre mulheres, trabalho e primeira infância: países desenvolvidos e em desenvolvimento..................................... 23 3.1 – Trabalho feminino e serviços para a primeira infância........ 23 3.2 – Situação empregatícia das mulheres nos países em desenvolvimento e implicações para políticas para a primeira infância................................................................................... 30 4. Serviços de Base domiciliar para a primeira infância: o caso da Nova Zelândia........................................................................ 37 5. O programa de pré-escola na língua vernácula de Papua-Nova Guiné................................................................................... 43 6. As transformações sociais e suas implicações para a demanda global de cuidados e educação para a primeira infância................ 49 7. A coordenação intersetorial nas questões da primeira infância: lições a serem aprendidas.........................................................................55 8. As crianças em idade escolar em famílias com filhos pequenos: risco para as oportunidades educacionais............................................ 61 9. A aprendizagem ao longo da vida e a política social para a primeira infância............................................................................ 67 10. A reforma da força de trabalho da educação e cuidado na primeira infância na Inglaterra, na Escócia e na Suécia..............75 10.1 – A integração de serviços de educação e cuidado................ 75 10.2 – A reforma da força de trabalho de educação e cuidado..81 11. O impacto da Aids sobre os cuidados e a educação da primeira infância................................................................................... 87 12. A reforma dos cuidados e da educação para a primeira infância na República da Coréia.............................................................93 12.1 – “A escola para a primeira infância”............................................ 93 12.2 – A lei da educação para a primeira infância............................ 100 13. O papel da educação e do cuidado para a primeira infância na promoção da igualdade de oportunidades................................ 107 APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA A expansão e o aprimoramento da educação e cuidado na primeira infância constituem uma das seis metas fixadas no Marco de Dacar, cujos compromissos foram assumidos por 189 países, incluindo o Brasil, reunidos no Fórum Mundial de Educação para Todos, realizado no Senegal, em 2000. O destaque dado à educação nessa faixa etária, tornando-a objeto de uma meta específica, decorre do reconhecimento da importância das experiências vividas nos primeiros anos para o desenvolvimento e a aprendizagem ao longo de toda a vida. Evidências apresentadas em estudos internacionais a respeito dos impactos positivos da participação das crianças em programas de educação infantil justificam a relevância atribuída a tais programas como instrumento de promoção de eqüidade educacional e de melhoria da qualidade de vida das crianças de classes socioeconômicas menos favorecidas. Além disso, programas de educação e cuidado na primeira infância têm contribuído para oportunizar às mulheres condições para uma participação mais eqüitativa no mercado de trabalho. No Brasil, a área do cuidado e educação infantil apresenta um marco importante na Constituição de 1988, que reconheceu, como um direito, a educação das crianças de zero a seis anos de idade, em creches e préescolas. Entretanto, apesar dos avanços ocorridos na legislação, com a inclusão da educação infantil como primeira etapa da educação básica na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), e o estabelecimento de metas e objetivos de ampliação e melhoria dessa etapa educacional no Plano Nacional de Educação (2001), um grande esforço deverá ser realizado nos próximos anos para que as diretrizes e objetivos definidos nesses instrumentos legais sejam de fato concretizados. 7 Considerando a importância da educação e cuidado na primeira infância como meta fundamental da Educação para Todos, a UNESCO vem empreendendo esforço especial de cooperação internacional nesse campo. No Brasil, tem apoiado e prestado colaboração nas ações empreendidas pelos Poderes Executivo e Legislativo, nos âmbitos federal, estadual e municipal, apoiado e realizado debates, estudos, e produzido publicações sobre temas de interesse da área. Dando continuidade a esta colaboração, a Representação da UNESCO no Brasil coloca à disposição da comunidade brasileira a tradução para a língua portuguesa destas notas internacionais sobre Políticas para a Primeira Infância, publicadas pela Seção de Educação para a Primeira Infância e para a Família, da Divisão de Educação Básica, da UNESCO-Paris. Elaboradas por consultores de instituições de grande expressão ou pela própria Seção de Educação para a Primeira Infância e para a Família, as notas tratam de realidades diversas, incluindo ora países desenvolvidos, ora países em desenvolvimento, ora ambos. Os temas abordados referem-se a questões presentes no cenário internacional, incluindo debates sobre a diversidade de termos utilizados na área, a integração e a coordenação intersetorial de políticas e programas para a primeira infância, as transformações sociais e suas implicações para a primeira infância, as relações entre o trabalho feminino e a educação e o cuidado na primeira infância, o papel das políticas de educação e cuidado da primeira infância na igualdade de oportunidades, e o impacto da Aids sobre a educação e o cuidado na primeira infância. Nesta edição brasileira, algumas notas sobre o mesmo tópico que originalmente foram veiculadas separadamente são agrupadas em um único capítulo, visando a facilitar a leitura. Espera-se, com esta iniciativa, contribuir para o debate das questões relativas à educação e cuidado na primeira infância que perpassam os cenários nacional e internacional, bem como oferecer subsídios aos que, direta ou indiretamente, estejam relacionados à formulação de políticas públicas no setor. Jorge Werthein Diretor da UNESCO no Brasil 8 APRESENTAÇÃO As Notas sobre Políticas para a Primeira Infância, da UNESCO, são uma série de breves textos sobre questões relativas às políticas direcionadas à primeira infância e à família. Seu objetivo é responder às dúvidas mais freqüentes entre as instâncias de formulação política, com respeito ao planejamento e à implementação de políticas para a primeira infância e a família. Para maiores informações e também para a versão eletrônica das Notas, dirigir-se a http://www.unesco. org/education/educprog/ ecf/index.htm Para comentários e informações, favor entrar em contato com: UNESCO, Seção de Educação para a Primeira Infância e para a Família, 7, Place de Fontenoy, 75352 PARIS 07 SP, França Fone: 33 1 45 68 08 12 Fax: 33 1 45 68 56 26 [email protected] 9 1. PRIMEIRA INFÂNCIA – CUIDADO? DESENVOLVIMENTO? EDUCAÇÃO?* A área da Primeira Infância1 é conhecida por diversos nomes, tanto entre países quanto dentro de um mesmo país, uma vez que as diferentes partes interessadas usam referenciais diversos. Nem mesmo os organismos internacionais empregam um termo* escolhido de comum acordo, o que provoca debates quanto a qual termo usar, sempre que um documento é redigido conjuntamente por mais de uma instituição. Os pesquisadores vêm tentando unificar a área sob uma mesma denominação, mas ainda sem sucesso. O “ensino primário” também é designado por diferentes nomes (ele é chamado de ensino elementar ou básico)2, mas, ao contrário do que ocorre com o termo Primeira Infância, há uma compreensão relativamente consensual quanto ao que ele se refere e às maneiras de praticá-lo. Os termos associados à Primeira Infância vão além de simples rótulos: eles implicam diferenças em termos dos objetivos, das práticas pedagógicas e das modalidades de prestação desses serviços, sem falar nas grandes disparidades de situação social e econômica das equipes de profissionais em questão. A diversidade de termos é tão * Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 1, de março de 2002. Elaborada e publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm). 1 Primeira Infância é aqui grafado com maiúsculas para fazer distinção entre a acepção de área profissional ou disciplina e a acepção de estágio inicial do ciclo da vida. 2 Em alguns casos, ensino elementar refere-se unicamente às primeiras séries do ensino primário, enquanto que este último é reservado às séries mais avançadas. Do mesmo modo, educação básica pode abranger outros níveis de educação abaixo ou acima da educação primária, bem como outros programas não formais. 11 ampla, que, muitas vezes, a própria identidade da Primeira Infância como disciplina distinta é questionada. Um dos termos comumente usados, Educação para a Primeira Infância (Early Childhood Education – ECE), tem a preferência das autoridades educacionais e de outros que tendem a ver a primeira infância a partir de uma ótica educacional. O aprendizado é um tema de importância central, nessa tradição. Cuidado e Educação na Primeira Infância (em inglês, Early Childhood Care and Education – ECCE) é uma ampliação da ECE, com o acréscimo do componente “cuidado”. A ordem pode ser alterada para Educação e Cuidado na Primeira Infância (Early Childhood Education and Care – ECEC), a fim de manter a ênfase na educação. Há, também, o Cuidados para a Primeira Infância (Early Childhood Care – ECC), sem o componente educacional. No mundo em desenvolvimento, os Cuidados para a Primeira Infância tendem a ser associados à atenção dada a saúde, nutrição e higiene da criança, ao passo que, nos países desenvolvidos, eles, freqüentemente, são entendidos como um serviço social prestado às mães que trabalham e têm filhos pequenos. Em termos históricos, os Cuidados para a Primeira Infância sempre foram associados às instituições de assistência social para crianças carentes ou deficientes, enquanto a Educação para a Primeira Infância foi vista como um serviço voltado às etapas iniciais do processo de aprendizagem da criança.3 Numa tentativa de reafirmar que os Cuidados para a Primeira Infância e a Educação para a Primeira Infância são conceitos inseparáveis, os pesquisadores cunharam o termo Educare (em inglês, Education e Care). Esse termo, entretanto, permaneceu confinado à comunidade acadêmica, não tendo ingressado no discurso político dos governos.4 Desenvolvimento da Primeira Infância (Early Childhood Development – ECD) é um outro termo que vem ganhando popularidade. Ele dá ênfase a um enfoque holístico, voltado para o desenvolvimento físico, 3 Ver HADDAD, L. An integrated approach to early child education and care. Paris : UNESCO, 2002. (Early childhood and family policy series.) 4 Uma exceção pode ser encontrada na África do Sul, onde o termo Educare é usado juntamente com Desenvolvimento da Primeira Infância. (http:/www.isisa.co.za/isisa/ default.htm). 12 emocional, social e cognitivo da criança. Embora sua amplitude o torne de difícil definição, e apesar de ele colocar o foco na criança, e não no agente social ou no processo de cuidado ou educação, o ECD vem ganhando terreno como um dos termos mais genéricos para designar essa área. Uma variante comum desse termo é Cuidados e Desenvolvimento da Primeira Infância (Early Childhood Care and Development – ECCD), que também tenta reintegrar num mesmo conceito os cuidados, por um lado, e o desenvolvimento/educação, por outro. Há ainda uma outra variante, os Cuidados para o Desenvolvimento da Primeira Infância, que dá ênfase aos cuidados que afetam o desenvolvimento e o aprendizado. Muitos outros termos são usados, mas eles são ou variações ou recombinações dos três conceitos básicos – cuidados, desenvolvimento e educação para a primeira infância – ou programas específicos formulados para eles (por exemplo, educação pré-escolar, para Educação para a Primeira Infância). Da perspectiva do desenvolvimento da criança, esses três conceitos não podem ser tratados independentemente. O desenvolvimento da primeira infância abrange uma série de processos de aprendizagem, ao longo dos quais a criança aprende sobre seu ambiente e sobre ela própria. É desnecessário dizer que a sobrevivência e o crescimento da criança têm de ser assegurados, por meio do fornecimento de uma boa assistência à saúde e à nutrição. Mas o crescimento físico da criança pequena tem também de ser acompanhado de um processo de aprendizagem de qualidade adequada. Aprendizado e crescimento não podem ocorrer de forma seqüencial, sendo, ambos, partes integrantes do processo de cuidar do desenvolvimento integral da criança. Na verdade, nem sempre os Cuidados na Primeira Infância, o Desenvolvimento da Primeira Infância e a Educação na Primeira Infância são institucionalizados e praticados separadamente. Por exemplo, não é difícil encontrar um Departamento de Educação para a Primeira Infância que tenha sob sua responsabilidade todo o espectro de programas para a primeira infância, incluindo creches para crianças menores de três anos e jardins de infância para crianças de idade um pouco superior. Na maioria dos países desenvolvidos, o ensino nos 13 jardins de infância é centrado na criança, dando ênfase a seu desenvolvimento integral. Nesses casos, não haveria necessidade de distinguir a Educação para a Primeira Infância do Desenvolvimento da Primeira Infância. Em alguns países em transição5, educação pré-escolar é um termo genérico para os programas destinados à primeira infância, inclusive para as crianças menores de três anos, que, em outros países, seriam classificados como Cuidados na Primeira Infância. Na política institucional, a questão das diferentes denominações acaba por se converter em um ponto de controvérsia. Os organismos dão preferência a um termo ou a outro dependendo das funções institucionais que lhes são atribuídas. Essas discrepâncias encontradas entre os diferentes organismos – e não a maneira de encarar a psicologia ou o desenvolvimento infantil – não raro são difíceis de conciliar. No nível nacional, é possível que o Ministério da Educação dê preferência ao termo Educação para a Primeira Infância, uma vez que é mais fácil justificar a participação e os investimentos em educação que na assistência a crianças pequenas. Caso o Ministério estabeleça uma distinção entre Educação para a Primeira Infância, Cuidados com a Primeira Infância e Desenvolvimento da Primeira Infância, isso talvez se deva à sua intenção de atribuir responsabilidades diferentes a diferentes setores. Nesse particular, não é mera coincidência que, em alguns países em desenvolvimento, o Desenvolvimento da Primeira Infância freqüentemente venha acompanhado de estratégias de mobilização comunitária e de arrecadação de contribuições voluntárias, enquanto as verbas públicas são prioritariamente direcionadas à Educação para a Primeira Infância. Os educadores que trabalham fora do campo da Educação para a Primeira Infância têm menores possibilidades de ser chamados de professores, uma vez que essa denominação implicaria um certo nível de remuneração, a ser paga pelo governo, para a qual, na maioria dos países em desenvolvimento, não haveria disponibilidade orçamentária. Dada a natureza multifacetada da primeira infância, a existência de diversas denominações talvez seja mesmo inevitável. O âmbito dos 5 Na antiga União Soviética. 14 interesses institucionais é de tal amplitude que, talvez, chegar a um termo único seja de fato uma tentativa vã. Além disso, o mesmo termo pode ser interpretado de formas diferentes em diferentes contextos sociais, culturais e lingüísticos, e o conceito de primeira infância, ou “primeira infância” como um construto da formulação de políticas, varia, dependendo da idade de ingresso na escola. Comparar esses diferentes conceitos, para não falar em unificá-los, portanto, talvez seja uma tentativa infrutífera. Nesse sentido, insistir na necessidade de um termo consensual talvez não represente um esforço construtivo, uma vez que o que realmente precisamos é compreender o âmbito geral da Primeira Infância. Nas comparações internacionais, o mais importante seria uma definição operacional capaz de caracterizar as políticas adotadas pelos diferentes países, independentemente dos termos em uso. E mais importante ainda, esse foco na terminologia da Primeira Infância pode desviar nossa atenção de outras questões igualmente importantes, tais como a maneira pela qual os serviços destinados à primeira infância, seja qual for a denominação dada a eles, se relacionam a outros serviços educacionais e sociais destinados a crianças em idade escolar. Mesmo deixando de lado as rotulações, alguns pontos fundamentais devem ser ressaltados. Em primeiro lugar, o principal objetivo de qualquer programa voltado para a primeira infância deve ser o bem-estar e o desenvolvimento integral da criança e, independentemente do contexto institucional, o programa deve incorporar uma prática adequada, em termos de desenvolvimento, que trate da saúde, da nutrição, da segurança e da aprendizagem. Na verdade, contanto que esse enfoque holístico seja posto em prática, o contexto físico ou institucional de um programa é de pouca importância. Em segundo lugar, à medida que as crianças crescem, elas podem passar de um programa a outro, programas esses que podem receber nomes diferentes e pertencer ao âmbito de ministérios diferentes. Mas esses programas têm de manter entre si continuidade e integridade pedagógica, embora não necessariamente institucional. Em terceiro lugar, deve haver o máximo de coordenação possível da superposição de programas direcionados para a mesma faixa etária, que recebem nomes diferentes. Uma tal superpo-sição pode vir a 15 provocar ineficiência administrativa e desperdício de recursos. Por último, mas não menos importante, é que, independentemente do nome que lhe for dado, o programa para o estágio que precede o ensino primário deve ser formulado de modo a facilitar a preparação da criança para o ingresso na escola e sua transição para o ensino formal. A continuidade pedagógica entre o último ano do programa voltado para a primeira infância e o primeiro ano da escolaridade formal é da maior importância. A questão das denominações não é puramente conceitual, nem limitada às discussões teóricas sobre o desenvolvimento infantil. Ao contrário, ela está inseparavelmente vinculada, entre outras coisas, às responsabilidades institucionais e às atribuições das partes interessadas, que não podem ser tratadas de forma eficaz sem uma clara postura política com relação às questões da Primeira Infância. A formulação de uma posição que envolva todos os setores do governo, ou que possa ser subscrita por todas as partes interessadas, com relação às denominações a serem usadas, talvez seja um bom ponto de partida para o desenvolvimento de políticas voltadas para a Primeira Infância. 16 2. A INTEGRAÇÃO DA PRIMEIRA NFÂNCIA NA EDUCAÇÃO: O CASO DA SUÉCIA* Em 1996, a responsabilidade governamental pelo Cuidado das Crianças1, na Suécia, foi transferida do Ministério da Saúde e Assuntos Sociais para o Ministério da Educação e Ciência. Durante esse processo, turmas de Pré-Escola foram criadas para crianças de seis anos, passando a fazer parte do sistema de ensino compulsório2 e usando o mesmo currículo das escolas primárias. As pré-escolas, que antes da transição atendiam a crianças de um a seis anos, converteram-se no nível inicial do sistema educacional do país, atendendo a crianças de um a cinco anos,3 tendo seu próprio currículo nacional.4 O governo, além disso, ampliou o direito à educação pré-escolar, oferecendo-a a todas as cri* Notas sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 3, de maio de 2002. Elaborada e publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm). Este texto baseou-se no estudo sobre o sistema integrado para a primeira infância da Suécia, realizado por Hillevi Lens Taguchi, Instituto de Educação de Estocolmo, e Ingmarie Minkammar, da Universidade de Tecnologia de Lulea. 1 O Cuidado das Crianças, na Suécia, refere-se tanto às atividades pré-escolares para crianças de um a cinco anos quanto a serviços de cuidados para crianças em idade escolar, entre seis e 12 anos. 2 Essa decisão representou mais uma renomeação da educação pré-primária existente que a criação de um novo programa. Nos termos da Lei Nacional das Pré-Escolas, de 1975, foi exigido dos municípios que oferecessem a todas as crianças de seis anos de idade pelo menos 525 horas anuais de atividades pré-escolares. A maioria das crianças de seis anos, na Suécia, freqüentou esse programa de educação pré-primária nas pré-escolas. A partir dessa decisão, o programa foi convertido nas Turmas de Pré-Escola e desmembrado das pré-escolas. As Turmas de Pré-Escola já não fazem mais parte do ensino pré-escolar, termo esse que hoje é reservado para os cuidados e a educação da primeira infância, destinado a crianças de um a cinco anos. 17 anças, independentemente da situação empregatícia de seus pais.5 Uma outra reforma compensou as disparidades entre as diferentes categorias de professores, fornecendo uma estrutura unificada de treinamento para professores de pré-escolas, de escolas e para pedagogos de horas de lazer.6 As normas e regulamentos do cuidado das crianças, na Suécia, são hoje regidos pela lei educacional (School Act). A transição foi relativamente simples e aconteceu sem maiores dificuldades em seus estágios finais.7 Os estágios preliminares, contudo, provocaram debates e apreensão. Uma das fontes de resistência foi o medo de que a pré-escola viesse a se tornar formalizada, como ocorreu em outros países. Os acadêmicos se preocupavam que a pedagogia da pré-escola viesse a perder sua ênfase no brincar, nas estratégias naturais do aprendizado infantil e no desenvolvimento integral. As pessoas que trabalhavam no setor de cuidados temiam que o foco das atividades pré-escolares poderia ser maciçamente transferido para a educação e interpretaram a integração como uma ameaça à sua profissão. 3 Na Suécia, os serviços de cuidados para crianças, fora de casa, começam com um ano de idade, sendo que as mais novas são cuidadas em casa, por seus pais, que se beneficiam da licença-maternidade/paternidade patrocinada pelo governo. 4 As atividades pré-escolares, na Suécia, também são fornecidas em Creches Familiares e em Pré-Escolas Abertas. Mas esses serviços não fazem parte do sistema educacional e não seguem as diretrizes do Currículo Nacional para as Pré-Escolas. 5 A partir de 2001, os filhos de pais desempregados também passaram a ter direito a três horas diárias de educação pré-escolar. Anteriormente, apenas os filhos de pais que trabalhavam ou estudavam tinham acesso à educação pré-escolar. As crianças portadoras de necessidades especiais sempre têm direito prioritário. 6 Anteriormente, os professores de pré-escola e os pedagogos de horas de lazer recebiam treinamento de três anos de duração em universidades, enquanto o período de treinamento dos professores de escola era de três anos e meio. Hoje, todas essas categorias recebem treinamento universitário de três anos e meio. 7 No nível central, a transição envolveu a transferência do departamento da primeira infância do Ministério da Saúde e Assuntos Sociais para o Ministério da Educação e Ciência, que ocorreu sem grandes conflitos. No nível local, a mudança foi ainda mais tranqüila, uma vez que os municípios já haviam integrado suas estruturas administrativas, tais como conselhos conjuntos para escolas e pré-escolas. Diz-se que o processo de descentralização, no qual o município tornou-se o empregador dos professores, tanto das escolas como das pré-escolas, facilitou essa integração. 18 Elas temiam também que o cuidado das crianças, que no Ministério da Saúde e Assuntos Sociais recebia alta prioridade, como uma política de apoio à família, viesse a perder sua primazia e ser relegado a uma posição marginalizada, no setor da educação. As observações feitas até o presente sugerem resultados mistos. Algum tipo de formalização de fato ocorreu, mas há também sinais de que os temores eram exagerados. No que diz respeito à turma de pré-escola para crianças de seis anos, hoje funcionando nas escolas, a influência da pedagogia escolar foi evidente. Um estudo de avaliação, realizado em âmbito nacional, revela que os professores organizam suas atividades de maneira formal, com base em seus conceitos do que a escolarização formal é ou deveria ser. Em alguns casos, suas idéias sobre escolarização formal são mais rígidas do que as dos próprios professores das escolas primárias. As autoridades educacionais do país vêm fazendo recomendações no sentido de corrigir esses problemas, incentivando os professores de pré-escola a dar maior atenção ao desenvolvimento holístico das crianças. No entanto, essa formalização não foi observada nas pré-escolas para crianças de um a cinco anos. Ao contrário, com a transferência das crianças de seis anos para as turmas de pré-escola, as pré-escolas, liberadas da responsabilidade pela educação pré-primária, puderam se concentrar mais em enfoques de desenvolvimento, nas atividades voltadas para as crianças de um a cinco anos.8 Com relação aos investimentos, além de liberar as pré-escolas da responsabilidade pelas crianças de seis anos,9 o governo, em tempos recentes, anunciou duas medidas importantes para reduzir as mensalidades das préescolas10 e oferecer ensino pré-escolar gratuito para todas as crianças de 8 O novo currículo nacional para pré-escolas dá ênfase ao aprendizado, o que é visto pelos professores de pré-escola como algo “novo”. Mas há poucos indícios de que essa ênfase na aprendizagem tenha prejudicado os enfoques e as práticas pedagógicas embasados no desenvolvimento infantil. 