REPRESENTAÇÕES DA DIVERSIDADE SEXUAL EM NARRATIVAS DE FICÇÃO DA ATUALIDADE Paulo César Garcia1 Resumo: A constituição de críticas da literatura moderna e da contemporânea enaltece o caráter estético, com destaques para a propriedade da linguagem, a historiografia, a autoria, o estilo, a formação de leitores e de leituras. Certamente, recaem dentro destes parâmetros autores e obras canônicas cujas reflexões analíticas demarcam julgamentos de valor, enfatizam e ilustram algumas obras em detrimento de outras. Fora deste eixo, há produções literárias à margem, como as que configuram a temática sobre relações de gênero, homoerotismo, homossexualidades, homoafetividades que requisitam considerações da crítica e recepções de leituras. Na perspectiva de ancorar diálogos com as demais práticas discursivas, pretendo apresentar as representações homoeróticas e homossexuais masculinas em narrativas ficcionais baianas que não são nem estão salvaguardadas pelo crivo canônico. Palavras-chave: homoerotismo, literatura, representação ficcional contemporânea. Anúncios de uma realidade diversa A questão que o título deste artigo convida a pensar é como a literatura baiana, nos últimos decênios do século XX e no atual, se reporta aos sujeitos declinados ao convívio com a orientação sexual. A minha atenção em torno de obras literárias ficcionais atende a uma nova geração de escritores que tem dado mostras de um grande produto artístico, de modo a permitir a reflexão permanente dos novos paradigmas estéticos sobre gênero e diversidade sexual. No acervo de obras e escritores baianos que fazem parte de minha pesquisa atual, a representação do homoerotismo na literatura acompanha de perto o efeito de presenças de autorias nacionais que lidam com a temática das sexualidades entre os iguais. Entram nesta demanda Adolfo Caminha, canonizado por leituras e recepções críticas da obra Bom crioulo, com o qual os estudos entram na ordem da investigação crítica literária, como também análises da obra de Caio Fernando Abreu (Caio F.) que destacam um estilo mais enfático e contundente ao evocar a subjetividade homoafetiva 1 Professor de Literatura – Universidade do Estado da Bahia (UNEB) DEDC II. dentro de um olhar mais marginalizado, o que inspira leituras próprias dentro deste contexto. A experiência afetiva sentida pelos personagens de Caio F. oferece um percurso existencial como mola propulsora para pensar histórias de si que comunicam com o leitor, de modo a abrir as possibilidades de rupturas com um mundo utópico. Para as narrativas do autor há menos respostas para interagir com o outro quando se nota o poder e as reações contra a violência do sistema hegemônico. Muitos dos escritores brasileiros voltados para um exercício com a linguagem literária têm como mestra a autora Clarice Lispector que arca com relatos mais intimistas e engajados com a experimentação estética. Incluí, neste processo de criação, João Gilberto Noll, que preenche com os desmandos do eu uma escrita de choques, de rompimentos com o projeto de relatos lineares e cuja literatura atrai o submundo carioca e gaúcho de modo peculiar e enaltece histórias de personagens que perambulam nas vias marginais da cidade revelando o lado mais perturbador do indivíduo entrando em tensão com a alta sociedade. O seu estilo próprio, como o de Caio F., segue o exercício dado por Clarice Lispector, ou seja: são escritas pontuadas pelo lastro subjetivo e marcadas também pelo ato epifânico, em que o real passa a ser de viés e nele se desnuda a intempestiva forma de ser errante de sujeitos inquietantes e sem centro, sem sentido, em crise com a identidade que, sempre à deriva, encontram os desejos à flor da pele. É aí que se visualiza os contatos com os desejos homoeróticos2 das transas entre homens que se veem atados nos becos e nas praças urbanas, sob os excrementos e corpos suados e libidinosos. Ou seja, o libidinoso ganha estatuto de criação, passa a ser texto não travestido, mas exposto nas zonas do texto em obras como A fúria do corpo e A céu aberto. Para Karl Erik Schøllhammer, o novo realismo urbano, que se funda em obras literárias dos últimos decênios do século XX, não pode ser comparado estilisticamente aos realistas do passado, porque nele não se retorna às técnicas da verossimilhança descritiva e da objetividade de narrativa. O que se depara nestes novos autores, de acordo com o crítico, “é a vontade ou projeto explícito de retratar a realidade atual da 2 Neste artigo, usarei o termo homoerotismo por ser mais flexível e por descrever melhor as pluralidades das práticas e desejos humanos. O emprego do sujeito homoerótico vai de encontro ao sentido dado por Jurandir Freire Costa, uma vez que a noção de homoerótico nega a ideia de existência de uma “substância homossexual” orgânica ou psíquica comum a sujeitos com tendências homoeróticas. Assim, o sentido do termo não atesta a forma substantiva que indica identidade, como no caso do “homossexualismo” de onde derivou o substantivo “homossexual”. Daí, a noção de que o homoerotismo admite o entendimento da atração pelo mesmo sexo. (COSTA, 1992, p. 21-22). sociedade brasileira, frequentemente pelos pontos de vista marginais ou