I
O grito de tia Severiana de Jesus. Já de feições tão delidas e arruinadas pela usura do tempo! Depressa o reconheci. Todo ele, sem
sombra de dúvida. Clamor subitâneo e atormentado. Aflito. Saíra-lhe do cavername do peito logo após ela ter entrevisto o negro clarão
da tragédia. Há que anos! Acabara inadvertidamente de queimar,
em cima do pial do lume, treze notas de conto de réis enrodilhadas
entre papéis e recibos velhos numa das gavetinhas de cima da cómoda de vinhático.
Sozinho, e à sua conta, transpôs a longa travessia do mar e do
tempo. O grito! Lonjura tamanha! Veio insinuar-se nesta sala atabafada da oculta e misteriosa transpiração dos livros. Exactamente
aqui, onde há anos sem conta te penso e me escrevo. Quedou-se por
instantes, suspenso. A espera que uma nova garganta e outras cordas vocais, mais jovens e rijas, talvez as minhas, o acolhessem e o
encarnassem.
Na escaiolada meia manhã de solstício de um ano muito mais
adiantado no tempo, também se me havia amadurecido uma tragédia em muitos pontos semelhante à de minha tia. E tenho de te confessar, meu bem: faltou-me um golpe de arrojo para tornar o grito de
titia mais filho das minhas próprias entranhas. De repente, apeteceu-me gritá-lo, em desconto e alívio da minha desgraça. Apenas ficou
(ainda grito, mas velho) chiando-me nos ouvidos.
Vou narrar-te o passo completo. Nessa irreverente meia manhã de
algumas semanas atrás, véspera de São João... Ainda sinto agonias
como se tivesse sido ontem. O sol nasceu às avessas e logo inundou
a manhã de helénica fatalidade. Quis o destino. Ele ou a força que
o representa em certas cerimónias solenes. Resolveu presentear-me
com um intenso sismo: sacudiu-me de cima a baixo. Fez-se acompanhar de um séquito de desvairadas réplicas, uma delas de insolente
robustez em qualquer escala, o epicentro homiziado algures a jusante do meu pasmo. Devido a um tresloucado maremoto de bytes
ocorrido numa disquete do computador, afundou-se-me num ápice
uma paciente ilha de palavras. Ficou, por encanto e para sempre,
extraviada...
Meio aturdido e esvaziado de mim, decidi, sem mão na vontade,
aproveitar o bem construído e redondo grito de minha tia. Gostava
de rever a tantos anos de lonjura a primeira cena da outra tragédia
em diversos dolorosos passos idêntica à minha. A um piscar mais
nítido da memória, ou da imaginação, asinha compareceram as vizinhas mais atidas ao desfrute. Mexeriqueiras de fundo traquejo e alto
coturno, traziam os xailes em cascata de negrura pingados do alto
da cabeça. Atrevi-me então a pedir-lhes que repetissem do princípio,
só para mim, os seus antigos e mais que decorados papéis e os representassem no palco fantástico que se me acabara de armar diante dos olhos néscios. Tia Severiana merecia este tributo póstumo e,
após o que me sucedera, tinha urgência de me ganhar um pouco de
confiança e destemor. Com certeza os iria colher, como araçás maduros e perfumados, no longínquo galho do seu exemplo.
Sem o mais leve resmungo ou sinal de enfado, entraram as santas
mulheres no palco já transfigurado da cozinha de minha tia. Sendo
eu o único espectador, sentei-me, exaurido, à secretária, sobre cujo
tampo me entretenho às vezes a praticar o exercício da transubstanciação da palavra — este é o meu corpo, este é o meu sangue, tomai-os em memória de mim...
Como da ocasião em que a tragédia se estreou, acudiram de novo
e de pronto as vizinhas dispostas a oferecer-lhe os préstimos, sobretudo a procurar espiolhar o que dera origem àquele grito tão bem
bramido. E tentaram-no através de um astuto e velho saber tirar os
domingos pelos dias santos. Pelo que me dizia respeito, tremia como
cana agitada por um vento de infortúnio, grudado a um chão movediço e tremente. Mas queria elucidar-me e esclarecer-me.
A minha meia manhã de muitas dezenas de anos mais tarde havia-se-me, no entrementes de uma malícia de olhos enamorados, convertido num Midsummer Night’s Dream às avessas, autêntica manhã
de pesadelo, Midsummer Morningmare, que me perdoe Shakespeare
se lhe estou beliscando a eternidade do génio...