9 A participação nas turmas de pré-escola é voluntária, mas os municípios são obrigados a oferecer vagas gratuitas para as crianças que desejam se matricular. As crianças cujos pais trabalham ou estudam ou as que exigem cuidados especiais têm direito às vagas gratuitas. 10 Ao estabelecer um teto para a taxa a ser cobrada pelas pré-escolas para crianças de um a cinco anos, o governo uniformizou as diferentes taxas cobradas pelos municípios. Essa medida reduziu de fato as mensalidades de pré-escola para todas as famílias. 19 quatro a cinco anos, a partir de 2003, confirmando seu compromisso de universalizar o ensino pré-escolar. Essas medidas aplacaram os temores de que o ensino pré-escolar, ao ser transferido para o setor de educação, receberia baixa prioridade em termos de investimentos. Pelo contrário, com a integração do ensino pré-escolar no sistema educacional, o argumento de que ele deveria estar disponível a todas as crianças, como direito da criança, mais que como direito dos pais, conferiu-lhe maior legitimidade, resultando em um aumento dos investimentos públicos. Além do mais, as escolas primárias vêm-se tornando mais semelhantes às pré-escolas, e mais voltadas para o desenvolvimento integral dos alunos. Embora o conceito convencional de escolarização ainda prevaleça, é consenso geral que as escolas suecas de hoje sejam vistas como lugares onde as crianças de idade escolar são cuidadas de forma integral enquanto seus pais trabalham. Cada vez mais, as escolas vêm-se tornando substitutas do ambiente familiar para as crianças de idade escolar, como as pré-escolas já eram para as crianças mais novas, onde os professores e os profissionais de cuidados infantis colaboram para assegurar seu desenvolvimento integral. No passado, as escolas tendiam a se omitir quanto aos problemas emocionais, sociais, de comportamento e de saúde dos alunos, que não eram vistos como atribuição dos professores, cuja principal tarefa era a de cuidar das questões “educacionais”. Mas, hoje em dia, os professores começaram a falar da situação e do progresso do “desenvolvimento” dos alunos, e não apenas de seu desempenho acadêmico, e, cada vez mais, vêm dando atenção à necessidade de cooperar de maneira mais estreita com os pais. Essa integração ascendente, na qual as pré-escolas vêm influenciando as escolas, é surpreendente para as pessoas de fora, uma vez que o que costuma ser esperado é exatamente o oposto. Ela também é significativa, na medida em que sinaliza o início de mudanças há muito esperadas nas escolas, em favor de uma estrutura de aprendizado ao longo de toda a vida, que coloque forte ênfase no aluno. Na mesma medida em que são inesperadas e significativas, essas mudanças também são complexas, em termos de como elas ocorreram. Elas são o resultado de um conjunto de políticas que têm origem não apenas no setor educacional, mas também nos setores sociais e econômicos, para não mencionar os fatores 20 financeiros e ideológicos. As reformas e suas conseqüências têm de ser vistas nesse contexto mais amplo. Mas é significativo que essa integração ascendente tenha sido, afinal de contas, uma meta política, estabelecida e perseguida de forma explícita pelo governo, como ilustrado a seguir. Na década de 80, quando o governo tentou reduzir a idade de ingresso na escola, as pessoas objetaram, vendo essa idéia como uma tentativa de encurtar a primeira infância, que os suecos vêem como a fase áurea da vida. A proposta foi rejeitada, e o enfoque adotado, desde então, foi o de importar para as escolas a pedagogia da pré-escola, mais do que ampliar o ensino escolar para abranger as crianças mais jovens. Em 1991, quando foi votado o projeto de lei sobre a Flexibilização da Idade de Ingresso na Escola, permitindo que crianças de seis anos de idade iniciassem sua escolarização, caso fosse da vontade de seus pais, o ministro da educação ressaltou que o desenvolvimento integral das crianças deveria ser uma preocupação de todos os professores, enfatizando que esse desenvolvimento integral era importante não apenas para os alunos mais jovens, mas também para seus colegas mais velhos. Em 1996, quando o primeiro-ministro divulgou sua idéia de educação ao longo de toda a vida, para a Suécia, ele afirmou que o ensino pré-escolar deveria ser parte dessa visão da educação, e que ela deveria exercer influência sobre o ensino escolar, ao menos em seus primeiros anos. Essas declarações públicas foram acompanhadas de ações políticas concretas, visando a levar a pedagogia da pré-escola para as escolas primárias. Um estudo nacional, realizado em 1994, “As Bases do Aprendizado por Toda a Vida: Uma Escola Voltada para a Maturidade das Crianças”, incentivava as escolas suecas a se tornarem mais sensíveis às necessidades e estilos de aprendi-zagem de cada criança, individualmente. Seu argumento era que a integração das pré-escolas nas escolas permitiu que as primeiras transformassem as últimas. Esse ponto foi devidamente levado em consideração na revisão dos currículos escolares11, que incorporaram muitas das práticas pedagógicas das pré-esco11 Essa revisão foi necessária para abranger as turmas de pré-escola para crianças de seis anos e os Centros de Horas de Lazer, uma das principais formas de serviços de cuidados infantis para as crianças de idade escolar integradas às escolas em 1991. 21 las. O aprendizado veio a substituir o ensino, transferindo o foco sobre os professores para o foco nos alunos. As atividades artísticas e o brincar, de importância central nas atividades pré-escolares, foram reconhecidos como meios importantes de aprendizagem e comunicação para as crianças de idade escolar. Estabelecendo essas atividades como metas pedagógicas da escola, o currículo revisado facilitou a integração ascendente. Os cuidados e a educação para a primeira infância muitas vezes são vistos como a última fronteira a ser conquistada, para que completemos o quadro de um sistema educacional capaz de promover o aprendizado permanente,12 que deve começar a partir do nascimento. Desse ponto de vista, a primeira infância é um elo que falta, uma vez que, na maioria dos casos, ele não faz parte do sistema educacional dos países, ou do enfoque do aprendizado por toda a vida. A experiência sueca mostra que esse elo faltante tem o potencial de galvanizar os esforços de um país no sentido de tornar as escolas mais centradas no aluno, de modo a provocar uma mudança de paradigma, na qual cuidados, desenvolvimento e aprendizagem não mais serão conceitos alheios ao conceito de educação. Mas essa integração não implica, necessariamente, que tenhamos de encontrar esse elo faltante e encaixá-lo na estrutura existente, ou que um setor tenha de absorver o outro – principalmente, as escolas absorvendo as préescolas. É perfeitamente possível que escolas e pré-escolas venham a construir uma visão comum dos cuidados, do desenvolvimento e do aprendizado das crianças. O mais importante é que a reforma sueca dos cuidados para as crianças representa para nós um desafio, incitando-nos a ir além da primeira infância e a desenvolver uma abordagem nova e holística do trabalho com crianças, que irá abranger seu desenvolvimento e sua aprendizagem segundo um conceito unificado de infância, indo do nascimento aos 18 anos de idade,13 do qual a primeira infância é parte integrante e indispensável. 12 O sistema educacional (formal) é um subconjunto do sistema de educação contínua, que envolve não apenas o aprendizado formal, mas também o não formal e o informal. 13 A definição da infância, segundo a Convenção dos Direitos da Criança. 22 3. RELAÇÃO ENTRE MULHERES, TRABALHO E PRIMEIRA INFÂNCIA: PAÍSES ESENVOLVIDOS E EM DESENVOLVIMENTO* O tópico é tratado em duas partes. A primeira parte cobre a relação entre as mulheres trabalhadoras e as políticas governamentais voltadas para a assistência aos filhos pequenos de pais que trabalham. A hipótese apresentada é que essa relação talvez não seja tão pronunciada nos países em desenvolvimento quanto o é nos países desenvolvidos, em razão da diferença entre as situações empregatícias das mães que trabalham, nessas duas regiões. Dados relativos aos países desenvolvidos são apresentados e discutidos, e os dados sobre o emprego feminino nos países em desenvolvimento, bem como uma discussão sobre suas implicações no tocante à primeira infância e às políticas de assistência à família, são tratados na segunda parte. 3.1 – TRABALHO FEMININO E SERVIÇOS PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA Tanto os cuidados e a educação para a primeira infância quanto os benefícios e serviços1 direcionados aos pais com filhos pequenos, nos * Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 4, de junho de 2002, e número 5, de julho-agosto de 2002. Elaboradas pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/ ecf/index.htm). O material de referência foi fornecido pela Dra Val Podmore, da Victoria University, da Nova Zelândia. 1 Licenças-maternidade, paternidade ou parental; benefícios fiscais; auxílio financeiro às crianças; etc. 23 países industrializados, se desenvolveram pari passu com o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho. Na medida em que um número maior de mães trabalha fora, coloca-se a questão de como cuidar das crianças pequenas deixadas em casa. Nos países desenvolvidos, as respostas dos governos à necessidade e à demanda de cuidados e educação para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças, nem sempre foram uniformes. Os países com fortes convicções relativas à igualdade entre os gêneros e à democracia social (os países nórdicos, por exemplo) reagiram de maneira rápida e positiva, com medidas destinadas a reconciliar as neces-sidades do trabalho e da família. Porém, os países caracterizados por ideologias liberais e orientadas para o mercado (os Estados Unidos, o Reino Unido e a Austrália, por exemplo) tenderam, até tempos recentes, a deixar a questão a cargo das famílias, minimizando a participação do governo. Os enfoques também variam. Alguns países concentraram-se na assistência aos pais (tanto pais quanto mães) e, outros, em oferecer serviços voltados para as crianças. Nos países industrializados, o emprego feminino decerto que não foi o único fator a exercer influência sobre o desen-volvimento dos cuidados e da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços destinados às famílias. A proteção às crianças foi uma preocupação que ganhou importância em inícios do século XX, juntamente com o aprimoramento do desen-volvimento das crianças e a necessidade de prepará-las para a escola primária. Em tempos mais recentes, a crescente valorização da educação, como base para o aprendizado permanente da criança, levou muitos países desenvolvidos a voltar sua atenção política a esses temas. No mínimo, a presença de um maior número de mães trabalhadoras conscientizou os governos quanto às questões relativas aos cuidados e à educação para a primeira infância e aos benefícios e serviços destinados às famílias, que, anteriormente, eram vistos como assuntos da alçada particular das famílias. Em muitos casos, o crescimento da força de trabalho feminina levou os governos a examinar esses temas de maneira 24 mais minuciosa, em todos os setores das políticas públicas.2 Não há dúvida de que a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho é uma das razões mais freqüentemente mencionadas para justificar a participação dos governos nesse setor.3 Com o envelhecimento e o decréscimo de suas populações, a expansão de seu setor de serviços e o aumento do nível educacional das mulheres, é provável que os países desenvolvidos assistam a um crescimento ainda mais rápido do emprego feminino, e as políticas para reconciliar as responsabilidades do trabalho e da família continuarão a ser de importância crítica para suas estratégias econômicas e sociais.4 A causalidade entre o emprego feminino e a expansão dos cuidados e da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças é de difícil quantificação, mas a inter-relação é indiscutível. Será possível esperar que o mesmo venha a ocorrer nos países em desenvolvimento, com o crescimento do emprego feminino estimu-lando a preocupação e o apoio dos governos ao desenvolvimento dos cuidados e da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços destinados às famílias com filhos pequenos? Antes de responder a essa pergunta, temos de entender um aspecto particular do vínculo entre o emprego feminino e as políticas dessa natureza. O fato é que a demanda explícita por esses serviços e benefícios não se manifesta em todos os tipos de emprego feminino, mas, principalmente, naqueles que exigem que a mãe se ausente de casa, impossibilitando-a de desempenhar o papel de cuidar da casa e da família em tempo integral. Falando em termos de situação 2 3 4 CALLISTER, P.; PODMORE, V. N. Striking a balance: families, work and early childhood education. Wellington: New Zealand Council for Education Research, 1995. OLMSTED, P.; WEIKART, D. (1989). How nations serve young children: profiles of child care and education in 14 countries. Michigan: The High/Scope Press, 1989. OECD. Early Childhood education and care policy in the Netherlands, Portugal, the US, and Sweden. OECD Country Notes, 1999. Disponível em <http:// www.oecd.org>. STARFIELD, B. Starting strong: early childhood education and care. (2001). Paris: OECD, 2001. OECD. OECD employment outlook, 2000 (2001). Paris: OECD, 2001. 25 empregatícia, o trabalho assalariado tem maiores probabilidades de aumentar a demanda por cuidados e educação para a primeira infância e por benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças do que o trabalho de colaboração familiar não-remunerada.5 Isso, obviamente, não significa que as mães que trabalham em atividades não-assalariadas, ou que trabalham em casa ou na vizinhança, não tenham necessidade de cuidados e educação para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados à família. Na verdade, qualquer mãe trabalhadora, independentemente do tipo de trabalho exercido por ela, arca com a sobrecarga de acumular as duas responsabilidades, no mínimo mais do que ocorreria com um pai, na mesma situação. E, tendo em vista as maiores dificuldades muitas vezes enfrentadas pelos trabalhadores não-assalariados (por exemplo, jornada de trabalho mais longa e irregular, trabalho intensivo de mão-de-obra, sazonal e de baixa remuneração), sem falar do fator da pobreza, é possível que, no caso das mães não-assalariadas, a necessidade de cuidados e educação para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados às famílias seja equivalente, se não maior que a das mães assalariadas. 5 Estas são as três grandes categorias da situação empregatícia reconhecidas pela OIT: “Empregados são todos os trabalhadores que têm empregos definidos como trabalho assalariado, onde os funcionários em questão têm contratos empregatícios explícitos ou implícitos que lhes dão uma remuneração básica que não seja diretamente dependente dos rendimentos da unidade para a qual eles trabalham.” Os trabalhadores autônomos são “aqueles cuja remuneração depende diretamente dos lucros derivados da produção de bens e serviços e, como tal, podem contratar uma ou mais pessoas para trabalhar para eles”. Os que trabalham em regime de colaboração familiar são “aqueles que têm um trabalho autônomo em um estabelecimento voltado para o mercado, administrado por um parente que mora na mesma casa”. O trabalhador familiar não-remunerado trabalha “sem remuneração em um negócio administrado por um parente que mora na mesma casa”. Uma alta proporção dos trabalhadores que operam ndependentemente, administrando sua própria empresa, indica um crescimento lento do setor formal e um crescimento rápido do setor informal do mercado de trabalho. Uma alta proporção de pessoas que trabalham em atividades familiares não-remuneradas está associada a desenvolvimento lento, mercado de trabalho fraco e economia rural. Uma economia que apresenta um setor informal de grandes proporções tende a ter uma maior proporção de trabalho autônomo e de trabalho familiar não-remunerado. ILO. Key – indicators of the labour market, 2001-2002. Geneva: OIT, 2003. 26 Mas uma distinção tem de ser feita entre a demanda e a necessidade de cuidados e educação para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados a suas famílias. Uma necessidade não se traduz, necessariamente, em demanda, a não ser que o agente responsável pela oferta seja levado a perceber essa necessidade e sinta-se obrigado a atendê-la. Quanto a isso, o trabalho assalariado é mais vantajoso que o trabalho autônomo ou o trabalho de colaboração familiar não-remunerada, no sentido de que ele tem maiores probabilidades de ser reconhecido como trabalho. Além disso, ele acontece em ambientes onde a ação coletiva e as negociações visando ao bem-estar dos trabalhadores é possível e mais freqüente. Desse ponto de vista, se a mãe tem um emprego que ela exerce em casa ou na vizinhança, a demanda explícita por cuidados e educação para a primeira infância e por benefícios e serviços destinados à família não seria tão grande quanto se ela trabalhasse fora de casa, apesar de a necessidade não ser menor. Da perspectiva única da situação empregatícia da mulher6, a questão de se os países em desenvolvimento seguirão o padrão estabelecido pelos países desenvolvidos, em termos de cuidados e educação para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças, parece admitir respostas tanto positivas quanto negativas. As pesquisas de mercado de trabalho prevêem que os países em desenvolvimento tendem a, futuramente, adotar um padrão de mudanças na participação da força de trabalho semelhante ao dos países desenvolvidos.7 Os dados mostram que as trabalhadoras dos países em desenvolvimento estão, de fato, se afastando do setor informal (por exemplo, na agricultura), indo para a indústria, os serviços e o comércio, e passando do trabalho de colaboração familiar não-remu6 7 A demanda explícita por cuidados e educação na primeira infância e benefícios e serviços para a família também pode ser influenciada pela existência de outras pessoas da família dispostas a tomar conta das crianças enquanto os pais estão trabalhando fora, pelas atitudes culturais e pelas tradições com relação às mulheres e à sua participação social, e também pelo grau de percepção que as mulheres têm de que sua situação é função de sua condição de ser mães, para não falar do sistema ideológico e político do país. ILO. Op. cit.. 27 nerada para o trabalho assalariado.8 Prevê-se, desse modo, que, nos países em desenvolvimento, o número de mulheres que trabalham fora de casa virá a crescer, com um aumento correspondente das necessidades explícitas e, o que é mais importante, da demanda por cuidados e educação para a primeira infância e por benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças. No entanto, o vínculo entre o emprego feminino e o apoio governamental a esses serviços e benefícios, nos países em desenvolvimento, tende a se solidificar de forma mais lenta. Esse prognóstico pouco tem a ver com o tamanho real da força de trabalho feminina nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, uma vez que não há diferença particular entre eles. Por exemplo, em 1998, a força de trabalho feminina, como percentual da força de trabalho total nos países de baixa renda, de renda média, de renda baixa e média e de alta renda era de 40,6%, 38,6%, 40,1% e 42%, respectivamente.9 Considerando a situação do emprego feminino, entretanto, uma grande disparidade é verificada entre norte e sul, o que, ao que se supõe, explicaria a diferença entre a demanda explícita por cuidados e educação para a primeira infância e por benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças, nessas duas regiões. Nos países desenvolvidos, a maioria das mulheres trabalha em empregos assalariados, ao passo que, nos países em desenvolvimento, principalmente na Ásia-Pacífico e na África, a maioria delas, ao que tudo indica, exerce trabalhos não-remunerados de cooperação familiar. Nos países desenvolvidos, a participação das 8 9 Essa tendência é particularmente pronunciada na América Latina e no Caribe. Indicadores Mundiais de Desenvolvimento (2002). Banco Mundial. Quando são comparados os índices de participação das mulheres entre 24 e 54 anos na força de trabalho, os países em desenvolvimento apresentam um índice ainda maior que o dos países desenvolvidos: a média dos 21 países em desenvolvimento com relação à situação de Baixo Desenvolvimento Humano, identificada no Relatório sobre Desenvolvimento Humano de 2001 (PNUD) para os anos de 1995-2000 foi de 78.4%, ao passo que, nos países desenvolvidos, em 1999-2000 (com exceção da Grécia, cujos dados são de 1998) a média foi de 72%. Dados calculados com base em ILO. Op. cit.. 28 mulheres no mercado de trabalho começou com empregos remunerados em fábricas, escritórios e atividades de serviços, que surgiram à medida que a industrialização se disseminava pela maior parte da Europa Ocidental e da América do Norte, em inícios do século XX. Como mostrado na tabela 1 a seguir, a maioria das mulheres trabalhadoras, nos países desenvolvidos, já alcançou condição assalariada. Tabela 1: População Feminina Economicamente Ativa por Setor em Países Desenvolvidos Selecionados (1946-1960), como % da totalidade do setor10 País Ano Finlândia França Alemanha Itália Noruega Suécia 1960 1954 1961 1951 1946 1950 Empregadores/ trabalhadores autônomos 11 8,9 13,8 7,3 11,0 11,5 10,6 Discriminação setorial Empregados Trabalhadores assalariados familiares nãoremunerados 64,7 26,2 58,0 25,9 70,6 22,0 58,0 24,2 88,4 – 83,8 5,1 Sem classificação – 2,1 – 6,7 – 0,4 Fonte: OIT. Anuário de Estatísticas do Trabalho: edição retrospectiva sobre censos populacionais. 1945-1989. Genebra: OIT, 1990. No caso da Noruega, 88,4% das mulheres economicamente ativas, em 1946, eram assalariadas, e esse índice foi alcançado apesar de a participação total das mulheres na força de trabalho ser de menos de 25%,12 o que sugere que o trabalho assalariado foi o que, desde o início, atraiu as mulheres para o mercado de trabalho. Também é interessante destacar que a Noruega e a Suécia, dois dos países mais desenvolvidos em termos de apoio governamental aos cuidados e à educação para a 10 Calculados a partir de dados fornecidos no Anuário. Dados sobre outros países desenvolvidos que não estão incluídos na Tabela apresentam o mesmo padrão. 11 Empregador/trabalhador autônomo é a pessoa que administra seu próprio negócio, ou pratica de forma independente uma profissão ou negócio. 12 Os índices da população feminina economicamente ativa como porcentagem do total nos outros países, nos anos mencionados. foram: 39,3% (Finlândia), 34% (França), 37% (Alemanha), 25,4% (Itália) e 29,7% (Suécia). 29 primeira infância e aos benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças, tinham os maiores índices de mulheres trabalhando em atividades assalariadas. Em 1985, na Suécia, a população de mulheres economicamente ativas trabalhando em base assalariada já alcançava 96,5%. Segundo dados recentes da OCDE, a proporção do trabalho feminino em atividades familiares não-remuneradas tem caído de forma constante, em 11 de seus 13 países-membros.13 3.2 – SITUAÇÃO EMPREGATÍCIA DAS MULHERES NOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO E IMPLI-CAÇÕES PARA POLÍTICAS PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA A maior parte das trabalhadoras mulheres, nos países em desenvolvimento, particularmente na região Ásia/Pacífico e na África, não tem empregos assalariados. Nessas regiões, as mulheres trabalham principalmente na agricultura, na condição de trabalhadoras em atividades familiares não-remuneradas. Na África Subsaariana, a maioria da população feminina economicamente ativa trabalha na agricultura (68%).14 Na Ásia e no Pacífico, essa tendência é tão mais pronunciada quanto mais baixo for o nível de renda do país, sendo que, nos países menos desenvolvidos da região, cerca de 78% das trabalhadoras mulheres estão empregadas na agricultura (tabela 2). Segundo os dados disponíveis sobre a situação empregatícia em alguns países em desenvolvimento, as trabalhadoras com empregos assalariados perfazem menos de 10% do total (tabela 3). A preponderância das trabalhadoras mulheres nos empregos não-assalariados, contudo, não é uniforme em todos os países em desenvolvimento. Na América Latina e no Caribe, a proporção de mulheres que trabalham sem remuneração em atividades familiares caiu consideravelmente, sendo que, hoje, a maioria das mulheres é ou assalariada ou autônoma. Mas o florescimento do 13 Em dados de séries temporais, cobrindo o período de 1990 a 1997, com valor médio de 1,3% (Austrália), variando entre 0,2% (Estados Unidos) e 24% (Grécia). Referência: ILO. World Employment Report: life at work in the information economy (2001). Genebra: OIT, p. 21. In: OECD. OECD: employment outlook 2000. Op. cit. p. 21. 