periféricos” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 53). A reflexão do crítico, quando sente a dificuldade de definir o contemporâneo sob o foco do realismo na narrativa, não diz respeito ao realismo tradicional, na sua procura equivocada da realidade nem tampouco a um realismo propriamente representativo. Sua impressão é de que os novos realistas querem provocar efeitos de realidade por outros meios, debatendo um realismo que não se pretende mimético, nem propriamente representativo, pois [...] o problema ameaça tornar-se um paradoxo, uma vez que o compromisso representativo da literatura historicamente surge com a aparição do fenômeno realista. O novo realismo se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força transformadora. (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 54). O crítico trata de recortar um tipo de realismo que conclama as ambições de ser “referencial”, sem necessariamente ser representativo, e, simultaneamente, ser “engajado”, sem necessariamente subescrever qualquer programa político ou pretender transmitir, de forma coercitiva, conteúdos ideológicos prévios. (Cf: SCHØLLHAMMER, 2009). No entanto, indo na contramão do pensamento do neorealismo, neonaturalismo, há produções literárias da contemporaneidade, dos últimos decênios do século XX até os dias atuais, que se fundam em ecos intimistas e que, sob o olhar do indivíduo que confessa, diz, revela os fragmentos de um eu atormentado e errante. Nesta perspectiva, o que mais importa dentro dos aparatos escritos que se veem marcados por imagens do real é a do corpo que se encena, se mostra, se ex-põe. Parece, assim, que as obras da escritora baiana Állex Leilla não ignoram esta realidade através da qual ela encontra vozes que desmascaram zonas ocultas da cultura de gênero e sexualidades. De modo alternativo, a linguagem literária da autora apresenta um efeito estético, entrecruzada por falas que estão presentes em outras autorias, sejam brasileiras ou estrangeiras, apropriando-se de textualidades de composições musicais, como forma de demarcar uma experiência estética que se alia à força do testemunho e com a qual alude aspectos pouco casuais da cultura gay. Com isso, o enfoque do pensamento da ficção brasileira proposto por Schøllhammer nos ajuda a abordar o realismo, de “novo”, num gesto de busca do estético, com “força ética de transformação, em colocar a realidade na ordem do dia”. Ainda de acordo com a sua reflexão, a procura por um “novo tipo de realismo na literatura é movida, hoje, pelo desejo de realizar o aspecto performático e transformador da linguagem e da expressão artística, privilegiando o efeito afetivo e sensível em detrimento da questão representativa” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 55; 56-57). A narrativa de Állex Leilla não somente ilustra como também traz a desreferencialização de um realismo anunciado, pois, através da representação da homossexualidade, a autora procura um outro enlace da realidade do homem que curte homens. No contexto cultural de gênero e diversidade sexual, isto ocorre fora das normas da identidade heterocentrada versus a homoeroticidade declinada por relações diferenciais, permitindo dar voz a outros perfis societários, como o amor erotizado entre irmãos, entre pai e filho e entre adolescentes. Noto, assim, que há um engajamento do discurso sob o suporte da transformação artística da palavra que expressa a vontade de relacionar a realidade social com a cultura da diversidade sexual, partindo de um olhar para o subalterno de maneira questionadora. O romance Henrique, narrativa prenhe de vozes interditas, revela um narrador que desconstrói o universo singular das relações individuais. É a aposta da escritora, que convida, propositadamente, o leitor a condicionar a interpretação sob como, para que e por que ler o outro, partindo dos ritmos que ecoam a intimidade homoerótica que é celebrada no plano existencial. O desejo anônimo deixa de ser posicionado à margem da sociedade para ser enunciado pelo registro identitário atuante nos instantes de leitura do livro, vindo a ocupar lugares de discurso, tangenciando a superexposição do sujeito que tem desejos e que, inexplicavelmente, faz com que a linguagem trace também a linha da diferença, ao desvencilhar expressões de amor nada convencionais como o sexo entre pai e filho e o sexo entre irmãos. Este é o propósito deste texto: analisar o realismo da obra Henrique, que dá acesso a uma linguagem que reflete um real pelo avesso, representando o transgressor por uma ótica que nega as estruturas do real, um livro, como bem convoca Brecht, recheado de atalhos que prometem desalienar o sentido com o qual nos acostumamos. O espaço literário adentra por estes atalhos para incrementar um real não pela descrição do verossímil e sim pelas reescritas do passado, restaurando e deslocando acontecimentos reais que, reescritos, atraem a atenção do leitor com o cultivo de vidas diferenciadas. É assim que a trama de Henrique surge, na provocação de um enredo convulsivo, paródico, aglutinando um modo de vida gay. Traços da representação do pós-gay? Állex Leilla estreou como escritora na década de 90 do século XX, com os livros de