Ex. Senhor Presidente da Freguesia de Sª Barbara de Nexe Agora que as emoções navegam em águas mais calmas, resolvi através de Vossa Excelência em forma de homenagem falar de uma conterrânea da vossa freguesia e que eu tive o privilegio de a conhecer, trabalhar, e ser sua amiga há mais de 40 anos. Falo da Maria Zulmira Pereira André, Ex Enfermeira Pára-quedista, que em terras de África tanto me ensinou não só como profissional, como ser humano maravilhoso que era, tornando -se dos melhores exemplos que passam pela terra, parecendo que só vieram a este planeta para fazer o bem ao seu semelhante. Eu também sou uma ex enfermeira pára-quedista e uma das pessoas que melhor conheceu a Zulmira, por isso na sua fase terminal fiz tudo o que me foi possível para que ela nunca se sentisse só até fazer a “travessia “ como ela própria dizia, ao encontro com a mãe e a avó que ela tanto admirava. Quando ela me falava da sua adolescência e juventude vivida em Sª Barbara, da forma como conseguiu vir para Lisboa, com a ingenuidade de menina que desejava tornar-se gente, numa profissão direccionada para ajuda aos que mais precisavam e no seu imaginário nada melhor que ser enfermeira para poder estar próxima do ser humano, no seu estado mais frágil que é a perda de saúde. Tinha plena consciência já nessa altura que para isso era necessário saberes técnicos, saberes sobre os comportamentos psicológicos dos profissionais e dos doentes, para que o seu desempenho fosse eficiente e estivesse à altura de enfrentar a degradação física do ser humano, tantas vezes aos olhos dos saudáveis, repugnante e custoso de lidar e lhe tocar. Determinada, foi ter salvo erro com o Senhor Padre da Freguesia e perguntou-lhe se ele sabia como ela poderia vir para Lisboa estudar para ser enfermeira. Não nos podemos esquecer que estávamos nos anos 50, em que Lisboa ficava a léguas da sua terra natal. Após algum tempo e sobre a orientação do seu parco, lá veio ela e dizia-me: vim sempre a pensar que ia estudar, estudar até conseguir ser uma enfermeira a sério. Quando chegou à Escola de Enfermagem teve de fazer um curso mais reduzido por falta de habilitações académicas, mas não desanimou fez o curso e foi trabalhar para o Hospital de S ª Maria ao mesmo tempo que fazia o liceu que lhe faltava. Quando já tinha as habilitações exigidas, volta à escola de enfermagem para iniciar o Curso Geral de Enfermagem com duração de 3 anos e nessa altura a exigência era tal, que não levaram em consideração o ano e meio que já tinha feito como enfermeira auxiliar e a prática entretanto adquirida no hospital. Durante esses 3 anos continuou a trabalhar fazendo só noites no Hospital para poder frequentar as aulas de enfermagem durante o dia. Mas dizia-me ela; nada disso me tirou a vontade de continuar, antes pelo contrário foi um incentivo ao gosto pelo estudo. Terminando a sua formação académica e profissional com excelentes notas. Após o Curso Geral de Enfermagem continuou a trabalhar no Hospital de Sª Maria, mas por pouquíssimo tempo. A Escola onde se formou não a perdeu de vista, porque a ex aluna Maria Zulmira deixou um marco, do seu carácter, da sua dignidade, da sua inteligência e da vontade constante em aprender, gravado na cabeça das suas mestras. Pouco tempo depois a Escola foi ao seu encontro e convida-a para fazer parte do corpo docente, dando aulas de enfermagem aos novos cursos que todos os anos iam surgindo. Volta pela 3ª vez à Escola de Enfermagem, agora como professora. Em 1961, foi exactamente a sua escola – Escola de Enfermagem das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, que aderiu a um projecto que o antigo subsecretário de Estado da Aeronáutica, General Kaulsa de Arriaga apresentou, para formação de enfermeiras Pára-quedistas equiparadas a militares e que após o curso de páraquedismo iriam actuar em zonas de conflito armado em socorro dos feridos. Foi um projecto completamente inovador “Mulheres na Tropa”. A escolha dessas mulheres teria de ser feito pela escola pois as madres conheceriam melhor que ninguém, as antigas alunas agora já enfermeiras, e as que reuniam melhores condições; morais, profissionais, psicológicas, relacionais etc, etc … O resto que era a preparação militar, a tropa se encarregaria de lhes dar formação. Todas as candidatas foram convidadas e escolhidas a dedo pela Escola, para depois fazerem exames médicos, psicotécnicos, provas físicas e por último dar inicio ao curso de pára-quedismo propriamente dito. Foram onze as escolhidas, uma, não passou nos exames médicos indo para o seu lugar uma outra enfermeira, única que não era dessa escola mas sim da Escola de Enfermagem de S. Vicente de Paulo. Das onze que iniciaram o curso só chegaram ao fim seis, ficando conhecidas pelas seis