14 WORLD BANK. African Development Indicators (2002). Washington, DC: World Bank, 2002. 30 Tabela 2: Força de Trabalho Feminina por Divisão Industrial na Ásia e no Pacífico (1990), como % da totalidade dos setores15 Grupo de Renda Menos desenvolvido Baixa renda Renda média Alta renda Total para a Cesap 16 Setor Econômico Indústria 13,5 14,2 15,3 26,4 15,7 Agricultura 77,8 73,7 65,7 9,9 64,6 Serviços 8,6 11,9 18,8 63,5 19,6 Fonte: UNITED NATIONS. Statistics on women in Asia and the Pacific, 1999. ILO. Economically active population, 1950-2010. Genebra: OIT, 1996. UNFPA. World population prospect: the 1998 revision, New York: UNFPA, 1999. setor informal nessa região17 sugere que muitas mulheres contadas como assalariadas talvez não tenham situações empregatícias regularizadas, mas se encontrem em situações marginais, como as que trabalham em casa ou são trabalhadoras domésticas ou eventuais. Tabela 3: Emprego de mulheres por situação empregatícia em países em desenvolvimento selecionados (1991-97), como % da situação empregatícia total País Bangladesh Benin Etiópia Uganda Ano 1991 1996 1992 1994 1999 1991 1994 Situação de Emprego Trabalhadoras em Assalariadas Autônomas Colaboração Familiar 5,,2 6,4 83,3 8,7 7,8 77,3 2,6 63,8 28,6 4,0 25,4 69,6 6,8 33,1 59,5 4,6 25,4 53,3 6,7 39,1 54,0 Fonte: OIT. Key-Indicators of the labour market, 2001-02. Op. cit.. 15 Calculados com base nos dados apresentados na referência citada. CESAP – Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacifico, o braço regional do Secretariado das Nações Unidas para a região Ásia/Pacifico, com 52 estados-membros (e nove membros associados). 17 De 47,4%, em 1990, para 50%, em 1998. ILO. World employment report: Life at work in the information economy. Op. cit. 16 31 Nos países em desenvolvimento, supõe-se que a proporção de mulheres que trabalham em situação não-assalariada seja maior que a sugerida pelos dados disponíveis. Na maioria dos países, as estatísticas sobre o setor informal provêm unicamente das áreas urbanas, e muitas mulheres rurais, que trabalham informalmente, não são contadas. Além do mais, a maioria das mulheres dos países em desenvolvimento dedicase a atividades que geralmente não figuram nas estatísticas trabalhistas, ou sequer são reconhecidas como trabalho, como a agricultura de subsistência e o trabalho doméstico. Embora essas atividades sejam de importância vital para a sociedade e para a economia doméstica, elas não têm reconhecido seu valor de mercado. As principais conclusões a serem extraídas dessas observações são, em primeiro lugar, que não se pode ter como certo que as mães, nos países em desenvolvimento, estejam disponíveis para cuidar das crianças em tempo integral e, em segundo lugar, que, nesses países, a demanda por cuidados e educação para a primeira infância e por benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças é enorme, entre as mães que trabalham. Essa demanda, contudo, não é explícita.18 Para que os governos se sintam motivados a intensificar sua participação e seus investimentos nos cuidados e na educação para a primeira infância e nos benefícios e serviços destinados a suas famílias, essa demanda oculta tem de ser tornada manifesta. Para tal, as estatísticas sobre a força de trabalho têm de se tornar mais sensíveis às questões de gênero, mais especificamente, conferindo valor de mercado aos trabalhos de tipo não-assalariado e ao trabalho familiar não-remunerado – aos bens produzidos em casa pelas mulheres (Myers, 1992).19 Também deve haver disponibilidade de dados que demonstrem que as mães que desempenham trabalhos não-assalariados não têm condições de cuidar de seus filhos em tempo integral. A ironia é que, apesar de suas dificuldades, as mães que trabalham em situação não18 19 Nas áreas rurais, a presença de parentes e avós também contribui para mascarar a demanda por esses serviços e benefícios. MYERS, R. The twelve who survive. London: Routledge, 1992. 32 assalariada, principalmente as que possuem baixa escolaridade e trabalham na agricultura, em áreas rurais, tendem a acumular as responsabilidades pelo trabalho e pela família, geralmente com maior freqüência que as assalariadas.20 Muitas dessas mulheres simplesmente não têm alternativa, mas essa carga dupla só faz perpetuar o mito de que as “mulheres que ficam em casa” têm disponibilidade para cuidar dos próprios filhos, não necessitando de cuidados e de educação para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados a suas famílias. Nos países em desenvolvimento, essas observações trazem implicações quanto às políticas que tratam dos cuidados e da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças. Em primeiro lugar, não há grande probabilidade de as medidas de assistência à família, tais como licença parental, concedidas nos países desenvolvidos a pais e mães de filhos menores de dois anos,21 virem a ser adotadas nos países em desenvolvimento, pelo menos em um futuro próximo. A razão para tal é que, além dos obstáculos óbvios, como as limitações de recursos, os governos dos países em desenvolvimento têm dificuldade em fornecer esses serviços de assistência à família à população-alvo, devido ao problema técnico de mapear a presença de mães e pais que trabalham no setor informal, uma vez que inexistem instrumentos contratuais. Os sistemas de licença parental exigem uma estrutura administrativa sofisticada de acompanhamento das condições e da situação empregatícia dos pais. Em segundo lugar, dado o custo por criança relativamente alto, os serviços institucionais para crianças de menos de três anos também estão fora das possibilidades da maioria dos países em desenvolvimento. No que diz respeito aos cuidados e à educação de crianças pequenas em seus primeiros anos de vida, uma alternativa possível seria educar os pais para as tarefas básicas de higiene, alimentação e interação com 20 ZAMBIA. Statistics Centre of Zambia. Zambia demographic health survey, 1996. Zambia: Statistics Centre of Zambia. 21 Ou, no máximo, de três anos de idade. 33 a criança. A educação dos pais, que não exige um sistema administrativo sofisticado, uma vez que pode ser oferecida por meios não formais, pode vir a ter um impacto significativamente positivo no desenvolvimento da primeira infância, aumentando a eficiência dos pais como educadores de seus filhos pequenos. A educação parental não ajuda a resolver o problema da ausência dos pais, mas faz com que eles se tornem mais eficientes na educação de seus filhos pequenos nas horas em que estão presentes. No entanto, como afirmado acima, as mães em situação carente, o principal grupo-alvo dos programas de educação parental, não têm muito tempo livre para assistir a essas aulas. Por essa razão, foram formulados programas domiciliares, a fim de mobilizar mães para atuar como educadoras coletivas de primeira infância para grupos de crianças que moram na vizinhança. Essa solução permite que as mães trabalhem, enquanto seus filhos estão sendo cuidados por alguém que recebeu um mínimo de treinamento. No entanto, os programas domiciliares e os de educação parental não devem ser vistos como alternativas permanentes, não devendo substituir, em base definitiva, os investimentos governamentais em cuidados profissionais e educação para crianças carentes. Além disso, para que uma maior qualidade seja alcançada, esses programas também exigem apoio e participação governamental, a fim de montar a necessária infra-estrutura administrativa. Por fim, no longo prazo, os investimentos na educação de meninas e mulheres exercerá um efeito sinérgico sobre o desenvolvimento dos cuidados e da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços destinados às famílias. Já foi demonstrado que o nível educacional das mães guarda uma correlação negativa com suas taxas de fertilidade: as mães de maior nível educacional têm menos filhos. Famílias pequenas, por sua vez, permitem que o governo aumente seus gastos com cada criança, nos investimentos em serviços voltados para a primeira infância, aumentando assim o acesso a eles e sua qualidade. As mães com maior escolarização não necessitam de educação parental extensiva, e tampouco precisam ser convencidas da importância dessa educação, o que já não ocorre com as mães de menor nível educacional. Essas mães mais educadas, além disso, têm maiores probabilidades de estar empregadas no setor 34 formal22, e a maior visibilidade de sua presença na economia aumenta a demanda explícita por cuidados e educação para a primeira infância e por benefícios e serviços destinados às famílias dessas crianças, levando o governo a fornecer esses serviços. Os investimentos governamentais representam uma decisão política, resultante do estabelecimento de prioridades. Para desencadear esse processo, a demanda tem de ser claramente explicitada. As lúgubres estatísticas sobre o desenvolvimento infantil (por exemplo, as taxas de mortalidade infantil) talvez revelem a necessidade de cuidados e educação para a primeira infância e de benefícios e serviços destinados às famílias, mas, infelizmente, a necessidade, por si só, não basta para conquistar investimentos públicos. Embora as mães não sejam as únicas beneficiárias dos serviços e benefícios voltados para a primeira infância, elas são as beneficiárias estratégicas, no sentido que é delas a voz capaz de manifestar essa demanda. Nesse particular, incentivar as mulheres, por meio de uma melhor educação, a ter uma participação mais ativa no mercado de trabalho formal, não é apenas uma estratégia econômica acertada, mas também uma boa estratégia para o fomento dos cuidados e da educação para a primeira infância e dos benefícios e serviços destinados às famílias. Da mesma forma, os investimentos nesses serviços e benefícios representam um reforço para o desenvolvimento positivo das crianças, o que, por sua vez, é uma estratégia econômica acertada, uma vez que esses investimentos, no longo prazo, se traduzirão em economia, em termos de programas sociais e educacionais de natureza corretiva. 22 Nos países-membros da União Européia, as mães de maior nível educacional têm probabilidades duas ou três vezes maior de trabalhar, mesmo tendo filhos pequenos, do que as mães de menor escolaridade. 35 4. SERVIÇOS DE BASE DOMICILIAR PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA: O CASO DA NOVA ZELÂNDIA* O principal objetivo desta nota é fornecer breves informações sobre os serviços para a primeira infância existentes na Nova Zelândia, ressaltando a importância do papel desempenhado pelo governo no apoio à qualidade dos serviços oferecidos às crianças em creches domiciliares. Pretende-se que essas informações sejam de utilidade para outros países que estejam desenvolvendo políticas de cuidados e de educação de base domiciliar. Cada vez mais, as creches domiciliares, na Nova Zelândia, orientam-se para a educação e buscam oferecer diversidade. Esta nota resume os principais detalhes e as impli-cações importantes, em termos de participação e administração (financiamento, avaliação, regulamentação, qualificação da equipe profissional, currículos etc.). DEFINIÇÃO As creches domiciliares oferecem cuidados e educação a um pequeno grupo de crianças, na casa de uma “mãe-crecheira”. Esses serviços (também conhecidos como “creches familiares”) são definidos pelo Ministério da Educação como “um conjunto de casas de família funci* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 6, de setembro de 2002. Elaborada por Valerie N. Podmore, Instituto de Estudos sobre a Primeira Infância, Victoria University, Wellington, Nova Zelândia. Publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/ educprog/ecf/index.htm). A autora agradece à Dra Anne Meade e à Jane Couch, que foram de grande auxílio na revisão de uma versão anterior desta nota. 37 onando sob a supervisão de um coordenador de base domiciliar. Esse coordenador distribui as crianças entre as diversas creches familiares previamente aprovadas, onde elas permanecerão por um número preestabelecido de horas semanais”1. Diferentemente do serviço privado oferecido na casa da própria criança (babás ou empregadas), acessíveis apenas às classes mais privilegiadas, as creches domiciliares atendem a famílias de diferentes faixas de renda. DESENVOLVIMENTO E PARTICIPAÇÃO Em fins do século XX, na Nova Zelândia, como também em outros países industrializados, o aumento dos índices de participação das crianças em serviços de educação para a primeira infância desenvolveuse simultaneamente a uma maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Em 2001, uso mensurado dos serviços voltados à primeira infância por crianças de zero a cinco anos atingiu 60%. No período 1990-2000, o percentual de crescimento das matrículas nos serviços de creches domiciliares foi maior que os dos demais serviços de atendimento à primeira infância (ver tabela 1). A principal razão para esse aumento das matrículas nesses serviços (e em serviços de “educação e cuidados”), e para a diminuição das matrículas nos “centros de lazer” (centros criados e administrados por cooperativas de pais) foi o crescimento do trabalho assalariado entre as mães. Os pais de bebês e crianças pequenas muitas vezes preferem uma creche domiciliar a um centro de lazer, por optarem por um ambiente familiar.2 Em 2001, havia 184 creches domiciliares funcionando na Nova Zelândia, atendendo a 8.546 crianças de zero a cinco anos. A principal clientela dessas creches domiciliares são crianças neozelandesas de origem européia e de origem maori (7.015 e 1.012, respectivamente).3 Um número ligeiramente maior de meninos que de meninas estava matri1 2 Disponível em: <http://www.minedu.govt.nz/webment_page.cfn?id=6189&p=1037.3832. 6120/>. CALLISTER, P.; e PODMORE, V. N. et al. Striking a balance: families, work and early childhood education: Wellington:Educational Research Council of New Zealand, 1995. 38 Tabela 1: Número de matrículas de Crianças Pequenas, na Nova Zelândia, por Tipo de Serviço, com Percentual de Mudança entre 1990 e 2001 Tipo de serviço 3 Serviços licenciados para a primeira infância Jardins de infância Centros de lazer Serviços de educação e cuidados Creches domiciliares Escolas por correspondência* Te Kohanga Reo Serviços para a primeira infância isentos de licenciamento Financiados pelo Desenvolvimento para a Primeira Infância Grupos de brincadeiras Nga Puna Kohungahunga** Grupos de PI para as Ilhas do Pacífico Centros de lazer Kohanga Reo isento de licenciamento Total 1990 2001 % de mudança 43.792 22.668 29.786 1.611 861 10.108 45.439 14.786 73.192 8.546 947 9.594 3,8 -34,8 145,7 430,5 10,0 -5,1 5.565 ... 2.729 .. .. 15.457 209 2.545 404 214 177,8 ... -6,7 – – 117.120 171.333 46,3 .. não-disponível / ... não-aplicável /*inclui matrículas duplas / ** incluídos nos grupos de brincadeiras nos anos anteriores. Fonte: Unidade de Administração de Dados do Ministério da Educação da Nova Zelândia, julho de 2002. 3 Uma definição sumária desses serviços seria: Jardins de infância: estabelecimentos independentes, gerenciados pela comunidade e funcionando em turnos (administrados por associações regionais) para crianças de três e quatro anos. Centros de lazer: cooperativas de pais, funcionando em turnos (administrados por associações regionais) para crianças a partir do nascimento até a idade de ingresso na escola. Os educadores e administradores são os pais das crianças matriculadas. Centros de educação e cuidados: centros de cuidados infantis, com diversos regimes de propriedade e administração, em tempo integral ou turnos distintos. Creches domiciliares: as crianças são cuidadas em casas de família e, nas últimas décadas, muitas vezes, sob os auspícios da Barnardo’s NZ. Escolas por correspondência: as primeiras etapas do ensino são ministradas a distância, sendo oferecidas pela escola por correspondência do estado. Te Kohanga Reo: total imersão das crianças, do nascimento até o ingresso na escola, na cultura, na língua e nos valores maoris. Os estabelecimentos são administrados por um venerável conselho de anciãos maoris. Os educadores e administradores são os pais ou os membros mais velhos da comunidade maori. 4 Disponível em: <http:www.minedu.govt.nz>. 39 culado em 2001 (4.405 meninos e 4.141 meninas). Nesse mesmo ano, havia 282 coordenadoras de creches domiciliares, todas elas mulheres. ADMINISTRAÇÃO, FINANCIAMENTO, REGULAMENTAÇÃO E QUALIFICAÇÕES Anteriormente a 1986, na Nova Zelândia, o Departamento de BemEstar Social era o principal responsável pela administração dos serviços de creches domiciliares para a primeira infância. Em 1986, a responsabilidade pela assistência às crianças (inclusive os serviços de base domiciliar) foi oficialmente transferida do Departamento de Bem-Estar para o Departamento de Educação.5 Atualmente, o Ministério da Educação é responsável pela administração e pelo financiamento (parcial) dos serviços de cuidados e educação oferecidos nas creches domiciliares. Todos os estabelecimentos domiciliares recebem o mesmo nível de financiamento, por criança e por hora, que o destinado aos serviços oferecidos em instituições. Os níveis de financiamento, portanto, estão atrelados aos índices de participação. Uma vez que as matrículas nas creches domiciliares cresceram com relação aos demais serviços (tabela 1), o mesmo ocorreu com os níveis de financiamento. O crescimento dos serviços voltados para a primeira infância, inclusive os domiciliares, foi acompanhado de pesquisas, de pressão exercida por lobbies e de ações governamentais destinadas a elevar a qualidade desses serviços. As pesquisas norte-americanas sobre creches domiciliares confirmam a importância de: licenciamento e regulamentação dos serviços, qualificação dos provedores e disposição, por parte desses provedores, de cuidar das crianças e aprender sobre desenvolvimento infantil e sobre os cuidados dispensados às crianças.6 Foram poucos os estudos realizados na Nova Zelândia que enfocaram, especificamente, a qualidade dos 5 Meade, A. e Podmore, V. N. (2002) Early childhood education policy co-ordination under the auspices of the Department/Ministry of Education: A case study of New Zealand. UNESCO Early Childhood and Family Policy Series nº 1. Paris, França. 6 P. ex., GALINSKY, E. et. alii. The study of children in family childcare and relative care. Nova York: Families and Work Institute, 1994. 40 ambientes domiciliares,7 embora alguns estudos aprofundados, de pequena escala, estejam atualmente em fase de execução. As iniciativas do governo da Nova Zelândia no sentido de fomentar e monitorar a qualidade dos serviços incluem exigências quanto a acompanhamento, regulamentação e qualificação. Os serviços de base domiciliar, como também outros serviços para a primeira infância subsidiados por verbas públicas, são objeto de acompanhamento externo pela Divisão de Acompanhamento Educacional (Education Review Office – ERO), o departamento do governo responsável pela divulgação da qualidade da educação oferecida pelos serviços/escolas para a primeira infância. O ERO avalia a segurança das crianças, os programas de aprendizagem e o desempenho da administração. Os serviços de base domiciliar para a primeira infância são regulamentados nos termos do Decreto da Educação (Cuidados de Base Domiciliar) de 1992. Esse decreto especifica os requisitos quanto a instalações e equipamentos, e exige que todos os coordenadores tenham suas qualificações aprovadas pelo Secretário (o titular do Ministério da Educação). No entanto, até o presente, não foram especificados requisitos de qualificação formal em questões de primeira infância para os responsáveis pelas creches domiciliares. Estão sendo, atualmente, implementadas mudanças nessas qualificações, no sentido de exigir dos coordenadores dos serviços de base domiciliar um diploma em licenciatura em educação infantil ou grau equivalente.8 Um relatório de plano estratégico, recentemente elaborado para o Ministério da Educação, recomenda que o sistema de qualificações para os educadores domiciliares necessita de maior desenvolvimento. As novas exigências de qualificação para os coor-denadores dos serviços domiciliares são idênticas às requeridas para os responsáveis pelas instituições de atendimento à primeira infância. A estrutura cur7 EVERISS (1999), Bringing it back to mind: two decades of family day-care development in New Zealand. Wellington: Institute for Early Childhood Studies, Victoria University, 1999. (Occasional articles; 5). 8 Uma qualificação desse nível de diploma exige, no mínimo, dois anos de estudos em tempo integral (ou equivalente), em uma instituição credenciada de ensino superior. 41 ricular (Te Whaariki) adotada e todos os serviços para a primeira infância são biculturais e uniformes em todo o país. O Te Whaariki foi desenvol-vido em parceria com os maori (o povo nativo) e é praticado também nos serviços de base domiciliar. Foram adotadas, ainda, iniciativas políticas visando a incentivar o aperfeiçoamento dos serviços por meio da auto-avaliação dos educadores. IMPLICAÇÕES Quais são as implicações para os países onde os programas de base domiciliar estão em mãos de indivíduos, sem receber qualquer tipo de supervisão ou financiamento por parte do governo? Na Nova Zelândia, como também em outros países onde os governos vêm acatando os resultados das pesquisas sobre os benefícios educacionais e sociais dos serviços de educação e cuidados de alta qualidade para crianças pequenas, as prioridades são o aumento da participação e a elevação da qualidade de um amplo espectro de serviços. O atendimento dessas prioridades pode vir a incluir: • o desenvolvimento de infra-estruturas administrativas adequadas, de regulamentação, de currículos e de sistemas de apoio; • o fomento da qualidade por meio da educação (qualificação dos coordenadores e das pessoas responsáveis por cuidar das crianças, com treinamento profissional permanente). Esses requisitos são importantes, a fim de evitar os problemas de fragmentação administrativa e, principalmente, para elevar a qualidade dos serviços. Uma das principais razões para o apoio e a regulamentação por parte do governo é que a qualidade dos serviços para a primeira infância, das creches domiciliares inclusive, está associada a benefícios educacionais e sociais de longo prazo para as crianças e as famílias. 42 5. O PROGRAMA DE PRÉ-ESCOLA NA LÍNGUA VERNÁCULA DE PAPUA-NOVA GUINÉ* A diversidade cultural e lingüística ocorre por diversas razões. Nos países desenvolvidos, dentre essas razões, freqüentemente encontra-se o ingresso de imigrantes, de refugiados e de estudantes estrangeiros, enquanto um grande número de países em desenvolvimento sempre conteve, dentro de suas fronteiras, uma diversidade de grupos lingüísticos. Dentre os desafios colocados pela educação de crianças pequenas em ambientes dessa natureza estão: promover a identidade nacional, incentivar a participação na vida nacional, lidar com a globalização, a língua e outras questões culturais, fornecer serviços, tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas, e distribuir os recursos fiscais. Alguns países vêm tentando enfrentar esses desafios com uma política de educação bilíngüe, estratégia essa que estende a educação básica a todos. Esse objetivo não pode ser alcançado, a não ser que as línguas minoritárias ou vernáculas sejam incluídas no sistema de educação formal. Papua-Nova Guiné, uma nação insular situada no Pacífico Sul, ao norte da Austrália e a leste da Indonésia, é um dos países em desenvolvimento que possui uma política educacional bilíngüe. A reforma do sistema educacional, que anteriormente usava exclusivamente o inglês, teve início em 1995, após o movimento a * Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 7, de outubro de 2002. Elaborada por Diane Wroge, do SIL Internacional (anteriormente Instituto Summer de Lingüística), Papua-Nova Guiné. Publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/ ecf/index.htm). 43 favor de pré-escolas não formais e de base comunitária usando a língua vernácula ter-se espalhado por todo o país. A partir de então, a política governamental passou a exigir que o sistema nacional de ensino formal incorporasse o ensino da língua vernácula nos primeiros anos da escolarização das crianças e implementasse uma transição gradual para o uso do inglês como uma das línguas de instrução. Papua-Nova Guiné é um caso único em diversos sentidos, se comparada a outros países em desenvolvimento, sendo o país de maior diversidade lingüística em todo o mundo, com 823 línguas vivas faladas por uma população de 5,2 milhões de habitantes (Censo de 2000). Apenas 50 mil pessoas falam inglês como primeira língua. A população de cada grupo lingüístico é pequena, se comparada com outras línguas nativas faladas no mundo, e 80% da população de Papua-Nova Guiné reside em áreas rurais. Uma vez que o maior grupo lingüístico possui apenas 165 mil pessoas, nenhum deles é numérica ou politicamente dominante. O multilingüismo é comum, e muitas pessoas falam sua língua materna, uma ou ambas as línguas francas, o pidgin melanésio e o hiri motu e/ou a língua oficial, o inglês. É importante observar que, na Papua-Nova Guiné, o inglês é aprendido num contexto de língua estrangeira, em grande parte por meio do sistema educacional, e não em um contexto de segundo idioma. A maioria das pessoas tem pouco contato com o inglês, exceto aquelas que moram nas proximidades dos centros urbanos. De 1870 até 1950, a maioria das escolas em Papua-Nova Guiné foi fundada por missões, e as línguas vernáculas eram usadas como a língua de instrução. Uma política dando exclusividade ao inglês foi adotada na década de 50. Por ocasião da independência de Papua-Nova Guiné, em 1975, essa política passou por uma revisão, embora tendo sido mantida no Plano de Educação de 1975. A instrução nas línguas vernáculas foi restabelecida em 1995.1 1 LITTERAL, R. Basic Education in Papua New Guinea: past, present and future. In: First Faculty of Humanities Conference Bridging Borders: Moving Boundaries: Defining/ Redefining the Humanities into the New Millenium, Goroka, 30 Oct.