Amores Livres
Histórias de pessoas que amam demais
Amores Livres
_______________________________________________________________________________________________________________________
Ficha Técnica
Ilustração de capa: Pedro Lucena
____________________________________________
Ilustrações: Thais Hércules
____________________________________________
Edição: Diogo Batalha
____________________________________________
Textos: Bárbara Falcão, Bruna Ramos, Diogo Batalha, Fabiane Lima, Jeff Vasques,
Juliana Aranega, Jussara Oliveira, Patty Ferrini, Priscila Sequeira,
Rita Rodrigues, Roniel Felipe, Tatit Brandão, Uriama T. de Menezes, Veritas Julia.
_______________________________________________________________________________________________________________________
Este livro é uma obra coletiva sobre o amor
Amores Livres
_______________________________________________________________________________________________________________________
Índice
Eu, você e seu Rossi, o porteiro
Apenas um dia
Quadrilha
Sobre os prazeres de não ser
Curitiba, 9 de agosto de 2012
Lembrança de um deleite louco
O Sotaque
Amar é entender
Três medidas
O garçom
As escolhas - e o amor como cúmplice, não como vítima
Amor inverso
Era Tarde
Par Perfeito
Amor pode ser livre
Introdução
Quando decidimos escrever este livro, é porque temos um sonho.
Aqui, você vai encontrar diferentes relatos, histórias e pensamentos de como tudo pode ser
diferente.
Mas, calma. Esse não é um livro para dizer como você deve viver a sua vida. Muito pelo
contrário, eu diria.
Aqui estão pessoas que se perguntam: por que?
Por que somos obrigados a envelopar nossos sentimentos, nossos desejos, em uma única forma
de amar? Por que eu não posso estar com todas as pessoas que eu amo? Por que devo amar uma
pessoa de cada vez? Por que eu não posso amar só?
Aqui estão pessoas que preferiram buscar uma alternativa.
Uma alternativa que nunca nos deram, já que, desde que nascemos, nos é dito o que é o amor.
O que é amar. Como se fazer. Com quem fazer.
E por se perguntar isso, por buscar uma alternativa, essas pessoas são olhadas de maneira
estranha.
Alienígenas em seu próprio planeta. Estrangeiros no seu próprio país. Constantemente
desacreditadas em suas formas de amar. Acusadas de não saber o que é realmente o amor.
Apontadas como destruidoras da família quando, na verdade, o que elas desejam é exatamente
ampliar o seu conceito de família.
Amor, significa a ausência da morte. É tudo aquilo que faz nos sentirmos vivos.
Neste livro, você vai encontrar relatos de pessoas que escolheram serem livres para amarem
uma, duas, três ou quantas pessoas elas quiserem. Pessoas que escolheram contar histórias para
que, quem sabe, alguém que tenha essa incomodação da forma única de amar, saiba que ela não
está sozinha. Para que outros aliens, que também não se encaixaram na caixa que as tentaram
colocar durante toda a vida, saibam que não estão sozinhas.
Este é um livro de pessoas que escolheram amar demais.
“Amor livre?
Como se o amor pudesse ser de outro modo que não livre”
Emma Goldman
Eu, você e seu Rossi, o porteiro
8
por Roniel Felipe
_______________________________________________________________________________________________________________________
Tatuados, descolados e antenados. Assim eram Pedro, paulista do interior, fã de RPG e
viciado em creamchesse, e Fernanda, soteropolitana, filha de Iemanjá, do seu Nestor e da dona
Esperidiana; um dos casais mais apaixonantes da Bahia, eternos musos da Ilha de Itaparica.
Pedro não tinha pais e vivia distante dos parentes. Mudou-se para São Paulo após se
formar em química, mas sua mente fértil lhe entregou o futuro de redator publicitário. Foi na
agência, onde ele passa horas e horas de sua vida, que conheceu Fernanda. Morena, cabelo curto
estilo Playmobill, sorriso largo, alargador na orelha esquerda, simpática e com símbolos
holísticos desenhados pelo corpo. Pronto. Ela tinha todos os elementos para colocar o coração
de Pedro em combustão. Como a vida ou os deuses assim quiseram, Fernanda, que apesar do
estilo descolado sempre foi fã de clássicos melosos dos anos 80, se encantou com Pedro e seu
rosto barbudo, camisetas de heróis da Marvel, pernas tortas e caninos proeminentes. Do
primeiro encontro, que aconteceu no Habib’s - porque ambos estavam duros no final do mês -,
até se mudarem para um condomínio em Santa Cecília, região central de São Paulo, foram exatos
27 dias.
A rapidez com que tudo se desenrolou espantou muita gente, mas com um pouco de
sensibilidade, era possível enxergar o amor escapulindo entre os poros coloridos do casal. Ela
tinha 24. Ele, 28, mas muitas vezes parecia ter 67. O tempo passou voando. Com
ele, encomendas do eBay que nunca chegaram, viagens para a América do Sul, shows dos Los
Hermanos, problemas com a máquina de lavar, sexo, sexo, sexo, sexo e ciúme de um designer
bonitão que mexia com a cabeça das moças da agência em que ambos trabalhavam. O ciúme era
dele. Pedro, que se achava macho e adorava ver os filmes do Stallone, os assistia repetidamente.
Fernanda observava aquilo e, no começo, achava graça. Porém, com a chegada da rotina na vida
do casal morador do apartamento 42 do Edifício Marechal Hermes, o que era quente ficou
morno.
Eu, você e seu Rossi, o porteiro
9
por Roniel Felipe
_______________________________________________________________________________________________________________________
Num inverno intenso de São Paulo, a relação esfriou de vez. A vida a dois estava um pé no
saco com caxumba. Pedro trabalhava muito, chegava tarde da agência e não tinha paciência nem
para ver Rocky V, seu filme predileto do garanhão ítalo-americano. Fernanda, que exibia uma
simpatia peculiar no trabalho, em casa era uma alma descolorida. A calcinha pequena, que
deixava Pedro louco e tarado e as sandálias que faziam o companheiro uivar baixinho, deram
lugar à lingerie bege e aos Crocs rosa choque. Deixaram de se enxergar como antes. Pedro
deixou de ser o cara carinhoso, presente. Falavam apenas o básico e seus assuntos eram sempre
as contas, os episódios de Games of Thrones e, claro, a falta de noção de Suzete, a atendente da
agência, notória por suas confusões épicas.
A moça, que trabalhava com criação, estava de férias do trabalho e passava os dias
tentando resolver a situação incômoda com seu companheiro. No dia 8 de agosto de 2014,
passava Fernanda cabisbaixa diante uma banca da rua da Consolação, quando uma chamada em
letras garrafais Arial Black tamanho 44 na capa de uma revista de fofocas lhe deu uma
ideia. “Você já pensou em ter um relacionamento aberto?”. Encontrara seu consolo. Da bolsa
comprada em Machu Picchu, Fernanda sacou dois reais e comprou a revista que na capa trazia
uma foto do Gianecchini e uma notinha de rodapé sobre a gravidez de uma global pouco
lembrada. Chegando em casa, passou correndo pela portaria, como sempre o fazia, ignorou o
velho elevador e subiu as escadas como se fosse uma triatleta. Devorou o texto sobre amor livre
como um maconheiro na larica abocanha uma quentinha de filé à parmegiana.
Quando Pedro chegou em casa, por volta das 23 horas, lá estava Fernanda coladinha à porta, que
tinha o símbolo do infinito para servir de norte para o casal. Sem vaselina, ela disse que queria
abrir o relacionamento. Contou que há algum tempo sentia vontade de viver novas experiências
e que sabia, pelas conversas do Facebook, que Pedro tinha uma queda catastrófica por Suzete,
Eu, você e seu Rossi, o porteiro
10
por Roniel Felipe
_______________________________________________________________________________________________________________________
a atendente atrapalhada.
