REPRESENTAÇÕES DA DIVERSIDADE SEXUAL
EM NARRATIVAS DE FICÇÃO DA ATUALIDADE
Paulo César Garcia1
Resumo: A constituição de críticas da literatura moderna e da contemporânea enaltece
o caráter estético, com destaques para a propriedade da linguagem, a historiografia, a
autoria, o estilo, a formação de leitores e de leituras. Certamente, recaem dentro destes
parâmetros autores e obras canônicas cujas reflexões analíticas demarcam julgamentos
de valor, enfatizam e ilustram algumas obras em detrimento de outras. Fora deste eixo,
há produções literárias à margem, como as que configuram a temática sobre relações de
gênero, homoerotismo, homossexualidades, homoafetividades que requisitam
considerações da crítica e recepções de leituras. Na perspectiva de ancorar diálogos com
as demais práticas discursivas, pretendo apresentar as representações homoeróticas e
homossexuais masculinas em narrativas ficcionais baianas que não são nem estão
salvaguardadas pelo crivo canônico.
Palavras-chave: homoerotismo, literatura, representação ficcional contemporânea.
Anúncios de uma realidade diversa
A questão que o título deste artigo convida a pensar é como a literatura baiana,
nos últimos decênios do século XX e no atual, se reporta aos sujeitos declinados ao
convívio com a orientação sexual. A minha atenção em torno de obras literárias
ficcionais atende a uma nova geração de escritores que tem dado mostras de um grande
produto artístico, de modo a permitir a reflexão permanente dos novos paradigmas
estéticos sobre gênero e diversidade sexual.
No acervo de obras e escritores baianos que fazem parte de minha pesquisa
atual, a representação do homoerotismo na literatura acompanha de perto o efeito de
presenças de autorias nacionais que lidam com a temática das sexualidades entre os
iguais. Entram nesta demanda Adolfo Caminha, canonizado por leituras e recepções
críticas da obra Bom crioulo, com o qual os estudos entram na ordem da investigação
crítica literária, como também análises da obra de Caio Fernando Abreu (Caio F.) que
destacam um estilo mais enfático e contundente ao evocar a subjetividade homoafetiva
1
Professor de Literatura – Universidade do Estado da Bahia (UNEB) DEDC II.
dentro de um olhar mais marginalizado, o que inspira leituras próprias dentro deste
contexto.
A experiência afetiva sentida pelos personagens de Caio F. oferece um percurso
existencial como mola propulsora para pensar histórias de si que comunicam com o
leitor, de modo a abrir as possibilidades de rupturas com um mundo utópico. Para as
narrativas do autor há menos respostas para interagir com o outro quando se nota o
poder e as reações contra a violência do sistema hegemônico.
Muitos dos escritores brasileiros voltados para um exercício com a linguagem
literária têm como mestra a autora Clarice Lispector que arca com relatos mais
intimistas e engajados com a experimentação estética. Incluí, neste processo de criação,
João Gilberto Noll, que preenche com os desmandos do eu uma escrita de choques, de
rompimentos com o projeto de relatos lineares e cuja literatura atrai o submundo carioca
e gaúcho de modo peculiar e enaltece histórias de personagens que perambulam nas vias
marginais da cidade revelando o lado mais perturbador do indivíduo entrando em tensão
com a alta sociedade. O seu estilo próprio, como o de Caio F., segue o exercício dado
por Clarice Lispector, ou seja: são escritas pontuadas pelo lastro subjetivo e marcadas
também pelo ato epifânico, em que o real passa a ser de viés e nele se desnuda a
intempestiva forma de ser errante de sujeitos inquietantes e sem centro, sem sentido, em
crise com a identidade que, sempre à deriva, encontram os desejos à flor da pele. É aí
que se visualiza os contatos com os desejos homoeróticos2 das transas entre homens que
se veem atados nos becos e nas praças urbanas, sob os excrementos e corpos suados e
libidinosos. Ou seja, o libidinoso ganha estatuto de criação, passa a ser texto não
travestido, mas exposto nas zonas do texto em obras como A fúria do corpo e A céu
aberto.
Para Karl Erik Schøllhammer, o novo realismo urbano, que se funda em obras
literárias dos últimos decênios do século XX, não pode ser comparado estilisticamente
aos realistas do passado, porque nele não se retorna às técnicas da verossimilhança
descritiva e da objetividade de narrativa. O que se depara nestes novos autores, de
acordo com o crítico, “é a vontade ou projeto explícito de retratar a realidade atual da
2
Neste artigo, usarei o termo homoerotismo por ser mais flexível e por descrever melhor as
pluralidades das práticas e desejos humanos. O emprego do sujeito homoerótico vai de
encontro ao sentido dado por Jurandir Freire Costa, uma vez que a noção de homoerótico
nega a ideia de existência de uma “substância homossexual” orgânica ou psíquica comum a
sujeitos com tendências homoeróticas. Assim, o sentido do termo não atesta a forma
substantiva que indica identidade, como no caso do “homossexualismo” de onde derivou o
substantivo “homossexual”. Daí, a noção de que o homoerotismo admite o entendimento da
atração pelo mesmo sexo. (COSTA, 1992, p. 21-22).
sociedade brasileira, frequentemente pelos pontos de vista marginais ou periféricos”
(SCHØLLHAMMER, 2009, p. 53).