-3 Nov. 2000 Report. Goroka, Papua New Guinea: University of Goroka, 2000. 44 Em 1979, pais de alunos moradores da ilha de Bougainville, na província de North Solomons, manifestaram sua preocupação de que o sistema escolar exclusivamente de língua inglesa estava alienando seus filhos de sua própria língua e cultura. As crianças que não passavam nos exames de admissão à escola secundária tinham de retornar a suas aldeias, mas, então, não eram capazes de se reintegrar na vida de sua comunidade. A proposta dos habitantes da ilha de Bougainville era oferecer a seus filhos dois anos de educação pré-escolar em sua própria língua, antes do primeiro ano da escola primária, na qual a língua oficial era o inglês. O sistema das Vile Tok Ples Skul (VTPS) (escolas na língua da aldeia) surgiu, então, como uma alternativa de ensino pré-escolar não formal e de base comunitária. Mais tarde, essas escolas passaram a ser chamadas de Tok Ples Pri Skul (TPPS) (pré-escolas de língua vernácula). O governo da Província de North Solomons alocou uma grande quantidade de profissionais e de recursos orçamentários nesse programa, com o auxílio de uma organização não-governamental (ONG), que elaborou o material necessário para a alfabetização nas línguas vernáculas. Na década de 80, três outros governos provinciais e quatro outras comunidades lingüísticas seguiram o exemplo de North Solomons. As pré-escolas em língua vernácula rapidamente se espalharam pelo país, sendo que as ONGs desempenharam um papel de importância vital na maioria desses programas. Os membros da comunidade e as ONGs promoveram pré-escolas vernáculas até mesmo nas províncias cujos governos, inicialmente, não apoiaram a idéia. A participação das comunidades, dos governos provinciais e das ONGs no movimento das pré-escolas de línguas vernáculas, posteriormente, foi incorporada à política de Reforma Educacional do governo. Esses grupos investiram tempo, dinheiro e pessoal no planejamento e na implementação dos programas em suas respectivas áreas. De 1979 a 1995, os programas de pré-escolas de língua vernácula permaneceram na área da educação não formal. Eles não estavam sujeitos a exigências padronizadas quanto a currículos, critérios de seleção de professores ou cursos de treinamento de pessoal docente. Os alunos poderiam concluir um programa de pré-escola em um ou dois anos. Os professores recebiam menos treinamento que os professores das 45 escolas primárias certificadas. Muitos deles trabalhavam em base voluntária, principalmente nas comunidades ou nas províncias que não ofereciam apoio financeiro. Uma análise dos programas de VTPS concluiu não apenas que as crianças que haviam freqüentado uma pré-escola vernácula de aldeia antes de ingressar na primeira série se beneficiavam de nítidas vantagens educacionais, mas também que suas comunidades auferiam benefícios sociais e culturais (Delpit e Kemelfield, 1985).2 Os professores de escola primária notaram que a transição para as turmas de língua exclusivamente inglesa era muito mais fácil para as crianças que haviam freqüentado as pré-escolas vernáculas, se comparadas com as que não haviam tido qualquer experiência educacional prévia. Os membros e anciãos da comunidade, mesmo os que, eles próprios, não sabiam nem ler nem escrever, foram convidados para passar às crianças, em sala de aula, conhecimentos e informações importantes. Em julho de 1991, após a proliferação das pré-escolas vernáculas em Papua-Nova Guiné, funcionários dos departamentos nacionais e provinciais de educação concordaram, de forma unânime, que o sistema de educação formal necessitava de reestruturação. Esse consenso levou, posteriormente, à Lei da Educação de 1995. A Reforma Educacional, formulada para aumentar o acesso à educação e sua igualdade e qualidade, incentiva a instrução em língua vernácula nos três primeiros anos da escolaridade da criança (elementar-prep., elementar 1 e elementar 2). O inglês oral é introduzido como parte do currículo da série elementar 2. As séries primárias iniciais (3-5) são ensinadas na língua vernácula e em inglês. A partir daí, ocorre uma transição gradual para o inglês e, na medida em que as séries avançam, mais tempo é dedicado ao inglês como veículo de instrução (3ª série, 60% vernáculo, 40% inglês; 4ª série, 40% vernáculo, 60% inglês; e 5ª série, 30% vernáculo, 70% inglês). Em 1997, todas as vinte províncias já haviam começado a 2 DELPIT, L.; KEMEFIELD, G. (1985). An evaluation of the Viles Tok Ples Skul scheme in the North Solomon Province. Goroka, Papua New Guinea: University of Papua New Guinea, 1985. 46 implementar um Plano Provincial de Educação, aprovado nacionalmente. A política de Reforma da Educação reconhece a importância dos papéis desempenhados pela comunidade, pelas ONGs e pelo governo, no desenvolvimento, na disseminação e na implementação dos programas de língua vernácula na pré-escola. Esse plano incentiva todas essas partes interessadas a dar continuidade à sua participação. O Departamento Nacional de Educação estabelece as diretrizes curriculares e os critérios para a seleção de professores e para formadores de professores. Por seu lado, o Departamento Provincial de Educação tem a tarefa de implementar a Reforma Educacional de conformidade com seu próprio plano. Os responsáveis pela formação dos professores, no nível provincial e distrital, planejam e organizam esses cursos de treinamento. Quando uma nova escola primária é aprovada e registrada, e seus professores já passaram por treinamento, eles têm permissão para começar a dar aulas nas línguas vernáculas. Os membros da comunidade são incentivados a construir as salas de aula para as escolas primárias, indicar professores e colaborar com eles no desenvolvimento de currículos culturalmente relevantes. Ocorreram conflitos, quando membros de algumas comunidades e ONGs colocaram a objeção de que estava havendo intervenção do governo nos programas que eles próprios haviam desenvolvido. Um exemplo desses conflitos ocorreu na província de East New Britain, a última a dar início à implementação da Reforma Educacional. O governo provincial e as comunidades locais, que haviam obtido êxito no desenvolvimento de pré-escolas com seus próprios esforços, relutaram em ceder o controle dessas escolas ao governo nacional. Uma vez que a política da Reforma Educacional permite, embora não exija, a inclusão das línguas vernáculas nas pré-escolas pertencentes ao sistema de ensino primário, algumas províncias incorporaram esses idiomas e os professores que os lecionavam, ao passo que outras não o fizeram. Os principais elementos da Reforma Educacional de Papua-Nova Guiné são o incentivo ao ensino nos anos iniciais nas línguas vernáculas e uma aproximação gradual ao inglês, como fonte de comunicação mais ampla. Ela inclui também o desenvolvimento de currículos e ma- 47 teriais que possuam relevância cultural, e a oferta de nove anos de educação básica, em vez de seis, em ambiente mais próximo à aldeia nativa da criança. Em fins de 2000, a Reforma Educacional abrangia 380 grupos lingüísticos. Na experiência de Papua-Nova Guiné, um movimento a favor de uma educação não formal, em língua vernácula, oferecida nas próprias aldeias, lecionada por professores com treinamento mínimo, acabou por fazer com que o país, como um todo, se lançasse à ambiciosa empreitada de oferecer educação na língua que as crianças de início dominam melhor: a sua própria. Elas, então, estarão mais bem preparadas, em termos cognitivos, acadêmicos e de desenvolvimento, para transferir sua capacidade de aprendizado, de sua língua materna, para o inglês. 48 6. AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A DEMANDA GLOBAL DE CUIDADOS E DUCAÇÃO PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA* Na medida em que as instâncias de formulação de políticas planejam, para a próxima década, o desenvolvimento dos programas de cuidados e educação para a primeira infância, será de fundamental importância poder contar com informações sobre as tendências que, com grande probabilidade, irão afetar de forma drástica a demanda por cuidados e educação para a primeira infância, a fim de que os planos que estão atualmente sendo formulados sejam capazes de aumentar a oferta de serviços viáveis, disponíveis, acessíveis e de qualidade. A demanda por serviços para a primeira infância, em todo o mundo, vem passando por grandes transformações, provocadas por uma série de forças demográficas de grande impacto. Dentre essas forças estão a urbanização, a transferência de homens e mulheres do trabalho agrícola para o não-agrícola e do setor informal para o formal, bem como a necessidade de desenvolver uma força de trabalho de maior nível educacional, capaz de competir com sucesso na economia globalizada. Estimativas das Nações Unidas prevêem que, no ano 2030, mais de 56% da população do mundo em desenvolvimento estará morando em cidades. Em inícios do século XX, apenas 18% da população mundial vivia em áreas urbanas. Mas, ao final daquele mesmo século, * Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 8, de novembro de 2002. Elaborada por Jody Heymann, Ph.D., Universidade de Harvard. Publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/ education/educprog/ecf/index.htm). 49 quase metade dessa população já morava em cidades. No mundo em desenvolvimento, as grandes transformações ocorreram nos últimos cinqüenta anos. Por que a urbanização é importante para as crianças de menos de cinco anos? É comum que, ao se mudarem para as cidades, os adultos se separem de suas famílias mais amplas. Ao mesmo tempo em que deixam de poder contar com a ajuda de suas famílias, os pais que moram em cidades geralmente fazem parte da força de trabalho formal – e mesmo aqueles que trabalham no setor informal geralmente exercem atividades nas quais é difícil ou impossível trazer crianças pequenas para o trabalho com um mínimo de segurança. As transformações que afetaram o local de moradia das famílias com filhos pequenos foram acompanhadas por uma transformação igualmente marcante no local de trabalho dos adultos. Os homens vêm, com freqüência cada vez maior, abandonando a agricultura para ingressar nas economias industriais e pós-industriais. A transferência dos pais de tipos de trabalho onde seus filhos podiam acompanhá-los para empregos situados longe de casa e da família ocorreu simultaneamente à participação crescente das mulheres na força de trabalho assalariada. Embora essas tendências demográficas relativas à força de trabalho estejam documentadas em dados, os estudos atualmente disponíveis não chegaram a examinar o número de crianças menores de cinco anos que vivem hoje em famílias onde, em conseqüência dessas tendências, todos os adultos trabalham. Há vários anos, eu fundei o Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, sediado na Universidade de Harvard, mas que possui uma equipe de campo espalhada por todo o mundo, com o objetivo de dar partida a um processo de responder a essas perguntas, e outras do mesmo teor, sobre crianças e adultos que vivem em famílias trabalhadoras em todo o mundo.1 Dentre outros projetos, a equipe de pesquisa e eu analisamos diversos levantamentos de situação familiar, executados em países da América Latina, da África, da Ásia, da América do Norte e da Europa. Maiores detalhes sobre os resultados dessas pesquisas serão apresentados em 1 Para maiores informações sobre o Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, ver <www.globalworkingfamilies.org>. 50 outras ocasiões.2, 3 A presente nota enfocará apenas os resultados iniciais diretamente relacionados à disponibilidade de membros da família que possam cuidar das crianças pequenas. No México, analisamos os dados recolhidos em um levantamento de nível nacional abrangendo mais de 14 mil famílias, a Encuesta Nacional de Ingresos y Gastos de los Hogares. Embora um número significativo de crianças estivesse sendo criada em casas de famílias mais amplas, em 38% das famílias com filhos pequenos, todos os adultos trabalhavam como assalariados. Em 21% das famílias com um ou mais filhos de zero a cinco anos, pai e mãe trabalhavam e não contavam com parentes para auxiliá-los no cuidado dessas crianças; em 3% das famílias, as crianças pequenas viviam com um único genitor que trabalhava e em 14% das famílias, os pais viviam com suas famílias mais amplas, mas todos os adultos de idades entre 25 e 55 anos faziam parte da força de trabalho. Nos estudos realizados por nós em outros países, encontramos percentuais ainda maiores de famílias com filhos pequenos onde todos os adultos faziam parte da força de trabalho. Usando o Levantamento de Indicadores Múltiplos, realizado pela Agência Central de Estatística, examinamos a experiência de 6.188 famílias, em Botswana. Em 44% das famílias com filhos de zero a cinco anos, todos os adultos trabalhavam. Embora ainda fosse bastante comum crianças de zero a cinco anos morarem com famílias mais amplas, em quase metade dos casos, todos os adultos entre 25 e 55 anos, tanto da família nuclear quanto da família ampla, estavam empregados. No Brasil e na Rússia, os números eram igualmente altos. No Brasil, em 42% das famílias com filhos pequenos, todos os adultos entre 25 e 55 anos trabalhavam. O mesmo ocorria em 52% das famílias russas nas quais havia crianças 2 Os resultados detalhados dessas entrevistas aprofundadas serão divulgados na íntegra num livro a ser publicado em 2004, pela Oxford University Press. 3 Os resultados iniciais foram também apresentados em HEYMANN, S. J.; FISCHER, A.; ENGELMAN, M., Labor conditions and the health of children, elderly and disabled family members, In: (Ed.) Global inequalities at work: the impact of work on the health of individuals, families and societies. New York: Oxford University Press, 2003. 51 pequenas. No Vietnã, as cifras eram ainda mais elevadas. Em 88% das famílias com filhos pequenos, todos os adultos trabalhavam. Ainda existem diferenças regionais importantes, que são de interesse para a situação de assistência às crianças. Dentre elas, estão o crescimento muito mais rápido da população de idosos nos países industrializados e a enorme pressão colocada sobre os serviços à primeira infância no Cone Sul da África, em razão dos índices mais altos de doenças como o HIV/Aids.4 Mesmo assim, apesar dessas diferenças regionais significativas, existem ainda claros fatores demográficos comuns a todo o mundo, que, fundamentalmente, irão dar forma às necessidades de cuidados e educação para a primeira infância. Em todo o espectro de ambientes nacionais, uma percentagem significativa de crianças pequenas está hoje crescendo em famílias nas quais todos os adultos trabalham. A fim de entender melhor como as transformações do trabalho dos pais vêm afetando os cuidados e a educação para a primeira infância, nosso Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras realizou entrevistas detalhadas com cerca de 1.000 pais e com prestadores de serviços de cuidados e de saúde a crianças, em cinco regiões. Os primeiros resultados são aqui apresentados.5 Nas situações onde as famílias trabalhadoras não tinham acesso a centros de atendimento a crianças, verificamos que os cuidados e a educação de um número significativo de seus filhos sofriam prejuízos de, no mínimo, três tipos. Primeiro, as crianças menores de cinco anos 4 Uma futura nota sobre políticas tratará da intersecção da epidemia da Aids e da necessidade de cuidados e educação para a primeira infância. 5 Em todos os países discutidos nesta nota, pais que usavam serviços ambulatoriais de saúde, em cidades selecionadas, foram entrevistados de forma detalhada. Os índices de resposta foram superiores a 80%, em todos os locais. Os resultados enfatizam claramente a existência de um problema de dimensões significativas. Embora as amostras tenham sido tanto incomumente representativas e razoavelmente substanciais para entrevistas aprofundadas, será importante realizar levantamentos objetivos mais amplos, de nível nacional, a fim de estimar com maior precisão as freqüências. 52 eram deixadas em casa, ou sozinhas ou sob os cuidados de crianças de idade escolar. Em algumas famílias, essa situação era de rotina, ao passo que, em outras, era intermitente. Em muitos casos, o resultado eram doenças evitáveis e ferimentos graves. Segundo, essas crianças eram levadas para o local de trabalho dos pais, mesmo quando as circunstâncias, nesses locais, eram nocivas a seu desenvolvimento. Terceiro, as crianças eram deixadas sob os cuidados informais de pessoas despreparadas, em ambientes inadequados. Entrevistas detalhadas mostraram que esses cuidados informais, pelos quais os pais de baixa renda podiam pagar, eram, geralmente, de qualidade extremamente precária. No México, 23% das famílias que entrevistamos, que tinham filhos em idade pré-escolar, deixavam essas crianças em casa sozinhas ou sob os cuidados de irmãos mais velhos. Em Botswana, 29% das famílias que tinham pelo menos um filho de cinco anos ou menos, já haviam deixado seus filhos em casa, ou sozinhos ou sob os cuidados de outras crianças. No Vietnã, onde uma alta percentagem das famílias (56%) tinha acesso e fazia uso de serviços formais de cuidados infantis, apenas 9% dos pais que tinham pelo menos um filho de menos de cinco anos já haviam deixado seus filhos sozinhos em casa, ou sob o cuidado de irmãos mais velhos. Avós e outros parentes em geral moravam longe demais dos pais trabalhadores para poder ajudar a cuidar dessas crianças. Mesmo aqueles que moravam perto de sua família mais ampla, acabavam tendo de deixar seus filhos pequenos sem a supervisão de um adulto, uma vez que os avós tinham saúde precária, precisando, eles próprios, de cuidados, enquanto outros também precisavam trabalhar para seu próprio sustento. No México, 45% dos pais entrevistados por nós, que tinham filhos entre zero e cinco anos, viam-se obrigados a levá-los regularmente para o trabalho. Em Botswana, embora esse número fosse menor, 9% dos pais de crianças pequenas também tinham de levar seus filhos para o trabalho, todos os dias. Embora sejam necessários estudos mais detalhados, incluindo grandes levantamentos de nível nacional, para fornecer maiores detalhes tanto sobre as circunstâncias nas quais as crianças são deixadas quanto estimativas precisas, discriminadas por país, esses resultados preliminares documentam claramente a existência de problemas importantes. 53 São diversas as implicações do cruzamento dos dados dos levantamentos nacionais e dos resultados das entrevistas detalhadas. Em primeiro lugar, as transformações que vêm ocorrendo em termos da natureza e da localização do trabalho dos pais têm como efeito limitar a capacidade de pais e mães de cuidar de seus filhos pequenos. Em segundo lugar, os membros da família estendida, muitas vezes, não estão disponíveis para ajudar no cuidado das crianças, porque a urbanização vem separando as famílias nucleares das famílias mais amplas, em termos de local de residência, e porque os membros adultos das famílias amplas geralmente também trabalham. Em terceiro lugar, na ausência de serviços direcionados a elas, a saúde e o desenvolvimento das crianças de idade pré-escolar são colocados em risco, quando elas são deixadas sozinhas, sob os cuidados de outras crianças ou levadas para o local de trabalho dos pais, onde não podem ser devidamente assistidas. Tomadas em conjunto, nossas conclusões documentam uma grande e crescente necessidade de melhor assistência às crianças pequenas e a suas famílias trabalhadoras. Essa assistência deveria tanto possibilitar que os próprios pais cuidem de seus filhos, por meio de licença remunerada para pais e mães – que são de particular importância nos casos de bebês e crianças doentes –, quanto oferecer serviços de cuidados e educação para a primeira infância. Não apenas as tendências demográficas ressaltam a demanda, já grande e cada vez maior, por serviços de cuidados e educação para a primeira infância, como também pesquisas de grande âmbito demonstram os enormes benefícios trazidos por serviços de qualidade para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional das crianças. Além do mais, em razão tanto de seu papel de suporte ao trabalho dos pais quanto de sua capacidade de melhorar os resultados educacionais das crianças, os serviços de alta qualidade de cuidado e a educação para a primeira infância desempenham papel fundamental no aumento da capacidade dos países de competir na economia global. 54 7. A COORDENAÇÃO INTERSETORIAL NAS QUESTÕES DA PRIMEIRA INFÂNCIA: LIÇÕES A SEREM APRENDIDAS* Os cuidados e a educação para a primeira infância são da responsabilidade de muitos setores do governo, principalmente das áreas de educação, assuntos sociais e saúde. A coordenação entre esses setores, no desenvolvimento e na implementação das políticas, é essencial para garantir o desenvolvimento integral da criança e o uso eficiente dos recursos públicos. A coerência na regulamentação, na concessão de verbas e nas questões de recursos humanos, como também uma visão comum a todos os setores, a respeito do que vêm a ser esses cuidados e essa educação, são os principais fatores que determinam a qualidade dos programas para a primeira infância.1, 2 A coordenação intersetorial é difícil, entretanto, principalmente no nível nacional. Ela é uma das grandes tarefas a serem enfrentadas por muitos governos, tanto de países desenvolvidos quanto de países em desenvolvimento, que querem promover um enfoque holístico da primeira infância. As respostas a esse desafio têm variado de um país a outro. Alguns tentaram eliminar o problema no nível estrutural, integrando toda a área num ministério único. Essa é uma das tendências verificadas nos países desenvolvidos. Outros tentaram demarcar as res* Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 9, de janeiro de 2003. Elaborada e publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm). 1 STARFIELD. Op. cit. Starting strong: early childhood education and care (2001). Paris: OCDE. / Education Policy Analysis (2002). Paris: OCDE, 2002. 2 A falta de coordenação entre os setores públicos e privados, bem como entre as autoridades centrais e locais, também provoca prejuízos à qualidade. 55 ponsabilidades setoriais segundo a faixa etária (por exemplo, as crianças de zero a três anos no ministério da previdência/assuntos sociais e as de quatro a cinco anos no ministério da educação). A maioria dos países, entretanto, vem optando por um enfoque menos radical nessa busca de coerência entre as políticas e a administração, lançando mão dos mecanismos de coordenação. Em termos gerais3, os mecanismos de coordenação têm eficácia quando sua função é coordenar um programa específico para a primeira infância. Por exemplo, em 2000, o governo de Cingapura, tentando coordenar os programas de educação pré-escolar oferecidos, tanto pelo Ministério da Educação quanto pelo Ministério do Desenvolvimento Comunitário e dos Esportes, montou uma Comissão Organizadora da Educação Pré-Escolar, confe-rindo a liderança ao Ministério da Educação. Com base nas contribuições dessa Comissão, foi criada uma estrutura ampla de currículos de jardins de infância, a ser usada por ambos os ser-viços, e uma Lei dos Jardins de Infância encontra-se, atualmente, em elaboração. Por intermédio de uma outra comissão mista, os dois ministérios conseguiram também desenvolver uma estrutura comum de capacitação de professores de pré-escola e credenciar cursos de treinamento e os profissionais responsáveis por eles, duas medidas de grande importância para o desenvolvimento de um sistema nacional de formação de professores de pré-escola, visando a melhorar a qualidade desses docentes. Um mecanismo de coordenação que focalize a mesma população-alvo também parece ser útil no incentivo à convergência e à cooperação entre os diferentes setores. Um caso dessa natureza é a Comissão Nacional de 3 Uma vez que há grandes variações entre os processos políticos e administrativos por meio dos quais os Mecanismos de Coordenação são criados e postos em operação, é difícil generalizar quanto aos fatores funcionais desses Mecanismos. Mas algumas observações consistentes, embora episódicas, nos permitem compreender melhor o que funciona e o que não funciona nesses mecanismos. Esta nota pretende resumir essas percepções iniciais, a fim de atrair a atenção dos formuladores de políticas para os riscos e as promessas dos Mecanismos de Coordenação que, atualmente, parecem estar proliferando, na esteira dos esforços governamentais de promover um enfoque holístico à primeira infância. 