contos Urbanos (1997) e Obscuros (1999). A partir dos anos 2000, publica o romance Henrique (2001) e integra a coletânea organizada por Luis Ruffato, 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004), publica a novela O sol que a chuva apagou (2009) e o recente Primavera nos ossos (2010). Professora de Literatura em uma Universidade Pública baiana e Doutora em Literatura Comparada, o estilo próprio da escritora surpreende pelo domínio introspectivo e pelos diálogos com os seus predecessores, a exemplo da literatura de Caio F., Ana Cristina César e André Gide e da musicalidade de Renato Russo. É, sobretudo, através do livro Henrique que viso refletir os anseios do protagonista, que dá nome ao romance e que narra o dilema com a orientação sexual, o incesto culminado pela relação homossexual com o pai e os relatos do pai sobre o afeto e desejo sexual com o irmão. A centralidade da história, da ação do personagem principal, pode ser desdobrada em micro-histórias e nas múltiplas consequências que são entrecruzadas. O amor que nutre por Victor, melhor amigo desde a infância, atravessando a adolescência e indo até a maturidade passa pelos percalços da dúvida, do medo, do questionar a si a despeito da identidade sexual. O narrador, que também protagoniza a sua história, interage com as diferentes experiências de si e com a focalização de textos de outros autores, remetendo ao corpus discursivo a outridade, num contraponto para repensar os murmúrios que soam e declaram o inconformismo com o sistema logocêntrico e com as estruturas binárias. Henrique guarda ainda um lado de “estranhamento” do real, utilizando-se de determinadas linguagens que espreitam a subjetividade a partir de deslocamentos de discursos; melhor dizendo, apreende marcas de sujeitos em instâncias possíveis para questionar como se movem os desejos homossexuais. Com raro apuro de sensibilidade, a escritora carioca Ana Cristina César declina, em seu texto, a versão do sujeito feminino, o que pode pautar para a narrativa de Állex Leilla como dos demais autores brasileiros sobre o sujeito gay: Acho que talvez pelo fato histórico de a mulher ser marginal, talvez ela tenha mais ouvido para falar um outro discurso. Ela tem alguma coisa de outro para dizer que ainda é meio esquisito. Uma outra fala. Como diria? Uma fala da minoria. Levanta uma outra poeira. (1993, p. 40). Este olhar pode atravessar a estrutura romanesca de Henrique, na perspectiva de ancorar o relacionamento vivenciado pelo narrador-protagonista que constrói, com habilidade, o lócus de seu enunciado. No texto, acirram-se sinais que marcam a repressão, a paranóia, o arbítrio, a perseguição, o autoritarismo, o convívio familiar e a formação da cultura brasileira e ocidental e, por outro lado, a quebra destes conceitos, girados na figura do pai de Henrique, que torna patente o gesto de amizade com o filho expressando afeto e amor fraterno, mas que se transforma, no dado momento em que Henrique, além de admirá-lo, confessa o sentimento de amor carnal, o desejo sexual pelo próprio pai. A palavra homem para mim estava diretamente relacionada à imagem do meu pai. Mas ele sempre foi ligado a todas as formas de vida que há na Terra, sem predileção especial por nenhuma e convivendo naturalmente com todas, como eu procuro até hoje viver, como sempre procurei e nunca pude. Há formas de vida que desentendo completamente, há outras que odeio... [...] Meu pai uma tragada lenta e profunda, os glandíolos que ele me trouxe ontem ainda vivos, as pausas que seguem sozinhas, independentes de um querer definido. Meu amor. Depois do amor, pode-se furar mesmo os olhos. É coisa mais certa de se fazer. (LEILLA, 2001, p. 141; 144). Também, desde criança, Henrique sente afeto por Victor, considerado seu melhor amigo. Com o Victor, ele não compreende ainda bem a atração de estar junto e se mostra apreensivo com os falares e olhares alheios destinados a eles, situação que Vic não suporta, não deixa barato, é mais definido e assume a sua homossexualidade. Sempre as mesmas notícias de intolerância, de pouco, nenhum respeito. Conhecia poucos homens condenados a ingressar no maravilhoso rol da minoria sexual. E mulheres, nenhumazinha. Em oposição a mim e naturalmente disposto a matar-se-preciso-fosse em nome de sua sexualidade, o Vic se movimentava. Seguro. Pleno. A ele era indiferente o que se teorizava, o que se pensava, o que se falava. Anormalidade, carma, tamanho de cérebro ou genes, pro meu amigo, nada significavam, era coisa de gente sem o que fazer. Caso incomodassem, metia a mão. E pronto. Eu já não tinha tanta segurança assim do que podia provocar com minhas mãos. (LEILLA, 2001, p. 62). Esse universo é ainda mais tensionado quando Luis confessa ao filho a relação homoerótica com o irmão. Um relato franco e aberto de pai para filho que, para ele, não constitui nenhum problema de fórum excludente, pernicioso ou pervertido. Luis e o irmão Leão sentem amor desde criança, despertado pela atração física, criando entre si um amor sem traumas. Parece que a trama espreita o imaginário social cujo ato confessionário adentra no espírito de descobertas, de desmascaramentos do regime disciplinar, criando personagens