A reflexão do crítico, quando sente a dificuldade de definir o contemporâneo sob
o foco do realismo na narrativa, não diz respeito ao realismo tradicional, na sua procura
equivocada da realidade nem tampouco a um realismo propriamente representativo. Sua
impressão é de que os novos realistas querem provocar efeitos de realidade por outros
meios, debatendo um realismo que não se pretende mimético, nem propriamente
representativo, pois
[...] o problema ameaça tornar-se um paradoxo, uma vez que o compromisso
representativo da literatura historicamente surge com a aparição do fenômeno
realista. O novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a
arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa
realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística
como força transformadora. (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 54).
O crítico trata de recortar um tipo de realismo que conclama as ambições de ser
“referencial”, sem necessariamente ser representativo, e, simultaneamente, ser
“engajado”, sem necessariamente subescrever qualquer programa político ou pretender
transmitir,
de
forma
coercitiva,
conteúdos
ideológicos
prévios.
(Cf:
SCHØLLHAMMER, 2009).
No entanto, indo na contramão do pensamento do neorealismo, neonaturalismo,
há produções literárias da contemporaneidade, dos últimos decênios do século XX até
os dias atuais, que se fundam em ecos intimistas e que, sob o olhar do indivíduo que
confessa, diz, revela os fragmentos de um eu atormentado e errante. Nesta perspectiva,
o que mais importa dentro dos aparatos escritos que se veem marcados por imagens do
real é a do corpo que se encena, se mostra, se ex-põe. Parece, assim, que as obras da
escritora baiana Állex Leilla não ignoram esta realidade através da qual ela encontra
vozes que desmascaram zonas ocultas da cultura de gênero e sexualidades.
De modo alternativo, a linguagem literária da autora apresenta um efeito
estético, entrecruzada por falas que estão presentes em outras autorias, sejam brasileiras
ou estrangeiras, apropriando-se de textualidades de composições musicais, como forma
de demarcar uma experiência estética que se alia à força do testemunho e com a qual
alude aspectos pouco casuais da cultura gay.
Com isso, o enfoque do pensamento da ficção brasileira proposto por
Schøllhammer nos ajuda a abordar o realismo, de “novo”, num gesto de busca do
estético, com “força ética de transformação, em colocar a realidade na ordem do dia”.
Ainda de acordo com a sua reflexão, a procura por um “novo tipo de realismo na
literatura é movida, hoje, pelo desejo de realizar o aspecto performático e transformador
da linguagem e da expressão artística, privilegiando o efeito afetivo e sensível em
detrimento da questão representativa” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 55; 56-57).
A narrativa de Állex Leilla não somente ilustra como também traz a
desreferencialização de um realismo anunciado, pois, através da representação da
homossexualidade, a autora procura um outro enlace da realidade do homem que curte
homens. No contexto cultural de gênero e diversidade sexual, isto ocorre fora das
normas da identidade heterocentrada versus a homoeroticidade declinada por relações
diferenciais, permitindo dar voz a outros perfis societários, como o amor erotizado entre
irmãos, entre pai e filho e entre adolescentes. Noto, assim, que há um engajamento do
discurso sob o suporte da transformação artística da palavra que expressa a vontade de
relacionar a realidade social com a cultura da diversidade sexual, partindo de um olhar
para o subalterno de maneira questionadora.
O romance Henrique, narrativa prenhe de vozes interditas, revela um narrador
que desconstrói o universo singular das relações individuais. É a aposta da escritora, que
convida, propositadamente, o leitor a condicionar a interpretação sob como, para que e
por que ler o outro, partindo dos ritmos que ecoam a intimidade homoerótica que é
celebrada no plano existencial. O desejo anônimo deixa de ser posicionado à margem da
sociedade para ser enunciado pelo registro identitário atuante nos instantes de leitura do
livro, vindo a ocupar lugares de discurso, tangenciando a superexposição do sujeito que
tem desejos e que, inexplicavelmente, faz com que a linguagem trace também a linha da
diferença, ao desvencilhar expressões de amor nada convencionais como o sexo entre
pai e filho e o sexo entre irmãos.
Este é o propósito deste texto: analisar o realismo da obra Henrique, que dá
acesso a uma linguagem que reflete um real pelo avesso, representando o transgressor
por uma ótica que nega as estruturas do real, um livro, como bem convoca Brecht,
recheado de atalhos que prometem desalienar o sentido com o qual nos acostumamos. O
espaço literário adentra por estes atalhos para incrementar um real não pela descrição do
verossímil e sim pelas reescritas do passado, restaurando e deslocando acontecimentos
reais que, reescritos, atraem a atenção do leitor com o cultivo de vidas diferenciadas. É
assim que a trama de Henrique surge, na provocação de um enredo convulsivo,
paródico, aglutinando um modo de vida gay.
Traços da representação do pós-gay?