56 Coordenação e Assuntos Técnicos do Programa Oportunidades, do México. Esse mecanismo foi de grande utilidade no fornecimento, a famílias extremamente pobres, de um programa integrado de assistência social que incorpora elementos de educação, saúde e nutrição. “O fornecimento de serviços específicos continua sendo da responsabilidade de cada setor, mas um esforço conjunto é feito para que esses serviços atinjam a mesma população, tentando assim tirar partido dos efeitos sinérgicos, como concentração e conver-gência”.4 O sucesso dessa Comissão foi atribuído ainda ao fato de seus membros, originários de todos os setores afetos à questão, estabelecerem as normas de funcionamento e aprovarem as novas iniciativas de forma conjunta. Os Mecanismos de Coordenação, ao que tudo indica, são também eficazes na execução de uma tarefa específica por um determinado período de tempo. A Equipe de Projeto da Unidade de Estratégia, do Gabinete do Reino Unido, que efetuou a Revisão Interdepartamental dos Cuidados Infantis, é um bom exemplo. Os membros dessa equipe foram convocados nos diversos setores do governo, e também na iniciativa privada e nos setores voluntários. A pedido do Departamento de Educação e Capacitação, o principal órgão do governo na área da primeira infância, a equipe realizou uma ampla revisão intersetorial dos assuntos da primeira infância, produzindo um relatório cujos resultados foram usados pelo governo em processos orçamentários importantes, relacionados à área da primeira infância. Embora os Mecanismos de Coordenação tenham funcionado bem na coordenação dos setores que tratam de programas e tarefas específicas5, eles não foram muito bem-sucedidos na promoção de uma política ampla e coerente, nem na coordenação administrativa entre esses setores. Isso, em parte, tem relação com sua situação ad hoc. Numa tentativa 4 MYERS, R. (em elaboração). Early childhood policy and program coordination: a Mexican case study, Paris: UNESCO, (no prelo). (UNESCO early childhood working paper). 5 Os Mecanismos de Coordenação também são úteis para reunir diversos setores, para troca de informações e para compartilhar e divulgar atividades e material de defesa (advocacy). Eles, freqüentemente, são criados para esses fins. 57 de manter a neutralidade setorial, o mecanismo de coordenação, muitas vezes, é criado como um órgão ad hoc, externo à estrutura do ministério e sem poder decisório. Esses Mecanismos de Coordenação podem, na melhor das hipóteses, fazer recomendações aos ministérios, mas a maioria deles mostrou ter pouca influência, principalmente no que diz respeito a decisões relativas a mudanças políticas e aplicação de verbas, a não ser que, como no exemplo britânico, as recomendações feitas pelo Mecanismo tenham sido solicitadas pela principal autoridade do setor. Para contrabalançar essa falta de autoridade, os Mecanismos de Coordenação, com freqüência, são vinculados ao gabinete de uma figura política importante (por exemplo, presidente, primeiro-ministro, primeira-dama). Não há dúvida de que essa vinculação política contribua para aumentar a visibilidade e a capacidade de comandar a cooperação. Mas esse patrocínio político pode ter seu preço: quando muda o governo, o Mecanismo pode também passar por uma “transformação”. Na maioria dos casos, ele é extinto. Se ele permanece em operação, suas funções e suas atribuições são alteradas ou reduzidas, prejudicando sua continuidade. Da mesma forma, sugere-se, ainda, que o Mecanismo de Coordenação ocupe uma posição de alto nível na hierarquia do governo, como reforço a sua autoridade.6 A participação de autoridades dotadas do necessário poder de decisão e da capaci-dade de assumir compromissos é, obviamente, de importância crucial. Mas quando se solicita dessas altas autoridades que elas participem de um Mecanismo que não lide com temas ou decisões que exijam seu nível de autoridade, a tendência é elas delegarem a responsabilidade a membros menos graduados de sua equipe. A experiência mostra que esse processo de delegar participação é dispendioso em termos de tempo, e que as pessoas indicadas para a tarefa, em geral, não se engajam por completo e costumam comparecer às reuniões com menor freqüência que os membros de um Mecanismo criado como um órgão técnico compatível com seu nível de operação. Pode até mesmo acontecer de esse proces6 Cf. TORKINGTON, K. (2001) WGECD policy project: a synthesis report. s. I.: ADEA Working Group on Early Childhood Development, 2001. 58 so de delegar participação ser a causa do fracasso do mecanismo, em razão da dificuldade de agendar reuniões.7 Uma estratégia de natureza estrutural, visando a assegurar que os Mecanismos de Coordenação contem com poder decisório, é inserilos na estrutura de um ministério técnico.8 Essa estratégia exige que a liderança do processo seja conferida a um dos setores do governo, o que consiste num desafio, quando se trata de serviços para a primeira infância. Em primeiro lugar, caso o governo já não tenha estabelecido um claro vínculo entre as questões da primeira infância e esse setor específico, a escolha de um setor pode representar um risco, por mais necessária que ela seja, uma vez que essa decisão pode, inadvertidamente, vir a diminuir os papéis dos demais setores.9 Em segundo lugar, a escolha de um setor representa uma decisão que depende de muitos fatores. Como é compreensível, ela varia segundo o contexto ideológico, e também segundo as prioridades relativas à primeira infância, naquele país. Não há uma solução universalmente aplicável, cada país tem de passar por seus próprios processos consultivos, de reflexão e de aprendizado. Por fim, uma vez designado um setor, ele tem de estar aberto a um enfoque amplo, que abra espaço aos interesses de todos os setores envolvidos e que seja capaz de mobilizar os pontos fortes e competências desses outros setores. Mas, em muitos países, esse equilíbrio entre liderança e parceria não é fácil, e poucos são os que dominaram essa arte, principalmente entre os países em de7 JOB, H. (em elaboração) Early childhood policy co-ordination mechanisms in Namibia. Paris: UNESCO, (no prelo). (UNESCO early childhood working paper). 8 Essa também é uma das maneiras estratégicas para que os Mecanismos de Coordenação garantam verbas para sua operação. 9 A predominância de um setor específico, se necessária, pode ser em certa medida minimizada, se for designada para chefiar o Mecanismo uma pessoa ou organização externa ao setor governamental que assumiu a liderança, mesmo se o Mecanismo permanece no âmbito desse setor do governo. 59 senvolvimento, onde a primeira infância nunca foi objeto das políticas públicas do governo. Apesar de todos esses desafios, para que um Mecanismo de Coordenação funcione de fato, é necessário designar um setor para assumir a responsabilidade por essa coordenação, principalmente se o Mecanismo tiver como objetivo provocar mudanças nos níveis político e administrativo. Diferentemente das outras funções esperadas de um Mecanismo de Coordenação, o desenvolvimento e a implementação de um sistema político e administrativo tratando da primeira infância exige mais do que a reunião de diferentes setores. Tem de haver uma clara compreensão de onde se localiza o centro dessa coordenação e, o que é ainda mais importante, o líder reconhecido deve ser capaz de exercer a autoridade necessária e, ao mesmo tempo, agregar em torno de si uma parceria que inclua todos os setores envolvidos. Isso, por fim, significa a importância de uma decisão nacional quanto ao setor que irá liderar as questões da primeira infância, sem o que nem mesmo uma solução conciliatória moderada, como a criação de um Mecanismo de Coordenação, virá a surtir efeito. 60 8. AS CRIANÇAS EM IDADE ESCOLAR EM FAMÍLIAS COM FILHOS PEQUENOS: RISCO PARA AS OPORTUNIDADES EDUCACIONAIS* A disponibilidade e a acessibilidade financeira a serviços de cuidados e educação para a primeira infância afetam, bastante, os resultados educacionais das crianças em idade escolar. Quando as crianças recebem cuidados e educação para a primeira infância de alta qualidade, elas, mais tarde, chegarão à escola mais bem preparadas para aprender e com maiores probabilidades de vir a completar a escola primária e secundária. Esse importante fato foi bem documentado em diversas fontes. Esta nota trata de um segundo tópico, ao qual muito menos atenção foi dada: as formas pelas quais a disponibilidade de cuidados e educação para crianças de zero a cinco anos pode afetar o fato de as crianças de seis a 14 anos poderem freqüentar a escola e prosseguir seus estudos. Esta nota examinará as conclusões preliminares de uma série de estudos atualmente em andamento, que fazem parte do Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, que vêm trazendo novas informações acerca do impacto, sobre as crianças em idade escolar, da precariedade dos cuidados e da educação para a primeira infância.1 Como parte desse * Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 10, de fevereiro de 2003. Elaborada por Jody Heymann, Ph.D., Diretora-fundadora do Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, Universidade de Harvard. Publicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/ educprog/ecf/index.htm). 1 O Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, fundado pela autora, tem sua sede na Universidade de Harvard, mas possui uma equipe de campo espalhada por todo o mundo, com o objetivo de darpartida a um processo de responder às perguntas sobre 61 Projeto, a equipe de pesquisa, por mim liderada, vem analisando grandes levantamentos de situação familiar executados em países da América Latina, da África, da Ásia, da América do Norte e da Europa, a fim de investigar o impacto sobre as oportunidades educacionais das crianças em idade escolar da necessidade de oferecer cuidados às crianças de zero a cinco anos. Realizamos análises complementares desses levantamentos nacionais de situação familiar e de entrevistas detalhadas feitas em nível local, em diversos países. Tomados em conjunto, esses estudos sugerem o seguinte: em primeiro lugar, quando os pais de crianças de seis a 14 anos trabalham, seus filhos têm maiores possibilidades de freqüentar a escola. O aumento da renda familiar proveniente desse trabalho possibilita que os pais paguem mensalidades escolares, comprem uniformes e livros e enfrentem os custos adicionais, que ocorrem até mesmo nas escolas públicas. Além do mais, o aumento da renda familiar diminui as probabilidades de as próprias crianças terem de exercer trabalho remunerado, uma vez que as famílias têm dinheiro para as necessidades básicas de comida, moradia e vestuário. Em segundo lugar, embora o trabalho dos pais geralmente aumente a probabilidade de que todas as crianças da família freqüentem a escola, quando os pais de crianças pequenas (zero a cinco anos) têm de trabalhar sem contar com serviços de cuidados e educação para a primeira infância, as crianças de seis a 14 anos podem vir a ser tiradas da escola para cuidar de seus irmãos mais novos, primos e de outras crianças da família. Em terceiro lugar, embora tanto meninos quanto meninas sejam afastados da escola para cuidar de irmãos mais novos, as meninas são afetadas de forma desproporcional. Em termos específicos, as análises de dados provenientes de grandes levantamentos nacionais, realizados em Botswana, no Brasil, no México, na Rússia, na África do Sul e no Vietnã, revelam o seguinte:2 na maioria 2 as experiências de crianças e adultos que vivem em famílias trabalhadoras em todo o mundo. Para maiores informações, acessar o site <www.globalworkingfamilies.org>. O número de famílias com filhos de seis a 14 anos pesquisadas em cada país é o seguinte: 3.547 em Botswana; 2.955 no Brasil; 1.215 na Rússia, 9.529 no México e 4.488 na África do Sul. 62 dos casos, o fato de existir pelo menos uma criança de zero a cinco anos numa família na qual todos os adultos trabalham levava a um aumento da probabilidade de que as crianças de seis a 14 anos não freqüentassem a escola (tabela 1). Tabela 1: Percentual de famílias com filhos de 6 a 14 anos que não freqüentam a escola com irmãos de zero a cinco anos (quando todos os adultos trabalham) Botswana família de um único genitor família de dois genitores família ampla Brasil família de um único genitor família de dois genitores família ampla México família de um único genitor família de dois genitores família ampla Rússia família de dois genitores família ampla África do Sul família de um único genitor família de dois genitores sem irmãos de zero a cinco anos (quando todos os adultos trabalham) 19 17 24 11 10 13 30 3 19 7 7 5 32 9 18 7 7 13 9 14 6 8 14 9 10 7 Observação: Foram conduzidas análises em famílias nas quais os adultos tinham entre 25 e 55 anos, e onde havia, pelo menos, uma criança entre seis e 14 anos. As pequenas dimensões das amostragens e as diferentes definições adotadas impossibilitaram, no levantamento russo, análises comparáveis de famílias de um único genitor na qual esse genitor trabalhava e, nas análises sul-africanas, as de famílias amplas, em que todos os adultos trabalhavam. Em Botswana, no México e na África do Sul, a presença de crianças de zero a cinco anos necessitando de cuidados reduzia a possibilidade de que as de seis a 14 anos freqüentassem a escola, tanto em famílias de um único genitor quanto nas de dois genitores e nas famílias amplas, em que todos os adultos trabalhassem. No Brasil e na Rússia, a presença de crianças pequenas neces-sitando de cuidados diminuía a freqüência à escola na maior parte das categorias para as quais dados suficientes estavam disponíveis. O único país estudado por nós que não seguia esse padrão foi o Vietnã. É digno de nota que o Vietnã foi o único país 63 onde a maioria esmagadora das famílias com filhos em idade escolar entrevistadas (80%) viviam em áreas rurais.3 Por fim, com base nos dados dos levantamentos nacionais, em quatro dos cinco países em que havia dados suficientes, as meninas eram as maiores prejudicadas, e sua freqüência à escola decrescia em famílias com crianças de zero a cinco anos necessitando de cuidados. Apenas um dos grandes levantamentos nacionais permitiu que nós examinássemos diretamente as horas trabalhadas pelas crianças em tarefas de cuidar de irmãos menores: o levantamento russo nos permitiu analisar de que forma o trabalho dos pais afetava as horas diárias despendidas por crianças entre seis e 14 anos nos cuidados às crianças da família com idades entre zero e 14 anos. Nas situações em que todos os adultos trabalhavam, aumentava a probabilidade de as crianças mais velhas gastarem dez horas semanais ou mais cuidando de crianças pequenas. Embora essas conclusões, extraídas por nós dos dados resultantes das análises dos levantamentos familiares, sejam sugestivas, ainda são necessárias pesquisas adicionais, a fim de determinar até que ponto as diferenças de freqüência à escola, observadas nos países que não a Rússia, se devem à necessidade de cuidar de irmãos menores ou a outros fatores. O tipo das perguntas colocadas nos grandes levantamentos nacionais limita as conclusões passíveis de ser extraídas desses estudos, tomados isoladamente. Em razão da limitação desses conjuntos de dados, nós planejamos e realizamos entrevistas aprofundadas com quase 1.000 famílias trabalhadoras em cinco regiões do mundo, incluindo amostragens representativas de cidades grandes e pequenas, no México, em Botswana e no Vietnã. 3 Nos ambientes predominantemente rurais, a natureza do trabalho parental e da capacidade dos pais de levar os filhos pequenos para o trabalho apresenta diferenças significativas da situação verificada nos ambientes urbanos. Para uma discussão mais detalhada do impacto da urbanização, ver Heyman, S.J. (Ed.) Global inequalities at work: work’s impact on the health of individuals, families and societies Oxford: Oxford University Press, 2003.Todas as demais amostragens nacionais de famílias aqui estudadas foram significativamente menos rurais: Botswana (50%), Brasil (22%); México (27%), Rússia (25%) e África do Sul (54%). 64 Esses estudos aprofundados confirmam que um número significativo de pais trabalhadores com filhos de zero a cinco anos, para cuidar de seus filhos pequenos, usam o trabalho, remunerado ou não, de outras crianças. No México, 43% das famílias com filhos entre zero e cinco anos, com quem discutimos essa questão de cuidar de crianças pequenas, afirmaram fazer uso do trabalho de crianças mais velhas para essa tarefa, ocasionalmente ou de forma constante, e o mesmo ocorreu com 47% dos entrevistados em Botswana e 36% no Vietnã. Em alguns casos, essa situação ocorria quando as formas rotineiras de cuidar das crianças falhavam, exigindo que as crianças mais velhas faltassem à escola em dias intermitentes. Em outras situações, essas tarefas ocupavam o tempo fora da escola das crianças mais velhas, impedindo-as de fazer seus deveres de casa e expondo-as ao risco de atrasarem-se ou ser reprovadas na escola. Em outros casos, ainda, as crianças mais velhas eram obrigadas a abandonar de todo a escola para cuidar dos irmãos em tempo integral. Em todos os países, as famílias mais pobres eram as que mais tendiam a fazer uso do trabalho das crianças mais velhas e dos jovens da família para cuidar das crianças menores, ao contrário das famílias de maior nível de renda. No passado, os debates políticos tendiam a contrapor a necessidade de investir recursos públicos na educação das crianças de seis a 14 anos à necessidade de investir em cuidados e educação para crianças de zero a cinco anos. Nossa análise dos melhores dados disponíveis sugere que os investimentos em cuidados e educação para a primeira infância não devem ser vistos como competindo com as necessidades do grupo em idade escolar, mas sim como uma maneira complementar de atender às necessidades das crianças mais velhas. Em suma, os investimentos em cuidados e educação para a primeira infância são de importância crucial tanto para a educação primária quanto para a secundária, por duas razões. Em primeiro lugar, os cuidados e a educação para a primeira infância dão apoio direto ao desenvolvimento físico, social, emocional e cognitivo das crianças pequenas, preparando-as, de forma importante, para um bom desempenho na escola primária. Em segundo lugar, a disponibilidade e a acessibilidade de serviços de cuidados para crianças pequenas significa que os 65 pais, principalmente os que vivem em condições de pobreza, não precisarão tirar seus outros filhos da escola para cuidar das crianças pequenas, enquanto os adultos trabalham para ganhar o sustento da família. 66 9. A APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA E A POLÍTICA SOCIAL PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA* Na Noruega, os cuidados e a educação da primeira infância, há muito, estão sob a responsabilidade do ministério encarregado dos assuntos sociais/familiares/infantis. Atualmente, vem sendo debatida a possibilidade de a responsabilidade administrativa passar para o setor educacional. A fim de examinar em maior profundidade essa questão, que gira em torno de até que ponto a política social é capaz de incorporar a perspectiva educacional com relação à primeira infância, foi combinada uma entrevista telefônica com o Sr. Einar Juell, especialista em primeira infância do Sindicato Educacional da Noruega.1 Essa entrevista foi conduzida pela Srª Soo-Hyang Choi, da UNESCO de Paris, que elaborou o seguinte resumo. As opiniões expressas na presente nota não refletem as do Governo da Noruega, nem as da UNESCO. * Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 11, de março de 2003. Elaborada por Soo-Hyang Choi, Chefe da Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/educprog/ecf/ index.htm). 1 Esse debate foi trazido à atenção da UNESCO por esse especialista, que também nos forneceu subsídios por escrito, que foram incorporados nesta nota. O Sindicato Educacional da Noruega congrega professores de pré-escolas, escolas primárias e secundárias e professores universitários, na Noruega (http://www.utdanningsforb undet.no). 67 Choi: Pelo que sabemos, atualmente, a responsabilidade administrativa pelos Barnehager2, os serviços integrados de cuidados e educação para a primeira infância para crianças de zero a cinco anos, cabe ao Ministério das Crianças e dos Assuntos Familiares (MCAF). O Ministério da Educação e da Pesquisa (MEP) tem algum papel a desempenhar? Juell: O MEP é responsável pelo treinamento e pela educação3 dos pedagogos e dos professores treinados dos Barnehager.4 Ele prepara o currículo de treinamento e formação desses profissionais e credencia suas qualificações, como parte de sua responsabilidade geral sobre a formação e o treinamento de todos os professores do país. Ele também é responsável pelo credenciamento das instituições e programas de treinamento. Choi: Ouvimos dizer que, na Noruega, vem surgindo um debate entre os profissionais e praticantes da área, sobre a integração dos 2 Barnehager (singular, Barnehage) referem-se aos serviços de cuidados e educação para a primeira infância na Noruega, atendendo a crianças com idades entre zero e cinco anos. Os Barnehager originaram-se em duas instituições tradicionais: as creches de tempo integral e os jardins de infância de tempo parcial. A Lei dos Barnehager, de 1975, reconheceu esses dois tipos de serviço como um único, integrando os cuidados e a educação das crianças pequenas. Os Barnehager variam em termos de regime de propriedade (pública ou privada), de administração (tempo parcial ou tempo integral), em fontes de financiamento (com ou sem subsídios governamentais) e também em termos da idade das crianças atendidas, mas todos eles encontram-se integrados dentro do mesmo sistema administrativo do MCAF (Ministério das Crianças e dos Assuntos Familiares). Cerca de 74%, 68% e 49% das crianças de cinco, quatro e três anos, respectivamente, freqüentam os Barnehager (1997). Para maiores informações, ver o NORWAY. Norway background report for EECD: thematic review of early childhood education and care policy. Norway: s.e., (1998); OCDE. OECD country note: early childhood education and care policy in Norway. Paris: OECD, 1999. Disponível em: < (1999) (http://www.oecd.org>.). 3 O MCAF vem participando desse processo, reforçando o vínculo entre o currículo nacional dos Barnehager, desenvolvido pelo ministério, e o currículo para os professores que trabalham nos Barnehager, cujo desenvolvimento é da responsabilidade do MEP. 4 Três tipos de profissionais trabalham nos Barnehager: um diretor (styree), responsável pela direção administrativa e educacional, um professor (pedagogiske ledere), que trata 68 Barnehager no sistema educacional, e a transferência de seu patrocínio administrativo para o MEP, embora esse debate ainda não ocorra de forma oficial, no nível nacional. O senhor poderia nos dar maiores informações sobre o contexto desses debates? Juell: Em 1995, o MCAF desenvolveu o primeiro currículo nacional para o Barnehager, o Plano Estrutural. O Plano, baseado na premissa de que os Barnehager faziam parte do sistema educacional, representou um acontecimento importante para o reforço da função educacional dos Barnehager. Embora a atual posição do MCAF seja a de que os Barnehager deveriam ser uma interface com as famílias, e não com o sistema educacional, o Plano, paradoxalmente, intensificou os vínculos entre os Barnehager e a educação. Choi: Essa é a primeira vez que os Barnehager são vinculados à educação? Juell: Logo após a Segunda Guerra, quando o governo tentou reorganizar o sistema educacional público, foi levantada a questão de se os Barnehager5 deveriam ser vistos como parte do sistema educacional. Mas essa discussão não teve prosseguimento. Foi apenas nos últimos anos que esse tema foi levantado de forma mais séria. A importância dada pelo país à aprendizagem permanente, ao longo de toda a vida, tem muito a ver com esse fato. Choi: Na Noruega, os cuidados e a educação para a primeira infância, há 150 anos, são da responsabilidade de um ministério social ou de assuntos da família. O avanço da filosofia da aprendizagem ao longo da vida afetaria de algum modo essa tradição? dos processos educacionais, com os alunos, os pais e os assistentes. Os styree e os pedagogiske ledere têm de ser pedagogos, ou professores formados, e têm de representar 34% da força de trabalho dos Barnehager (1997). 