Dono de si, assim como seu xará negou Cristo, Pedro disse que não. Que aquilo era coisa
de gente que não prestava. Ele, muitas vezes, mostrava-se irreverente apenas no visual. A barba
por fazer deixara de ser hipster para ser ogra, reacionária. Ela, que via seu amor como um
homem “paz e amor” e fã de Osho, passou a enxergá-lo como um menino mimado que não vê a
hora de fazer 16 anos para poder votar no Bolsonaro. Desconexão total.
Foi nessa noite que o pau quebrou no apartamento 42 do glorioso Marechal Hermes. Em
duas horas de bate-boca, o casal abusou dos palavrões. Acusações em alto volume ecoaram pelo
prédio trazendo desconforto aos vizinhos, até que seu Rossi, o simpático porteiro do
condomínio, teve que intervir após seguidas reclamações. Muito mais italiano que Stallone, que
nasceu em Nova Iorque, seu Rossi era querido por todos os condôminos. Como bom italiano,
falava com as mãos o tempo todo, tinha olhos azuis como a camisa da seleção azurra e cabelos
brancos vistosos. Era um lorde vestido de porteiro. Algumas moças do prédio viviam lhe
paparicando com guloseimas. Utilizavam o papo furado para se aproximar do homem de 56
anos, mas com físico de quarentão.
Seu Rossi bateu à porta do casal. Fernanda abriu a porta enquanto o homenzarrão
observava o estrago pela fresta. Naquele momento de tristeza profunda, com os olhos
lacrimejando, Fernanda pela primeira vez prestava atenção no Seu Rossi. Como quase sempre
chegava literalmente correndo do trabalho, se permitia dizer apenas um "oi" básico. Nunca vira
graça no porteiro que era o terror das empregadas do Hermes, mas naquele exato momento
tudo mudou. Houve um apogeu de desejo, algo que não sentia havia meses. Por ela, puxaria o
porteiro para dentro, lhe tiraria a roupa e, enquanto cavalgaria sobre seu corpo, com ajuda
Eu, você e seu Rossi, o porteiro
11
por Roniel Felipe
_______________________________________________________________________________________________________________________
do tablet, leria palavras de baixo calão em italiano. Cazzo me tutto il mio vecchio sano, diria.
Ela sorriu com pouca graça, pediu desculpas em baixo tom de voz e voltou-se ao marido que esperava o segundo round - muda, quieta. Pedro nada entendeu, mas o silêncio de sua
amada lhe doía. Pôs a cabeça de Fernanda em seu colo, passou os dedos entre seus cabelos
curtos e escuros, pediu desculpas e perguntou o que ela tinha em mente. Teve como resposta só
uma palavra: Rossi.
Um feriado se aproximava e a maioria dos moradores do Hermes iriam para a Praia
Grande salgar suas bundas e depois voltar para casa reclamando do trânsito e fazendo piadas
sobre os corpos alheios. Pedro se sentia esgotado, o relacionamento estava morno e Fernanda
cada vez mais próxima de Seu Rossi, para desespero do fã-clube do galã torcedor da Juventus de
Turim. A concorrência era jovem e tinha assunto além da novela ou da situação do Palestra
Itália, o time de coração do porteiro.
Num sábado de manhã, enquanto Pedro dormia de boca aberta, Fernanda bolou seu
plano infalível. Enrolou uma toalha branca no corpo magro e foi até o interfone. Chamou seu
Rossi e reclamou do chuveiro que não esquentava. O homem subiu os quatro andares de escada,
para manter o físico e a saúde. A porta do 42 estava aberta; entrou de mansinho, observando o
apartamento cheio de ilustrações na parede e foi até o banheiro, onde Fernanda ensaiava diante
o espelho uma expressão mista de sedução e fraqueza. Seu Rossi se aproximou titubeando e
perguntou do que se tratava. Como uma ninja, Fernanda passou pelo homem, bateu com o pé
esquerdo na porta deixando cair a toalha e despiu suas intenções.
Eu, você e seu Rossi, o porteiro
12
por Roniel Felipe
_______________________________________________________________________________________________________________________
Seu Rossi mudou de cor e suas mãos falantes pareciam mudas. Sem pensar e levada pelo
desejo, ela foi para cima do homem, que aceitou seu amor ainda sem entender de que se tratava
toda a cena. Eles se agarravam fortemente apesar da diferença entre o 1,57m de Fernanda e o
1,80m do italiano boa praça. O barulho acordou Pedro, que pensou ser de algum protesto no
centro de São Paulo. Ele foi até o banheiro, empurrou devagar a porta e, pela vão, vislumbrou a
alegria de Fernanda com tudo aquilo. Ela gemia alto e falava palavras estranhas. Parecia italiano,
mas era tesão mesmo. Eram neologismos que sintetizavam seu desejo de liberdade. Excitado
com tudo aquilo, Pedro lembrou do Stallone e, como um Godzilla destruindo prédios abriu de
vez a porta. Gritou e uivou como sempre uivara baixo nas saudosas noites de amor com a
companheira partindo para cima de Fernanda. Seu Rossi, vermelho como extrato de tomate,
pouco entendeu aquilo, mas quando menos esperava, estava a dividir o prazer com dois jovens
nus e tatuados.
Do quarto, foram para a cama.
Da cama, para a cozinha.
Da cozinha, para a área de trabalho.
Da área de trabalho, voltaram para a cama.
Adormeceram juntos. Quando o casal acordou, Seu Rossi não estava mais lá. Apenas
pairava pela casa aquele cheiro de perfume de galã de cinema, uma coisa forte, exagerada, mas,
ainda assim, convidativa. Se beliscaram mutuamente para ver se tudo que vivenciaram não era
um sonho. Que nada. Era real. Riram, beijaram-se e trocaram juras de amor. Desde então, o
chuveiro do apartamento 42 tem apresentado problemas.
Eu, você e seu Rossi, o porteiro
13
por Roniel Felipe
_______________________________________________________________________________________________________________________
Nas suas folgas, o Seu Rossi deixou de frequentar os jogos do Palmeiras, que ultimamente
só lhe dava tristezas, para assistir filmes de bang bang com Pedro. Fernanda prepara o macarrão
instantâneo com o molho que Rossi lhe ensinou a fazer. Juntos, os três comem, riem, transam,
dividem histórias e comungam o amor. Os boatos correm soltos no Marechal Hermes.
A cada dia, inventam uma história sobre o trio, mas eles seguem felizes e, quase sempre,
discretos. A exceção fica com a foto dos três sorrindo à frente da Torre de Pisa, na saudosa terra
de Seu Rossi. Quando algum curioso lhe pergunta quem são aqueles jovens tão diferentes dele
no retrato, responde que são os porteiros que moram em seu coração.
Apenas um dia
16
por Veritas Julia
_______________________________________________________________________________________________________________________
Eram só seis e meia da manhã, mas o despertador já insistia em tocar. Luíza se esticou o
quanto conseguiu por cima de João, até alcançar o telefone no criado mudo e, depois de alguns
segundos buscando o botão certo na tela touch, silenciou o maledetto. Mas a preguiça era muita,
e deslizou de volta para o abraço quente de Mateus. Os dois rapazes não haviam aberto os olhos
ainda, mas apertaram o corpo da namorada contra os seus ao mesmo tempo, todos nus, o que
fez com que a moça gemesse de amor e antecipação. Ela conhecia bem essa rotina gostosa,
aqueles dias em que antes de todos correrem para seus afazeres matinais, o tesão despertava
seus desejos e a manhã era toda gozo e felicidade.