Állex Leilla estreou como escritora na década de 90 do século XX, com os livros
de contos Urbanos (1997) e Obscuros (1999). A partir dos anos 2000, publica o
romance Henrique (2001) e integra a coletânea organizada por Luis Ruffato, 25
mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004), publica a novela O sol
que a chuva apagou (2009) e o recente Primavera nos ossos (2010). Professora de
Literatura em uma Universidade Pública baiana e Doutora em Literatura Comparada, o
estilo próprio da escritora surpreende pelo domínio introspectivo e pelos diálogos com
os seus predecessores, a exemplo da literatura de Caio F., Ana Cristina César e André
Gide e da musicalidade de Renato Russo.
É, sobretudo, através do livro Henrique que viso refletir os anseios do
protagonista, que dá nome ao romance e que narra o dilema com a orientação sexual, o
incesto culminado pela relação homossexual com o pai e os relatos do pai sobre o afeto
e desejo sexual com o irmão. A centralidade da história, da ação do personagem
principal, pode ser desdobrada em micro-histórias e nas múltiplas consequências que
são entrecruzadas. O amor que nutre por Victor, melhor amigo desde a infância,
atravessando a adolescência e indo até a maturidade passa pelos percalços da dúvida, do
medo, do questionar a si a despeito da identidade sexual. O narrador, que também
protagoniza a sua história, interage com as diferentes experiências de si e com a
focalização de textos de outros autores, remetendo ao corpus discursivo a outridade,
num contraponto para repensar os murmúrios que soam e declaram o inconformismo
com o sistema logocêntrico e com as estruturas binárias.
Henrique guarda ainda um lado de “estranhamento” do real, utilizando-se de
determinadas linguagens que espreitam a subjetividade a partir de deslocamentos de
discursos; melhor dizendo, apreende marcas de sujeitos em instâncias possíveis para
questionar como se movem os desejos homossexuais. Com raro apuro de sensibilidade,
a escritora carioca Ana Cristina César declina, em seu texto, a versão do sujeito
feminino, o que pode pautar para a narrativa de Állex Leilla como dos demais autores
brasileiros sobre o sujeito gay:
Acho que talvez pelo fato histórico de a mulher ser marginal, talvez ela tenha
mais ouvido para falar um outro discurso. Ela tem alguma coisa de outro para
dizer que ainda é meio esquisito. Uma outra fala. Como diria? Uma fala da
minoria. Levanta uma outra poeira. (1993, p. 40).
Este olhar pode atravessar a estrutura romanesca de Henrique, na perspectiva de
ancorar o relacionamento vivenciado pelo narrador-protagonista que constrói, com
habilidade, o lócus de seu enunciado. No texto, acirram-se sinais que marcam a
repressão, a paranóia, o arbítrio, a perseguição, o autoritarismo, o convívio familiar e a
formação da cultura brasileira e ocidental e, por outro lado, a quebra destes conceitos,
girados na figura do pai de Henrique, que torna patente o gesto de amizade com o filho
expressando afeto e amor fraterno, mas que se transforma, no dado momento em que
Henrique, além de admirá-lo, confessa o sentimento de amor carnal, o desejo sexual
pelo próprio pai.
A palavra homem para mim estava diretamente relacionada à imagem do meu
pai. Mas ele sempre foi ligado a todas as formas de vida que há na Terra, sem
predileção especial por nenhuma e convivendo naturalmente com todas, como eu
procuro até hoje viver, como sempre procurei e nunca pude. Há formas de vida
que desentendo completamente, há outras que odeio...
[...]
Meu pai uma tragada lenta e profunda, os glandíolos que ele me trouxe ontem
ainda vivos, as pausas que seguem sozinhas, independentes de um querer
definido. Meu amor. Depois do amor, pode-se furar mesmo os olhos. É coisa
mais certa de se fazer. (LEILLA, 2001, p. 141; 144).
Também, desde criança, Henrique sente afeto por Victor, considerado seu
melhor amigo. Com o Victor, ele não compreende ainda bem a atração de estar junto e
se mostra apreensivo com os falares e olhares alheios destinados a eles, situação que
Vic não suporta, não deixa barato, é mais definido e assume a sua homossexualidade.
Sempre as mesmas notícias de intolerância, de pouco, nenhum respeito.
Conhecia poucos homens condenados a ingressar no maravilhoso rol da minoria
sexual. E mulheres, nenhumazinha. Em oposição a mim e naturalmente disposto
a matar-se-preciso-fosse em nome de sua sexualidade, o Vic se movimentava.
Seguro. Pleno. A ele era indiferente o que se teorizava, o que se pensava, o que
se falava. Anormalidade, carma, tamanho de cérebro ou genes, pro meu amigo,
nada significavam, era coisa de gente sem o que fazer. Caso incomodassem,
metia a mão. E pronto. Eu já não tinha tanta segurança assim do que podia
provocar com minhas mãos. (LEILLA, 2001, p. 62).
Esse universo é ainda mais tensionado quando Luis confessa ao filho a relação
homoerótica com o irmão. Um relato franco e aberto de pai para filho que, para ele, não
constitui nenhum problema de fórum excludente, pernicioso ou pervertido. Luis e o
irmão Leão sentem amor desde criança, despertado pela atração física, criando entre si
um amor sem traumas. Parece que a trama espreita o imaginário social cujo ato
confessionário adentra no espírito de descobertas, de desmascaramentos do regime
disciplinar, criando personagens que não se excluem do meio social, transitando
livremente por um lugar nada confortante para o seio familiar, até a descoberta do pai,
de Luis e Leão, que exalta a condição sagrada e pecaminosa do sexo entre os irmãos.