5 Àquela época, os Barnehager eram um programa de jardins de infância que atendiam apenas a crianças com mais de três anos. 69 Juell: Não se deve dramatizar essa tendência, mas é verdade que, atualmente, a primeira infância é vista, cada vez mais, no contexto da aprendizagem ao longo da vida. O Relatório dos Antecedentes da Aprendizagem ao Longo da Vida de 1999, executado pelo governo, é, em grande parte, responsável por essa maneira de ver. Nesse relatório, foi usada, pela primeira vez, a expressão “do berço ao túmulo”, fazendo com que o país incluísse a primeira infância em seu conceito de aprendizagem ao longo da vida. Choi: Embora a aprendizagem ao longo da vida não pertença nem deva pertencer exclusivamente ao ministério da educação, como ele é o ministério que detém a liderança desse setor, a associação dos Barnehager com a aprendizagem ao longo da vida pode implicar uma participação mais ativa, se não exclusiva, do MEP, e é com relação a isso que é possível dizer que um novo desafio foi colocado. Juell: Sim, é verdade. Recentemente, têm surgido diversas iniciativas, por parte do MEP, de melhorar a qualidade dos Barnehager, como sendo a base da aprendizagem permanente. Essas iniciativas enfocaram principalmente o aperfeiçoamento da transição dos Barnehager para a educação escolar e o desenvolvimento de indicadores sobre a primeira infância. Choi: Esse interesse na qualidade é um ponto interessante. O fato de o MCAF ter desenvolvido esse plano e sua decisão de reforçar a função educacional6 dos Barnehager, para nós, são sinais importantes de que também o MCAF se preocupa com a qualidade e, o que também é importante, é capaz de implementar medidas de aumento da qualidade, como, por exemplo, o desenvolvimento de currículos. Ainda seria possível argumentar a favor da transferência para o MEP com base nessas razões de qualidade? 6 Por exemplo, uma maior ênfase foi colocada no desenvolvimento cognitivo da criança. 70 Juell: Um dos aspectos da qualidade que preocupa ao MEP é a continuidade e a coerência da experiência de aprendizagem da criança, e o atual sistema de Barnehager tem falhas quanto a esse aspecto específico da qualidade. Em primeiro lugar, enquanto a responsabilidade administrativa pelos Barnehager cabe ao MCAF, o MEP é responsável pelo ensino escolar. A colaboração entre esses dois ministérios é possível, como de fato acontece, mas o vínculo entre o ensino escolar e os Barnehager poderia ser mais forte, se ambos estivessem sob a responsabilidade de uma única autoridade. Em segundo lugar, o Plano é incumbência do MCAF, mas o currículo de formação de professores é da responsabilidade do MEP. A coerência entre os dois currículos poderia ser maior, se uma única autoridade controlasse todo o processo. Por último, e o que é mais importante, no nível local, os Barnehager estão sob a responsabilidade das autoridades da área da educação, mas no nível nacional, essa responsabilidade cabe ao MCAF. Os sistemas administrativos locais e central dos Barnehager têm de ser compatibilizados. Em suma, sim, um esforço independente, tentando aperfeiçoar a pedagogia dos Barnehager é importante, mas o que é igualmente importante é a continuidade e a coerência sistêmica dos Barnehager com o restante do processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, e é esse o aspecto específico da qualidade que interessa ao MEP. Choi: Qual a reação do MCAF a esse debate? Juell: Como o debate ainda não chegou ao nível nacional, nem o MCAF nem o MEP manifestaram uma posição oficial sobre a questão. Em termos gerais, o MCAF reconhece as funções educacionais dos Barnehager, embora seja de opinião de que as crianças não deveriam ser obrigadas a freqüentar os Barnehager, ou qualquer outro tipo de serviço externo à casa da família, a não ser que elas assim o desejem. O MCAF acredita que o principal responsável por cuidar das crianças pequenas deveria ser a família, e não uma instituição, e que 71 essas famílias deveriam poder optar entre colocar seus filhos em um Barnehage ou deixá-los em casa. Choi: Mas a freqüência aos Barnehager seria tornada obrigatória, se eles forem transferidos para o MEP? Juell: Em inícios da década de 70, ocorreu uma discussão sobre tornar os Barnehager obrigatórios para crianças de seis anos. Essa idéia não vingou, mas, em 1997, a idade de ingresso na escola primária foi reduzida, e a educação compulsória acabou por ter início aos seis anos de idade. Esse histórico pode desencadear temores de que algo semelhante poderia acontecer de novo, ou seja, que os Barnehager, novamente, virão a ser invadidos pela pedagogia escolar, e de que a participação das crianças será menos voluntária, ou até mesmo obrigatória. Choi: Então, o cerne dos debates é a questão filosófica mais ampla, de como encarar a primeira infância – como um tempo para a criança ou um tempo para o futuro. Juell: Sim, é muito importante observar que os dois setores não discordam quanto ao conteúdo pedagógico e a metodologia dos Barnehager, uma vez que há consenso suficiente, entre ambas as partes, de que bons cuidados levam a uma boa aprendizagem, e que uma boa aprendizagem leva a bons cuidados, e que as crianças aprendem melhor brincando e sendo elas mesmas, e que, por meio desse desenvolvimento integral, elas se preparam melhor para o futuro. Mas, na verdade, parece haver uma diferença entre eles quanto ao propósito dos Barnehager. Choi: A Noruega possui uma boa política de assistência às famílias (por exemplo, licença-maternidade/paternidade, abatimentos fiscais, ajuda financeira etc.). Haveria alguma mudança nessas políticas, caso a transferência venha a ocorrer? Juell: Não, nenhuma mudança será necessária, porque a política de assistência às famílias permanecerá no âmbito do MCAF. Mas 72 a transferência para o setor educacional fará com que sejam levantadas questões quanto a quem tem direito a freqüentar os Barnehager. Se eles se tornarem um serviço educacional, haverá maiores pressões para que eles sejam oferecidos a todas as crianças, o que, por sua vez, poderá pressionar o governo a torná-los mais baratos.7 Aliás, já se fala, dentro do governo, de tentar a aprovação de legislação que estabeleça um teto para as mensalidades dos Barnehager. Esse é um sinal de que o governo já vem-se preparando para o acesso universal aos Barnehager, independentemente do atual debate. Choi: Para terminar, em sua opinião, qual seria a desvantagem da transferência dos Barnehager para o setor educacional? Juell: 7 Se os Barnehager passarem a ser vistos, preponderantemente, como o primeiro estágio da aprendizagem ao longo da vida, isso pode levar a um excesso de ênfase nos resultados, gerando tentativas de medir o desenvolvimento da criança, ou sua aptidão para a escola, o que seria prejudicial ao desenvolvimento das crianças. Nos Barnehager públicos, os pais contribuem com 29% dos custos totais; nos privados, 46% (1996). 73 10. A REFORMA DA EDUCAÇÃO E CUIDADO NA PRIMEIRA INFÂNCIA NA INGLATERRA, NA ESCÓCIA E NA SUÉCIA* 10.1 – A INTEGRAÇÃO DE SERVIÇOS DE EDUCAÇÃO E CUIDADO A Inglaterra e a Escócia (em 1998) e a Suécia (em 1996) transferiram a responsabilidade pela educação e pelos cuidados para a primeira infância (serviços para crianças pequenas) e os cuidados para as crianças em idade escolar (serviços de cuidados a crianças em idade escolar) dos departamentos da área social para os da área educacional. Examinaremos aqui o grau de integração em cada país, e o que essa integração significou para a relação entre escolas e outros serviços.1 INGLATERRA À época da transferência, os serviços para crianças pequenas tinham desenvolvimento precário e eram fragmentados. Por exemplo, eles se * Notas sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) números 12 e 13, de abril e maio de 2003. Elaboradas por Bronwen Cohen e Jennifer Wallace, Children in Scotland (www.childreninscotland.org.uk) e Peter Moss e Pat Petrie, Unidade de Pesquisas Thomas Coram, Instituto de Educação, Londres. Publicadas pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www.unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm). 1 Estas notas sobre políticas baseiam-se em um trabalho de pesquisa financiado pelo Conselho de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido (R000239373), executado por Peter Moss e Pat Petrie (Unidade de Pesquisa Thomas Coram, Instituto de Educação, Londres), Bronwen Cohen e Jennifer Wallace (Children in Scotland), com o apoio de Bjorn e Lisbeth Flising (Universidade de Goteberg). Um livro baseado na pesquisa, A New Deal for Children? Re-forming Education and Care in England, Scotland and Sweden, foi publicado pela The Policy Press, em maio de 2004. 75 dividiam entre o atendimento prestado pelas escolas (que já eram responsabilidade do Departamento de Educação) e os serviços de “cuidados infantis” (de responsabilidade do Departamento de Saúde). Os níveis de atendimento eram baixos e havia muitos tipos de serviços e de prestadores de serviços, a maioria deles pertencente ao setor privado. Após 1998, a estreita relação entre educação e cuidados infantis foi ressaltada em documentos oficiais. Por exemplo, a Estratégia Nacional de Cuidados Infantis diz que “não há distinção perceptível entre uma boa educação e bons cuidados, nos estágios iniciais”. Na prática, contudo, a continuidade dessa integração foi bastante limitada. Além do mais, em fins de 2002, a responsabilidade pela educação e pelos serviços destinados a crianças pequenas foi novamente dividida, desta vez entre o Departamento de Educação e o Departamento do Trabalho. Essa integração fica mais aparente em duas áreas. Em primeiro lugar, os financiamentos públicos para a “educação nos primeiros anos” (para crianças de três e quatro anos de idade; a escolarização compulsória começa aos cinco anos) passaram a atingir todos os tipos de serviço – escolas, creches e creches domiciliares – que preencham determinadas condições. Essas condições incluem a adoção de um novo currículo, o Estágio Fundamental, que abrange também o primeiro ano da escolaridade compulsória, especificando os “objetivos iniciais da aprendizagem”. Em segundo lugar, a regulamentação foi integrada e centralizada: uma inspetoria nacional do ensino é responsável pela regulamentação de todos os serviços de educação e cuidados infantis em todo o país. Um programa, recentemente anunciado, de “centros infantis” tem como objetivo integrar os cuidados, a educação e outros serviços – mas apenas em áreas carentes. Também recentemente, a legislação passou a capacitar as escolas a assumir um papel mais amplo. Por exemplo, as escolas, ou seus parceiros, têm agora permissão para criar serviços de cuidados infantis e de outros tipos. Mas ainda não há sinais de desenvolvimento de um sistema integrado de “escolas de tempo integral”. Com a adoção das “transferências condicionadas de renda para cuidados infantis” e de muitas outras fontes de financiamento, as verbas 76 públicas aumentaram. No entanto, o financiamento dos serviços tornou-se agora mais complexo do que era antes. Os recursos humanos e as qualificações continuam fragmentados. Por exemplo, a remuneração e o treinamento dos profissionais de cuidados infantis são desiguais. Um dos principais temas foi a colaboração entre as diferentes agências, mais ampla do que a que ocorre entre os serviços para os primeiros anos da infância, os cuidados a crianças em idade escolar e as escolas. O governo criou uma Unidade de Crianças e Jovens, que vem desenvolvendo uma “estratégia abrangente para todos os serviços voltados a crianças e jovens”. Um programa liderado pelo Tesouro, o Sure Start (Bom Começo) financia programas locais em áreas carentes, integrando cuidados infantis, saúde, assistência às famílias e outros serviços para crianças de menos de quatro anos e suas famílias. ESCÓCIA Na Escócia, as reformas tiveram lugar no contexto da devolução, com o restabelecimento de um parlamento escocês, o que abriu mais espaço ao debate e à legislação. A Inglaterra e a Escócia ainda têm muito em comum. Por exemplo, antes da transferência de responsabilidade, em 1998, a estrutura e o nível dos serviços de cuidados para crianças pequenas e crianças em idade escolar, na Escócia, eram semelhantes aos da Inglaterra. Ambos os países aumentaram as verbas destinadas aos primeiros anos da educação e a extensão da integração posterior é mais evidente. Mas há importantes diferenças de ênfase e de enfoque. Da mesma forma que na Inglaterra, há um currículo que abrange crianças de três a seis anos. Mas o “Currículo de Pré-Escolas” escocês é menos prescritivo que o Estágio Fundamental inglês, oferecendo uma exposição de boas práticas, mas sem especificação de objetivos de aprendizado. A regulamentação dos cuidados infantis permanece no âmbito do setor social, embora uma inspeção integrada esteja sendo desenvolvida juntamente com o setor educacional. 77 Uma política importante e peculiar à Escócia é a Iniciativa das Novas Escolas da Comunidade. O programa piloto, lançado em 1998, está agora sendo estendido a todas as escolas. O objetivo é um enfoque integrado e centrado na criança, no tocante tanto à educação quanto à saúde e à assistência à família. Esse enfoque tem implicações relativas à aprendizagem por toda a vida, e as escolas ou sediam ou estão vinculadas aos serviços voltados a crianças pequenas e a crianças em idade escolar, e também à educação de adultos. Uma outra característica distintiva é que a responsabilidade pela assistência às crianças, no nível nacional, foi integrada ao departamento de educação, juntamente com as escolas e os serviços de cuidados a crianças pequenas e em idade escolar. Foi colocada uma forte ênfase na colaboração entre as diversas agências. Um relatório do governo recomenda que todos os serviços que abrangem a faixa que vai do nascimento até os 18 anos (incluindo educação, assistência à criança, assistência social, saúde, lazer e recreação) devem ser vistos como um sistema unitário. Uma Força-Tarefa Ministerial vem implementando com sucesso esse enfoque integrado de todos os serviços infantis. SUÉCIA Antes de 1996, a integração já estava bem adiantada. A maioria das autoridades locais já havia incorporado em um único departamento a responsabilidade pelos serviços de cuidados para a primeira infância, pelas escolas e pelos serviços de cuidados a crianças em idade escolar. Havia um sistema amplo e bem-dotado de recursos financeiros para os serviços destinados aos primeiros anos da infância, já então completamente integrados. A integração às escolas dos cuidados às crianças em idade escolar, criando as “escolas de tempo integral”, já estava avançada, como também a transferência das crianças de seis anos das creches para as “turmas de pré-escola”, agregadas às escolas. O trabalho de equipe entre professores de pré-escola, professores de escola e pedagogos de horas de lazer já era prática comum. Agrupamentos de serviços – primeiros anos, cuidados para crianças em idade escolar e escolas –, com freqüência cada vez maior, eram administrados por um 78 rektor, que poderia pertencer a qualquer uma das profissões acima mencionadas. A partir da transferência da responsabilidade do setor social para os departamentos educacionais, que ocorreu em 1996, os princípios educacionais foram ampliados de modo a abranger os primeiros anos e os serviços de cuidados para crianças em idade escolar. Esses serviços são de acesso universal a todas as crianças de idades entre um e 12 anos. Todos os serviços, atualmente, obedecem a currículos: um para os serviços voltados aos primeiros anos da infância e outro abrangendo as escolas e os cuidados para crianças em idade escolar. Foi adotado um período de freqüência optativa para crianças de quatro e cinco anos de idade. A medida mais radical foi a unificação do treinamento do pessoal docente para todos esses serviços.2 CONCLUSÕES O processo de integração diferiu bastante nesses três países, refletindo suas singulares histórias, contextos e agendas políticas. A Suécia já possui um sistema coerente e integrado de serviços universais, tanto na área social quanto na educação. “O cuidado infantil para pais trabalhadores” já havia sido alcançado, e os níveis de pobreza eram baixos. Nenhum desses temas representava uma questão política premente. Nessas condições, as reformas suecas concentraram-se na educação, visando a atingir um enfoque comum a todos os serviços, que deveriam compartilhar a maneira de encarar a aprendizagem, os cuidados e a infância. Essa integração foi embasada numa forte tradição pedagógica de orientação holística, resumida no currículo sueco para as pré-escolas: “a pré-escola deve oferecer às crianças atividades pedagógicas de boa qualidade, em que os cuidados, o desenvolvimento e a aprendizagem formem um todo coerente”. 2 Ver UNESCO. A Integração da Primeira Infância na Educação: o caso da Suécia. Notas sobre Políticas para a Primeira Infância, Paris: UNESCO, n. 3, de mai. de 2002. Capítulo 2, desta publicação. 79 Na Inglaterra e na Escócia, ao contrário, os processos de integração ocorreram em um contexto onde dominava uma forte agenda social, voltada para a redução dos níveis de pobreza e para o aumento do desemprego. Foi dada prioridade a reforçar “os cuidados infantis para pais trabalhadores”. Há falta de tradições e de princípios políticos capazes de apoiar a integração dos cuidados e da educação. Por exemplo, não existe um conceito de “pedagogia”, e a política baseia-se em intervenções públicas focalizadas, limitadas, de cuidados infantis, e oferta universal de educação financiada por verbas públicas. A situação escocesa é muito mais parecida com a da Inglaterra do que com a da Suécia, com um forte foco na área social. No entanto, há uma ênfase maior na inclusão social, contrastada à redução da exclusão. Programas tais como as Novas Escolas da Comunidade adotam uma visão mais universalista. APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA Nos três países, a integração concentrou sua atenção na escolaridade compulsória e em sua relação com os demais serviços. Seria possível criar “uma relação forte e igualitária” (como recomendado pelo recente relatório da OCDE, Starting Strong)? Ou isso a que os suecos chamam de “escolificação” é mais provável, com a adoção, pelos demais serviços, de um enfoque escolar estreito e tradicional? Na Inglaterra e na Escócia, uma “relação igualitária” foi dificultada pela “economia mista” de serviços públicos, privados e sem fins lucrativos, que gerou uma certa dose de tensão entre a promoção das escolas como recursos comunitários e as políticas voltadas para o mercado, que dão ênfase ao direito dos pais de escolher a escola a ser freqüentada por seus filhos. A experiência desses três países levanta diversas outras questões. Uma integração ampla exige não apenas repensar, mas também reestruturar. Um conceito inerentemente integrativo, como a pedagogia, embasa de forma sólida esse repensar. Por fim, a integração é dificultada, caso os serviços em questão possuam valores, princípios e objetivos muito diferentes. 80 10.2 – A REFORMA DA FORÇA DE TRABALHO DE EDUCAÇÃO E CUIDADO INGLATERRA Antes de 1998, a Inglaterra possuía uma força de trabalho compartimentada e hierárquica. Os professores, geralmente formados em universidades e relativamente bem pagos, trabalhavam nos jardins de infância e nas escolas primárias e secundárias de freqüência obrigatória. No outro extremo, encontravam-se os cuidadores das creches domiciliares, com pouco treinamento e salários muito baixos. No nível intermediário, vinham os “profissionais de cuidados infantis”, que trabalhavam em centros, tanto com crianças pequenas quanto com as de idade escolar, e também as assistentes de sala de aula, que na maioria das vezes trabalhavam em turmas de crianças de três a cinco anos e prestavam assistência a crianças portadoras de necessidade especiais. Para estes últimos, tanto o treinamento quanto os salários, eram baixos, embora melhores que os dos cuidadores das creches domiciliares. A partir de 1998, a força de trabalho continuou compartimentada e hierárquica. Houve um grande aumento no número de assistentes de sala de aula, devido às políticas adotadas pelo governo, e uma queda no número dos cuidadores de creches domiciliares, em razão da queda da oferta. As políticas concentraram-se no aperfeiçoamento da força de trabalho ocupada nos cuidados infantis: por exemplo, por meio de mais treinamento “em serviço”: racionalizando o número excessivo de qualificações, de modo a criar uma “escala progressiva” que facilitasse a mobilidade, tanto vertical quanto horizontal, dos profissionais, e também da criação de novos caminhos de progressão funcional, como, por exemplo, uma qualificação de “profissional sênior”. O recrutamento de pessoal para o trabalho de cuidados infantis também se converteu em uma prioridade: por exemplo, por meio de uma campanha nacional de recrutamento e do estabelecimento de metas para grupos com representação insuficiente, como os homens. 81 ESCÓCIA Em muitos sentidos, a situação anterior e posterior a 1998 foi semelhante à da Inglaterra. Há, contudo, algumas diferenças significativas. Um relatório sobre o futuro da profissão docente levou a um considerável aumento salarial para os professores e ao aumento da disparidade entre os professores e demais grupos profissionais, entre eles os de cuidados infantis e os assistentes de sala de aula. Um segundo relatório recomendou a criação de um exercício de planejamento único da força de trabalho, abrangendo as questões de recrutamento, treinamento e desenvolvimento profissional do pessoal dos serviços voltados às crianças. Um exercício de mapeamento da força de trabalho está atualmente em elaboração. A iniciativa das Novas Escolas Comunitárias, cujo objetivo é criar um modo mais integrado de enfocar a educação, a saúde e a assistência à família, vem estabelecendo vínculos entre os diferentes setores e incorporando novos tipos de profissionais: cargos de “gerente de integração” (ou equivalente) foram criados em muitas áreas, enquanto Glasgow reuniu as instituições de educação infantil e as escolas primárias e secundárias em “comunidades de aprendizagem”, cada uma com um diretor, que pode pertencer a qualquer um desses níveis educacionais. SUÉCIA Antes de 1996, havia três grandes categorias profissionais. Os professores de pré-escola (Förskollärare) trabalhavam nos serviços voltados para os primeiros anos e com as crianças menores das escolas; os professores das escolas trabalhavam com crianças de todo o espectro da escolaridade obrigatória e com jovens de 16 a 19 anos, nas escolas secundárias superiores (gymnasia), enquanto os pedagogos de horas de lazer (fritidspedagog) trabalhavam nos serviços de cuidados às crianças em idade escolar. Essas três profissões eram treinadas separadamente, e os professores das escolas tinham níveis consideravelmente mais altos de treinamento e de salários, embora as diferenças não fossem tão grandes. Todas elas tinham formação de nível superior, os professores por, no mí- 82 nimo, três anos e meio, e os professores de pré-escola e os pedagogos de horas de lazer por três anos. Havia também alguns assistentes, principalmente nos serviços voltados para os primeiros anos da infância. Mas eles eram minoria, e a tendência era de que a equipe profissional fosse mais numerosa. A maioria das pessoas que trabalhavam nas creches domiciliares era contratada pelas autoridades locais, recebendo salários melhores que os da Inglaterra e da Escócia. Já os níveis de treinamento eram igualmente baixos nos três países. Um forte movimento em favor das “escolas de tempo integral” havia integrado as escolas (inclusive as “turmas de pré-escola”, para crianças de seis anos de idade) com os serviços para crianças em idade escolar. Em muitos casos, as equipes das escolas de dia inteiro provinham dos três grupos profissionais, trabalhando com crianças de seis a nove anos de idade. Os agrupamentos de serviços – primeiros anos da infância, cuidados para crianças em idade escolar e escolas – tendiam, cada vez mais, a ser administrados por um rektor, originário de qualquer uma das três categorias profissionais. A demarcação entre esses grupos vinha-se tornando menos nítida. Após 1996, ocorreu uma reforma radical da força de trabalho. Um novo sistema de formação foi adotado em 2001, abrangendo o trabalho com crianças e jovens, do nascimento até os 19 anos. As três profissões principais e respectivos sistemas de formação vêm-se transformando em uma profissão única, com um único sistema de formação. Todos os estudantes agora têm de passar por um curso de bacharelado de, no mínimo, três anos e meio e, ao se formar, terão o título de professor. Os primeiros dezoito meses dessa formação são constituídos por matérias básicas, a serem cursadas por todos os estudantes, quer eles se proponham a trabalhar com crianças de 18 meses ou de 18 anos. Essa área comum da formação, segundo o Ministério da Educação da Suécia, “deve compreender, por um lado, áreas de conhecimento que são de importância central para a profissão docente, tais como pedagogia, educação para portadores de necessidades especiais, desenvolvimento das crianças e jovens e, por outro lado, matérias interdisciplinares”. O 83 restante do curso consta de estudos de natureza mais especializada: por exemplo, sobre trabalho com a primeira infância e outras áreas específicas. Os estudantes não têm de decidir de partida sua área de especialização docente, o que será feito no decorrer do curso, ao contrário do que ocorria no passado. CONCLUSÕES Após a transferência da responsabilidade por todos os serviços para a área da educação, a Inglaterra e a Escócia adotaram aperfeiçoamentos quantitativos, sem uma reestruturação fundamental da força de trabalho, que continua discriminada em professores, assistentes de sala de aula e profissionais de cuidados infantis. A força de trabalho tornou-se mais diferenciada, com a introdução de novos cargos de “profissional sênior”, e um maior número de assistentes de sala de aula. Permanecem as grandes diferenças, em termos de treinamento, salários e status, entre os professores e os demais grupos. A Suécia deu preferência à reforma estrutural. O objetivo é uma profissão única, trabalhando com uma faixa etária ampla e em ambientes diversos – de crianças pequenas, nos jardins de infância, aos adolescentes, nos gymnasia. A idéia norteadora é radical: a integração exige práticas novas na totalidade do sistema – e não apenas a extensão, para outros grupos etários, dos métodos tradicionais de ensino escolar. Por exemplo, um professor de Física, em um gymnasium, pode encontrar inspiração nas práticas pedagógicas desenvolvidas nos serviços para a primeira infância e nos serviços de cuidados para crianças em idade escolar. Ao mesmo tempo, essa reforma implica riscos consideráveis. Foram manifestadas preocupações de que um número excessivo de estudantes irá optar pelo ensino escolar, gerando carência de pessoal nos serviços para os primeiros anos da infância, pois, embora a formação esteja agora integrada, os professores de escola ainda são beneficiados por melhores salários e condições de trabalho. As reformas foram introduzidas ao longo de um período de tempo bastante curto, mas elas irão exigir mudanças radicais nos métodos usados pelas universidades para a formação de professores. 