Mateus tocou a barriga macia de Luíza com a ponta dos dedos, e em seguida também com
a palma. Ela tinha as pernas curtas e fortes enroscadas nas de João, mais compridas. Em seguida,
buscou os seios delicados, arrepiados com as cócegas sacanas. Enquanto isso, João buscava a
boca dela com a sua, sentindo os sexos dos três próximos, excitados, e podia ouvir os beijos de
Mateus no pescoço da moça. O trio, misturado naquela cama tão feliz, não distinguia mais os
corpos um do outro, e ao invés de “bom dia”, saudavam o momento com palavras de amor e
carinho, as mesmas repetidas nos últimos três anos desde que resolveram viver juntos.
No chuveiro, mais tarde, Luíza tinha as costas esfregadas por Mateus, que tinha as suas
esfregadas por João. Depois Mateus e Luíza se dividiam para esfregar o corpo do outro amado.
Ela cuidava da parte abaixo da cintura, e Mateus da parte acima. Os moços se olhavam,
apaixonados, e sorriam de forma sonora. Luíza se juntava à música que era composta ali, entre
água, sabão e amor, perpetuamente. Na hora do xampu, cada um usava as próprias mãos. João
gostava de esfregar bastante até a espuma ficar grossa nos cachos loiros. Luíza usava
condicionador também, e era neurótica com os resíduos que podiam ficar nos cabelos castanhos
compridos e lisos. Mateus mal tinha cabelos, porque os mantinha bem aparados, então era
Apenas um dia
17
por Veritas Julia
_______________________________________________________________________________________________________________________
sempre o primeiro a sair da ducha. Gostava de secar os cabelos de Luíza, e revezava entre
enxugar seu corpo e o de João. Luíza gostava de enxugar os dois meninos, mas João, que era mais
alto e, portanto, mais divertido de secar.
O café da manhã era como todas as horas em que cozinhavam juntos: uma dança
silenciosa, às vezes interrompida por fragmentos de sonhos compartilhados, onde os passos
variavam de acordo com o grau de sono de cada um. Outras vezes Luíza gargalhava sem
nenhuma explicação, e a explicação não era necessária justamente porque todos sabiam a razão:
felicidade pura e simples. Sentimentos compartilhados por todos.
Mateus e Luíza tomaram chá (menta e Lady Grey), e João bebeu café. Três rodadas de
torrada, algumas com geleia e outras com manteiga. De vez em quando um mamão, uma granola.
Precisavam fazer compras. Mateus se ofereceu para ir dessa vez, porque sairia mais cedo da
editora. Revisaria o livro em seu quarto, já que a mudança de escritório aconteceria no fim da
tarde, e assim todos os funcionários que pudessem continuar o trabalho em casa estavam
liberados. Luíza pediu que trouxesse maçãs, porque estava com vontade de torta, e João lembrou
que estavam sem leite. Anotações feitas, Mateus beijou os amores e saiu da casa.
Luíza e João ainda passariam algum tempo juntos. Ele era professor e começava a trabalhar
depois do almoço; ela programava de lá mesmo, e quase nunca precisava ir até a empresa.
Depois de comer, na hora de escovar os dentes, João encostou-se ao batente da porta do
banheiro e observou Luíza com a boca cheia de espuma. A mesma boca bonita que decorava o
rosto da mulher que mais amava nesse mundo. Ficou se perguntando
Apenas um dia
18
por Veritas Julia
_______________________________________________________________________________________________________________________
como era possível amá-la tanto quanto da primeira vez que a viu, na fila do cinema, quando
decidiu aceitar o convite do amigo. Não lembra qual filme iam assistir, mas era incapaz de
esquecer-se da moça que puxou papo ali mesmo e de quem gostou tanto que convenceu Mateus,
bem mais tímido naquela época, a chamá-la para uma cerveja depois do filme. Lembrou-se de
como a encontraram no corredor, e depois de respirar fundo três vezes, fez o convite. Não foi
difícil. O sorriso que ela abriu demonstrava claramente a alegria em ser lembrada, e depois
daquela noite, não se separaram mais.
Reparou em seu corpo generoso, que preenchia a camisola de algodão e dispensava a
calcinha. Reparar que somente uma peça de roupa cobria Luíza o deixou excitado novamente, e
o cabelo dourado preso num rabo de cavalo descomprometido, que deixava algumas mechas
soltas sobre as costas que até há pouco eram beijadas por Mateus, parecia uma escultura pronta
para ser apreciada, tocada, desconstruída. Ele queria vandalizar aquele arranjo, soltar o laço que
o prendia e mergulhar seu rosto no perfume macio dos fios.
Como se adivinhasse os pensamentos apaixonados do namorado, Luíza cuspiu os últimos
vestígios de pasta e enxugou a boca na toalha macia. Abriu o mesmo sorriso daquela noite, e sem
dizer uma única palavra (não era necessário, eles sabiam), foi até a porta e abraçou o rapaz. Seus
lábios encontram os dele e ali mesmo começaram a fazer amor, que de alguma forma terminou
na cama mesmo que nenhum dos dois lembrasse como haviam chegado lá. Dessa vez não havia a
preguiça das primeiras horas do dia, e João cuidou para que Luíza chegasse perto de perder os
sentidos de tanto prazer. Ele sabia onde lamber, morder e beijar para que ela implorasse por seu
corpo, por seu gozo. Ele era amante dedicado, paciente, e conhecia cada curva dela. Luíza não
deixava por menos. Quando João finalmente cedeu aos seus desejos, embriagada de tesão, tomou
o controle da situação e inverteu as posições, montando sobre o amado e arrancando dele o
maior orgasmo que podia.
Apenas um dia
19
por Veritas Julia
_______________________________________________________________________________________________________________________
Cochilaram, e mais uma vez o despertador do telefone lembrou-os de que eram adultos e
tinham responsabilidades. Luíza colocou um vestido confortável e foi para o escritório. Não
queria tomar banho ainda, porque sempre gostou do perfume da pele de João (e de Mateus) em
seu corpo. João, por sua vez, entrou nobox de vidro e só saiu de lá 10 minutos depois. Vestiu a
camisa, seus jeans, o sapato e pegou a bolsa onde carregava seus livros e o tablet. Passou pelo
cômodo que abrigava sua amada, distribuiu beijos pelo seu rosto e já com saudade, deixou a
casa.
Luíza o acompanhou até a porta, lançou um beijo de despedida ao vento e esperou que
João virasse as costas para ela para que corresse descalça o espaço que os separava até o portão
e pulasse sobre os ombros fortes (ainda que não muito musculosos) do moço. Ele sabia que isso
aconteceria. Era a forma como se despediam. Ela mordia sua orelha direita, um pouco acima do
brinco, e ele girava sobre os próprios calcanhares duas vezes, até que ela o soltasse de seus
dentes, simulando uma dor que não existia. Escorregando de volta ao chão, Luíza pedia para se
abraçarem uma última vez, língua com língua, os dedos de João em sua bunda, por debaixo da
calcinha. Com aquele vestido, ele podia beijar seu colo e sentir seus seios livres, ansiosos por seu
toque. Não deixou a moça passar vontade, e suspirou mais uma vez, quando precisou se
recompor e finalmente partir. O dia seria longo, como todos os outros, até que retornasse para
casa e pudesse despi-la novamente.
Na editora, Mateus achava difícil focar no texto à sua frente. Pessoas carregavam objetos
e caixas para todo lado, fazendo muito barulho e discutindo a melhor ordem para empilhar tudo
no caminhão de mudança. Conversou com o chefe e foi liberado para ir embora mais cedo.