que não se excluem do meio social, transitando livremente por um lugar nada confortante para o seio familiar, até a descoberta do pai, de Luis e Leão, que exalta a condição sagrada e pecaminosa do sexo entre os irmãos. Meu pai me contou uma vez a sua história, ou parte dela, talvez. Quando completara cinco anos e o tio Leão tinha oito, a mãe os pegara nus. Cinturas coladas, fundindo-se numa só. Foi um escândalo. Ah! Ele adorava o Leão, cresceram assim, unidos. Dormiam abraçados sempre que podiam. Acariciandose, mordendo-se um ao outro. Faziam tudo juntos. E apanhavam juntos também. Os pais estranhavam tanta proximidade. – E trepávamos sempre. Muito além do que podíamos. Não tínhamos outros amores. Éramos um pro outro. Até os meus 17 anos, ninguém sabia que a gente se amava. A-t-é-q-u-e-u-m-d-i-a... – Enfim, descoberto tudo, ficou claro que não era só uma brincadeira de criança, pois, mesmo depois daquele flagra (pelo qual fomos seriamente punidos, é bom que se lembre), nós nunca deixamos de nos amar. Então vieram mais porradas, todas as repressões, todas as pieguices, todos os chavões dramáticos. (LEILLA, 2001, p. 63-64). Luis abala o pensamento dicotômico normal versus anormal ao relatar para o filho o amor homossexual com o irmão, não somente ratificando ser um transgressivo em relação às regras e valores da cultura ocidental brasileira, como também desestruturando os modelos da cultura judaico-cristã, fazendo ruir um modo de vida fundado no exercício identitário homem versus mulher e os sentimentos amorosos vinculados aos laços familiares. Sobre esse relato, é crucial a imagem de controle que se dá aos corpos, de sujeitos que se deparam com o discurso do serem irrecuperáveis para a ordem, de corpos em estado de anomalias que, como pregavam as teorias políticas e sociais de base biológica, no ápice do século XIX, deviam ser efetivamente exterminados do corpo social, como espécies de cancros ou tumores (Cf: AGAMBEN, 2002; 2007). O modo como os estados modernos buscaram gerir a vida, mais do que infligir a morte, tal como raciocinava Michel Foucault (2004), nunca deixando de reivindicar o direito de matar, de, no seio da própria ordem jurídica, alojar o que chama de Estado de Exceção em que, contraditoriamente, a própria lei permite a sua violação em casos excepcionais. Se Foucault pensou o poder disciplinar moderno se diferenciando do poder soberano, por se apoiar sobre a gestão e a maximização da vida mais do que pelo direito de morte, pelo exercício de uma violência controlada, pedagógica, individualizada e, ao mesmo tempo, coletiva, na esfera da população, Giorgio Agamben (2002) nos alertou para o quadro que pincela o século XX: a emergência da sociedade de controle, da sociedade globalizada e midiática, a ascensão do funcionamento, no âmbito dos próprios Estados, de práticas de extermínio, de tortura e de violência sobre aqueles corpos considerados, também, como corpos de exceção, corpos que se destacam e se excluem da ordem social, da multidão, da população, corpos que se individualizam por sua rebeldia diante da soberania da lei ou da norma. O discurso foucaultiano é tributário dessa escritura por atingir o lado mais criativo de si, a reabilitação dos exercícios de aperfeiçoamento, de gestos de condutas, das formações subjetivas e de poder, de gestos que são calcados na história da sexualidade ocupada por situações pessoais vividas e criadas: A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso usufruto deste mundo. A liberdade é algo que nós mesmos criamos – ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, por meio deles, instauram-se novas formas de relações, novas formas de amor e de criação. O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa. (FOUCAULT, 2004, p. 260). A própria sexualidade representa um fascínio do sujeito, quando assinala uma vida como ato mesmo de exercitar a si e de perceber a si diante das transformações subjetivas criadas. Quer dizer, para Foucault (2004), marcar novos meios de relação consigo mesmo reforça o enobrecimento de si vinculado a outros regimes promovendo uma estética da existência no presente por uma forma de resistência à normalização. Portanto, uma nova forma de vida só poderia ser alcançada por intermédio de uma alternativa aos modos de relacionamento socialmente prescritos e institucionalizados. Assim, na superfície do texto literário moderno, no espaço do fora, a linguagem se permite, se põe a manifestar o não visto, o não-dito. Quer dizer, no relato de Luis, a representação da subjetividade do sujeito que critica o formato do sistema cultural é, de certa maneira, questionada pela presença do narrador e ouvinte da história do outro. O narrador-protagonista ganha, no texto, a condição de intérprete; ele vê o personagem Henrique no retrato pinçado pelo pai, ou seja, personagem e narrador se veem, como no palco, encenando a si mesmos, fantasiando um desejo encoberto e logo se desmascarando, diante de uma realidade não consentida. O protagonista detém o poder de se performar em outro e de fazer de si um experimento com o relacionamento “pervertido” com Luis. Emerson Inácio, em seus estudos sobre crítica literária, aborda a procura de um processo