84 APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA Nos três países, a experiência sugere que, para que haja relações mais estreitas entre os diferentes serviços, deve haver novos tipos de administradores, capazes de trabalhar com os diferentes serviços. Mas a reforma, no nível dos profissionais, depende de uma série de condições, inclusive conceitos compartilhados e investimentos públicos. Na Suécia, a integração teve como base um repensar os conceitos de criança e de aprendizagem, e também um bem estabelecido conceito de pedagogia, que trata de forma holística as crianças e os jovens, a fim de apoiar seu desenvolvimento integral. A reforma da força de trabalho sueca baseouse também em investimentos públicos constantes e de grande monta, o que levou à redução das diferenças salariais e de treinamento entre as várias categorias profissionais, cuja formação foi agora integrada. Segundo a OCDE, a Suécia gasta 2% de seu PIB apenas nos serviços voltados aos primeiros anos da infância. Nenhuma dessas condições se aplica à Inglaterra ou à Escócia. A força de trabalho compartimentada reflete uma arraigada cisão conceitual entre “cuidados infantis” e “educação”. Mesmo após os recentes aumentos, os gastos públicos com os primeiros anos da infância e com os serviços de cuidados a crianças em idade escolar, tomados em conjunto, perfazem menos de 0,3% do PIB. São necessários investimentos muito maiores para reduzir as disparidades entre as diferentes categorias profissionais, e existe um grande obstáculo para que isso venha a ocorrer. Tanto a Inglaterra como a Escócia – como a maioria dos países de língua inglesa – possuem sistemas de “cuidados infantis” fornecidos por provedores privados, que operam com regras de mercado. As verbas públicas são relativamente poucas, basicamente um subsídio à demanda (por exemplo, transferências condicionadas de renda) pago diretamente às famílias de baixa renda: a maior parte dos serviços, em si, não recebe financiamentos públicos. Não está ainda claro se os sistemas que dependem fortemente de mensalidades pagas pelos pais são capazes de sustentar uma reforma radical da força de trabalho ocupada com os “cuidados infantis”, em termos de treinamento e salários. Os proprietários dos serviços talvez 85 até concordem que os profissionais de cuidados infantis necessitam de melhor treinamento e melhor remuneração. Mas quem paga a conta? As transferências condicionadas de renda, na Grã-Bretanha, são concedidas a 3% das famílias: na média, elas recebem 39 libras esterlinas semanais, quando o custo médio de um jardim de infância é de 120 libras. Os pais arcam com custos altos, mas a equipe profissional recebe baixos salários. Enfrentando problemas de recrutamento que só fazem se agravar, quando aumenta a demanda por profissionais enquanto a oferta se reduz, a estrutura de categorias profissionais, ainda compartimentada e hierárquica, tanto na Inglaterra quanto na Escócia, talvez não seja apenas um obstáculo a um enfoque integrado dos serviços, mas, além disso, uma situação insustentável. A aprendizagem ao longo da vida, a partir do nascimento, que torna indistintas as fronteiras entre a aprendizagem formal e a informal, e também entre cuidados e educação, requer uma visão ampla. A discussão da integração não pode-se limitar aos serviços voltados para os primeiros anos da infância: ela tem de abranger os serviços para as pré-escolas e também para as crianças em idade escolar, e tanto os serviços de “cuidados infantis” quanto as “escolas”. Um enfoque holístico das crianças e dos jovens tem de ser acompanhado por uma reforma da força de trabalho, na qual desapareçam as disparidades, em termos de treinamento, status e remuneração, entre os profissionais que trabalham com crianças mais novas e os que lidam com crianças mais velhas. 86 11. O IMPACTO DA AIDS SOBRE OS CUIDADOS E A EDUCAÇÃO DA PRIMEIRA INFÂNCIA* A SITUAÇÃO ATUAL DA PANDEMIA DO HIV A epidemia do HIV transformou a infância, a juventude e a idade adulta de milhões de pessoas em todo o mundo. Mais de três milhões de crianças e 38 milhões de adultos encontram-se infectados pelo vírus, em todo o mundo. A epidemia afeta a primeira infância tanto pela doença e morte das próprias crianças quanto pela doença e morte de seus pais, professores e outras pessoas responsáveis por cuidar delas. Embora as marcas da pandemia do HIV sejam sentidas em todo o mundo, seu impacto, atualmente, é maior no Cone Sul da África. Só no ano passado, ocorreram 3,5 milhões de novos casos de infecção entre adultos e crianças na África Subsaariana. Entretanto, países muito distantes da África também foram afetados. Em tempos recentes, o rápido crescimento dos índices de infecção na Ásia e na Europa Central e Oriental passaram a atrair a atenção. No Leste Europeu e na Ásia Central, 1,2 milhão de adultos e crianças estão vivendo com o HIV. A Índia tem 4 milhões de adultos e crianças infectados, um total inferior apenas ao da África do Sul. Caso a atual tendência se mantenha, em 2010, 10 milhões de chineses estarão infectados. * Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 10, de maio de 2003. Elaborada por Jody Heymann, Ph.D., Diretora-fundadora do Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, Universidade de Harvard. Pubblicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/ educprog/ecf/index.htm). 87 Ao mesmo tempo em que, em países com escassez de recursos, novos programas destinados a aumentar o acesso ao tratamento trazem novas esperanças de uma sobrevida mais longa para as pessoas infectadas, a disponibilidade de medicamentos é apenas um dos aspectos das medidas que se fazem necessárias. Um dos maiores desafios para os países que já apresentam altos índices de infecção é como cuidar das crianças saudáveis e, simultaneamente, atender às necessidades dos adultos e crianças já infectados. Para alguns países, essa tarefa é de particular urgência. Na África do Sul, estima-se que cerca de 20% dos adultos em idade reprodutiva estejam infectados; no Zimbabwe, essa cifra é de 34%; em Botswana, de 39%; na Swazilândia, de 33%; no Lesoto, de 31%; na Namíbia, de 23%; em Zâmbia, de 22%; e em Malawi, de 15%.1 UM ESTUDO PARA ENTENDER O IMPACTO DO HIV SOBRE A INFÂNCIA A fim de entender a melhor maneira de dar assistência às famílias que criam seus filhos em meio à epidemia de HIV, o Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras realizou um levantamento representativo, abrangendo mais de 1.000 pais e outros responsáveis por crianças, usando os serviços de três localidades de Botswana.2 Essas pessoas foram entrevistadas na capital do país, Gabarone, na grande cidade de Lobatse e na aldeia urbana de Molepolole. O estudo foi planejado de modo a obter amostragens proporcionais ao número total dos habitantes das grandes cidades, das cidades e das aldeias urbanas, em todo o país – as três grandes classificações censitárias adotadas em Botswana. O índice de respostas foi de 96%. Foi colocada aos pais uma série de perguntas detalhadas sobre saúde, cuidados e educação das crianças em idades pré1 Estatísticas adicionais podem ser obtidas nas publicações: UNAIDS/. WHO. 2002. Epidemological fact sheets on HIV/AIDS and sexually transmitted infections; UNAIDS/WHO, 2002. Aids Epidemics Update. Dezembro. 2002. 2 Este estudo foi desenvolvido por Jody Heymann e coordenado por Divya Rajaraman, como parte de uma parceria entre o Ministério da Saúde de Botswana e a Universidade de Harvard. 88 escolar e escolar, e tanto os pais quanto os outros responsáveis responderam a perguntas detalhadas sobre os cuidados dispensados aos membros adultos da família, inclusive os infectados pelo vírus da Aids. A análise dos resultados do levantamento deixa claro que o HIV vem tendo um impacto crítico tanto sobre as crianças infectadas quanto sobre aquelas que têm parentes infectados pelo HIV. RESULTADOS: CUIDADOS INFANTIS Os pais que cuidam de parentes infectados com o HIV3, muito mais do que os que não têm essa incumbência, tendem a afirmar que estão preocupados com a qualidade dos cuidados recebidos por seus filhos (53% contra 34%). Eles se preocupam principalmente com os cuidados recebidos pelas crianças, quando elas adoecem. Entre os pais que cuidam de pessoas com Aids, 75% se preocupam com os cuidados que seus filhos irão receber, caso adoeçam. RESULTADOS: CUIDANDO DE CRIANÇAS DOENTES Na ausência de cuidados adequados para crianças infectadas com o HIV, quando elas desenvolvem os sintomas da doença, os pais são os que têm de assumir esses cuidados. Conseqüentemente, eles, muitas vezes, têm de faltar ao trabalho para atender à criança enferma. Entre os pais que cuidam de doentes de Aids, 29% faltam ao trabalho pelo menos uma vez por mês, para atender a crianças doentes, contra 19% entre os que não têm esse encargo. A necessidade de se ausentar do trabalho para cuidar de crianças doentes freqüentemente leva à redução dos rendimentos e, às vezes, à perda do emprego. Ambas essas possibilidades podem ter sérias implicações para a capacidade das famílias de dar assistência adequada a seus filhos pequenos, uma vez que a redução de sua renda pode levá-los a uma situação de pobreza ainda mais grave. 3 Os resultados relatados nesta nota descrevem famílias nas quais havia, pelo menos, uma criança entre zero e cinco anos de idade. 89 RESULTADOS: O TEMPO QUE OS PAIS TÊM PARA PASSAR COM OS FILHOS As crianças pequenas não-infectadas, mesmo assim são profundamente afetadas pela epidemia – tanto quando seus pais adoecem como quando eles têm de cuidar de outros doentes. A necessidade de cuidar de familiares infectados afeta a capacidade dos pais de oferecer aos filhos sadios os cuidados de rotina. Os pais sobrecarregados com essa responsabilidade gastam cerca de 74 horas por mês cuidando de seus filhos, 22 horas a menos que os que não precisam cuidar de um doente. As horas necessárias para cuidar de familiares infectados diminuem significativamente o tempo disponível para seus filhos, que, em 48% dos casos, se reduz a duas horas diárias, ou menos ainda. RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS Diversas considerações importantes, de ordem política, surgem a partir do que estamos começando a aprender sobre o impacto do HIV nas famílias com filhos pequenos. Em particular, essas considerações dizem respeito à quantidade e à natureza dos serviços de cuidados e educação para a primeira infância que se fazem necessários, bem como ao apoio que tem de ser dado aos pais para que, tanto eles como outros membros de suas famílias mais amplas, possam cuidar das crianças infectadas pelo HIV, ou de outro modo afetadas pela epidemia. Em primeiro lugar, temos de aumentar a oferta de cuidados e educação para a primeira infância nos países que apresentam os maiores índices de HIV. Muitos pais, que antes cuidavam de seus filhos em casa, deixaram de poder fazê-lo, em razão de doença ou morte. Ao mesmo tempo, os pais sobreviventes precisam trabalhar, ou, nos casos em que ambos os genitores morreram, os membros da família mais ampla têm de trabalhar, o que vem aumentando a demanda por serviços de cuidados e educação para a primeira infância. Além do mais, como demonstrado acima, o tempo que os pais sadios têm para cuidar de seus filhos, seja como o principal ou o único responsável, vem-se 90 reduzindo, uma vez que eles têm de passar mais tempo cuidando dos familiares doentes. Em segundo lugar, o HIV vem alterando a natureza da demanda por cuidados para a primeira infância. As crianças infectadas ou afetadas passaram a enfrentar desafios maiores em termos de saúde e desenvolvimento. Para enfrentar essa grave situação, teremos de aumentar a capacidade dos responsáveis por cuidados infantis de lidar, tanto com crianças doentes quanto com crianças que apresentam problemas de desenvolvimento, e aumentar também a possibilidade dos pais ou guardiães de obter licenças para se ausentar do emprego, sem perda de remuneração, para que eles possam cuidar de seus filhos, no caso de esses serviços de cuidados infantis não estarem disponíveis. Ambas as medidas são praticáveis. Fazendo uso tanto de atendimento domiciliar por profissionais de saúde e assistência social quanto encaminhando as crianças para serviços públicos situados na vizinhança, os programas de cuidados domiciliares, no sul da África, já estão funcionando de modo a assistir nos cuidados com a saúde física e mental das crianças que foram deixadas órfãs, ou cujos pais estão doentes demais para cuidar delas. Programas de creches podem ser mais baratos que os residenciais, podendo oferecer o mesmo nível de assistência, tão necessária às crianças que residam na comunidade, quer elas estejam doentes ou sejam de outro modo afetadas pelo vírus. O aumento da disponibilidade de licenças remuneradas, um ingrediente de importância capital para o papel desempenhado por pais ou guardiães, também é praticável. Vinte países africanos, como muitos outros em todo o mundo, já prevêem, em seus códigos trabalhistas ou em suas políticas públicas, licenças remuneradas para tratamento de saúde do próprio empregado. Essas políticas têm apenas de sofrer alguns ajustes, de modo a estender a licença remunerada a doenças de familiares. A África do Sul já adotou uma política de licenças remuneradas em caso de doenças dos filhos dos empregados, ou de morte na família. Embora os países africanos sejam os que enfrentem os mais altos índices de incidência do HIV, mudanças políticas como essas são igualmente necessárias em todas as regiões do mundo. Essas mudanças 91 representariam um avanço da maior importância para os trabalhadores do setor formal, em todo o mundo. Têm ainda de ser desenvolvidas iniciativas paralelas para disponibilizar essas licenças remuneradas aos que trabalham no setor informal. Em suma, os cuidados com a saúde e o desenvolvimento das crianças infectadas ou afetadas pela epidemia da Aids, cada vez mais, terão de ser divididos entre suas famílias e os profissionais dos serviços de cuidados para a primeira infância. Apenas a união de seus esforços permitirá que as crianças recebam cuidados adequados, e que seus pais ou guardiães continuem trabalhando para obter a renda necessária para sua sobrevivência. Está claro que a necessidade geral de bons serviços de cuidados para a primeira infância vem aumentando, em conseqüência da Aids. Não apenas é necessário o aumento da oferta desses serviços, mas também é preciso que eles se adaptem, de modo a atender às novas demandas colocadas pelas crianças infectadas ou afetadas pelo HIV. Os serviços de cuidados para a primeira infância podem desempenhar um papel de importância essencial face à epidemia da Aids, na assistência à sobrevivência das famílias e das sociedades. Simultaneamente, os pais e demais responsáveis por esses cuidados a crianças infectadas ou afetadas pelo HIV precisam ter condições de trabalho e apoio de seus empregadores, para que eles possam assumir, de fato, seu papel nessa parceria, e enfrentar essa tarefa de importância tão crucial. 92 12. A REFORMA DOS CUIDADOS E DA EDUCAÇÃO PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA NA REPÚBLICA DA CORÉIA* 12.1 – “A ESCOLA PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA” Em 1997, a então Comissão Presidencial para a Reforma Educacional anunciou uma proposta de reforma para o sistema de cuidados e educação para a primeira infância do país, introduzindo o conceito de Escolas para a Primeira Infância (EPIs), ou Yoo-Ah-Hak-Kyo, um serviço integrado de cuidados e educação, apresentando também o texto da Lei da Educação para a Primeira Infância. Seis anos depois, essas idéias de reforma ainda são objeto de acalorados debates, e pouco progresso foi feito quanto à sua implementação. Para saber mais sobre essa reforma e sobre o impasse que a cerca, foi combinada uma entrevista com o Dr. Jung Na, Pesquisador Sênior do Instituto Coreano de Desenvolvimento Educacional, o arquiteto dessa proposta.1 Essa entrevista foi feita pela Srª Soo-Hyang Choi, da sede da UNESCO, em Paris, que organizou os trechos abaixo citados. As opiniões expressas nesta nota não refletem as do Governo da Coréia, nem tampouco as da UNESCO. * Notas sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) números 15 e 16, de julho-agosto e setembro de 2003. Elaboradas por Soo-Hyang Choi, Chefe da Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/ educprog/ecf/index.htm). 1 Para maiores detalhes, ver Na, J.; e Moon, M. (2003). Integrating policies and systems for early childhood education and care: the case of the Republic of Korea. Paris: UNESCO, 2003. (UNESCO, early childhood and family policy series; n 7). 93 Choi: O senhor poderia nos falar sobre as Escolas para a Primeira Infância (EPIs) criadas pela Proposta de Reforma de 1997 (doravante referida como a Proposta)? Na: As EPIs são um serviço integrado de cuidados e educação para crianças de três a cinco anos de idade, visando a promover o desenvolvimento integral da criança, bem como a atender aos pais em sua demanda de cuidados infantis. A responsabilidade administrativa pelas EPIs, que serão integradas ao sistema nacional de educação, será assumida pelo Ministério da Educação e do Desenvolvimento de Recursos Humanos (MERH). Choi: As EPIs seriam uma nova forma de serviço, que viria a substituir os serviços hoje existentes? Na: As EPIs não pretendem substituir os serviços existentes. Os serviços atuais – jardins de infância, os serviços de cuidado e os Hakwons2 – serão transformados em EPIs, após a adoção de determinados padrões.3 As EPIs, portanto, são um novo conceito – uma “escola centrada nos cuidados” para crianças pequenas – a ser implementado dentro dos serviços já existentes. Choi: Por que foi necessário esse conceito, enfatizando a integração? Na: Os serviços para a primeira infância, na Coréia, são bifurcados, sendo ou um serviço educacional ou um serviço 2 3 As crianças pequenas geralmente freqüentam os Hakwons para aprender desenho, piano, dança, esportes, aritmética, línguas estrangeiras, caligrafia etc. Esses Hakwons, muitas vezes, oferecem serviços de cuidados e educação para a primeira infância, pelo menos parcialmente. Por exemplo, muitos jardins de infância privados já funcionam em horário integral, mas os que funcionam em tempo parcial teriam de ampliar seus serviços para se qualificarem a se converter em EPIs; e as creches e Hakwons deveriam seguir, pelo menos em parte, o currículo nacional para os jardins de infância, contratar professores credenciados para a educação de crianças pequenas e passar por inspeções das autoridades educacionais. 94 de cuidados, raramente ambos. Essa situação se deve ao fato de haver responsabilidades administrativas paralelas, no que diz respeito às crianças de três a cinco anos, algumas dessas responsabilidades cabendo ao Ministério da Educação e do Desenvolvimento de Recursos Humanos e outras, ao Ministério da Saúde e dos Assuntos Sociais (MSAS).4 Há uma superposição dos planos de cada um desses ministérios para a expansão dos serviços, para treinamento e para a estrutura pedagógica dos serviços voltados para crianças de três a cinco anos – no MSAS, tratando dos serviços de cuidados, e, no MERH, dos serviços educacionais de jardins de infância. O resultado dessa duplicação de sistemas é o desperdício de recursos humanos e financeiros. Além disso, a competição entre os fornecedores de serviços de cuidados e de educação para o mesmo grupo-alvo de crianças é enorme. Choi: Como uma denominação para um serviço integrado, contudo, “Escolas para a Primeira Infância” não parece ser o nome mais apropriado, por estar muito associado à educação. Houve alguma razão especial para a escolha desse nome? Na: A Coréia tem uma propensão natural a respeitar a aprendizagem e a educação. Os pais vêem a escola como uma instituição para onde eles têm de mandar as crianças. A palavra “escola” também traz à mente a imagem de um lugar de aprendizagem séria. O nome EPI, portanto, foi pensado 4 O MSAS gere os serviços destinados a crianças de zero a cinco anos, enquanto o MERH é responsável pelos serviços de jardins de infância, freqüentados por crianças de três a cinco anos. Mas como, na Coréia, a maioria das crianças de zero a dois anos de idade fica em casa, as de três a cinco são o principal grupo-alvo dos serviços de cuidados infantis do MSAS, o que torna ainda mais intensa a tensão e a duplicação de funções entre os dois ministérios. Em reação à proposta de reforma do MERH para as crianças de três a cinco anos, o MSAS, nesse ínterim, desenvolveu e implementou uma proposta de subsidiar os serviços para a faixa de zero a dois anos. 95 como uma maneira estratégica de valorizar a percepção que as pessoas têm das instituições para a primeira infância, e mobilizar a atenção do governo para esse grupo etário. Choi: Como os pais reagiram a esse nome? Na: Quando perguntados, eles davam a impressão de que EPI era o nome preferido para o novo serviço. Choi: Mas essa preferência pode indicar que eles esperam que as EPIs sejam uma instituição de aprendizagem séria, e eu imagino que essa aspiração educacional talvez prejudique a intenção de fazer das EPIs um sistema integrado. Na: Uma das razões pelas quais o conceito de EPIs agrada aos pais é que elas funcionariam como um serviço de tempo integral, atendendo a suas necessidades de cuidar de seus filhos. Eles, portanto, são plenamente favoráveis a um serviço amplo, que abranja tanto os cuidados quanto a educação. Mas não se pode descartar a possibilidade de as EPIs serem assimiladas, em termos pedagógicos, pelas escolas – a chamada “escolificação”. Uma vez que esse perigo de fato existe, alguns especialistas chegaram a sugerir que “jardins de infância” seria um nome melhor. Choi: Na: 5 Por que essa sugestão não foi levada em conta? Em primeiro lugar, para abarcar todos os serviços existentes, precisávamos de um terceiro nome, que não fosse associado a nenhum deles. Mas houve também uma razão mais realista. Na Coréia, de acordo com as leis vigentes, os jardins de infância são reconhecidos como a primeira modalidade de escola, mas os jardins de infância privados, com fins lucrativos, que representam 78% das matrículas em jardins de infância em todo o país, não recebem apoio financeiro do governo, pela simples razão de não levarem o nome de “escola”.5 No entanto, os jardins de infância públicos que funcionam nas escolas recebem subsídios do governo, da mesma forma que as escolas. Essa discriminação, portanto, tem mais a ver com a exclusão, pelo setor público, dos serviços privados, de natureza comercial. 96 Portanto, jardim de infância não era um nome estratégico, desse ponto de vista. Choi: É compreensível que os jardins de infância privados tenham gostado muito da Proposta. Mas eles gostaram da perspectiva de estender seu atendimento de turno único para um atendimento em tempo integral, a fim de se converter em EPIs? Na: A Proposta trazia um plano de universalizar a freqüência de crianças de cinco anos às EPIs, e isso se aplicaria tanto às EPIs públicas quanto às privadas. Os jardins de infância privados interpretaram isso como uma forma de apoio do governo, que, finalmente, estaria disponível aos serviços oferecidos por eles. Por essa razão, eles estavam dispostos a aceitar quaisquer “cargas” adicionais implicadas nesse processo de transformação. Choi: E quanto aos provedores de serviços de cuidados infantis? Devido à grande afinidade com a educação, o conceito de EPI não deve ter sido muito confortável para eles. Na: Os serviços públicos de cuidados infantis, subsidiados pelo governo, temiam perder o apoio deste. Mas os provedores privados ficaram satisfeitos com a “mobilidade social” associada às EPIs, uma vez que os serviços prestados por eles seriam considerados como escolas, e eles assumiriam o título de “diretor” 6. Mas, com o passar do tempo, os provedores de serviços de pequena escala ou de baixa qualidade começaram a temer que seus serviços não conseguiriam atender aos padrões exigidos pelas EPIs, e desapareceriam. Esse medo também era comum entre os operadores comerciais dos Hakwon, cujo ensino tendia a não contar com a aprovação dos educadores especializados 6 Atualmente, eles são chamados de “responsáveis pelo estabelecimento”, e os serviços dirigidos por eles são “os estabelecimentos”, termos esses que não são vistos como respeitáveis. 