O NEUTRINO A CRISE DO DECAIMENTO BETA Onde Niels Bohr chegou a duvidar da conservação da energia. A essa altura do campeonato, como dizem meus netos, vocês já devem conhecer bem os produtos da radioatividade: partículas alfa, partículas beta e raios gama. Nossa conversa começa com o chamado "decaimento beta", processo no qual um núcleo radioativo cospe um elétron (a beta) e vira núcleo de outro elemento. Esse processo, como vimos antes, consiste no "decaimento" de um nêutron que resolve virar próton. Para isso, o nêutron emite uma carga negativa, a partícula beta. Do ponto de vista do balanço de massas e cargas, a reação pode ser escrita como: 1 n0 → 1p1 + 0e-1 Vemos claramente que a carga se conserva na reação: era nula antes e permanece nula depois, pois gera duas cargas opostas e iguais. E a energia? A energia também deve se conservar, isto é, deve ser a mesma no total, antes e depois da reação. Ora, como a reação parece envolver apenas dois objetos, o nêutron que vira próton e o elétron (a beta) que é ejetado, a energia dos elétrons que saem do núcleo deve ser sempre a mesma, com um valor que depende só das massas das partículas e da força envolvida na reação. Pense no caso simples de duas bolas ligadas por uma mola comprimida. Quando a mola é solta, as bolas são lançadas em direções opostas. Se uma das bolas for muito mais leve que a outra, praticamente toda a energia que estava armazenada na mola é transferida para a bolinha leve que sai com velocidade e energia bem determinadas. Em princípio, isso também deveria acontecer com o decaimento beta. Quando o nêutron decai em um próton, alguma força interna do núcleo joga o elétron para fora com grande velocidade. Esperase, portanto, que todos os elétrons emitidos tenham, aproximadamente, a mesma energia. Bola lançada por uma mola. Beta lançada por um núcleo. Digamos que alguém coloque um detetor de elétrons na frente do material radioativo e fique contando os elétrons e medindo suas energias. Como todos os elétrons devem sair do núcleo com (aproximadamente) a mesma energia, essas medidas resultariam em um gráfico parecido com esse que é visto ao lado. Nele, N é o número de elétrons correspondentes a cada energia medida. Na deliciosa gíria dos físicos, esse gráfico é um "espectro" com um único "pico" bem determinado. Era esse tipo de espectro que os físicos esperavam obter quando começaram a observar o decaimento beta. Pois tiveram uma surpresa. Em vez de um "pico" bem definido, o espectro observado no decaimento beta mostrava uma distribuiçao contínua e espalhada, onde eram contados elétrons com todas as energias possíveis até um valor máximo que dependia só do núcleo radioativo estudado. Como todo mundo acreditava que o processo envolvia apenas duas partículas, o nêutron e a beta, ninguém conseguia entender esse resultado das experiências. O grande dinamarquês Niels Bohr, meio no desespero, chegou a sugerir que a lei da conservação da energia talvez não valesse para o processo de decaimento beta, a não ser em média. Realmente, como veremos na próxima apostila, verificou-se que a energia média das betas coincide com a energia gasta pelo núcleo para emití-las. E veremos também como, após várias controvérsias, surgiu um palpite feliz de Wolfgang Pauli que resolveu o mistério do espectro de energia do decaimento beta. A radioatividade e o decaimento do núcleo. Que radiação é essa que é emitida pelos materiais radioativos? Nos primeiros tempos de Maria Curie ninguém sabia ao certo mas, em 1899, o jovem físico inglês Ernest Rutherford mostrou que a radiação provém do núcleo e que as substâncias radioativas emitem basicamente três tipos de radiação. Partículas alfa. Uma partícula alfa é composta de dois prótons e dois neutrons. Para todos os efeitos, uma alfa é um núcleo do elemento hélio. Isto é, podemos representar uma partícula alfa como 4He2. Como uma alfa tem carga +2 (dois prótons) e um total de 4 partículas (2 prótons + 2 neutrons), um núcleo que cospe (ou emite, se preferir) uma alfa tem seu número atômico diminuído