PARA UMA DEFINIÇÃO DE MÉDIA-ARTE DIGITAL
Um ensaio de
Pedro Alves da Veiga
Aluno nº 1401433
Apresentado à disciplina de Estética Computacional,
1º semestre do Doutoramento em Média-Arte Digital,
Universidade Aberta - Universidade do Algarve
5 de Janeiro de 2015
PARA UMA DEFINIÇÃO DE MÉDIA-ARTE DIGITAL
Sumário
O conceito de média-arte digital herda características do movimento Dada, e é o resultado da evolução,
não só de movimentos estéticos e artísticos ao longo do último século, mas também da tecnologia e
ciência, cujas fases embrionárias se situam na época do dadaísmo, e da aproximação que tem existido
entre as várias áreas de estudo. Através de uma perspectiva histórica procura-se propor uma definição
suficientemente abrangente e, simultaneamente, específica e inequívoca.
Introdução
mé·di·a [ˈmɛdjɐ] - meios de comunicação de massas (imprensa, rádio, televisão, satélites de
comunicação, etc.).
ar.te [ˈart(ə)] - aplicação do saber à obtenção de resultados práticos, sobretudo quando aliado ao
engenho; habilidade; ofício que exige a passagem por uma aprendizagem; conjunto das técnicas para
produzir algo; técnica especial; expressão de um ideal estético através de uma actividade criativa;
conjunto das actividades humanas que visam essa expressão; capacidade; dom; jeito.
di·gi·tal [diʒiˈtaɫ] - que procede ou se manifesta por unidades discretas; que apresenta a informação
sob forma numérica num mostrador ou ecrã; que envolve ou diz respeito a dispositivos electrónicos
(telemóvel, tablet, iPOD, etc.) ou à internet.
(Porto Editora, 2003-2013)
"A função da arte consiste em expandir a realidade, o conhecimento e a experimentação/fruição. Este
processo pode desenvolver-se por consenso ou diálogo – através de sedução – ou por dogma – através
de controlo ou coerção." (Giannetti, 2004)
Ruptura
Nascido na revolução industrial, o modernismo traduz a vontade de abraçar a nova realidade e os novos
materiais da era industrial, com tendência para simplificar as formas, reduzir o detalhe decorativo e
abandonar o realismo, dando crescente atenção aos materiais utilizados e respectivas qualidades
visuais, aos símbolos da revolução industrial, à maquinaria e tecnologia. Apesar da busca de inovação e
reinvenção da arte, dois aspectos permanecem inalterados: o elitismo das artes, artistas, patronos e
críticos; e a valorização das obras-de-arte produzidas.
O anti-movimento Dada (Willette, 2011) gera-se a partir da inspiração nihilista surgida da I Guerra
Mundial, e do espírito de revolução artística iniciada pelo futurismo. Assenta a sua acção principal na
crítica feroz à sociedade e aos valores socioculturais que permitiram os horrores da Guerra. Os
dadaístas assumem-se como não-artistas e não-escritores e, já que tudo no mundo, incluindo a arte,
perdera o sentido, decidem criar a não-arte.
As obras dadaístas caracterizam-se essencialmente por uma regra: nunca seguir nenhuma regra. O seu
objectivo primeiro é a indução do escândalo, choque e até repulsa no espectador/observador, através de
humor escatológico, sátira, a utilização do nu, enfim, tudo o que constitua um questionar dos valores da
época.
A utilização directa de objectos mundanos, produzidos em larga escala e de uso corrente,
reclassificados como "arte" (os readymade),
colagens fotográficas, algumas formas iniciais
de assemblage e um entusiasmo pela tecnologia, marcam as obras deste movimento. É a época do
artista contestatário, ridicularizador e ridicularizado.
O movimento autoextingue-se quando começa a tornar-se "aceitável", e é através da aceitação dos
valores dadaístas enquanto forma de arte que vem a influenciar de forma significativa muitos dos
movimentos e tendências que se lhe seguem.
A ascensão do conceito
A arte conceptual surge no rasto do dadaísmo, e Isidore Isou cria a noção de "um artefacto que pela sua
própria natureza não possa jamais ser materializado, mas que produza recompensa estética pela sua
contemplação intelectual" (Isou, 1956).