Perfeito, pensou. Copiou tudo de que precisava e deixou sua sala naquele endereço pela última
vez. Estava animado com a mudança, porque gostou da vista que se estendia em frente à sua
janela, na casa nova. Diziam que dava para ver um entardecer lindo dali.
Apenas um dia
20
por Veritas Julia
_______________________________________________________________________________________________________________________
Passou no mercado, como planejado, e caprichou na escolha dos ingredientes da lasanha,
sua especialidade. Foi o prato que cozinhou para Luíza no dia em que ele e João a receberam em
casa pela primeira vez e foi o sabor do beijo que os três dividiram, temperado com o vinho que
começou dividido em três taças, mas que como tudo que acontecia naturalmente entre eles, se
resolvia melhor num único espaço muito bem compartilhado.
Chegou em seu lar e sorriu ao ouvir Chet Baker. Sabia que os melhores humores de Luíza
eram embalados pelo trompete do músico. Deixou as compras sobre a mesa da cozinha,
descarregou os bolsos e se livrou da mochila. Tinha de trabalhar, mas a versão de “Embraceable
You” cantada pelo jazzista era a sua favorita, e foi ao seu som que tocou os ombros da amada,
que se arrepiou e assustou ao mesmo tempo. “Ei, você”, sussurrou. “Ei”, ouviu em resposta. A
canção já havia terminado quando se beijaram, mas qualquer outra também teria terminado
antes que parassem o que estavam fazendo para se olhar novamente. Não havia boca mais doce
do que a de Mateus, pensava Luíza. Amava a de João, mas o beijo que tirava seu fôlego era do
menino tímido que precisou de uma garrafa inteira de vinho antes de reunir coragem naquela
noite perfeita, alguns anos atrás. Lembrava bem de como os três estiveram nervosos, ansiosos, e
de como ele, em particular, parecia ter deixado no tempero da comida todo o sentimento que
queria transmitir, já que as palavras fugiram para algum outro cômodo da casa durante toda a
refeição, até que decidissem abrir a bebida.
Luíza nunca havia se envolvido com duas pessoas ao mesmo tempo, pelo menos com
consentimento de todos os envolvidos. Seu primeiro namoro terminou porque se apaixonou por
outro moço, e não entendia porque não ficar com os dois, já que o amor por um não diminuiu o
amor pelo outro, mas seu namorado na época não entendeu como algo assim era possível. Foi
uma briga feia, um final amargo, cheio de cantos vivos e mágoas.
Apenas um dia
21
por Veritas Julia
_______________________________________________________________________________________________________________________
Só muitos anos mais tarde, quando esse mesmo ex-namorado a procurou e dividiu com
ela que finalmente a entendia, já que o mesmo aconteceu com ele, que sentiu a ferida começar a
fechar, o coração alargar com o alívio. Trocaram um beijo naquele dia, cheio de perdão e
carinho, embora sem a paixão que uma vez os uniu. Sentiu que a compreensão daquela pessoa
que sentiu tanto remorso por ter magoado no passado lhe devolvia uma leveza importante.
Percebeu que o amava, ainda, e que isso nunca mudaria, mesmo que não fizessem mais parte da
vida um do outro. Foi esse amor sem fim que lhe fez perceber o quanto que aqueles sentimentos
verdadeiros e intensos se pareciam com asas, impulsionando-a para uma liberdade sem culpa. E
foi com esse coração aliviado que conheceu os rapazes com quem dividia sua vida hoje.
Luíza levantou de sua cadeira e convidou Mateus a segui-la até o sofá. Fez o rapaz se
sentar, dançando sensualmente enquanto tirava o vestido. Ele buscou tocá-la, mas o quadril dela
desviou das mãos famintas do rapaz. Ela reconhecia aquele olhar, aquele sorriso. Sabia que em
instantes estaria deitada sobre o tapete com ele entre suas coxas, bebendo do seu corpo
enquanto ela gemeria e imploraria para que sua boca cedesse a vez para seu pau, uma vez, duas,
três. Ele a colocaria de quatro, em seguida, e enroscaria uma de suas mãos nos cabelos
compridos dela, enquanto a outra buscaria seu quadril. Apesar de gozar facilmente, Luíza não
ficaria satisfeita enquanto não fosse sua vez de beber dele, e ambos voltariam para o sofá, de
onde só sairiam assim que sua sede fosse resolvida. Ele cochilou com a delicada canção que
embalava os amantes, mas Luíza preferiu ficar escutando o coração dele bater, forte, como se
repetindo “te amo... te amo... te amo”. Pelo menos, era esse o plano, mas também caiu no sono.
Acordaram com João os abraçando. Enquanto o recém-chegado levantou e foi trocar de
roupa, Mateus e Luíza se dirigiram para a cozinha, mais ou menos vestidos, porque a fome
apertava e havia uma lasanha a ser preparada. Novamente dançaram silenciosamente,
Apenas um dia
22
por Veritas Julia
_______________________________________________________________________________________________________________________
passos em sincronia, gavetas se abrindo e fechando, panelas e refratários e facas participando.
De vez em quando algum papo, as novidades do dia. Quando a comida ficou pronta, João contou
do livro que começara a ler e de que estava gostando bastante, e Mateus ficou feliz, já que havia
sido presente dele pelos anos do namorado.
Louça lavada, cozinha arrumada, cada um tomou um banho e se ocupou de suas
pequenas rotinas noturnas. Luíza, esta noite, programou por mais uma hora. Mateus também
trabalhou um tanto. João continuou sua leitura. Mas daí sentiu vontade de Mateus e Luíza, e
roubou seus amores de suas ocupações. Nenhum dos dois se incomodou. Era a melhor forma de
terminar mais um dia feliz. Nem todos os dias fluíam e eram tão harmoniosos como esse. Mas
sem dúvida, eram parecidos, em sua maioria.
Como haveria de ser diferente, com tanto amor envolvido?
Quadrilha
24
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
Eu defino a minha vida basicamente como um pedacinho de terra cercado de surpresas por
todos os lados.
Há 10 anos, quando mudei da Alemanha para o Brasil com meu companheiro, não
imaginava que ia ficar tanto tempo. Viemos para ficar apenas 5 meses dando aulas de matemática
e física no colégio alemão e, quando vi, já estávamos apaixonados pelo país. Principalmente pelos
brasileiros.
Veja, não sou nenhum explorador do mundo, mas já viajei bastante. Por isso, posso dizer
que o Brasil tem algo diferente. Talvez por ser um país tão grande e mestiço.
É um clima diferente. Gosto do jeito que os cariocas caminham. Gosto da comida que os
mineiros fazem. Gosto do sol que a Bahia tem. É diferente. Principalmente o caminhar na minha
pequena cidade alemã, as pessoas andam devagar. No Brasil, pelo menos aqui em São Paulo, não.
Enquanto caminhamos, compassadamente, os brasileiros parecem que estão sempre correndo
para fazer algo, pois o mundo vai acabar se não o fizer agora. Caminham rápido como que fossem
resolver a questão da paz mundial. Acho que já estou velho pra tanto corre-corre.
Até hoje, mesmo 10 anos depois, eu e o Johann não nos sentimos brasileiros. Bom, eu pelo
menos não me sinto. Nem sei se um dia irei me sentir. Quando acho que estou quase me
camuflando entre eles, mesmo tendo um metro e noventa e uma aparência legitimamente alemã,
dou de cara na esquina com um habito incompreendido por mim, mas comum para eles. E eu sei
que vai ser sempre assim. Sou um pequeno brasileiro de 10 anos aprendendo como é esse mundo.