de 2 e seu número de massa diminuído de 4. Por exemplo, o urânio-238, cujo número atômico é 92, pode emitir uma alfa e virar o núcleo de outro elemento, o tório-234, com número atômico 90. Isso é uma reação nuclear e é escrita como: 238 U 92 → 234 Th 90 + 4 He 2 (alfa). Examine cuidadosamente essa equação nuclear. Veja que o número de massa do elemento à esquerda (238) é igual à soma dos números de massa dos elementos à direita (234 + 4). O mesmo acontece com os números atômicos (92 = 90 + 2). Se não for assim, a equação está errada. Uma partícula alfa é tão pesada (relativamente, é claro) que não penetra em nossa pele. No entanto, quem respira um gás radioativo que emite alfas está ferrado. Já estando dentro do pulmão a alfa faz um estrago danado. Partículas beta. A radiação beta se constitui de elétrons emitidos pelo núcleo. Elétrons? E um núcleo tem elétrons? Não tem elétrons livres, mas, um neutron, por razões que não precisamos explicar agora, pode virar um próton cuspindo um elétron para fora do núcleo. A carga elétrica total, dessa maneira, é mantida. Como o núcleo perde uma carga negativa (a beta, sendo um elétron, tem carga -1), seu número atômico cresce de uma unidade, pois ganhou um próton a mais. E como a beta é muito levezinha, o número de massa do núcleo fica o mesmo de antes. Veja o exemplo de um núcleo de cobalto-60 virando níquel-60 depois de emitir uma beta: 60 Co 27 ===> 60 Ni 28 + e-1 (beta). Essa reação tem importância histórica pois foi usada para provar que a natureza nem sempre conserva as simetrias. Essa história eu conto outra vez. Além disso, para conservar energia antes e depois da reação, foi inventado um neutrino que seria emitido pelo núcleo durante o processo. Esse neutrino é outro personagem esquisito do qual falarei qualquer dia desses. Raios gama. A radiação gama é a nossa velha conhecida radiação eletromagnética, da mesma família que a luz visível, só que muito mais energética e penetrante. É a mais perigosa das três radiações que podem ser emitidas pelos materiais radioativos. Mas, como não tem carga nem massa (só energia, e muita) não muda nem o número atômico Z nem o número de massa A do núcleo radioativo emitente. Como vimos antes, um núcleo pesado , com muitos prótons e neutrons, tende a ser instável. Na tentativa de recuperar sua estabilidade, o núcleo emite alfas ou betas e perde a identidade, coitado, vira outro elemento. Esse processo pode ser rápido ou lento, dependendo da estabilidade do núcleo. É aí que entra outro conceito importante: o tempo de vida média do núcleo. É muito fácil entender o que esse tempo significa. Suponha que você tem uma amostra com 100 átomos de um elemento radioativo X. E digamos que, depois de 1 hora, metade desses átomos tenham se transformado, por radioatividade, em átomos de outro elemento Y. Pois bem, diremos que o tempo de vida médio desse elemento X é 1 hora. Em palavras: o tempo de vida médio de um elemento é o tempo necessário (em média) para que metade de uma amostra desse elemento se transforme em outro por radioatividade. Quando um elemento é muito instável, seu tempo de vida média é curto. Dependendo do isótopo considerado, o tempo de vida médio pode ir de frações de segundo a bilhões de anos. O tempo de vida médio de um elemento estável é infinito por definição. Vamos ilustrar esses fatos com o caminho tortuoso que leva um núcleo de urânio-238 até o rádio-226, elemento descoberto pelo casal Curie. Acompanhe na figura: o urânio-238, que foi preparado nas fornalhas de uma supernova, chega à Terra e aqui fixa morada. Como seu tempo de vida média é de 4,5 bilhões de anos, ele pode muito bem estar aqui desde que a Terra se formou. A cada 4,5 bilhões de anos, um núcleo desse urânio emite uma alfa e vira um isótopo de tório-234. Observe que 238-4=234 e 92-2=90. Esse tório-234 vive, em média, apenas 24,1 dias, pois logo emite uma beta e vira protactínio-234. Veja que esse protactínio tem o mesmo A do tório de onde veio, mas tem um Z com 1 unidade a mais. Ele vive muito pouco, apenas cerca