Meu pai me contou uma vez a sua história, ou parte dela, talvez. Quando
completara cinco anos e o tio Leão tinha oito, a mãe os pegara nus. Cinturas
coladas, fundindo-se numa só. Foi um escândalo. Ah! Ele adorava o Leão,
cresceram assim, unidos. Dormiam abraçados sempre que podiam. Acariciandose, mordendo-se um ao outro. Faziam tudo juntos. E apanhavam juntos também.
Os pais estranhavam tanta proximidade. – E trepávamos sempre. Muito além do
que podíamos. Não tínhamos outros amores. Éramos um pro outro. Até os meus
17 anos, ninguém sabia que a gente se amava. A-t-é-q-u-e-u-m-d-i-a... – Enfim,
descoberto tudo, ficou claro que não era só uma brincadeira de criança, pois,
mesmo depois daquele flagra (pelo qual fomos seriamente punidos, é bom que se
lembre), nós nunca deixamos de nos amar. Então vieram mais porradas, todas as
repressões, todas as pieguices, todos os chavões dramáticos. (LEILLA, 2001, p.
63-64).
Luis abala o pensamento dicotômico normal versus anormal ao relatar para o
filho o amor homossexual com o irmão, não somente ratificando ser um transgressivo
em relação às regras e valores da cultura ocidental brasileira, como também
desestruturando os modelos da cultura judaico-cristã, fazendo ruir um modo de vida
fundado no exercício identitário homem versus mulher e os sentimentos amorosos
vinculados aos laços familiares.
Sobre esse relato, é crucial a imagem de controle que se dá aos corpos, de
sujeitos que se deparam com o discurso do serem irrecuperáveis para a ordem, de
corpos em estado de anomalias que, como pregavam as teorias políticas e sociais de
base biológica, no ápice do século XIX, deviam ser efetivamente exterminados do corpo
social, como espécies de cancros ou tumores (Cf: AGAMBEN, 2002; 2007). O modo
como os estados modernos buscaram gerir a vida, mais do que infligir a morte, tal como
raciocinava Michel Foucault (2004), nunca deixando de reivindicar o direito de matar,
de, no seio da própria ordem jurídica, alojar o que chama de Estado de Exceção em que,
contraditoriamente, a própria lei permite a sua violação em casos excepcionais.
Se Foucault pensou o poder disciplinar moderno se diferenciando do poder
soberano, por se apoiar sobre a gestão e a maximização da vida mais do que pelo direito
de morte, pelo exercício de uma violência controlada, pedagógica, individualizada e, ao
mesmo tempo, coletiva, na esfera da população, Giorgio Agamben (2002) nos alertou
para o quadro que pincela o século XX: a emergência da sociedade de controle, da
sociedade globalizada e midiática, a ascensão do funcionamento, no âmbito dos
próprios Estados, de práticas de extermínio, de tortura e de violência sobre aqueles
corpos considerados, também, como corpos de exceção, corpos que se destacam e se
excluem da ordem social, da multidão, da população, corpos que se individualizam por
sua rebeldia diante da soberania da lei ou da norma.
O discurso foucaultiano é tributário dessa escritura por atingir o lado mais
criativo de si, a reabilitação dos exercícios de aperfeiçoamento, de gestos de condutas,
das formações subjetivas e de poder, de gestos que são calcados na história da
sexualidade ocupada por situações pessoais vividas e criadas:
A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso
usufruto deste mundo. A liberdade é algo que nós mesmos criamos – ela é nossa
própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de
nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, por meio
deles, instauram-se novas formas de relações, novas formas de amor e de
criação. O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma
vida criativa. (FOUCAULT, 2004, p. 260).
A própria sexualidade representa um fascínio do sujeito, quando assinala uma
vida como ato mesmo de exercitar a si e de perceber a si diante das transformações
subjetivas criadas. Quer dizer, para Foucault (2004), marcar novos meios de relação
consigo mesmo reforça o enobrecimento de si vinculado a outros regimes promovendo
uma estética da existência no presente por uma forma de resistência à normalização.
Portanto, uma nova forma de vida só poderia ser alcançada por intermédio de uma
alternativa aos modos de relacionamento socialmente prescritos e institucionalizados.
Assim, na superfície do texto literário moderno, no espaço do fora, a linguagem
se permite, se põe a manifestar o não visto, o não-dito. Quer dizer, no relato de Luis, a
representação da subjetividade do sujeito que critica o formato do sistema cultural é, de
certa maneira, questionada pela presença do narrador e ouvinte da história do outro. O
narrador-protagonista ganha, no texto, a condição de intérprete; ele vê o personagem
Henrique no retrato pinçado pelo pai, ou seja, personagem e narrador se veem, como no
palco, encenando a si mesmos, fantasiando um desejo encoberto e logo se
desmascarando, diante de uma realidade não consentida. O protagonista detém o poder
de se performar em outro e de fazer de si um experimento com o relacionamento
“pervertido” com Luis. Emerson Inácio, em seus estudos sobre crítica literária, aborda a
procura de um processo mais nítido e menos estreito contra os julgamentos tradicionais
e hegemônicos de “reflexão artística dos elementos que têm construído a agenda das
vivências homossexuais mundo afora” (2010, p. 11).