mais nítido e menos estreito contra os julgamentos tradicionais e hegemônicos de “reflexão artística dos elementos que têm construído a agenda das vivências homossexuais mundo afora” (2010, p. 11). Partindo desse pressuposto, pode o sujeito gay ocupar outro lugar de fala que não seja a do marginal, do maldito ou do perseguido? Quais histórias são narradas sobre gays e não interpretadas pela cultura hegemônica? O apelo à empatia da alteridade, da outridade, da diferença e, paradoxalmente, do procedimento em tatear códigos em busca da caça às palavras mostra um outro lado, o de reproduzir o controle dos corpos para “a perpetuação do interdito sobre a sexualidade, e por silenciar ou punir tudo e todos os que não são contemplados pela moralidade burguesa ou que nela não se enquadram”, como bem define Inácio (2010, p. 113). O ponto de vista apresentado por Inácio (2010, p. 123), também reverencia o discurso de Antonio Candido diante dos percursos críticos que conclama o direito à literatura, estampando aí o exercício de como exercitar, pela articulação estética, saberes, outras novas ordens de enunciação, ou melhor, convocar uma nova epistemologia capaz de criar condições de entendimento de obras literárias cujas autoria, recepção, conteúdo ou espaço de circulação priorizem o universo da homossexualidade. Quer dizer, como pensar o acesso à literatura pela expressão da subjetividade homoerótica? A respeito do instrumental da linguagem que dimensiona o cultural e o político no estético, atentando para o contexto social, cabe, então, situar o que José Carlos Barcellos focaliza no âmbito do eixo literaturahomoerotismo: [...] a necessidade de combater a homofobia onde quer que se manifeste; manter um olhar crítico para a relação entre liberalização dos costumes e a lógica do capital (submissão da vida ao capital) e o imperativo da vigilância, acerca das implicações práticas das posturas teóricas assumidas (2002, p. 16). Sensível aos apontamentos de Barcellos, tendo em vista os apelos do capital e da lógica imperialista da cultura ocidental no trato da reprodutibilidade dos padrões de vida versus o exercício da subjetividade ex-cêntrica, a literatura de Állex Leilla se recorta por um plano verticalizante, livrando-se da “mesmice da construção do sujeito” (Cf. SPIVAK, 2010). O romance Henrique é um drama de ápice folhetinesco com relatos que mexem com as estruturas do real, com confrontos e tensões, a despeito das identidades sexuais situadas entre o fascínio da descoberta do prazer, da perplexidade de mirar o corpo do amigo Victor e o desejo pelo pai do protagonista que, no decorrer da história, nomeia Victor como amigo, definindo, claramente, o dilema com o amor homossexual, mesmo considerando-se como genioso: “sempre tive um gênio maldito, construtor de imagens malditas”. Diante disto, o texto fornece suprimentos para refletir o universo cultural homoerótico que é instigado pelos percalços do narrador e protagonista, como se nota em um dos muitos pensamentos do personagem. “Ver é quase uma paz, mas há muito mormaço entre mim e as formas. Pois eu estou dissolvido. Sem chão, sem tempo. As nuanças me perseguem. Ninguém sabe do que preciso. Que é meu corpo. Um beijo e... oh, vão pro inferno com esses pedidos!” (LEILLA, 2001, p. 19). Com as imagens malditas, a autora cria um enredo, por meio do olhar pernicioso do narrador, procura um alinhavado de “estranhamentos do real”, o que garante o peso de espaço textual simples, mas, ao mesmo tempo, complexo e competente. A voz do narrador flagra instantes de personagens, que são inseridos no abrigo, lugares internos, como a casa do avô que se acha no dever de sempre restituir o dever de homem dominador com ares patriarcais. Henrique e Luis ora se curvam a este domínio e, nos espaços da casa, como o dormitório, vivem como no exílio indesejado, ora manifestam, claramente, o poder de transgredir os valores ditados pela figura do avô. É neste espaço que os irmãos se amam, filho e pai se amam, Henrique e o amigo se amam. A trama costura um tecido textual desfazendo ecos outrora dominadores com debates acirrados sobre a assunção dos desejos homoeróticos, com as marcas do complexo edipiano. Assim, o dispositivo do discurso afere as múltiplas evidências que compõem o quadro de imagens transgressivas, de excentricidades e domínios de um realismo que não se vê, mas se torna visível com ecos presentes do imaginário ficcional. Se o medo inexiste no âmbito dos desejos de Luis, Henrique busca seguir os passos na via de mão dupla do pai. Este sentido do medo reporto a Zygmunt Bauman, que politiza o tema do medo líquido, quando analisa que “o que dá medo é o anormal, o fora do comum, o inesperado, o sem razão: as mesmas qualidades que caracterizam o ‘injusto’” (2008, p. 48). Por este viés, os argumentos da anormalidade, que estão fora da personalidade de Luis, que não se sente anormal e excluído do sistema por desejar homens, afloram no entendimento de Bauman, legitimando o pensamento do pai de Henrique, barganhando o não-dito, o interdito, o lugar da desordem, das entrecruzilhadas entre o racional e o irracional como via de acesso para pensar o outro. Se a representação da literatura de Állex