de 1 minuto. Logo, logo, emite outra beta e volta a ser urânio, só que agora é o urânio-234. Esse vive 245.000 anos mas, acaba emitindo uma alfa e se transformando em outro tório, o tório-230. Que também tem vida longa, agüenta 8.000 anos. Mas, depois emite outra alfa e se transforma no rádio-226, elemento que o casal Curie isolou do resíduo de minérios austríacos. O processo não pára por aí, pois o rádio ainda é muito radioativo, como Maria Curie descobriu. Depois de outras idas e vindas pela tabela periódica, o núcleo acaba virando um núcleo de chumbo-206 (206Pb82) e, finalmente, encontra a paz. O chumbo-206 é estável e tem vida eterna. Trajetórias como essa, de um elemento radioativo até alcançar a estabilidade, foram catalogadas pelos físicos e químicos desde os tempos dos Curie e hoje são bem conhecidas. Servem para explicar inúmeros fenômenos que ocorrem nas estrelas e planetas e para medir a idade de rochas e material biológico. O NEUTRINO TEM MASSA? Nada é tão denso e povoado quanto o vácuo. Para um físico que se preza não basta saber que um objeto tem massa. Ele também quer saber porque esse objeto tem massa. Hoje em dia surgiu a mania de dizer que as partículas "normais" (elétrons, prótons etc) têm massa porque interagem com outras partículas, essas sem massa, chamadas de "partículas de Higgs". Quando o físico inglês Peter Higgs propôs a existência dessas partículas (ou "campos", como alguns preferem), não imaginava até que ponto os teóricos iriam especular sobre sua idéia. Segundo os teóricos, o universo está literalmente preenchido por partículas de Higgs. Os aristotélicos, que foram ridicularizados por acharem que "a natureza odeia o vácuo", adorariam esse modelo. Já eu prefiro dizer que são os físicos modernos que odeiam o vácuo. Até o início do século 20, eles acreditavam na existência de um "éter luminífero" preenchendo todo o espaço e servindo de suporte para as ondas de luz. Quando Einstein mostrou que esse "éter" era desnecessário (logo, inexistente), os físicos ficaram desapontados. Não demorou muito até preencherem de novo o vácuo com um mar de elétrons, o mar de Dirac. E agora resolveram preencher o vácuo ainda mais com essas partículas de Higgs. Essa hipotéticas partículas de Higgs, que até hoje nunca foram detetadas, são (se existirem de fato) responsáveis pelas massas das outras partículas. Se as partículas de Higgs não existissem, dizem os teóricos, o elétron não teria a massa que tem e estaria o tempo todo viajando com a velocidade da luz. Com as partículas de Higgs preenchendo o espaço, o elétron está, a todo instante, interagindo com elas e, nesses cumprimentos, ganha inércia, outro nome para a massa. Já os fótons não estão nem aí para as partículas de Higgs. Logo, não têm massa e estão fadados a nunca pararem, sempre se deslocando com a velocidade da luz. Spin, em inglês tem a ver com rotação, giração. Como a Terra ao girar em torno de seu próprio eixo. Costuma-se representar o spin de uma partícula com uma setinha na direção do eixo polar, por assim dizer. Se o spin de uma partícula aponta na mesma direção em que a partícula se movimenta, é chamado de "direito". No caso contrário, é "esquerdo". Quando uma partícula "direita" interage com uma Higgs, além de adquirir massa vira partícula "esquerda". Pois o neutrino é sempre uma partícula "esquerda". Todas as evidências experimentais dizem isso. Se um neutrino "esquerdo" interagir com uma Higgs, porém, vira neutrino "direito". Como nunca se viu um neutrino "direito", a conclusão lógica era de que ele, como o fóton, não interage com as Higgs, logo não tem massa. Mas, como vimos na apostila anterior, o pessoal do Super-Kamiokande, em 1998, anunciou que os neutrinos têm massa. O Modelo Padrão tremeu nas bases. Como explicar agora a massa dos neutrinos? Se apelarmos novamente para a interação com as partículas de Higgs precisaremos justificar, de algum modo, a observada inexistência dos neutrinos "direitos". Na próxima apostila veremos, para terminar essa história, como os físicos estão tentando