Despertara de boa índole e de melhor catadura. No decurso da
noite breve, pulara por sobre as fogueiras de São João, ateadas no
caminho ainda terreiro. Durante o sonho, o inconsciente encarregara-se de as perfumar de loureiro e magnólia e de outras madeiras
aromáticas. Assim se temperava a pilha de lenha de ramada e de tocos retorcidos e de achas aprumadas que serviam de lastro. Atiçava-se depois o fogo — coloria a rua e o íntimo, sem a agrura dos sarros
vindouros.
Preparava-me para as abluções da manhã no alguidar de barro da
Vila colocado no mainel do lado de fora da porta do quintal. Punha
ponto final e disse no corredor onde me gosto de achar e em cujo
limiar tirei, aos dois anos e meio, um retrato que guardas ciosamente
num álbum secreto. Encontrava-me então nesse iniciático lugar de
passagem antes de a minha desgraça se ter arregoado de madura —
furúnculo que se espremeu sem a ajuda de dedos eruditos.
O alguidar continha uma infusão de água santa — alecrim, poejo,
maria-luísa, funcho... Havia sido, ao bater das doze badaladas, exposta ao sereno da noite mais curta do ano. Quem, ao erguer, lavasse
com ela o rosto ensonado alcançava sorte, teres e outras fortunas,
amores continuados e casamentos duradouros. Quem caçara agora
esse tempo!
Na odorífera infusão relentada de mistério ficavam embebidas as
mercês sanjoaninas atrás narradas. Bastava enxaguar o fresco rosto
do futuro, que ainda me sobejava nesse tempo, para ficar, pelo menos durante um ano, de cara espelhando íntimas, secretas alegrias
solsticiais. Súbito, porém, o grito de minha tia Severiana de Jesus...
Nítido como um fio de navalha de barba passeando-se-me nas carótidas pela desajeitada mão de um dos três Fígaros que em Tronqueira exerciam o seu múnus... Nesse preciso instante, eclodia a primeira
cena da minha tragédia iniciada com um brado por interposta voz.
A titia acorreram as vizinhas. Mas ninguém veio em meu socorro.
Se calhar, o grito por mim não gritado pouca altura ou fundura al-
cançou. Deve ter-se encurralado e implodido na furna da garganta.
Entraram na cozinha e tentaram dela extrair o que ficou já sugerido. Foi o tiras. Severiana de Jesus não pertencia à estirpe daquelas
que se assoalham por uma qualquer nonada sentimental. Em matéria do que habita dentro de portas, bom ou ruim, regia-se por um
código de família, herdado do lençol de baixo. Muito bem tinha ela
a quem sair nesta sua moquenquice. Em questões de competência
quanto aos resguardos das privanças em arcas encoiradas, minha
Avó materna, mãe de Severiana, levava a palma à mais matreira.
Ambas por isso faziam faísca. Só viria a estourar em violenta descarga à hora do desenlace de minha tia, em retrospectivo ajuste de
contas, num tempo em que Vavó há muito havia emigrado deste
mundo...
Bem vozeado saíra da matriz. Aí se inaugurara. O espantado grito
de tia Severiana de Jesus! Até transportava parecenças, salvo o devido respeito e temor que devem merecer as coisas da Santa Madre,
tão sérias e sagradas, com o magoado garganteio de certas cantoras
do coro da capela, principalmente com o da Susaninha. Sempre que
garganteava, em solo e asseio de voz, os Santos Anjos e Arcanjos/Vinde em nossa companhia, cerrava os olhos para que a fé e o sentimento
lhe não escorressem pelas faces em afoguentadas lágrimas.
Difundiu-se pela vizindade, para além dela se alastrou, levado na
crista da onda do silêncio que forrava aquela meia manhã de Agosto
que rima com desgosto. Num átimo, e a modos que se tratasse da
derradeira proclama do sino grande avocando os fiéis para a missa
das onze, a mais mundana das três que ao domingo em Tronqueira
se celebravam, também do dia designada, acudiram as vizinhas mais
achegadas naquele parentesco que se vai adquirindo no discurso dos
anos, amadurecido em conversas mais ou menos assoalhadas. Entraram de nariz afuroado e foram, com palavras espavorecidas por fora,
procurando ir no encalço da raiz de brado tamanho, «Credo em cruz
santo nome de Jesus, sinha Severiana; que desgraceira lhe havera de
ter entrado em casa a estas horas mortas da meia manhã para ter
dado um grito tão de dentro gritado e ainda mais bem sentido?»
