TRANSPONDO FRONTEIRAS _______________________________________________________ LUÍS BALKAR SÁ PEIXOTO PINHEIRO* Saltou-me, afinal, a comoção que eu não sentira. A própria superfície lisa e barrenta era mui outra. Porque o que se me abria às vistas desatadas, naquele excesso de céu por cima de um excesso de águas, lembrava (ainda incompleta e escrevendo-se maravilhosamente) uma página inédita e contemporânea do Gênesis. Euclídes da Cunha Ao ver-se confrontado pela realidade amazônica, por ele de todo desconhecida, Euclídes da Cunha a apreende como inserida numa temporalidade própria, ao mesmo tempo diferenciada e distante, a sofrer o impacto de um processo civilizatório tardio e imperfeito, resultado de “todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVII”.1 É partindo dessa premissa que se baseia a proposta de seu belo, duro, incisivo e, lamentavelmente, inconcluso, livro vingador. A perspectiva euclidiana que nos serve de epígrafe permite pensar um caminho para um dos muitos entendimentos possíveis da Amazônia como fronteira do tempo. Terra Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor Associado da Universidade Federal do Amazonas e Bolsista Produtividade do Conselho do Desenvolvimento Científico Nacional (CNPq). 1 Carta a Coelho Neto. Manaus, 10 de março de 1905 (CUNHA, 1986: vi). * Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônicos, v. 1, nº 1 – Junho de 2011, p. 5-8. Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro 6 esquecida, enjeitada2, a Amazônia – como realidade geográfica distinta onde pontifica a floresta tropical e a abundancia de águas – é antes, o avesso do humano, que ela procura, sob diversas formas e imperativos do mundo natural, expurgar como a um quisto indevido e inadequado. É dessa forma, idealizada como natureza e espaço desumanizado e vazio de cultura, que a Amazônia entra no discurso moderno, graças a nominação que lhe fizeram um punhado de naturalistas, homens de ciências e letras que o Iluminismo forjou3. Trata-se de um processo lento e complexo de construção discursiva do qual participaram expressões antigas e modernas, de Alexandre Von Humboldt a Louis Agassiz, de Alberto Rangel a Leandro Tocantins. Em maior ou menor grau todas elas parecem delinear um quadro próximo ao de Euclídes, em que o homem amazônico se vê sufocado pela latente preponderância de um elemento natural que o transcende e amesquinha.4 Com efeito, do eldorado dos conquistadores ao paraíso dos naturalistas, essa complexa e diversificada Amazônia resultava sempre em discursos unificadores e esquemáticos de onde emergiam um sem número de imagens (celeiro do mundo, pulmão do planeta, inferno verde) em que a natureza, invariavelmente suplanta a cultura. A marca perversa desse ideário pode ser ainda percebida na sistemática adoção de políticas públicas e na implementação de projetos desenvolvimentistas que, idealizados e discutidos alhures, chegam à região – esse suposto "vazio demográfico" – para serem implementados, em geral, de forma arrogante e autoritária. A própria imagem do homem amazônico tendeu igualmente à generalidade, homogeneização e fluidez. Ribeirinho, caboclo, seringueiro, índio, são termos que com grande freqüência traduzem o homem amazônico ao mundo que lhe é exterior, mas – é preciso dizer sem rodeios – são também simplificações grosseiras. O que temos salientado é que, por meio de tais imagens opera-se um danoso desaparecimento de uma infinidade de processos e de sujeitos históricos que não tiveram suas trajetórias associadas aos arquétipos de uma Amazônia percebida como natureza. O pensamento social sobre a Amazônia - produzido dentro e fora do espaço regional – e o discurso historiográfico que ele encerra e articula, não tem se mostrado imune a essa tradição de pensamento e, num certo sentido, ainda hoje é possível ver – mesmo internamente – as marcas de uma escrita historiográfica colonizada, que reforça preconceitos e estereótipos, enquanto silencia sobre tantos processos e sujeitos sociais. Tais argumentos nos levam a pensar a Amazônia como fronteira do tempo, não no sentido euclidiano de “terra sem história” (CUNHA, 1986: 25), mas no seu inverso, como espaço prenhe de história e socialmente constituído por povos e culturas, que efetiva e sistematicamente imprimiram e continuam a imprimir suas marcas. O silencio É por meio desse termo que o autor se refere, por exemplo, ao Purus, um dos principais afluentes do Amazonas, e objeto central de sua viagem à região. (CUNHA, 1986: 51). 3 Recorro aqui aos argumentos que externei em artigo anterior (PINHEIRO, 2007: 11-12). 