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Surge o conceito de “instalação” – algo que pode ser construído com recurso a materiais nãotradicionais das artes (até então), misturando técnicas e tecnologias. Segundo Sol LeWitt, na arte
conceptual a ideia é o aspecto mais importante do trabalho. “Quando um artista usa uma forma de arte
conceptual, significa que todo o planeamento e decisões estão definidos à partida e a execução é uma
simples tarefa de materialização. A ideia torna-se uma máquina que faz arte” (LeWitt, 1967). Esta
noção preconiza o surgimento da arte digital, em que um conjunto de instruções dado a uma máquina
(computador) produzem arte.
A popularidade crescente da psicanálise traz para a ribalta áreas anteriormente já tocadas pelo
simbolismo, mostrando um mundo individual que existe para além do óbvio, do visível e do tangível.
Os alucinogénios e os estados alterados de consciência estabelecem um campo fértil para universos de
sonho, realidades alternativas e irracionais. O surrealismo explode e atrai muitos dos dadaístas. Surge o
artista visionário, inspirado e em contacto com "outros mundos".
A arte abstracta, expressão directa da irracionalidade ou de sentimentos e gestos do momento, com
total ausência de elementos reconhecíveis, dá os primeiros passos.
Movimento e interacção
Se é certo que já em finais do século XIX artefactos com imagens em movimento, como o taumatrópio
ou o zootrópio, se tinham popularizado, a verdade é que não eram encarados como expressões de arte,
e sim como curiosidades ou brinquedos. O próprio cinema é inicialmente descrito pelos Lumière como
uma invenção sem futuro, de interesse científico (Auguste Lumière Biography, 2015), e para Georges
Méliés é uma extensão da magia de palco. Só com David Griffith ascende ao estatuto de arte. Em 1932
surge o primeiro festival de cinema internacional em Veneza (La Biennale di Venezia, 2014). Anos
depois, através da televisão, as imagens em movimento difundem-se à escala global doméstica: pela
primeira vez não é necessário sair da própria casa para visitar um museu ou ver um filme.
Em 1958 Wolf Vostell torna-se o primeiro artista a incorporar um aparelho de televisão numa obra:
German View from the Black Room Cycle (Media Art Net, 2004). Movimentos contemporâneos da
arte conceptual, como Fluxus ou Happening, também eles herdeiros do espírito contestatário dadaísta,
permanecem em actividade ainda hoje, baseando-se no formato de instalação e ampliando-o para
performance art, onde os próprios artistas se tornam objecto exposto, rodeando-se frequentemente de
novas tecnologias e artefactos.
Mas ao movimento das obras corresponde a passividade dos observadores. Os aspectos dinâmicos e
interactivos da arte, tal como os conhecemos actualmente, surgem nos anos 60. O dinamismo é
popularizado por Alexander Calder, o pai dos mobiles e das esculturas cinéticas, um engenheiro/artista,
percursor dos vindouros cientistas/artistas, inspirado pela arte abstracta de Mondrian (Kuh, 1962). No
final da década de 60 a arte cinética é já uma tendência estabelecida, e a utilização de peças articuladas
e máquinas evolui naturalmente para a utilização de computadores.
Ainda nos anos 60, a mail-art propõe a criação de uma rede de artistas à distância - a "Eternal
Network" (Filliou, 1977) - que comunicam através do serviço postal, trocando e recriando peças,
partilhando imagens recicladas, carimbos, assemblage, e com eles também debate de ideias,
provocações e convocatórias para encontros. A primeira exposição significativa de mail-art decorre no
museu Whitney, em Nova Iorque, em 1970.
Arte digital
Historicamente as primeiras formas de arte computacional, em computadores analógicos, são levadas a
cabo por cientistas, que chamam às suas experiências de laboratório "arte", tal como os dadaístas o
haviam feito com o readymade. É o caso do matemático Ben Laposky e dos seus "Oscillons",
fotografias de formas de onda reproduzidas num osciloscópio (Laposky, 1953), considerado o "avô da
arte computacional", criando Charles Csuri dez anos mais tarde (Csuri, 2008) os primeiros filmes com
animação por computador.