«Apelo eu» — continuou a coruja-mor — «se foi agoiro ou sinal
de ruindade, que o demónio não escolhe as marés para dar ao rabo
pelado e arrastar as correntes emporcalhadas de enxofre. Se calhar,
sinha Severiana, nenhum moleste haveria se, num supor, mandasse
chamar num pulo o profeta enxota-diabos do cabo da Rua do Norte»...
Ainda não integralmente restabelecida das esvaídas cores de cal
em pó que lhe haviam substituído, no rosto alcançado, o natural rubor do sangue, agora escapo sobre esferas de sobressalto para outros
alçapões do corpo, Severiana de Jesus, a despeito do estorvo, lá lhes
foi cortando as voltas do responso em outras voltinhas mais a seu
jeito e talante, retorquindo-lhes como se nada de ruim se houvesse
abatido há instantes por sobre os emaranhados meandros da sua
vida, «Não se agoniem, vizinhas, nada de aviso assucedeu; se gritei
com paixão, foi por via de uma ratazana que se passeou por riba da
amassaria, onde tinha, e ali estão para quem os quiser ver, os meus
terminos para encetar a lida da cozedura, que dia de sexta-feira traz
sempre dobrada canseira; afora o agoiro, tenho asco e nojo de tal
raça de bichos, dos murganhos nem tanto, Deus me perdoe...»
E mais não se atreveu a pôr na carta. De olhos vendados, conhecia
Severiana de Jesus os carreiros e atalhos que conduziam à linha de
fronteira até onde podia aventurar-se sem escorregar no perigo de
ver observadas as intimidades de portas partidas. Por esse intuito, a
sua relativa sucintez de palavras num discurso, esse sim, inteiramente tresmalhado, foi pelas vizinhas assumido como acintosa desfeita à sua bisbilhotice, demais a mais elas, que exerciam com secular
mestria o mester de se acaçaparem nos reservados de quem quer que
por fraqueza ou distracção lhes caísse dentro do alcance da língua
linguaruda... Em vista do sucedido, as mulherezinhas não conseguiram outra alternativa que não fosse a de se irem porta fora com
Deus dormido em suas bocas e um azedume bem disfarçado abatido
por trás do biombo das palavras fingindo cordeirinhas de mansidão.
Não causa espanto, que a maior parte delas já saía da origem com
sabor a reditas e sem um tropeço de carne onde o verbo se pudesse
humanar.
Na mouquidão da casa, ficou Severiana esquecida em sua companhia sozinha. Tinha a boca arregoada de uma secura de sede assedilhada, não de água, que cria rãs na barriga, mas de chá preto
da Gorreana. Posso até jurar, e não corro o risco de exageração,
seria uma das mais arreigadas consumidoras não só de Tronqueira
freguesia como dela e seu termo debruado de outras ilhas. Sempre
o chá se patenteara remédio infalível em matéria de pendências de
flatos de coração e de quebreiras de corpo acometidas pelas flechas
do mau-olhado. Uma tigela de barro vidrado, de quartilho, várias
vezes ao dia, escorregando para o fortinho, quase sempre com uma
pinga de leite para traçar e garantir outra substância, em tudo o
mais concebido com todos os quesitos do requinte, em pote de barro
poroso, sem agradecer grandes lavagens nem esfregações, por via de
não haver desvios no itinerário do velho preceito já arredio do alcance da memória individual, que não da colectiva, na qual se manteve
vivo em mãos e gestos que o foram notificando aos tempos e às gerações neles criadas. Certo é que bebido amiúde, a modos de colher de
remédio tomado de tantas em tantas horas e prescrito pelo doutor
de medicina, não só consertava os humores abichornados como restaurava os combalidos maquinismos de que se compõe a morada de
um cristão baptizado e ungido de outros sacramentos preceituados
pela Santa Madre Igreja e cujo número neste momento me escapa.
Ainda nesse tempo escondida atrás da pele de ovelha obediente
e casmurra do redil da religião romana, Severiana de Jesus estava,
e continuaria por muitos anos, plantada na lonjura de vir a ser re-
baptizada na seita dos Adventistas do Sétimo Dia, renegando com
a sua ainda futura atitude desafiadora os dogmas e demais pontos
doutrinais e casuísticos da rotineira crença dos seus antepassados.