Leilla oferece a perspectiva de visibilidade do sujeito gay, ela recai em um processo discursivo menos pedagógico, como requer João Carlos Barcelos (2002), porque não se propõe o critério formador do indivíduo, mas questionador, à medida que as pistas são permitidas para visualizar como se insere e se representa o gay em suas inúmeras fronteiras e entre possíveis formas de se subjetivar. A narrativa evoca os mediadores culturais, autores literários e composições musicais do grupo Legião Urbana, apropriando-se do recurso híbrido para compreender, nos termos flagrantes do eu narrador-protagonista, os contornos e estereótipos das identidades com as quais visa o desmanche, o choque cultural de classe, a ruptura com o logocêntrico. O tempo que foi, está, é. Sempre. Vou dizer, sim, que ela já não era um menino, meu grande amigo de infância. Como eu também já não era pra ele, há tempos. Almoçamos sanduíches. Tomamos banho. Juntos. No boxe do banheiro do quarto, juntos. Nos masturbamos um ao outro. Deitados na cama, nos olhando, cansados. Tínhamos coisa de 15 anos. Não, espere: 14 ou 13. O Vic se deitou de bruços e fechou os olhos como quem ia realmente dormir. Mas não vai, pensei eu, porque ainda quero te comer... Aproximei-me. Eu demorava a penetrá-lo. ‘Posso?’ A coisa velha que todo homem recria: o amor. Livro de cabeceira. Palavra coberta de sinônimos que em nenhum outro nome acha de promulgar sua vastidão. Creio que se traduz inteira na sequência de Strangeways, here we come3, ou em Without mercy4, ou amplia-se até a última instância em A montanha mágica, Andrea Doría ou Por enquanto5. Mas também está em World leader pretend6, mais ainda em Só (solidão)7, em Culto do amor8, em Dois elefantes9, ou em... Não, não adianta, não vou conseguir. É uma relação doentia com a linguagem, eu sei, preciso mesmo é me calar. Um momento, por favor: [...] Pensar, eu sempre pensava, entre passos e olhares lentos da varanda pro quarto, que podia abrir um conto de Caio Fernando Abreu e penetrar outros mundos. (LEILLA, 2001, p. 114-116). Percebe-se a forte sedução pelo amigo que, desde a infância, mantém contatos sexuais. O percurso da história vai dando mostras do forte desejo do personagem, em um panorama amplo e disseminador com o desejo homoerótico, sem dar brechas a nenhum conceito ou regra que barre o ato homossexual com Vic. Assim, também no relacionamento amoroso e sexual com o pai e na relação vivenciada por Luis e o irmão, configura-se o excitamento do corpo no plano da excentricidade afetiva, erótica, cultural e sexual. Sou completamente tarado por duas pessoas no mundo, meu pai: o Vic e você. – O contrário de Laio & Édipo... – sorriu meio pra si – Bem, você sabe que eu concebo o amor como um ato sagrado e livre de quaisquer implicações ‘socioculturais’... Que estou dizendo? Não era exatamente essa palavra que eu queria... Ah, que escassez de sentença, não? Fico meio esvaziado nessas horas... 3 4 5 6 7 8 9 Smiths. Strangeways, aqui vamos nós. Sem misericórdia. In: Durutti Column ou Vini Reilly Legião Urbana. R.E.M. Música de Tom Zé. Edgard Scandurra/Taciana Borges Paralamas do Sucesso. É que também sempre considerei essa história de Édipo uma grande cascata, ou, se preferir, a forma mais enraizada de conter os impulsos sexuais, socializá-los, distribuí-los de maneira que o progresso da humanidade não fique ameaçado... Eu não sabia o que dizer diante da lucidez de Luis. Me sentia despreparado pra qualquer coisa que não fosse aquilo que meu corpo pedia, ou seja, o corpo dele. Então lhe confessei que eu estava meio confuso, mas que nem por isso queria abrir mão do meu desejo. (LEILLA, 2001, p. 92-93). Em estudo sobre a manifestação do corpo, Wilton García afirma que “a erótica aparece na expectativa do trânsito. O EROS, como agente intermediário do corpo, trata de adequar as condições possíveis para manter a energia pulsante da vida”. Parece, então, que a posição do crítico, ao dizer que “dentro dessa circulação apresentada, o objetivo principal seria ‘estar em atividade’, não importa a chegada ou partida, mas sim o deslocamento num movimento entremeio. Portanto, a erótica está no intervalo, nessa apropriação de acontecimento momentâneo” (2001, p. 89), dialoga com a performance sexual do protagonista. A noção apresentada por García corrobora a identificação do enlace afetivo e sexual de Luis e Henrique. Quero dizer, o interior e o exterior, o emotivo e o corpo e o ato homoerótico em si se desdobram, se deslocam para a zona intermediária, no entrelugar do discurso, ou seja, o sentimento fraternal de filho para o pai é interrompido, sobressaindo o estágio momentâneo de desejar o corpo do sujeito, do homem, do tesão “em atividade”, para além do permitido e do referencial. Esperou que eu entrasse primeiro no quarto, e quando o fez, foi como eu o convidasse: passos demorados, olhares em círculo. Pensei que ele agia assim pra me deixar à vontade. Parei de tremer, que fosse tudo pro inferno. Perto dele só achei paz. Nas elaborações dos carinhos, nos gemidos, nos ‘eu te amo’, termos que trocamos. Eu ia imitando os gestos dele: se ele me chupava, eu retribuía, se buscava minha boca, eu retinha também a dele. Ele disse que me