Mas não me importo. Na verdade, eu adoro. Adoro a ponto de até relevar os pequenos defeitos.
Quadrilha
25
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
O frio daqui? (Se é que se pode chamar isso de frio) Não me incomoda em nada. Já passei
piores na Alemanha. Bem piores. Dou risada dos brasileiros agasalhados até o tampo quando o
termômetro bate 10 graus. Hoje, me acostumei a rotina de acordar de manhã, me despedir do
Johann, pegar o exemplar do dia da Folha e vir caminhando até uma pequena padaria na esquina
da minha rua para ler enquanto tomo um café. Um pingado, como dizem os brasileiros.
Eu poderia morar em qualquer lugar de São Paulo. Mas a Vila Madalena tem algo muito
especial que me atrai. Talvez as ruas estreitas que desfilam suas ladeiras na disputa por qual é a
mais íngreme. Talvez o clima de bairro pequeno e antigo, ao mesmo tempo que vive cheio de
turistas e jovens. E apesar de muitos prédios serem tão antigos a ponto de quase cair, não posso
reclamar. Até porque, conhecemos Pablo num desses prédios. O meu prédio.
Um dia estava assistindo as notícias do dia na televisão, apenas pelo puro prazer de ouvir o
português, já que ainda não compreendia direito o que estavam dizendo, quando, de repente,
alguém invadiu a janela do meu apartamento. Era um homem, diretamente do século dezoito.
Entrou mandado por Pablo, que, como bom cúmplice, ficou em seu apartamento dando cobertura.
Mas quando Chopin entrou pela janela, nem me incomodei. Na verdade, o recebi de bom
grado, quase implorando para que ele ficasse. E ele voltou muitas vezes depois. E trouxe amigos.
Ora Beethoven, ora Schumann, ora Bach. Todos se davam muito bem e entravam a hora que
queriam, sem pedir licença. Como se o apartamento fosse deles. Entravam e roubavam a mim e a
Johann um pouquinho, todo dia.
Quadrilha
26
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
Então só restava uma coisa a fazer, já que estávamos envolvido nessa síndrome de
estocolmo e caídos de amores por aqueles invasores. Bati na porta do apartamento 201 e conheci
quem era aquela pessoa que ordenava que seus capangas entrassem todos os dias pela minha
janela. Foi assim que conhecemos Pablo. Foi assim que me apaixonei de vez pelo Brasil.
Demos o troco. Raptamos aquele piano e colocamos na nossa sala.
Sobre os prazeres de não ser
29
por Patty Ferrini
_______________________________________________________________________________________________________________________
Gostava de vê-la existir. Assim, quando acordava logo cedo e tinha ainda aquela aparência
trôpega e descabelado. E também quando menoscabava o mau tempo, o trânsito, a qualidade da
comida no restaurante na hora do almoço. E também quando era terna, quando sorria, quando
rolava com o pequeno gato pelo chão. E também quando era sério, quando era sóbria, quando
era lúcido, quando era plácida. E também quando era.
Cada expressão de sua existência se manifestava de uma maneira tão linda e inteira que
eu não podia, nem na mais tênue linha de pensamento, acreditar que tudo aquilo me pertencia.
Não fazia sentido. Não fazia sentido nem tentar explicar. Cada vez que ela desfilava, cada parte
minha se sentia feliz por ela. Cada parte de mim se sentia feliz por ele. Cada parte minha se
sentia feliz por mim.
Sou feito de muitos “eus”. Nenhum deles sou eu e todos eles me fazem. A cada encontro,
um deles se manifesta, saltitante e descontrolado. Às vezes eu gosto, às vezes não. Há pessoas
que despertam “eus” que me causam boas sensações. Outras, que despertam aquela pele
adormecida que eu prefiro manter em coma. Todos eles me fazem, e nenhum deles sou eu. Mas
de alguns deles eu gosto. E alguns deles eu amo. E alguns deles eu amo mais que a todos os
outros. Às pessoas que despertam “eus” amados, meu muito obrigada. Assim era ela, assim era a
existência dele, assim era o encontro de nossas existências. E nada disso era dela. Nada disso era
meu. Nada disso era nosso. Nada disso era.
Foi com grande leveza que a vi chegar. Foi com grande leveza que o vi existir e foi com
grande leveza que a vi partir. Como quem assiste a um bom filme e termina com aquela sensação
de que fez uma coisa gostosa numa tarde chuvosa de domingo. Ela é como uma canção perfeita
Sobre os prazeres de não ser
30
por Patty Ferrini
_______________________________________________________________________________________________________________________
cujos direitos autorais já expiraram. Lindo, livre, e pronta para ser ouvida por aqueles que
estiverem com vontade. Ela existe aqui, existe agora, e não deixará de existir em mim. Não
deixará de existir em si. Não deixará de existir.
Dentro de mim, a “forma” do ser dada por um estado de existência, sem nomes, sem
regras. É a configuração essencial que manifesta sua máxima expressão, é a sua intimidade mais
potente e representativa. É a configuração única e bela. Neste encontro, não importa quantos,
não importa como. Apenas não importa.
Terminei essas pequenas linhas num café numa segunda-feira tarde chuvosa de uma
cidade cinza. Terminei essas pequenas linhas numa savana ensolarada num mês de março
qualquer. Terminei essas pequenas linhas sozinha. Terminei essas pequenas linhas completa.
Terminei feliz.
Curitiba, 9 de agosto de 2012
32
por Fabiane Lima
_______________________________________________________________________________________________________________________
— Cheguei e ele estava agachado, recolhendo cacos do chão, preocupado com as patinhas dos
gatos.
— E então?
— Percebi que tinha chorado. Ainda chupava o nariz, e os olhos estavam bastante inchados. Dei
um último beijo, minha bênção e depois ainda o ajudei a fazer as malas e o levei ao aeroporto.
— Mas... há quanto tempo foi isso? Você conta como se tivesse sido há mil anos.
— Ontem.
— E foi tudo?
— Foi.
— Você não chorou, não se descabelou, não implorou para ele ficar, não ameaçou se matar?
— Não.
— Como assim?!
— O que você esperava que eu fizesse? O que eu poderia fazer? O piá ainda ama a ex. Nada do
que eu fizesse iria mudar isso.
Curitiba, 9 de agosto de 2012
33
por Fabiane Lima
_______________________________________________________________________________________________________________________
— É que nem parece que você se importa.
— Não sei. Eu simplesmente não sei o que ocorre, mas não vejo necessidade disso. Estou bem.
— Você é mesmo fria e calculista. Você não o ama? Ou amava?
— Eu? Ele vinha planejando isso já há algum tempo. Ficou cheio de dedos para me contar o
plano, até que o obriguei a abrir o jogo. E sim, o amo. Sou louca por ele. Faria qualquer coisa pra
estar nos pensamentos dele. Mas não estou mais.
— Não parece.
— Eu não precisei fazer um escândalo das outras vezes em que fui abandonada, e não foram
poucas.
— Ameaçou se jogar de cima desta mesma sacada quando Anita partiu.
— Mas não fiz ceninhas quando Lídia partiu.
— Lídia era uma cadela! E morreu!
— Tão fiel quanto uma cadela pode ser. E eu a adorava.
— Lídia era uma cadela!
— Está enterrada na chácara do meu pai, sob minha figueira favorita. Lugar de honra.
Curitiba, 9 de agosto de 2012
34
por Fabiane Lima
_______________________________________________________________________________________________________________________
— Você não o ama. Ou ele não a ama e você finge indiferença.