4 “A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão”. (CUNHA, 1986: 25-26). 2 Fronteiras do Tempo, vol. 1, nº 1 – Junho de 2011. Transpondo Fronteiras historiográfico – pautado frequentemente por posturas hoje inaceitáveis, mas ainda incidentes e insistentes, como o eurocentrismo – não pode ser entendido como o silêncio da história ou, muito menos, ausência de história. Na verdade, a fronteira que buscamos transpor é exatamente aquela que tem, por diversos motivos, apartado a Amazônia do conhecimento e do acesso a sua História. Contra tais postulados vêem se insurgindo uma plêiade de novos historiadores que, vivendo e atuando na Amazônia, expressam seu inconformismo e a necessidade de reafirmar sua historicidade e a de seus antepassados. Não há como negar o avanço da produção acadêmica de História que toma a Amazônia como objeto de sua reflexão. Esse avanço, já importante pela assimilação da temática no âmbito dos principais centros dedicados à produção historiográfica do país, vez por outra projeta e difunde seus resultados de pesquisa5, mas o processo de pesquisa e difusão se viu bastante fortalecido pela implantação dos primeiros cursos de pós-graduação nas principais universidades do norte do país. Se adotarmos, como é de nosso desejo, a perspectiva da Pan-Amazônia é forçoso reconhecer que a reflexão sobre a região que se faz nas principais universidades da Venezuela, Guyana, Colômbia, Peru, Bolívia e Equador não é tão marginal quanto a que se apresenta no cenário historiográfico brasileiro, embora pouca informação, contato e intercâmbio sejam efetivamente realizados. Para a incorporação e debate com essa produção se volta também nossa iniciativa. Por tudo isso, a proposta aqui subjacente não pretende nem erigir, nem reafirmar fronteiras a apartar a Amazônia, seja do mundo e de outras culturas frente aos quais ela se viu constantemente crivada e associada, seja de sua própria história, frequentemente ignorada e desvalorizada como algo menor, inferior, periférica, marginal. Nosso empreendimento é antes um desejo de transposição, de ruptura subversiva e impertinente destas fronteiras. É parte do duplo sentimento – acadêmico e participativo – daqueles que fazem de seu ofício um exercício cidadão de intervenção e transformação; e de quem não se vê como intruso, mas antes sujeito histórico proativo, buscando colaborar, por meio do ofício historiográfico, com a ruptura dos silêncios – nem sempre inocentes – da História. Por a História da Amazônia em perspectiva e projeção é para nós reafirmar o humano e enfatizar as vivências, múltiplas experiências partilhadas, conflitos, confrontos, interações, diálogos, encontros, permanências, deslocamentos... Um alerta final: como na epígrafe de Euclides, para quem era necessário ver a região com as vistas desatadas, Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônicos quer ser um espaço aberto ao mais franco debate e à participação de todos quantos queiram discutir as múltiplas realidades e faces dessa Amazônia plural que transcende países e séculos. Se sua motivação e animação parte da necessidade sentida por um coletivo de historiadores “da terra” de ampliação da difusão de conhecimentos sobre a Pan-Amazônia e da efetiva instauração de um espaço de intercâmbio e de troca historiográfica a transcender fronteiras 5 Veja-se, por exemplo, a importante coletânea organizada por PRIORE e GOMES (2003). Fronteiras do Tempo, vol. 1, nº 1 – Junho de 2011. 7 Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro nacionais, disciplinares, linguísticas e culturais, nem por isso sua opção resvala para o absurdo de fechar-se em gueto, onde só podem atuar historiadores locais. Fazer circular dossiês, artigos, pesquisas e resenhas com abordagens inéditas e inovadoras, a explorar novos temas, testar teorias, confrontar contextos e metodologias é uma tarefa hercúlea (diríamos mesmo: de dimensões amazônicas!), mas inadiável. E é com um chamamento a mais ampla participação e debate que Fronteiras do Tempo: Revista de Estudos Amazônicos vem à luz. Que encontre seu espaço e cumpra sua missão! REFERÊNCIAS: CUNHA, Euclídes da. Um Paraíso Perdido: Ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amazônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. “Na Contramão da História: Mundos do Trabalho na Cidade da Borracha (1920-1945)”. In: Canoa do Tempo: Manaus: v. 1, n. 1, jan./dez. 2007, p. 11-32. PRIORE, Mary Del e GOMES, Flávio dos Santos. Os Senhores dos Rios. Rio de Janeiro: Campus, 2003. 8 Fronteiras do Tempo, vol. 1, nº 1 – Junho de 2011.