amava. Me apertava nos ombros, aproximando nossas respirações exaltadas. Orelhas envolvidas por línguas. O aglomerado de cheiros expulsou de vez qualquer tensão. Verbo quase não houve. (LEILLA, 2001, p. 94). É possível remeter esse quadro de representação do afeto homossexual entre os dois pela ótica da cultura queer, que fundamenta as estratégias políticas do “desejo homoerótico como injúria homossexual” (GARCÍA, 2001, p. 91). Os corpos desnudados são revisitados por outros sentidos; eles não mais atuam, na cena homoerótica, como pai e filho, o que se pode notar pelo que diz Henrique: Depois que nos amamos, ele permaneceu como sempre, companheiro e amigo. [...] Meu pai, uma tragada lenta e funda. [...] Meu amor. Depois do amor, pode-se furar mesmo os olhos. É coisa certa de se fazer. Podia arrancar os pêlos dele pra não tê-los tão próximos, como uma ameaça após o amor. (LEILLA, 2001, p. 112; 144). Considerando a história de vida de Luis, doutor e professor de História, que mantém um intenso amor pelo irmão, se casa com uma colega de faculdade, uma mulher que tem problemas psíquicos e que gera o conflito em Henrique para saber exatamente sobre o paradeiro da mãe, já que ele foi criado pelo pai, Rique, assim apelidado, é sujeito e objeto da sua própria história, pois seu olhar se debruça por territórios subversivos da existência. Neste sentido, a leitura do queer pode ser aqui interpretada não somente pela desarmação dos binários, mas pelos constructos de excentricidade que apontam para o centro, de modo a desalinhar as incidências e demandas de significados ordinários pelas quais os indivíduos são representados. A questão central do queer é apontada por Rick Santos, que afirma que ela [...] existe nas repetições e em tudo aquilo que não pode ser absorvido/contido pela linguagem falocrática. E, é exatamente a ‘instabilidade’ ou ‘flutuação’ causada por esse excesso que permite o nascimento e a continuação da resistência criativa de significação queer que não deixa corromper/incorporar. (SANTOS, 1999, p. 1, grifos do autor). Ressalto, ainda, que a representação do sujeito homoerótico na obra Henrique exercita o direito de problematizar o direito à diferença, o direito a leituras sem esquivas, não elencadas por situações de gozo pelo gozo explícito. Sobretudo, o narrador demonstra situar o perfil de sujeitos do desejo que não se revelam como frágeis nem pela recusa de vivenciar o amor entre os iguais. Isso pode ser bem colhido pela análise crítica de Rato e Cinema Orly, de Luis Capucho, feita por Mário César Lugarinho, ao demonstrar que a “Literatura Gay deve ser mais um seguimento, mais uma possibilidade, mais um elemento de problematização àqueles que desejam uma cânone inevitável e cristalizado em suas opções de classe, etnia, origem local, sexo e/ou gênero” (2008, p. 23). Para analisar um cânone literário, existem aspectos que importam no seio de leituras interpretativas e não se deve admitir a ideia de que apenas uma visão misógina ou homofóbica retrairia a exposição de uma obra literária gay ou de temática gay. Questões como qualidade estética da obra, recepção de texto pelos leitores comuns ou mais especializados na crítica literária, absorção da obra pelo mercado e da própria temática interferem na produção de escritas e de criação de linguagens que afinem com o mercado editorial. (Cf: SILVA, 2008, p. 29). Com a leitura das obras de Állex Leilla, aqui, especialmente, do livro Henrique, percebo que estas têm uma qualidade estética que, diante dos elos sociais e culturais, mergulham sentidos entre o dito e o interdito que não giram tão somente a respeito do tema da orientação sexual, mas, também, dos critérios que regem o trabalho do artesão. A obra se constitui como um processo de lapidação da linguagem, incorpora signos que vão, paulatinamente, encontrando um lugar para serem desconstruídos, ou melhor, simulam o efeito de estranhar um dado sentido do real. Com o gesto da infâmia, que não firma os rótulos do complexo edipiano, a recepção da obra tem gerado críticas significativas, como a absorção de uma linguagem lírica e dramática, mais crua, mais incisiva e vertical, conforme André Seffrin (2001) que, de modo reflexivo, enaltece o protagonista, com a “carga de fragilidade e desencontros – que só o humano comporta – , tem carne, músculos, fome de amor e se sustenta” em que se pode deduzir a face identitária do homem com a demanda do amor homoafetivo. Állex Leilla dialoga com uma imagem criada por Caio F., a dos paradoxos do real, manifesta um modo mais libertador e emancipa o contato amoroso homossexual. Os personagens de Caio F. sofrem por não se realizarem afetiva e sexualmente, sofrem por amor não correspondido, vivem no silenciamento e no modo de extravasar um lado pernicioso do sexo homoerótico. Por outro lado, a interdição não deixa de ser registrada em ambos os autores, seja na ambiência familiar e em suas personas domesticadas pela estrutura societária que as relações gays sempre corrompem. Os romances de Állex Leilla e Caio F. se habilitam no confinamento da casa e, logo depois, extravasam nos quartos e na rua. No caso em estudo, Henrique, já homem adulto, faz sexo com outros homens enquanto o