Partindo desse pressuposto, pode o sujeito gay ocupar outro lugar de fala que
não seja a do marginal, do maldito ou do perseguido? Quais histórias são narradas sobre
gays e não interpretadas pela cultura hegemônica? O apelo à empatia da alteridade, da
outridade, da diferença e, paradoxalmente, do procedimento em tatear códigos em busca
da caça às palavras mostra um outro lado, o de reproduzir o controle dos corpos para “a
perpetuação do interdito sobre a sexualidade, e por silenciar ou punir tudo e todos os
que não são contemplados pela moralidade burguesa ou que nela não se enquadram”,
como bem define Inácio (2010, p. 113).
O ponto de vista apresentado por Inácio (2010, p. 123), também reverencia o
discurso de Antonio Candido diante dos percursos críticos que conclama o direito à
literatura, estampando aí o exercício de como exercitar, pela articulação estética,
saberes, outras novas ordens de enunciação, ou melhor, convocar uma nova
epistemologia capaz de criar condições de entendimento de obras literárias cujas
autoria, recepção, conteúdo ou espaço de circulação priorizem o universo da
homossexualidade.
Quer dizer, como pensar o acesso à literatura pela expressão da subjetividade
homoerótica? A respeito do instrumental da linguagem que dimensiona o cultural e o
político no estético, atentando para o contexto social, cabe, então, situar o que José
Carlos Barcellos focaliza no âmbito do eixo literaturahomoerotismo:
[...] a necessidade de combater a homofobia onde quer que se manifeste; manter
um olhar crítico para a relação entre liberalização dos costumes e a lógica do
capital (submissão da vida ao capital) e o imperativo da vigilância, acerca das
implicações práticas das posturas teóricas assumidas (2002, p. 16).
Sensível aos apontamentos de Barcellos, tendo em vista os apelos do capital e da
lógica imperialista da cultura ocidental no trato da reprodutibilidade dos padrões de vida
versus o exercício da subjetividade ex-cêntrica, a literatura de Állex Leilla se recorta por
um plano verticalizante, livrando-se da “mesmice da construção do sujeito” (Cf.
SPIVAK, 2010).
O romance Henrique é um drama de ápice folhetinesco com relatos que mexem
com as estruturas do real, com confrontos e tensões, a despeito das identidades sexuais
situadas entre o fascínio da descoberta do prazer, da perplexidade de mirar o corpo do
amigo Victor e o desejo pelo pai do protagonista que, no decorrer da história, nomeia
Victor como amigo, definindo, claramente, o dilema com o amor homossexual, mesmo
considerando-se como genioso: “sempre tive um gênio maldito, construtor de imagens
malditas”. Diante disto, o texto fornece suprimentos para refletir o universo cultural
homoerótico que é instigado pelos percalços do narrador e protagonista, como se nota
em um dos muitos pensamentos do personagem. “Ver é quase uma paz, mas há muito
mormaço entre mim e as formas. Pois eu estou dissolvido. Sem chão, sem tempo. As
nuanças me perseguem. Ninguém sabe do que preciso. Que é meu corpo. Um beijo e...
oh, vão pro inferno com esses pedidos!” (LEILLA, 2001, p. 19).
Com as imagens malditas, a autora cria um enredo, por meio do olhar pernicioso
do narrador, procura um alinhavado de “estranhamentos do real”, o que garante o peso
de espaço textual simples, mas, ao mesmo tempo, complexo e competente. A voz do
narrador flagra instantes de personagens, que são inseridos no abrigo, lugares internos,
como a casa do avô que se acha no dever de sempre restituir o dever de homem
dominador com ares patriarcais. Henrique e Luis ora se curvam a este domínio e, nos
espaços da casa, como o dormitório, vivem como no exílio indesejado, ora manifestam,
claramente, o poder de transgredir os valores ditados pela figura do avô. É neste espaço
que os irmãos se amam, filho e pai se amam, Henrique e o amigo se amam. A trama
costura um tecido textual desfazendo ecos outrora dominadores com debates acirrados
sobre a assunção dos desejos homoeróticos, com as marcas do complexo edipiano.
Assim, o dispositivo do discurso afere as múltiplas evidências que compõem o quadro
de imagens transgressivas, de excentricidades e domínios de um realismo que não se vê,
mas se torna visível com ecos presentes do imaginário ficcional.
Se o medo inexiste no âmbito dos desejos de Luis, Henrique busca seguir os
passos na via de mão dupla do pai. Este sentido do medo reporto a Zygmunt Bauman,
que politiza o tema do medo líquido, quando analisa que “o que dá medo é o anormal, o
fora do comum, o inesperado, o sem razão: as mesmas qualidades que caracterizam o
‘injusto’” (2008, p. 48). Por este viés, os argumentos da anormalidade, que estão fora da
personalidade de Luis, que não se sente anormal e excluído do sistema por desejar
homens, afloram no entendimento de Bauman, legitimando o pensamento do pai de
Henrique, barganhando o não-dito, o interdito, o lugar da desordem, das
entrecruzilhadas entre o racional e o irracional como via de acesso para pensar o outro.