Assistimos à tomada de estatuto de "arte" por algo que, até então, nunca tinha sido elevado a esse
patamar. Dilui-se a fronteira entre ciência e arte e surge o artista/cientista. "A arte e a ciência podem
apenas ser comparadas razoavelmente se aceitarmos que ambas são métodos. Isto não significa que
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declaremos que ambas têm os mesmos métodos. Apenas queremos declarar que ambas têm uma
abordagem metodológica, mesmo que os seus métodos sejam distintos." (Weibel, 1998)
Se os átomos são a base das matérias que constituem a arte convencional, os zeros e uns são a base da
arte digital, e os computadores e programas são as ferramentas usadas para a sua manipulação. Esta
nova matéria seduz um novo grupo de criadores, tal como os ícones da revolução industrial também
seduziram os artistas de então. Nelson Goodman refere que "as virtudes reais dos instrumentos digitais
são as dos sistemas de notação: precisão e repetibilidade." (Goodman, 1976) e é essa a sensação que as
primeiras criações por computadores digitais transmitem: perfeição e reprodutibilidade.
O artista digital está efectivamente liberto dos constrangimentos técnicos dos seus congéneres
"tradicionais": não precisa de saber pintar, esculpir ou desenhar, pode até ter impedimentos motores
que limitem o acesso físico aos materiais de criação, e assenta toda a sua produção numa relação com a
tecnologia (uma paixão dos dadaístas) quase puramente intelectual, através de programação e controle
automatizado de artefactos. São ainda abolidos os constrangimentos de espaço e tempo, dado que,
potencialmente, uma obra de arte digital não está restrita a um lugar ou momento - e deste conceito
deriva o de virtualidade.
Em súmula, a arte digital herda do dadaísmo duas principais características:
i.
A possibilidade/vontade de contrariar todas as correntes estéticas, culturais e artísticas.
ii.
A possibilidade/vontade de ser levada a cabo por não-artistas tradicionais.
Esta segunda característica é acentuada pela evolução do mercado: o enaltecimento da juventude e da
irreverência, a democratização dos meios de produção artísticos (tradicionais e digitais) e o marketing
de ideais enaltecedores do indivíduo (TU és especial, TU podes fazer tudo) transportam-nos em passo
acelerado para uma produção artística massificada numa escala sem precedentes. O artista que procura
destacar-se torna-se empresário e usa técnicas de marketing e comunicação, tantas delas tão ou mais
digitais e complexas do que a própria arte que promovem. Também o desafio colocado pela
preservação das obras de arte digital se faz sentir, devido à obsolescência acelerada dos média e
tecnologias utilizados, conforme reconhecido pelo museu Guggenheim e a fundação Daniel Langlois
para Arte, Ciência e Tecnologia, entre outros (DOCAM, 1999) (Variable Media Network, 2002). A
facilidade da criação é ultrapassada pela facilidade da destruição.
Média-arte digital
Para concluir o objectivo deste texto - encontrar uma definição de "média-arte digital" - vamos analisar
as definições dos seus antecedentes directos:
i.
a arte digital, ou seja, a arte que explora o meio digital (ferramentas, tecnologias e conteúdos)
enquanto processo ou ferramenta de criação, como produto final (conteúdo informativo e
suporte), ou como tópico artístico. (Marcos, 2007)
ii.
a média-arte, ou seja, a arte função do tempo (no sentido matemático), criada através da
gravação e reprodução de som e/ou imagens. Uma obra dependente do tempo é uma obra em
mutação e movimento, por contraste com as anteriores formas de arte estáticas, como a
pintura, fotografia e a maior parte da escultura (Netherlands Media Art Institute, 2015).
Efectivamente a fruição de um artefacto de média-arte digital é uma função do tempo, no sentido
matemático do termo. Quer a vídeo-arte, os sistemas interactivos, experiências imersivas, a escultura
de informação ou a net-art só podem ser vivenciadas plenamente ao longo de um período de tempo,
nunca de forma instantânea. O tempo é a 4ª dimensão da média-arte.
Conclusão
Pode então propor-se a seguinte definição:
A média-arte digital é toda a forma de arte que não pode ser idealizada e/ou materializada e/ou
exibida sem a utilização de tecnologias digitais e cujo conteúdo e apreciação estética e intelectual
variam em função do tempo.
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Ben F. Laposky.
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