Seita. Assim lhe chamavam por acinte. Gente milenarista que se encontra entrincheirada numa alínea de fé de que não arredam sequer
um milímetro — a guarda minudente e miudinha do sétimo dia, o
sábado do Senhor.
Ao invés, Ti Aristides, seu marido à face de Deus mediante o arrocho da estola do velho padre vigário, andava já assimilando, em viva
cadência progressiva, a boa nova adventista. Deixara de fumar paivantes de tabaco, bogas desta grossura, de cultivo caseiro, entrançado em rolo. Picava-se depois à navalha e esfregava-se nas palmas das
mãos antes de se enrolar na mortalha. A aguardente da terra, sobretudo no mata-bicho de logo-de-manhã, descera no seu consumo diário. E quanto a peixe sem escamas, caça, carne de porco o — bíblico
animal imundo hospitaleiro de espíritos malignos nem — cheirá-los,
quanto mais chegá-los às aguadilhas do paladar, situado no exacto
sítio por onde normalmente costuma morrer o peixe... Prestes estava
pois a sua imersão no tanque dos mergulhos de que se serviam os
protestantes, em sentido ecuménico, na quietude da Mata da Doca,
por ocasião das cerimónias iniciáticas de regeneração espiritual por
meio das águas do baptismo.
A conversão do Ti Aristides chegou na altura a causar sérios engulhos e agasturas à corisquinha da mulher. Sentia-se ainda preenchida com o alimento incorpóreo da religião tradicional de Tronqueira. Nela se havia educado segundo os dogmas da fé, o catecismo
papagueado ipsis verbis na ponta da língua, os sacramentos recebidos no seu devido tempo, tirante o da Extrema-Unção. Longe fosse
o agoiro. Severiana de Jesus encontrava-se muito apartada de vir a ficar cansada de florescer rosas de saúde que gritavam seiva nos retorcidos braços da roseira brava de uma idade tão desabusada ainda...
Só passados alguns anos, que têm o rosto subitamente multiplicado por via da lenteza do passo que é costume usar-se na Ilha, e
amadurecida pela tragédia que naquela meia manhã de um atrasado
Agosto se lhe representara na própria cozinha em face dos olhos
sucumbidos (parenta muito chegada à minha que dezenas de anos
mais tarde veio pôr-se em cena nesta sala onde me desgasto na escrita), é que minha tia chegou à conclusão, iluminada pelas Sagradas
Escrituras, de que a religião dos seus antepassados até ao nebuloso
princípio da freguesia já não continha forças anímicas que lhe preenchessem de paz e tranquilidade os abismos que se lhe foram sulcando nos baldios de uma vida caipora, sobretudo porque lhe não dera
a dita de se ampliar e rever em cadilhos de filhos...
Ainda não assente nos agitados fundos de si mesma, continuou
na cozinha. E nela persistirá. Vai agora pôr ao lume a enegrecida
chaleira de ferro fundido. Faz tenção de aí ferver a água consagrada ao chá. No pial do lume, o pote de barro da Vila aguarda de pé.
Contém já as folhas em esquírolas negras. No seu ventre, dentro de
instantes, que o lume se encontra bem ateado, celebrar-se-á a solene
cerimónia da infusão olorosa que tão estimulante se patenteia ao
paladar entendido.
Ao fim de todos estes anos venho encontrá-la não sei se estabelecida se assentada no banco anainho do lava-pés de velha e já brunida madeira de castanho. Vejo-a num embrulho que a esta distância
me parece atado com um amarrilho de solidão ou desespero manso.
Que cordas ensebadas de pensamento, roído e remoído, ou de cristalizada amargura, ou de pranto por dentro vertido, que cordas —
pergunto, neste instante para me descarregar de delitos imaginários,
talvez para preencher devagar o intervalo abatido entre mim e o paredão do tempo — terá minha tia subido para se deixar ali permanecer, aguardando que se desfaça o nó cego do ponto de interrogação
do não-saber-o-que-virá-a-seguir golpear-lhe o sol porvindouro?
É defeso adivinhar em certas horas tombadas, horas caídas com
ponteiros falecidos, sem ânimo nem préstimo para circundar à volta
do rosto dos dias. Se calhar, espera minha tia que o bico da chaleira,
também ajeitado com aquela corcundinha interrogativa, choramingue, esbaforido de vapor. Alteia-se o lume em labaredas não arrependidas, logo se vê que foi ateado a partir de brasas meio dormidas
à custa de redondos e cadenciados assopros saídos do fole da boca,
ambas as bochechas pejadinhas, luzentes e rosadas.