Se a representação da literatura de Állex Leilla oferece a perspectiva de
visibilidade do sujeito gay, ela recai em um processo discursivo menos pedagógico,
como requer João Carlos Barcelos (2002), porque não se propõe o critério formador do
indivíduo, mas questionador, à medida que as pistas são permitidas para visualizar
como se insere e se representa o gay em suas inúmeras fronteiras e entre possíveis
formas de se subjetivar. A narrativa evoca os mediadores culturais, autores literários e
composições musicais do grupo Legião Urbana, apropriando-se do recurso híbrido para
compreender, nos termos flagrantes do eu narrador-protagonista, os contornos e
estereótipos das identidades com as quais visa o desmanche, o choque cultural de classe,
a ruptura com o logocêntrico.
O tempo que foi, está, é. Sempre. Vou dizer, sim, que ela já não era um menino,
meu grande amigo de infância. Como eu também já não era pra ele, há tempos.
Almoçamos sanduíches. Tomamos banho. Juntos. No boxe do banheiro do
quarto, juntos. Nos masturbamos um ao outro. Deitados na cama, nos olhando,
cansados. Tínhamos coisa de 15 anos. Não, espere: 14 ou 13. O Vic se deitou de
bruços e fechou os olhos como quem ia realmente dormir. Mas não vai, pensei
eu, porque ainda quero te comer... Aproximei-me. Eu demorava a penetrá-lo.
‘Posso?’ A coisa velha que todo homem recria: o amor. Livro de cabeceira.
Palavra coberta de sinônimos que em nenhum outro nome acha de promulgar
sua vastidão. Creio que se traduz inteira na sequência de Strangeways, here we
come3, ou em Without mercy4, ou amplia-se até a última instância em A
montanha mágica, Andrea Doría ou Por enquanto5. Mas também está em World
leader pretend6, mais ainda em Só (solidão)7, em Culto do amor8, em Dois
elefantes9, ou em... Não, não adianta, não vou conseguir. É uma relação doentia
com a linguagem, eu sei, preciso mesmo é me calar. Um momento, por favor:
[...] Pensar, eu sempre pensava, entre passos e olhares lentos da varanda pro
quarto, que podia abrir um conto de Caio Fernando Abreu e penetrar outros
mundos. (LEILLA, 2001, p. 114-116).
Percebe-se a forte sedução pelo amigo que, desde a infância, mantém contatos
sexuais. O percurso da história vai dando mostras do forte desejo do personagem, em
um panorama amplo e disseminador com o desejo homoerótico, sem dar brechas a
nenhum conceito ou regra que barre o ato homossexual com Vic. Assim, também no
relacionamento amoroso e sexual com o pai e na relação vivenciada por Luis e o irmão,
configura-se o excitamento do corpo no plano da excentricidade afetiva, erótica, cultural
e sexual.
Sou completamente tarado por duas pessoas no mundo, meu pai: o Vic e você. –
O contrário de Laio & Édipo... – sorriu meio pra si – Bem, você sabe que eu
concebo o amor como um ato sagrado e livre de quaisquer implicações
‘socioculturais’... Que estou dizendo? Não era exatamente essa palavra que eu
queria... Ah, que escassez de sentença, não? Fico meio esvaziado nessas horas...
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Smiths. Strangeways, aqui vamos nós.
Sem misericórdia. In: Durutti Column ou Vini Reilly
Legião Urbana.
R.E.M.
Música de Tom Zé.
Edgard Scandurra/Taciana Borges
Paralamas do Sucesso.
É que também sempre considerei essa história de Édipo uma grande cascata, ou,
se preferir, a forma mais enraizada de conter os impulsos sexuais, socializá-los,
distribuí-los de maneira que o progresso da humanidade não fique ameaçado...
Eu não sabia o que dizer diante da lucidez de Luis. Me sentia despreparado pra
qualquer coisa que não fosse aquilo que meu corpo pedia, ou seja, o corpo dele.
Então lhe confessei que eu estava meio confuso, mas que nem por isso queria
abrir mão do meu desejo. (LEILLA, 2001, p. 92-93).
Em estudo sobre a manifestação do corpo, Wilton García afirma que “a erótica
aparece na expectativa do trânsito. O EROS, como agente intermediário do corpo, trata
de adequar as condições possíveis para manter a energia pulsante da vida”. Parece,
então, que a posição do crítico, ao dizer que “dentro dessa circulação apresentada, o
objetivo principal seria ‘estar em atividade’, não importa a chegada ou partida, mas sim
o deslocamento num movimento entremeio. Portanto, a erótica está no intervalo, nessa
apropriação de acontecimento momentâneo” (2001, p. 89), dialoga com a performance
sexual do protagonista.
A noção apresentada por García corrobora a identificação do enlace afetivo e
sexual de Luis e Henrique. Quero dizer, o interior e o exterior, o emotivo e o corpo e o
ato homoerótico em si se desdobram, se deslocam para a zona intermediária, no entrelugar do discurso, ou seja, o sentimento fraternal de filho para o pai é interrompido,
sobressaindo o estágio momentâneo de desejar o corpo do sujeito, do homem, do tesão
“em atividade”, para além do permitido e do referencial.