— Acredito que me ame. E ame também a ex. Não acho que uma coisa exclua a outra. Podia
muito bem amar as duas, mas alguma coisa o fez escolher, seja a família, o medo do julgamento
social, o deus barbado lá no céu em que acredita. Vai ver ele apenas achou que era mais fácil ficar
com apenas uma das duas. Mais cômodo. Mais econômico.
— Você fala como se fosse possível. Você se submeteria a uma situação dessas? Digo,
hipoteticamente?
— Eu lhe disse ainda há pouco. Faria qualquer coisa por ele. Se quisesse ficar com as duas, qual o
problema? Ele não iria se partir ao meio. Eu ainda o teria todo para mim e a outra para ela. Se ela
morasse aqui isso seria bem mais fácil. Mas não, a desgraçada tinha de morar a trezentos
quilômetros de distância...
— Você é estranha.
— Sou. Uma estranha que vai passar a vida acariciando pêlos de gatos em proporção muito
maior que cabelos de pessoas queridas por ser tão estranha. É assim tão ruim? Eu deveria estar
chorando e o querendo só pra mim?
— Você deveria pelo menos demonstrar estar triste.
— E estou. Muito. Este é o meu estar triste. Algum problema com ele?
Curitiba, 9 de agosto de 2012
35
por Fabiane Lima
_______________________________________________________________________________________________________________________
— ...
— ...
— Vamos, você já bebeu demais. Os gatos querem comida.
— Eles podem esperar. Eles sempre esperam. Eles sabem quem é que abre a lata de comida para
eles. O que foi? Esses bichos são fortes. Espertos. Caçam se for preciso. Se não há baratas neste
apartamento é por causa deles.
— Eles comem baratas?!
— Mas é claro que comem. Ou ao menos as espantam. Comemos coisa muito pior e não fazemos
drama por isso.
— Não comemos baratas!
— Os chineses comem. E comemos camarões. É quase a mesma coisa, têm até casca.
— Você é louca.
— E você ainda mais por estar aqui. Aliás, por que ainda está aqui?
— Você me chamou. Disse que tinha vinho. Bebemos uma garrafa e metade de outra.
Curitiba, 9 de agosto de 2012
36
por Fabiane Lima
_______________________________________________________________________________________________________________________
— É verdade. E temos uma tequila novinha em folha à espera. Podemos beber aquela garrafa
inteira ainda hoje. Principalmente porque já passa da meia-noite, o que significa que ainda temos
pouco menos de vinte e quatro horas para isso. Dá tempo de ter um coma alcoólico e se
recuperar dele no mesmo dia.
— É. Mas espera.
— O que foi?
— Disse aquilo de verdade mesmo?
— O quê?
— Sobre dividir o piá.
— Tudo o que eu digo é de verdade. Agora entra, vamos remendar este coração partido.
Lembranças de um deleite louco
39
por Bruna Ramos
_______________________________________________________________________________________________________________________
Já era tarde quando me levantei da cama. O corpo dolorido, a garganta seca e uma
estranha sensação de memória perdida. Fui até o banheiro e sequer me dei ao trabalho de olhar
no espelho e fazer a famosa pergunta “quem sou eu?”, isso nunca combinou muito comigo,
preferia o vaso sanitário a reflexões logo pela manhã.
Uma vida de puro caos, mas era a minha vida. Os porres exagerados, a paixão pelo
rock'n'roll, a vontade absurda de provar para mim mesma que eu podia ser sempre o que eu
quisesse. Nem tão jovem, mas “cheia de amor pra dar”, como dizia o porteiro do prédio todas as
noites em que tinha que me ajudar a decidir entre o elevador ou o sofá da recepção.
Voltei para meu quarto e lá estava ele deitado de barriga para baixo e o rosto virado para
a janela. A luz que entrava iluminava sua face enquanto eu me mantinha parada na porta a
observar, pensando se seu nome seria Lucas ou Emanuel. Mas isso pouco importava. Deitei
novamente e, no mesmo instante, ele olhou para meu rosto molhado e me beijou na testa, como
se agradecesse. Mudou de posição aconchegando-se ao meu lado, me abraçou forte e meus olhos
se fecharam de felicidade. Então ele acorda, eu abro a porta pois me sinto melhor assim. Ele vai
embora, mas antes peço pra que deixe os cigarros. Vento na cara, sempre preferi Carlton.
Olhando daqui, vejo que na praça todos então amando, eu na janela estou a mando do medo de
ser amada.
Passei a me sentir desorientada dentro de casa. Numa hora eu estava disposta a sair pela
rua e me jogar nos braços do primeiro que aparecesse. No minuto seguinte, essa ideia se repelia.
Resolvi ir até o bar da esquina, que ficava no subúrbio onde eu morava. Lá chegando tomei duas
doses de conhaque e sai a andar pelas ruas escuras e fétidas que me cercavam. Naquela noite,
Lembranças de um deleite louco
40
por Bruna Ramos
_______________________________________________________________________________________________________________________
eu me sentia de alguma forma diferente, e ao passar as mãos sobre o meu próprio corpo percebi
que estava sem sutiã.
Sem que me desse conta, eu havia criado nos últimos anos um muro ao redor de meus
envolvimentos. Era uma barreira que eu julgava capaz de me proteger de todas as ameaças de
fora. Mas esse muro começou a ser demolido na medida em que o conhaque descia pela
garganta. Apesar da minha idade, eu continuava sendo uma mulher desejada. Sempre ouvi que
meu poder de sedução era capaz de levar qualquer um a loucura. Resolvi voltar pra casa na
companhia de uma bela jovem que marcava seu ponto naquela mesma rua.
Aproximei-me devagar, parei ao seu lado e, sem dizer uma palavra, esbocei um doce
sorriso de cumplicidade, permitido ao restrito universo das mulheres da vida. Ela me respondeu
com o mesmo sorriso e voltamos para casa, para minha casa, juntas. Ao chegar, antes mesmo que
eu pudesse dizer para que ficasse a vontade, Amanda já havia tirado seu minúsculo vestido e
andava pela sala nua sobre um salto de quinze centímetros.
Sentamos à mesa e matamos três garrafas de vinho barato ao som de Mutantes. De
repente, estávamos dançando, empunhando a garrafa de vinho como um microfone e esfregando
nossos peitos na cara uma da outra. Brindamos umas trezentas vezes, após cinco garrafas eu já
não conseguia ficar de pé. Estávamos embaladas ao som de “Balada do Louco” na nossa pista de
dança imaginária, quando Amanda me puxou pelos cabelos e me lascou um beijo
cinematográfico. Parei de repente, dei um longo gole na garrafa de vinho, voltei a beijá-la e nós
duas caímos pelo chão. Estávamos loucas, extasiadas, bêbadas, extraordinárias.
Como se soubesse exatamente o que estava fazendo, ela se inclinou sobre mim, traçou um halo
de beijos em volta dos meus mamilos e finalmente atingiu o centro rosado. Ela me sugava
suavemente, me sorvendo com toda força dos pulmões. Continuou lambendo o duro pico
Lembranças de um deleite louco
41
por Bruna Ramos
_______________________________________________________________________________________________________________________
enquanto sua mão se deslocava para baixo, acariciando-me a pele nua com toques. Separou as
minhas coxas, introduzido os dedos em meus lábios maiores me explorando com suaves toques
escorregadios. Era uma tortura deliciosa.
Decidimos ir para o quarto. Amanda parecia ainda mais jovem, e eu sentia-me feliz em
olhá-la. Deixamos a luz acesa, nos beijamos demoradamente e sentíamos nossa respiração cada
vez mais acelerada. Amanda começou a fazer sexo oral em mim. Era incrível como sabia
exatamente onde deslizar sua língua e, com toda delicadeza, ia fazendo os movimentos. Eu
estava suada, tocando meus próprios seios, gemendo com total perdição, pedindo para que ela
não parasse nunca. Ela aumentou os ritmos usando também as mãos, me obrigando a
experimentar um prazer maravilhoso.