97 em primeira infância. A resistência apresentada por esses grupos vem sendo feroz. Choi: Esse medo era infundado? Na: Sim, era. A Proposta deixou claro que nenhum serviço existente seria eliminado para a criação das EPIs, e que o governo pretendia trabalhar em medidas de apoio, a fim de aperfeiçoar os serviços existentes, para que eles pudessem ser incorporados à estrutura das EPIs. Choi: Qual foi a reação do MSAS às EPIs? Na: O MSAS interpretou as EPIs como um serviço orientado para a educação, que seria adequado apenas para as crianças de classe média. Para as crianças carentes, o ministério insistia em que um enfoque baseado mais nos cuidados seria mais apropriado. O MSAS fazia uma distinção estrita entre cuidados e educação, como se fossem dois conceitos diferentes. Choi: Haveria alguma perspectiva de que a competência financeira do MSAS venha a ser reduzida com a introdução das EPIs, o que, creio eu, seria uma razão mais válida para essa oposição? Na: O orçamento do MSAS não seria reduzido em termos de volume, mas sim canalizado unicamente para os serviços voltados a crianças de zero a dois anos, uma vez que a responsabilidade pelos serviços voltados às crianças de três a cinco anos passaria para o MERH. Na versão revisada da Proposta, essa divisão de trabalho inicial sofreu outros ajustes, para permitir que tanto o MSAS quanto o MERH mantivessem autoridade financeira sobre seus respectivos serviços de cuidados e educação, quando estes forem convertidos em EPIs. Nesse meio tempo, o MERH teria seu orçamento aumentado, para fazer face às suas novas responsabilidades de treinar o pessoal das EPIs e oferecer freqüência gratuita às EPIs às crianças de cinco anos. Um aumento de verbas foi também planejado, para permitir que o MSAS 98 apoiasse a criação de novas EPIs. Em suma, o objetivo era um enxugamento da superposição das responsabilidades financeiras, embora sem cortes no orçamento de nenhum dos ministérios. Choi: Nesse caso, qual, em sua opinião, foi a verdadeira razão da resistência apresentada pelo MSAS à Proposta? Na: O MSAS temia que as responsabilidades administrativas e financeiras relativas às EPIs acabassem por ser transferidas para o MERH, uma vez que o conceito que embasava essas escolas estava intrinsecamente associado à educação, e que o MSAS perderia seu controle sobre os serviços para a faixa de três a cinco anos. Choi: O MERH estava disposto a aceitar as novas e maiores responsabilidades relativas às EPIs? Na: O MERH concordava, basicamente, com a direção tomada pela reforma, inclusive a idéia das EPIs. Com sua concordância, a Proposta poderia ser apresentada, antes de qualquer coisa, ao então Presidente Kim, e em seguida anunciada. Mas, quando o MERH teve de enfrentar a oposição do MSAS e de seus defensores, ele não “reagiu”.7 Uma das razões para tal, segundo acredito, é que a educação de crianças pequenas não é uma prioridade do MERH, e seria difícil criar um orçamento, dentro do setor educacional, para fazer face a essa nova responsabilidade. Essa falta de apoio por parte do principal ministério técnico, em parte, contribuiu para que a Proposta perdesse ímpeto. 7 O MERH, no entanto, participou, em alguma medida, do trabalho preparatório, encomendando aos Institutos Coreanos de Desenvolvimento Educacional uma série de estudos sobre a experiência das EPIs, seus modelos de organização, seus métodos de treinamento integrado e seu vínculo com o ensino primário, para citar apenas alguns aspectos. Para referências correlacionadas ao tema, entrar em contato com o Dr. Jung Na ([email protected]). 99 Choi: Qual seu conselho a outros países que estejam tentando implementar uma reforma dessa natureza? Na: O patrocínio do governo aos serviços para a primeira infância deveria ser aperfeiçoado, antes de tudo, visando a assegurar o desenvolvimento integral das crianças. Deve-se sempre ter em mente o ideal de colocar o interesse das crianças acima de qualquer outra consideração. Se a reforma for vista, pelos ministérios interessados, como uma oportuni-dade de expansão ou de redução “territorial” ela será, no máximo, um remendo. 12.2 – A LEI DA EDUCAÇÃO PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA Choi: O senhor poderia nos falar sobre o contexto no qual a Lei da Educação para a Primeira Infância foi proposta? Na: Quando o Ministério da Educação e do Desenvolvimento de Recursos Humanos8, em 1997, elaborou a revisão da Lei da Educação, visando a reformá-la, os especialistas em primeira infância e as partes interessadas nessa área solicitaram que uma lei separada fosse redigida, tratando especificamente da educação para a primeira infância. Mas a área foi novamente colocada sob a jurisdição da Lei da Educação Primária e Secundária.9 Essa questão inacabada necessitava de atenção. Choi: O fato de não haver uma lei separada para a primeira infância causava problemas específicos? 8 Na época, o nome desse órgão era Ministério da Educação. Em 2001, o nome mudou para Ministério da Educação e do Desenvolvimento de Recursos Humanos. 9 Mesmo anteriormente, a educação para a primeira infância era abrangida pela Lei da Educação Primária e Secundária. 100 Na: Em primeiro lugar, essa inclusão na educação primária e secundária faz com que não seja dado reconhecimento específico à educação para a primeira infância, como um estágio distinto da educação. Em segundo lugar, a Lei da Educação Primária e Secundária não foi considerada adequada para a nova Escola para a Primeira Infância (EPI) integrada,10 que abrange não apenas as funções educacionais, mas também as funções de cuidados. Em terceiro lugar, o apoio governamental é negado aos jardins de infância privados, com base na alegação de que não existe uma lei tratando dos jardins de infância.11 Esses não têm direito, por exemplo, aos subsídios governamentais para o arroz usado no preparo dos almoços e merendas das crianças, ajuda essa disponível aos estabelecimentos escolares. Por fim, de acordo com a lei vigente, os professores de escola primária podem-se tornar professores de pré-escola sem necessidade de treinamento específico. Uma lei separada foi necessária para retirar da lei atualmente em vigor essas características potencialmente nocivas à pedagogia para a primeira infância. Choi: Já faz seis anos que a Proposta para a Lei da Educação para a Primeira Infância foi divulgada, transformada em projeto e apresentada aos legisladores.12 Mas essa lei ainda não foi aprovada. Qual tem sido o problema? Na: Um dos problemas é que a Proposta não foi apresentada pelo ministério competente, o Ministério da 10 Um serviço integrado, de horário integral, para crianças de três a cinco anos, apresentado na Reforma de 1997. 11 Os jardins de infância nacionais/públicos que funcionam nas escolas são tratados como escolas, tendo direito ao apoio governamental reservado a estas. 12 A Proposta foi apresentada por quatro vezes, em 1997, 1999, 2001 e 2003. Na Coréia, se uma proposta não chega a ser tratada em uma determinada Sessão Anual, ela é automaticamente abandonada. Para que ela mantenha sua condição de proposta, ela tem de ser reapresentada na Sessão Anual seguinte. 101 Educação e Desenvolvimento de Recursos Humanos, mas sim pelos Membros da Assembléia Nacional. Choi: Se a Proposta foi colocada na pauta por iniciativa interna da Assembléia Nacional, ela deve ter recebido algum apoio, pelo menos partindo de seus Membros. Isso não foi suficiente? Na: A Proposta da Assembléia Nacional para a Lei da Educação para a Primeira Infância foi gerada, inicialmente, por argumentos apresentados pelos operadores de jardins de infância. Mais tarde, os fornecedores de serviços de cuidados para a primeira infância e os operadores dos Hakwon13 participaram de um lobby pedindo o veto da Proposta. Nesse processo, os membros da Comissão de Educação, que apresentou a Proposta, passaram a se perguntar se essa Proposta não favoreceria indevidamente os jardins de infância. Eles, portanto, hesitaram em trabalhar por ela, o que, em parte, contribuiu para o impasse na aprovação da Lei. Choi: Em que situação se encontra agora a Proposta? Na: Este ano ela foi novamente apresentada pela Assembléia Nacional, e rejeitada. Recentemente, entretanto, ficamos sabendo que o Ministério da Educação e Desenvolvimento de Recursos Humanos está examinado a possibilidade de elaborá-la na forma de uma Proposta Governamental. Se isso acontecer, será mais fácil superar o impasse. Choi: A Proposta Governamental do Ministério da Educação e Desenvolvimento de Recursos Humanos para a Lei da Educação para a Primeira Infância será semelhante à sugerida na Reforma de 1997? 13 Serviços comerciais oferecendo aulas de arte, piano, dança, esportes, aritmética, línguas estrangeiras etc. para crianças pequenas. Esses serviços oferecem programas que combinam cuidados para a primeira infância e atividades educativas. 102 Na: Sim, mas ela tratará apenas dos jardins de infância, deixando de fora os serviços de cuidados para a primeira infância e os Hakwon. Na verdade, a reforma original foi revista em 1997, visando a restringir o âmbito da Proposta, de modo a incluir apenas os jardins de infância. A Proposta Governamental para a Lei provavelmente refletirá essa revisão. Choi: A reforma revisada ainda era centrada no conceito de Escola para a Primeira Infância (EPI)? Na: Sim, a principal concepção de EPI – ou seja, criar serviços integrados de cuidados e educação em tempo integral – foi mantida. Mas ficou decidido que o serviço integrado não se chamaria EPI. Desse modo, a Proposta Governamental para a Lei da Educação para a Primeira Infância, apresentada pelo Ministério da Educação e Desenvolvimento de Recursos Humanos usaria o termo Jardins de infância, não Escolas para a Primeira Infância. Choi: Caso a Lei da Educação para a Primeira Infância tratando apenas dos jardins de infância seja aprovada, o senhor ainda assim a veria como um avanço? Na: Sim, em primeiro lugar, com uma Lei da Educação para a Primeira Infância, a Lei Educacional do país contará com legislações para o conjunto completo dos ciclos da vida, cobrindo a primeira infância, os ensinos primário, secundário, superior e a educação de adultos. Em segundo lugar, a Lei da Educação para a Primeira Infância certamente irá preparar o terreno para o apoio governamental aos jardins de infância privados. Choi: Uma das mudanças significativas que a Lei da Educação para a Primeira Infância tenta estabelecer é transformar os jardins de infância em serviços de horário integral, para atender às necessidades dos pais com relação ao cuidado dos filhos pequenos. A demanda de serviços de cuidado para a primeira infância é grande na Coréia? 103 Na: O cuidado para a primeira infância é uma das principais razões que impedem as mães de procurar emprego fora de casa. Recentemente, o baixo índice de fertilidade do país foi atribuído, em parte, à carga do trabalho de cuidar de crianças pequenas. De modo que existe uma crescente preocupação com a necessidade de serviços para a primeira infância, visando a aumentar a participação feminina no mercado de trabalho e a promover a igualdade entre os gêneros. Choi: Dado o contexto social do país, o senhor acredita que a implementação da Reforma teria sido facilitada caso ela tivesse se centrado na questão do cuidado para a primeira infância, argumentando a favor de uma maior responsabilidade ser conferida ao setor do bem-estar social? Na: Poderia ter sido mais fácil. Choi: Nesse caso, poder-se-ia dizer que a reforma de cunho nitidamente educacional, centrada no aumento da responsabilidade do setor da educação, representou um equívoco? Na: Não, como o próprio Ministério da Educação e do Desenvolvimento dos Recursos Humanos concordou, a Reforma aponta para a direção certa a ser tomada pelo país, embora ela seja de difícil implementação. E chegou a hora de pensarmos seriamente em nosso futuro. Com relação à perspectiva educacional, eu gostaria de observar que integrar o cuidado e a educação sob a responsabilidade do setor educacional é a direção que, ultimamente, vem sendo adotada e examinada pelos países desenvolvidos. Mas, alguns anos atrás, os investimentos desses países na primeira infância também eram justificados principalmente como uma forma de aumentar a participação das mulheres na força de trabalho e de promover a igualdade entre os gêneros. A Coréia encontrase nesse estágio inicial de desenvolvimento, mas ela logo passará a uma fase mais avançada. Portanto, a reforma teria de fato sido equivocada e anacrônica, caso ela privilegiasse uma perspectiva que, logo em seguida, viria a ser substituída por 104 uma outra. Corrigir uma reforma malfeita é mais difícil e mais caro do que implementar uma reforma nova. Uma reforma deveria estabelecer uma visão de futuro. Choi: Qual o seu conselho aos países que estão tentando começar um esforço legislativo dessa natureza? Na: Os governos não devem ter medo de trazer a primeira infância para dentro da estrutura educacional. Como nós tentamos, com o conceito de Escolas para a Primeira Infância, pode-se chegar a um serviço cujo objetivo seja tanto a educação quanto o cuidado. O problema surge apenas quando o conceito de educação é entendido e interpretado estritamente no “velho” sentido da escolarização. Mas agora que os países, embora lentamente, estão deixando para trás o conceito de educação convencional e restrito ao ensino, adotando uma visão ampliada da educação, os programas para a primeira infância que apresentam características tanto de ensino quanto de cuidado devem conquistar uma posição sólida. Já é tempo de o conceito de educação se tornar mais flexível e aberto, em vez de a primeira infância ser distorcida de modo a caber no antigo conceito. 105 13. O PAPEL DA EDUCAÇÃO E DO CUIDADO PARA A PRIMEIRA INFÂNCIA NA PROMOÇÃO DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES* ANTECEDENTES Tanto nos países industrializados quanto nos países em desenvolvimento, os programas de educação pré-escolar vêm-se provando capazes de trazer ganhos de importância crítica para o desenvolvimento social, emocional e cognitivo das crianças. Além do mais, estudos visando a acompanhar as crianças ao longo dos anos passados em programas de educação para a primeira infância e, subseqüentemente, na escola, vêm demonstrando que as crianças que tiveram a oportunidade de receber cuidado e educação de qualidade nos seus primeiros anos têm desempenho acadêmico significativamente superior, quer elas estejam sendo criadas na América Latina, na África, na Ásia, na América do Norte ou na Europa. Em razão dos benefícios trazidos pela educação para a primeira infância, é de importância fundamental – caso tenhamos a intenção de assegurar oportunidades iguais a todas as crianças – que haja igualdade no acesso a serviços de qualidade, voltados à educação e cuidado para a primeira infância (ECPI). A presente nota de política examina a atual situação do acesso a esses serviços. * Nota sobre Políticas para a Primeira Infância (UNESCO Policy Briefs on Early Childhood) número 18, de novembro-dezembro de 2003. Elaborada por Jody Heymann, Ph.D., Diretora-fundadora do Projeto Global sobre Famílias Trabalhadoras, Universidade de Harvard. Pubblicada pela Seção de Educação da Primeira Infância e da Família. Divisão de Educação Básica. UNESCO, Paris (http:/www. unesco.org/education/educprog/ecf/index.htm). 107 AS ATUAIS DISPARIDADES ENTRE CLASSES SOCIAIS QUANTO AO ACESSO A CUIDADOS INSTITUCIONALIZADOS Realizamos estudos aprofundados em grandes e pequenas cidades do México, de Botswana e do Vietnã, e analisamos também dados nacionais do Brasil e do Vietnã. Os resultados desses estudos são mostrados a seguir. As cifras para cada país demonstram, ao longo de uma vasta gama de tipos de famílias, que as crianças que vivem em famílias onde o grau de escolaridade dos pais é mais baixo, têm menores probabilidades de vir a receber educação para a primeira infância entre as idades de três a cinco anos (ver Tabela 1). Tabela 1: Percentagem de crianças de três a cinco anos matriculadas em educação para a primeira infância, por tipo de família e grau de escolaridade dos pais * AP – Amostragem pequena demais para permitir estimativas. No decorrer dos estudos aprofundados, entrevistamos uma amostra representativa de famílias atendidas em centros de saúde para pre- 108 venção e consultas de rotina, em cidades escolhidas, tanto grandes quanto pequenas. Os resultados dessas entrevistas revelam disparidades entre as classes sociais em termos do acesso a serviços formais de educação e cuidado para crianças com idade inferior a seis anos, disparidades essas semelhantes às encontradas nos dados nacionais. Duas conclusões importantes tornaram-se evidentes. Em primeiro lugar, as diferenças em termos de acesso a Educação e Cuidado na Primeira Infância colocavam em situação de desvantagem, a partir de uma idade muito precoce, as crianças de famílias das classes socioeconômicas mais baixas. Em segundo lugar, e de igual importância, as políticas adotadas pelos países podem ter efeitos benéficos, tanto em termos do número total de famílias a ter acesso a esses serviços quanto no que se relaciona a diminuir a disparidade de acesso entre as diferentes classes sociais. Em Botswana, 19% dos pais com escolaridade de nível médio ou menor tinham menos oportunidades de mandar seus filhos a instituições de cuidado e educação infantil. Por outro lado, 35% dos pais com nível de escolaridade secundário ou superior tinham acesso a esses serviços. Embora essas disparidades sejam observáveis também no México, o sistema mexicano de seguridade social estabelece a obrigatoriedade de seguro social para os empregados no setor não formal. Essa cobertura inclui: seguro por riscos no ambiente de trabalho, licençamaternidade e para tratamento de saúde, seguro por incapacitação física, aposentadoria e creches para crianças entre seis semanas e quatro anos. Os serviços de creches são oferecidos a todas as mães ou a pais viúvos ou divorciados que tenham a guarda dos filhos.1, 2 Conseqüentemente, enquanto apenas 20% dos pais com nível médio ou menos tinham filhos que freqüentavam creches institucionalizadas ou serviços de educação para a primeira infância, 52% dos pais com nível secundário 1 2 EVALUATION of the reforms: the Americas social security report 2003. In: CONFERÊNCIA INTERAMERICANA DE SEGURIDADE SOCIAL, México, Oct. de 2003. Report. México: s.e., 2003. pp. 150-159. Para maiores detalhes, ver <http://natlex,ilo.org/>, onde a íntegra da Lei de Seguridade Social mexicana pode ser acessada. 109 ou mais (e que, portanto, tinham maiores chances de conseguir emprego no setor formal) tinham filhos em serviços institucionalizados de educação e cuidado na primeira infância. No Vietnã, as medidas adotadas pelo setor público também levaram a um aumento do número de famílias atendidas e a uma diminuição das disparidades. Naquele país, uma lei de 1999 organizou as responsabilidades pelos programas de pré-escola no âmbito do Ministério da Educação e Treinamento. Os maiores avanços foram alcançados no acesso a educação e cuidado na primeira infância para as crianças de três a cinco anos, em áreas urbanas.3 Para o Vietnã, as cifras correspondentes foram de 53% versus 63%. Quando a renda é usada para medir a classe social, ficam evidentes as disparidades paralelas entre as classes. Examinamos o caso de trabalhadores de baixa renda que ganhavam menos que 10 dólares por dia. Foi feita uma equivalência entre os salários dos diversos países, com base não apenas nas taxas de câmbio, mas também na paridade de poder de compra, usando dados numéricos do Banco Mundial. Em Botswana, só 10% das famílias de baixa renda tinham acesso a instituições formais de educação e cuidado na primeira infância, percentual esse bem inferior aos 35% das famílias de renda mais alta que tinham acesso a esses serviços. No México, onde a seguridade social elevou o número total de famílias com acesso a instituições formais para a primeira infância, nítidas diferenças ainda permaneciam entre as classes sociais. Apenas 22% das famílias de baixa renda entrevistadas por nós na Cidade do México e em Chiapas podiam mandar seus filhos a essas instituições, contra 58% das famílias de renda mais alta. Dos países estudados por nós, o que tinha o maior número de famílias servidas por instituições formais de educação e cuidado na primeira infância era o Vietnã, que apresentava também as menores 3 Para maiores informações, consultar <http://www.unescobkk.org/education/ece/ policies/vietnam/htm>. 110 diferenças entre as classes sociais, em razão da disponibilidade de serviços públicos. Em Ho Chi Minh, 57% das famílias de menor renda e 62% das de renda mais alta podiam enviar uma criança a essas instituições formais. DISPARIDADES EM TERMOS DE CUIDADOS INFANTIS INFORMAIS, PRESTADOS POR ADULTOS REMUNERADOS O potencial de desigualdade no acesso a cuidados infantis não se limita às instituições formais de educação e cuidado na primeira infância. Encontramos fortes diferenças entre as classes sociais no que diz respeito ao acesso a cuidados infantis informais, prestados por adultos remunerados por esse serviço, tanto em casa quanto fora dela. No México, 19% das famílias de menor renda entrevistadas por nós contavam com os serviços informais de adultos remunerados, contra 53% dos pais de renda mais alta. (Algumas das famílias de maior renda tinham acesso tanto a cuidados informais prestados por adultos contratados quanto a instituições formais). Em Botswana, 24% das famílias de menor renda conseguiam pagar outros adultos para ajudá-las a cuidar informalmente de seus filhos, contra 62% das famílias de renda mais alta. No Vietnã, as cifras correspondentes eram de 22% para 27%, com uma menor percentagem do total (se comparada com os outros países) fazendo uso de serviços informais, uma vez que os serviços prestados por instituições formais são relativamente acessíveis. Disparidades semelhantes surgem quando a classe social é medida com base no grau de escolaridade dos pais. Os pais que receberam os menores níveis de oportunidades educacionais são os que menos podem pagar outros adultos para prestar cuidados informais a seus filhos. Em razão da pouca disponibilidade de serviços institucionalizados de cuidados infantis de preço acessível e da dificuldade das famílias de pagar por serviços informais prestados por outros adultos, os pais de menor renda e menor nível educacional eram os que tinham as maiores probabilidades de deixar seus filhos pequenos aos cuidados de outras crianças, ou de ter de levá-los para o local de trabalho, onde o ambiente, 111 muitas vezes, não apresentava condições de segurança. Em Botswana, 33% dos pais de menor renda e 25% dos pais com grau de escolaridade média ou menos tinham de deixar seus filhos sob os cuidados de outras crianças, que não recebiam remuneração por esse serviço. No Vietnã, 17% dos pais de menor renda e 17% dos pais com grau de escolaridade média ou menos tinham de recorrer aos cuidados prestados por uma criança não remunerada. No México, 21% dos pais com grau de escolaridade média ou menos recorriam aos serviços não remunerados de uma criança para cuidar informalmente de seus filhos, e 53% deles costumavam levar os filhos para o trabalho. A IMPORTÂNCIA DO SETOR PÚBLICO PARA A PROMOÇÃO DE IGUALDADE DE OPORTUNIDADES Atualmente, as crianças que vivem em condições de pobreza têm uma probabilidade significativamente menor de receber educação para a primeira infância, cuidados formais e até mesmo cuidados informais prestados por um adulto remunerado (e não por uma criança). A disparidade nas percentagens de crianças que freqüentam instituições de prestação de cuidados ou que contam com os serviços de um adulto para cuidar delas deve-se às diferenças de acesso e de capacidade para pagar serviços de educação e cuidado na primeira infância de qualidade aceitável. As disparidades atualmente existentes têm graves conseqüências para a saúde, o desenvolvimento e a educação das crianças. Toda uma gama de métodos pode ser usada para aumentar o acesso a cuidados e educação para a primeira infância para as crianças de todo o mundo. Parcerias com o setor privado e regulamentação dos serviços oferecidos por este, por meio de sistemas de seguridade social, são um exemplo de uma maneira eficaz de aumentar o acesso a esses serviços, quando os pais são empregados no mercado de trabalho formal. Da mesma forma, a oferta direta de serviços pelo poder público, ou subsídios públicos para esses serviços, podem aumentar o acesso a eles, para crianças cujos pais trabalham tanto no setor formal quanto no informal (uma vez que o setor informal não é devidamente abrangido pelas leis 112 trabalhistas e pelos sistemas obrigatórios de seguridade social). Sejam quais forem os mecanismos escolhidos, necessitamos urgentemente de apoio público para a educação e o cuidado na primeira infância, partindo tanto das políticas nacionais quanto das globais, a fim de diminuir as desigualdades atualmente existentes. 113