nomeado namorado Vic realiza um curso de Pós-Graduação no exterior: “[...] nessa época eu namorava um rapaz de Botafogo. Quer dizer, não namorava exatamente, mas nos víamos vez em quando, íamos ao cinema e trepávamos”. E, revela para Vic: “Vic, Vic! Comecei a ter medo de AIDS. Enumerar os rapazes que comi. Sonhei coisas abomináveis com meu amigo Eros, que nem gay era”. (LEILLA, 2001, p. 199; 201). Se o preconceito de base heterocentrada e heterossexual é retomado, parece ser pano de fundo para amparar o discurso mais libertador de Henrique dado pelas “lições” do Pai, uma derrocada para as identidades fixas e para a intolerância. Desta forma, o “ensinamento” paterno não se destina a criar rótulos, definições, nomes, indo de encontro a uma política não-identitária, traduzindo, assim, as dissidências da subcultura gay. A crítica construída aos sujeitos do desejo se endereça ao entre-lugar das homoafetividades que se projetam entre as identidades, entre homossexualidades e heterossexualidades, o que implica repensar as masculinidades para além da homossociabilidade homofóbica (LOPES, 2001, p. 46). Algumas considerações finais Não se trata, no texto narrativo, de trazer nenhuma apologia ao desejo sexual entre pai e filhos, entre irmãos e/ou entre adolescentes, mas a representatividade dos relacionamentos de gênero e as estruturas de poder bem como atentar para os jogos de diferenças que são apontados para conceituar o sexo e o gênero e as orientações sexuais. Como ponto de partida para o questionamento colocado neste artigo, a minha leitura vai de encontro a um modo explícito de abordar o real dentro dos contextos culturais da diversidade sexual, buscando enxergar alguns reflexos que disseminam os lugares de fala dos marginais e dos periféricos. Talvez, aqui, caiba a noção de Joan Scott sobre o processo de “desnaturalização” dos conceitos que implicam classificar, hierarquizar e distinguir homens e mulheres: a organização social da diferença sexual, ao problematizar o gênero, é revelar o saber “que estabelece significados para as diferenças corporais.” Estes significados variam, conforme explica a teórica, “de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada no corpo [...] determina univocamente como a divisão social será estabelecida” (1994, p. 13; 14). Assim, o projeto de leitura sobre o tema do desejo homoerótico no romance Henrique atravessa os pontos trazidos pelo pensamento de Scott, porque a concepção de sexualidade, de gênero e de identidade fere o estatuto da naturalidade. Vendo-se o perfil dos personagens analisados, Luis e Leão, Henrique e Luis, Henrique e Victor, eles reconstroem elos de relações diferenciáveis e apostam no social mais interpretativo quando beiram a cultura ocidental hegemônica e heteronormativa. Sobre isto, basta lembrar que o personagem Luis tem uma visão indisciplinar no que toca aos desejos homoafetivos, contrapondo a visibilidade dos dispositivos de poder que normalizam a sexualidade dos indivíduos. Por isso, para Judith Butler, o sexo é também discursivo e cultural, como o gênero, já que este é o “ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes. O corpo é em si uma construção”. Seguindo o seu pensamento, “o corpo é performativo, a identidade é performativa”, ou seja, ele está envolto por atos de fala, pois, não somente a fala existe no processo de entendimento linguístico, como se pode aferir, a fala está no verbo e no corpo (2003, p. 27; 29). Portanto, entre a flexão da ação verbal e a corporal, entre os personagens em estudo, prevalece a fala do corpo e no corpo, em potência máxima, em construção e desconstrução, numa fronteira aberta a práticas significantes dentro de um espaço cultural de hierarquias de gênero e de heterossexualidade compulsória. Se há quebra dos tabus, ele é proposital, pois ali se textualiza, no espaço narrativo, outros papéis exercidos e atribuídos no exótico modo de vida, desatando os nós que forçam a representação do homem nas ordinárias maneiras de amar. Assim, a literatura de Állex Leilla parodia as hierarquias e refunda outros sentidos que giram em torno dos desejos, subvertendo os dualismos orgânicos e hierárquicos, o corpo biológico e nomeações à mercê das estruturas do real falocêntricas, patriarcais, sexistas e heteronormativas. A minha leitura para o livro Henrique é transposta no viés da linguagem que convoca ao exercício metafórico no qual se criam existências que podem ser lidas na reconstituição de uma história já marcada pelos tempos passados e que são retomadas nos aportes da ficção para amparar identidades mais fluidas e híbridas e que se destinam a rever o ato de amar fora dos padrões. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução Henrique Burigo . Belo Horizonte: UFMG, 2002. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2007. (Coleção Estado de Sítio). BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. BARCELLOS, José Carlos. Literatura e homoerotismo masculino: perspectivas teóricometodológicas e práticas críticas. In: SOUZA JÚNIOR, José Luis Foureaux de. (Org.) Literatura e homoerotismo: uma introdução. São Paulo: Scortecci, 2002. BUTLER, Judith. 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