Tentei repetir o mesmo que ela e percebi que é muito fácil agradar uma mulher se
soubermos tocar os seus pontos mais sensíveis e fazer com que ela se sinta única no universo.
Continuamos pela noite toda, inventando carícias, movimentos, falas. Essa foi uma experiência
pura de prazer explícito entre mulheres que buscam reinventar a vida, cansadas de hipocrisia.
Levantamos no dia seguinte e, ao olhar para Amanda, que voltaria para as ruas, disse: “A orgia
vence o preconceito”, e ouvi de volta: “Sim Sophia, o amor também.”
Nesse momento, eu me vi verdadeiramente despida. Pois em verdade nascemos nus, sem
nenhuma vergonha propriamente dita. Refugiando na noite. No subúrbio. Numa suíte de motel.
No bar da esquina ou em qualquer lugar onde sou bem-vinda, resolvi deixar o medo de lado e
sentir o gosto de não ser perfeita. Uma eterna cumplice dos deleites da noite, sem me preocupar
com a honra da manhã.
O sotaque
43
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
Caiu de amores por um sotaque.
Isso mesmo: um sotaque.
Não era uma ruiva, uma loira, uma morena alta de cintura fina e cabelos longos cheirando a
perfume. Era apenas um sotaque. A dona dela sim, que era uma morena alta de cintura fina e
cabelos longos. Marjane!
Ahhhh, Marjane.
Gostava de falar o nome dela com o mesmo sotaque de erres arrastados que ela tinha:
"Marrrrrrjaaane". Quase um pigarro que arranha a garganta.
Ele adorava o jeito com que ela falava "trabarrrrrrrar".
E se ria, quando ela dizia que os gaúchos trabalhavam pouco enquanto trabalhavam muito.
"Eles trabalham oito horas. Mas passam metade delas em frente ao computador tomando mate!".
Se encontraram um dia, por acaso. Ele foi ao dentista cuidar de um antiga obturação, que de
tanto lhe fazer sair de casa, já a tinha até como de estimação. E, verdade seja dita, não fosse ela,
nunca teria saído da frente da televisão e estaria até hoje assistindo ao telejornal.
E nem teria conhecido Marrrrjane.
O sotaque
44
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
Ela, com seus 20 anos, tinha simplesmente 45 anos a menos que ele. Poderia ser sua filha. E
quisera ele que fosse mesmo. Assim, poderia ouvir todos os dias o sotaque de erres arrastados.
"Coisa de franceses" - ele diria. Mas não exatamente.
Era coisa de Marrrrjane.
Sim, porque encontrou muitos franceses nas reuniões de couchsurfing em que ia todas as
quintas-feiras, na esperança de um dia entrar e ver Marjane nele novamente.
Durante esse tempo conheceu sim outras francesas, algumas mais esnobes que outras. Mas
nenhuma com o mesmo erre arrastado de Marrrrrjane.
Marjane veio para Porto Alegre a trabalho. Na verdade, pela faculdade. Ficar um mês
trabalhando com administração. Azar dele que a conheceu quando já havia passado uma
semana. Sorte dele que poderia ter se passado mais tempo. Seria menos tempo com o sotaque de
Marrrrjane.
O que importa é que, um dia, os astros se uniram. Cancelaram sua consulta, o que fez não querer
ir para casa, acabar num bar da Cidade Baixa onde, em quinze minutos, começaria uma reunião
de pessoas que fazem couchsurfing. E lá estava Marrrrrjane. Ou melhor, o sotaque de Marrrrjane.
Seu encanto por Marrrrjane tinha um motivo de ser. Ela o lembrava de quando era jovem. De
quando vivia com Cláudia e conheceu Laura e Pierre em uma viagem que os dois fizeram para a
França. Os quatros se conheceram em uma festa e passaram a se relacionar durante todo o
tempo em que estiveram na França.
O sotaque
45
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
Quando voltaram ao Brasil, eles eram outro casal. Mais abertos, mais livres, mais felizes.
Trocavam correspondências todas as semanas durante anos, contando como cada um deles
estava. Mas aí, Laura e Pierre se separaram. As correspondências rarearam. E, alguns anos
depois, Cláudia, se foi o deixando só com as correspondências que não mais chegavam.
Seu interesse por Marrrrjane não era sexual. Sim, porque não haveria porquê um homem
daquela idade, que poderia ser até avô dela, se atrever a galanteios com a garota. E nem queria.
Na realidade, tudo o que ele queria era se chamar Rrrrroberrrrto. Aí ouviria o sotaque de erres
arrastados toda vez que ela lhe chamasse.
Mas aí já seria conjuntura astral demais, senhor "Osvaldô".
Aproveitou de Marrrjane o que pode. Desfrutou bem suas três semanas com ela. Mostrou cada
canto de Porto Alegre. Seus segredos. Seus lugares preferidos. Os pratos típicos, que depois
descobriu que ela nunca comeria, pois era vegetariana.
Quedou então a cozinhar para ela e a tirou da vida de hotel. A levou para morar em casa. Virou
anfitrião de couchsurfing sem querer. Mas pelo sotaque de Marrrrjane, quereria.
Até a ensinou a gostar de mate. E como ela gostava de mate. Quem visse, diria que era
praticamente gaúcha. Começou a passar quatro das oito horas de trabalho na frente do
computador, tomando mate.
O que ela mais gostava no mate, dizia, é que era uma experiência para ser compartilhar com as
pessoas.
"O mate é como amorrr. Só é bom se rrrrepartirrrr, mon sieurrrr Osvaldô!"
O sotaque
46
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
Ganhou em Marrrrrjane a filha que nunca teve, nem com Cláudia, nem com Laura. E com o
sotaque que nunca imaginou. Mas junto, veio também a tristeza que nunca quis quando ela teve
de voltar para a França. Nunca mais ouviria o sotaque de Marrrrjane. Passou as semanas
seguintes a repetir para si mesmo o "trabarrrrrrar". Mas não era a mesma coisa. Nunca mais foi.
E por isso que, semana após semana, buscou nas reuniões do couchsurfing aquele sotaque
novamente. No meio de alemães, turcos, sulafricanos e uruguaios. Nunca mais o encontrou.
Sobraram apenas os telefonemas eventuais para ouvir o seu sotaque de erres arrastados.
"Fuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu... "
Naquela noite, a chaleira lhe chamou. Até porque, não havia mais quem chamar. Aquela casa,
vazia novamente, era o que restava, assistindo ao telejornal e tomando mate, enquanto, em
algum lugar do mundo, Marrrrrjane repartia seu sotaque com alguém.
Pegou um pacote fechado de mate e pôs na mala, junto com a cuia, a bomba e suas roupas.
Desligou a televisão. Conferiu o passaporte e as passagens para a França. Foi até a cozinha,
serviu a água quente na erva e tomou, pensando que dali a onze horas ouviria pessoalmente
Marrrrjane falar.
"O mate é como amorrr. Só é bom se rrrrepartirrrr, mon sieurrrr Osvaldô!"
– repetiu para si mesmo.
E depois riu. E partiu. Sem nem terminar de beber todo o mate.
Afinal, mate até rima com saudade. Mas não combina.
Amar é entender
49
por Priscila Sequeira
_______________________________________________________________________________________________________________________
Busquei sempre amar,
Busquei entender o que sentia, pensei em descrever o que realmente queria e buscava.