sair dessa nova crise provocada pelo renitente neutrino. A NOVA CRISE DO NEUTRINO. Onde a lei da conservação da energia é novamente ameaçada. Se um neutrino "esquerdo" interagir com as partículas de Higgs, além de adquirir massa vira neutrino "direito". Como nunca se viu um neutrino "direito", surgiu um novo enigma. A primeira tentativa de explicação desse dilema foi sugerir que os neutrinos "direitos", por alguma razão desconhecida, seriam ainda mais furtivos que os "esquerdos" e, por causa disso, escapariam dos detetores. Os físicos não gostam dessa explicação. Acham que a simples troca de orientação dos spins não poderia causar um efeito tão drástico. Uma tentativa de explicação, típica de teóricos de imaginação delirante, apela para outras dimensões além de nossas queridas e familiares três dimensões normais. Segundo esse pessoal, os neutrinos "direitos" teriam a propriedade de passar para outra dimensão, desaparecendo de vez do espaço tri-dimensional onde moramos. Desse modo, sairiam do alcance de nossos detetores. Com todo respeito a esses jovens e audaciosos teóricos, acho que eles assistiram Jornada nas Estrelas demais. O número de "sugestões" para resolver o enigma da massa dos neutrinos é quase igual ao número de físicos teóricos. Uma das mais recentes diz que tanto o neutrino "esquerdo" quanto o "direito" têm massa porque interagem com as Higgs. Só que, por alguma razão ainda misteriosa, o neutrino "direito" tem uma massa muito maior que a massa do neutrino "esquerdo". Aí a gente pergunta: como uma coisa "leve" pode virar outra coisa "pesada" sem violar a sagrada lei da conservação da energia? Lembre que massa e energia são a mesma coisa, segundo o velho Albert. Pois bem, vocês podem até duvidar, mas os físicos que dão essa sugestão não se intimidam de dizer que a lei da conservação pode muito bem ser violada. Em seu favor, apelam para o famoso Princípio da Incerteza, apresentado em 1927 por Werner Heisenberg. Esse princípio, realmente, é um dos pilares da Mecânica Quântica. Segundo Heisenberg, a energia E de uma partícula pode assumir qualquer valor dentro de uma "incerteza" E, mas só durante um intervalo de tempo t. Essas duas "incertezas" no tempo e na energia estão relacionadas pela expressão: E. t > h/2 Esse h é a chamada "constante de Planck", um número tão pequeno que faz com que o princípio da incerteza só seja relevante para coisas muito minúsculas e levezinhas como as partículas elementares. O fato é que, durante um tempo muito curto t, a energia da partícula pode ter qualquer valor E acima ou abaixo de E, sem se incomodar com a conservação da energia. Esse, então, seria o caso do neutrino "esquerdo" ao colidir com uma Higgs e virar neutrino "direito". A massa do neutrino "direito" seria tão grande que ele só teria direito (perdõem o trocadilho) de existir durante o breve instante t permitido pelo princípio da incerteza. Seu tempo de vida é tão curto que ele não pode ser detetado. Isso explicaria as duas coisas: como o neutrino "normal" adquire massa e a ausência dos neutrinos "direitos" nas observações experimentais. Ainda não existem evidências experimentais que permitam decidir quais dessas e outras especulações sobre a massa do neutrino está mais próxima da verdade. Pelo menos uma coisa é certa. Como os neutrinos parecem mesmo ter massa, e como são extremamente numerosos no universo, vão ajudar a explicar outro enigma cosmológico. Pelos cálculos dos cosmologistas, a massa total existente no Universo deveria ser umas 10 vezes maior do que aquela que eles vêem em seus instrumentos. Daí, eles especulam sobre a possível existência de uma certa "matéria escura", que seria muito abundante mas invisível. Se o neutrino tem massa, boa parte dessa hipotética matéria escura poderia ser atribuída aos neutrinos. Vamos ter que esperar mais uns tempos para saber onde vai dar essa aventura cosmológica. Mas, tomara que não demore muito, pois, pelo menos para mim e para o neutrino "direito", o tempo é escasso. Textos retirados do site http://www.seara.ufc.br