O pior de tudo seria a lembrança esfolada. Por ela rasteja ainda a
cena trágica daquela mesma manhã. Como numa comédia ou num
drama. O de João de Calais, para dar um exemplo. Representado há
anos desmemoriados na eira do senhor Regedor. Toda a gente que
assistia desfazendo-se em lágrimas e clamores. Tia Severiana também, que do mesmo barro era feita. Só que naquela meia manhã
de Agosto apenas gritara um grito. O que lhe coubera no papel da
tragédia, com coro, de que havia sido a heroína.
No intuito de dissimular, e iludir-se, e não se desabotoar em demasia de roupas íntimas, trocara a volta das palavras às corujas da
vizinhança. Haviam-lhe pousado, sorrateiras, sobre o ladrilho da
cozinha; tentaram alcandorar-se aos pináculos das emoções esbarrondadas que no íntimo lhe tumultuavam; deu-lhes a entender que
gritara a pretexto de uma ratazana que se espairecera por cima do
tampo de cimento vermelho, já desbotado, da amassaria apegada ao
pial, este já ao abrigo da chaminé, em cujo vão escuro se acolhia o
canto do lume, com ele entestando a amassaria, preenchendo esta,
calmamente, todo o largor da cozinha até à despensa, a porta da
qual, um tudo-nada arrastadeira, tinha a cara virada para as goelas
do forno.
Achando-se sozinha, não teve poder de vontade sobre os olhos.
Parecia rebentarem-lhe em ardume prenunciador de lágrimas debatidas. Sem lhe lavrar as faces em duas risca-duras espelhentas,
mareavam-nos de uma agre e nevoenta humidade, que seria mister
desanuviar quanto antes. Enquanto em ruidosos haustos de insofri-
mento ia sorvendo o chá, relanceou a pedra do lar onde há momentos não muito dilatados tinha queimado papéis velhos e recibos de
contribuição de anos atrasados e facturas da luz eléctrica e cartas de
um dos irmãos, embarcado já há tempo para a Califórnia, a América de Cima, por oposição à América de Baixo, na costa leste, banhada pelo nosso Atlântico.
De súbito, o irmão Jaime tomou-lhe conta da lembrança inteira.
Zarpara há anos, ponta da doca fora, em cata da sua ventura. Era
assim que se relatava nos casos contados daquele tempo. Dava gosto
escutá-los ao serão. Em busca da sua ventura e da mulher e dos dois
filhos machos. Fora-se sem ninguém sonhar o dia do embarque. Menos Severiana de Jesus. Muitas semanas antes, que se podiam contar
por meses acrescentados, lançara a mão esquerdina ao remo da barcaça da casa do irmão. Queria dar-lhe outro arrimo e mais arrumo.
A cunhada Evarista, americana de nascença, dera em esmorecer dos
humores e em fraquejar dos sangues. Natureza debilitada, como se
está vendo, que a aproximação da despedida estiolava ainda mais.
Cabeça não lhe sobejava para enfrentar a liderança da casa. Serviu
então Severiana de Jesus de mãe aos sobrinhos e de criada a todos.
Cozia o pão da semana. As segundas-feiras, celebrava o ritual da
barrela. Roupa encardida. A menos suja, lavava-a à mão, no tanque.
Esfregava o ladrilho da cozinha e do corredor, para acabar bem o
dia. Para cúmulo, tudo feito meio às escondidas do marido, todo o
dia na canseira das vacas até se abotoar a noite sobre a Ilha e o mar.
Homem de seu natural rijo e testo. Pouco dentes arreganhados para
a família da banda da consorte. Haviam-se todos ou quase todos
contraposto ao casamento, cerca de vinte anos antes. Obrigara-se
a raptar a noiva, sem dote, com o auxílio de um casal de respeito,
futuros padrinhos. Noite de céus abertos de princípios de Verão.
Só agora iria Severiana de Jesus tirar a prova real da conta da
gratidão que o irmão Jaime se não cansava de rabiscar nas escassas
mas bem notadas cartas que lhe enviava pelas festas mais lembradas. Algumas delas untadas com os parcos dólares verdes de uma
esperança sem prazo. Dizia ele que se destinavam à ajuda do jan-
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Marilha: sequênica narrativa