Marias: Maria Arminda Pereira, Maria Zulmira André, Maria Nazaré Andrade, Maria do Céu Policarpo, Maria Ivone Reis e Maria de Lurdes Rodrigues. Este curso de pára-quedismo femenino foi o primeiro, e também o mais exigente e o mais difícil. Nunca os instrutores tinham dado cursos a mulheres, os próprios militares pára-quedistas, existiam havia apenas seis anos, chegando a apostarem entre eles, em como elas eram ou não capazes de aguentarem as exigências da instrução; mas as nossas valorosas seis Marias mostraram como as mulheres, também eram valentes. Foram estas Mulheres corajosas que romperam os preconceitos e de forma tão digna e admirável abriram portas às mulheres nas fileiras militares do nosso País. Uma delas a Maria Zulmira Pereira André, segunda classificada do curso, nascida em Sª Barbara de Nexe Conselho e Distrito de Faro, Algarve. A Tenente Enfermeira Zulmira, fez várias comissões nas nossas ex colónias. Esteve muito tempo na Guiné, onde tantas vezes aterrou em pleno teatro operacional de guerra, sempre calma, tranquila de olhar doce, debruçada apenas para o ferido, indiferente ao perigo a que estava sujeita para que os seus cuidados fossem eficazes e o ferido chegasse ao hospital vivo e nas melhores condições possíveis. Foi ela que evacuou, o Sr Capitão Peralta, oficial Cubano ao serviço do PAIGC. A sua captura é relatada ainda hoje em tudo quanto é livro publicado sobre a Guerra da Guiné, com os nomes de quem planeou a operação e quem o capturou, e nunca os autores dos livros ou os documentários passados na Televisão sobre o mesmo tema, fizeram qualquer referência à enfermeira que lhe salvou a vida, dado o estado gravíssimo em que se encontrava o referido. Capitão Peralta, quando foi entregue aos cuidados da enfermeira. Quando qualquer uma de nós comentava como era injusto não se referirem às pessoas envolvidas na evacuação do senhor capitão Peralta, (piloto, mecânico e enfermeira) dado que foi recomendado que nada podia falhar porque a vida desse ferido era muito importante para os Militares e para o País, o que acrescentou os níveis de stress de toda a tripulação, a Zulmira dizia: isso não tem importância nenhuma, claro que essa recomendação foi tão imperativa que agitou o meu estado emocional, mas pensando bem eu fiz o que faço a qualquer outro ferido, amigo ou inimigo, faço sempre tudo o que está ao meu alcance, para que a vida seja mantida, tudo dê certo e o ferido seja ele quem for e se estiver consciente, esteja confiante no meu trabalho e sofra o menos possível. Após alguns anos de enfermeira militar, a Escola volta a convida-la para continuar a formar novos enfermeiros, é pela quarta vez que lá dá entrada. Como ser humano, é muito raro encontrar uma pessoa como a Zulmira, de uma generosidade infinita, bondosa como ninguém, de uma sensibilidade ao sofrimento dos outros que é comovente e com uma disponibilidade para ouvir as lamentações dos magoados pela vida que me tocava no coração a forma atenta e carinhosa com que ela escutava os seus desabafos. Revelou-me um dia que quando lhe custava muito tocar nas pessoas que em determinadas situações estavam num estado elevado de degradação e se sentia agoniada, rezava pedindo a Deus que lhe desse força para se controlar, porque esse doente que ela nem sequer o conhecia, precisava não só do seu saber técnico mas precisava também de ser tratado como um irmão. Foi por essas características, que todas as pessoas que se cruzaram na sua vida em épocas diferentes não a esqueceram como grande referência de um Ser Humano Muito Elevado e raríssimos neste nosso mundo. Isso foi evidente na fase final da sua vida. Eu pude testemunhar, tanta gente que eu não conhecia, desde os mais jovens aos mais velhos, aos vizinhos do prédio, aos colegas professores da escola, aos seus ex alunos, aos pára-quedistas, a gente de Sª Barbara que se deslocou do Algarve, prevendo que a Zulmira não voltaria a deslocarse à Terra que a viu nascer e da qual nunca se desligou; todos estiveram presentes, ao ponto de haver necessidade de fazer uma espécie de escala de serviço, para que ela não ficasse cansada, embora nunca reclamasse pelas visitas serem muitas. Perante toda esta nobreza de sentimentos, riqueza de vida e grande exemplo humano, considero não ter o direito de guardar só para mim e para muitos outros, é certo, este modelo de vida da Maria Zulmira André, sem dar conhecimento a todos os naturais da sua aldeia, o seu perfil exemplar, que será com certeza motivo de orgulho para a sua Terra e quem sabe, se existir ou venha a existir algum arquivo sobre histórias de vida das pessoas da freguesia, ela possa fazer parte desse registo como um Grande Exemplo dos Naturais de Sª Barbara de Nexe. Testemunho de Rosa Serra Ex Enfermeira Pára-quedista