Esperou que eu entrasse primeiro no quarto, e quando o fez, foi como eu o
convidasse: passos demorados, olhares em círculo. Pensei que ele agia assim pra
me deixar à vontade. Parei de tremer, que fosse tudo pro inferno. Perto dele só
achei paz. Nas elaborações dos carinhos, nos gemidos, nos ‘eu te amo’, termos
que trocamos. Eu ia imitando os gestos dele: se ele me chupava, eu retribuía, se
buscava minha boca, eu retinha também a dele. Ele disse que me amava. Me
apertava nos ombros, aproximando nossas respirações exaltadas. Orelhas
envolvidas por línguas. O aglomerado de cheiros expulsou de vez qualquer
tensão. Verbo quase não houve. (LEILLA, 2001, p. 94).
É possível remeter esse quadro de representação do afeto homossexual entre os
dois pela ótica da cultura queer, que fundamenta as estratégias políticas do “desejo
homoerótico como injúria homossexual” (GARCÍA, 2001, p. 91). Os corpos
desnudados são revisitados por outros sentidos; eles não mais atuam, na cena
homoerótica, como pai e filho, o que se pode notar pelo que diz Henrique:
Depois que nos amamos, ele permaneceu como sempre, companheiro e amigo.
[...]
Meu pai, uma tragada lenta e funda. [...]
Meu amor.
Depois do amor, pode-se furar mesmo os olhos. É coisa certa de se fazer. Podia
arrancar os pêlos dele pra não tê-los tão próximos, como uma ameaça após o
amor. (LEILLA, 2001, p. 112; 144).
Considerando a história de vida de Luis, doutor e professor de História, que
mantém um intenso amor pelo irmão, se casa com uma colega de faculdade, uma
mulher que tem problemas psíquicos e que gera o conflito em Henrique para saber
exatamente sobre o paradeiro da mãe, já que ele foi criado pelo pai, Rique, assim
apelidado, é sujeito e objeto da sua própria história, pois seu olhar se debruça por
territórios subversivos da existência. Neste sentido, a leitura do queer pode ser aqui
interpretada não somente pela desarmação dos binários, mas pelos constructos de excentricidade que apontam para o centro, de modo a desalinhar as incidências e
demandas de significados ordinários pelas quais os indivíduos são representados. A
questão central do queer é apontada por Rick Santos, que afirma que ela
[...] existe nas repetições e em tudo aquilo que não pode ser absorvido/contido
pela linguagem falocrática. E, é exatamente a ‘instabilidade’ ou ‘flutuação’
causada por esse excesso que permite o nascimento e a continuação da
resistência criativa de significação queer que não deixa corromper/incorporar.
(SANTOS, 1999, p. 1, grifos do autor).
Ressalto, ainda, que a representação do sujeito homoerótico na obra Henrique
exercita o direito de problematizar o direito à diferença, o direito a leituras sem
esquivas, não elencadas por situações de gozo pelo gozo explícito. Sobretudo, o
narrador demonstra situar o perfil de sujeitos do desejo que não se revelam como frágeis
nem pela recusa de vivenciar o amor entre os iguais. Isso pode ser bem colhido pela
análise crítica de Rato e Cinema Orly, de Luis Capucho, feita por Mário César
Lugarinho, ao demonstrar que a “Literatura Gay deve ser mais um seguimento, mais
uma possibilidade, mais um elemento de problematização àqueles que desejam uma
cânone inevitável e cristalizado em suas opções de classe, etnia, origem local, sexo e/ou
gênero” (2008, p. 23).
Para analisar um cânone literário, existem aspectos que importam no seio de
leituras interpretativas e não se deve admitir a ideia de que apenas uma visão misógina
ou homofóbica retrairia a exposição de uma obra literária gay ou de temática gay.
Questões como qualidade estética da obra, recepção de texto pelos leitores comuns ou
mais especializados na crítica literária, absorção da obra pelo mercado e da própria
temática interferem na produção de escritas e de criação de linguagens que afinem com
o mercado editorial. (Cf: SILVA, 2008, p. 29).
Com a leitura das obras de Állex Leilla, aqui, especialmente, do livro Henrique,
percebo que estas têm uma qualidade estética que, diante dos elos sociais e culturais,
mergulham sentidos entre o dito e o interdito que não giram tão somente a respeito do
tema da orientação sexual, mas, também, dos critérios que regem o trabalho do artesão.
A obra se constitui como um processo de lapidação da linguagem, incorpora signos que
vão, paulatinamente, encontrando um lugar para serem desconstruídos, ou melhor,
simulam o efeito de estranhar um dado sentido do real. Com o gesto da infâmia, que não
firma os rótulos do complexo edipiano, a recepção da obra tem gerado críticas
significativas, como a absorção de uma linguagem lírica e dramática, mais crua, mais
incisiva e vertical, conforme André Seffrin (2001) que, de modo reflexivo, enaltece o
protagonista, com a “carga de fragilidade e desencontros – que só o humano comporta –
, tem carne, músculos, fome de amor e se sustenta” em que se pode deduzir a face
identitária do homem com a demanda do amor homoafetivo.
Állex Leilla dialoga com uma imagem criada por Caio F., a dos paradoxos do
real, manifesta um modo mais libertador e emancipa o contato amoroso homossexual.
Os personagens de Caio F. sofrem por não se realizarem afetiva e sexualmente, sofrem
por amor não correspondido, vivem no silenciamento e no modo de extravasar um lado
pernicioso do sexo homoerótico. Por outro lado, a interdição não deixa de ser registrada
em ambos os autores, seja na ambiência familiar e em suas personas domesticadas pela
estrutura societária que as relações gays sempre corrompem. Os romances de Állex
Leilla e Caio F. se habilitam no confinamento da casa e, logo depois, extravasam nos
quartos e na rua. No caso em estudo, Henrique, já homem adulto, faz sexo com outros
homens enquanto o nomeado namorado Vic realiza um curso de Pós-Graduação no
exterior: “[...] nessa época eu namorava um rapaz de Botafogo. Quer dizer, não
namorava exatamente, mas nos víamos vez em quando, íamos ao cinema e trepávamos”.
E, revela para Vic: “Vic, Vic! Comecei a ter medo de AIDS. Enumerar os rapazes que
comi. Sonhei coisas abomináveis com meu amigo Eros, que nem gay era”. (LEILLA,
2001, p. 199; 201).
Se o preconceito de base heterocentrada e heterossexual é retomado, parece ser
pano de fundo para amparar o discurso mais libertador de Henrique dado pelas “lições”
do Pai, uma derrocada para as identidades fixas e para a intolerância. Desta forma, o
“ensinamento” paterno não se destina a criar rótulos, definições, nomes, indo de
encontro a uma política não-identitária, traduzindo, assim, as dissidências da subcultura
gay. A crítica construída aos sujeitos do desejo se endereça ao entre-lugar das
homoafetividades que se projetam entre as identidades, entre homossexualidades e
heterossexualidades, o que implica repensar as masculinidades para além da
homossociabilidade homofóbica (LOPES, 2001, p. 46).
Algumas considerações finais
Não se trata, no texto narrativo, de trazer nenhuma apologia ao desejo sexual
entre pai e filhos, entre irmãos e/ou entre adolescentes, mas a representatividade dos
relacionamentos de gênero e as estruturas de poder bem como atentar para os jogos de
diferenças que são apontados para conceituar o sexo e o gênero e as orientações sexuais.
Como ponto de partida para o questionamento colocado neste artigo, a minha leitura vai
de encontro a um modo explícito de abordar o real dentro dos contextos culturais da
diversidade sexual, buscando enxergar alguns reflexos que disseminam os lugares de
fala dos marginais e dos periféricos. Talvez, aqui, caiba a noção de Joan Scott sobre o
processo de “desnaturalização” dos conceitos que implicam classificar, hierarquizar e
distinguir homens e mulheres: a organização social da diferença sexual, ao
problematizar o gênero, é revelar o saber “que estabelece significados para as diferenças
corporais.” Estes significados variam, conforme explica a teórica, “de acordo com as
culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada no corpo [...] determina
univocamente como a divisão social será estabelecida” (1994, p. 13; 14).
Assim, o projeto de leitura sobre o tema do desejo homoerótico no romance
Henrique atravessa os pontos trazidos pelo pensamento de Scott, porque a concepção de
sexualidade, de gênero e de identidade fere o estatuto da naturalidade. Vendo-se o perfil
dos personagens analisados, Luis e Leão, Henrique e Luis, Henrique e Victor, eles
reconstroem elos de relações diferenciáveis e apostam no social mais interpretativo
quando beiram a cultura ocidental hegemônica e heteronormativa. Sobre isto, basta
lembrar que o personagem Luis tem uma visão indisciplinar no que toca aos desejos
homoafetivos, contrapondo a visibilidade dos dispositivos de poder que normalizam a
sexualidade dos indivíduos.
Por isso, para Judith Butler, o sexo é também discursivo e cultural, como o
gênero, já que este é o “ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de
relações, cultural e historicamente convergentes. O corpo é em si uma construção”.
Seguindo o seu pensamento, “o corpo é performativo, a identidade é performativa”, ou
seja, ele está envolto por atos de fala, pois, não somente a fala existe no processo de
entendimento linguístico, como se pode aferir, a fala está no verbo e no corpo (2003, p.
27; 29). Portanto, entre a flexão da ação verbal e a corporal, entre os personagens em
estudo, prevalece a fala do corpo e no corpo, em potência máxima, em construção e
desconstrução, numa fronteira aberta a práticas significantes dentro de um espaço
cultural de hierarquias de gênero e de heterossexualidade compulsória.
Se há quebra dos tabus, ele é proposital, pois ali se textualiza, no espaço
narrativo, outros papéis exercidos e atribuídos no exótico modo de vida, desatando os
nós que forçam a representação do homem nas ordinárias maneiras de amar. Assim, a
literatura de Állex Leilla parodia as hierarquias e refunda outros sentidos que giram em
torno dos desejos, subvertendo os dualismos orgânicos e hierárquicos, o corpo biológico
e nomeações à mercê das estruturas do real falocêntricas, patriarcais, sexistas e
heteronormativas. A minha leitura para o livro Henrique é transposta no viés da
linguagem que convoca ao exercício metafórico no qual se criam existências que podem
ser lidas na reconstituição de uma história já marcada pelos tempos passados e que são
retomadas nos aportes da ficção para amparar identidades mais fluidas e híbridas e que
se destinam a rever o ato de amar fora dos padrões.
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