Quando me vi em um relacionamento complicado, cheio de vida e tristeza ao mesmo tempo.
Me apaixonei por alguém que já tinha um outro alguém. Nos conhecemos pela internet,
nos vimos pela primeira vez em um bar ali, bem ali na Paulista.
O palco de vários encontros, nos encantamos, nos beijamos ali no metrô Brigadeiro.
Saímos algumas vezes, até então ele me dizia que seu relacionamento era bem aberto, mas como
seria isso? Estava começando a me apaixonar por alguém que já tinha um outro alguém, e já
tinha a certeza que ia me machucar, me ferir. O ciúmes era grande quando eu ligava e ele dizia
que não dava pra me ver, que tinha que ficar com o outro alguém, porque ela estava doente e
precisava dele.
E eu? Porque estava aguentando aquilo? Chorava, sofria muito, pela a preocupação que
ele tinha por ela. Mas quem era eu ali naquele relacionamento? Até sua ligação fazer bater
novamente meu coração. Chegava a tremer com suas palavras de carinho, mesmo ali cuidando
do outro alguém.
Era ciúme curado pelo toque de cetim de sua voz. Ele dizia que me amava, que me queria
e gostaria que eu conhecesse o outro alguém. Como ela era encantadora, com seus cabelos
avermelhados, mas sua voz era doce, como se falasse do alguém, como se fosse uma bonequinha,
mas seu carinho por mim era no mesmo tamanho.
Amar é entender
50
por Priscila Sequeira
_______________________________________________________________________________________________________________________
Combinamos de nos ver. Sim, ali, naquele lindo palco, no mesmo bar, ali na Avenida
Paulista, olhando para os carros. Estava ali sentada esperando eles, ia conhecer o outro alguém.
Como eu reagiria? Os vi chegando, ela era sim muito linda, ele encantador, chegou de mão dada
com ela. E eu?
Ah! Duvidas, Ah! Suspirava, minha real vontade era sair correndo, chorando e me
julgando, como podia ter me apaixonado por alguém como ele?
Mas meu coração não me fez levantar. Não me deu essa coragem. E fiquei.
Agora, estou aqui pensando. Deitada cama e pensando. Como pude me apaixonar por ele e
também me apaixonar pelo olhar dela?
Estava agora deitada em seu peito, pensando como seu cheiro inunda nosso quarto. Ela
ali deitada, do outro lado e nós duas de mãos dadas, com o amor de nossa vida, estamos no
paraíso. Amamos e somos amadas, ali é nosso pedaço, ali é sim, nosso paraíso.
Quem nos vê, nos julga. Mas ninguém sabe o que é verdadeiramente amar, somente sabe
que é “safadeza”. Não. Não é nada além de amor. Com cheiro de verdade e respeito.
É amar!
Três medidas
52
por Jussara Oliveira
_______________________________________________________________________________________________________________________
Entraram pela porta que não estava destrancada.
- Quer cerveja?
- Desculpe, não bebo.
- Quero.
Se entreolharam e sorriram.
- Odeio gosto de cerveja.
- Serve vinho?
- Suco, não tem?
Foi pra cozinha olhar o que tinha na geladeira.
- Humm. Acho que tem filme aqui quer ver?
- Ah. Talvez, não sei, seja melhor música. Qualquer coisa que não seja barulhenta.
- Escolhe uma lista no computador! É só colocar a primeira que ele dá um jeito. – Gritou da
Cozinha.
Três medidas
53
por Jussara Oliveira
_______________________________________________________________________________________________________________________
- Que acha de Aerosmith, sei lá, pode ser?
- Não, eu não gosto.
- Direta você. E decidida. Gosto disso.
- Não sou decidida pra você. Apenas sou. - Piscou e pegou o teclado. Digitou Lana del Rey e
colocou a primeira música.
- Vejamos o que a tecnologia faz pela gente.
- Gelo?
- Sim.
- Não.
Veio da cozinha dançando com os três copos de Suco de uva na mão.
- Esses dois têm cachaça, toma o seu.
- Obrigada. Não vão beber demais, hein? Disse sorrindo.
Começaram a dançar quase ao mesmo tempo.
- Tava com saudade.
Três medidas
54
por Jussara Oliveira
_______________________________________________________________________________________________________________________
- Sabe que te adoro.
- Vocês são lindas.
Duas músicas, um selinho, um beijo prolongado, um beijo a três apressado e caíram no sofá.
Mãos se perderam entre seios, dobras e apertos. Mais beijos e pequenas mordidas, depois peças
de roupas sendo tiradas com destreza e jogadas no chão.
- Não sei se quero.
- Mas você que chamou a gente.
- Eu sei. Mas não tenho certeza.
Ficaram imóveis.
- Posso fazer algo pra ajudar?
- Quero abraço.
Apertaram o abraço se encaixaram do jeito que foi possível. Ficaram em silêncio ainda meio
ofegantes.
- Estou cansada. - Disse meio sem jeito.
- Tudo bem.
Três medidas
55
por Jussara Oliveira
_______________________________________________________________________________________________________________________
As músicas continuaram embalando o sono compartilhado e o fingido.
***
O que houve com você aquele dia hein?
- Sei lá, acho que não estava confortável. Sei que vocês estavam fazendo isso só por minha causa.
- Linda estou fazendo o que posso pra você se achar. Não era o que você queria? Você disse pra
mim que precisava experimentar.
- Eu amo vocês duas, e vocês são incríveis, é que fico pensando onde me encaixo. Vocês já tem
essa dinâmica construída entre vocês.
- Para com isso vai, não sei mais o que fazer.
- Eu quero que você dialogue comigo. Diga o que você sente disso tudo. O que você tem de
expectativa. Essas coisas.
- Caramba. Mas até pra sexo você quer fazer DR agora.
- Chame do que você quiser, e sexo é o de menos pra mim. Quero poder me relacionar com vocês,
mas acima de tudo quero vocês felizes.
Depois de abraços, beijos e desculpas alguns sussurros.
Três medidas
56
por Jussara Oliveira
_______________________________________________________________________________________________________________________
- A verdade é que eu não sei. Não sei como vou me sentir com tudo isso. Tenho medo também. E
algumas dúvidas. Não sobre você, mas sobre mim.
- Reflita o quanto precisar. Estou do seu lado pro que precisar. Só chamar que eu venho
correndo.
Piscou de leve o olho direito e ficou em silêncio ouvindo os batimentos cardíacos em sincronia.
- Mas tá tudo bem pra você?
- Claro que sim. Amo vocês, quero estar com vocês. Te quero como namorada ou seja lá o que for.
E ela é minha amiga.
- Tá, mas e se eu ficar com outras pessoas você vai ter ciumes? Sabe que meu relacionamento é
aberto, né? Que eu me relaciono assim.
- Bem não posso garantir o que eu não sei, não vi. Sei que me sinto bem vendo vocês.
As três sorriram em cumplicidade. E continuaram compartilhando olhares, beijos e sorrisos por
muitas vezes mais.
O garçom
59
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
- Mas como assim vocês três são casados?
- Nós somos, ué. Moramos juntos há 6 anos.
O Garçom olhava incrédulo sem entender direito o que aquela garota, acompanhada de outros
dois garotos, estavam dizendo. Eu, da minha mesa, só observava, por pura curiosidade.
Aparentemente, ele se incomodou de os três estarem se beijando ali e foi pedir um pouco de...
como posso dizer... parcimônia. Afinal, podiam estar "incomodando os clientes".
É sempre assim. Os clientes nunca estão satisfeitos.
- Garçom! Minha sopa está fria!
- Garçom! Meu pedido está demorando!
- Garçom, aquela menina grávida está beijando dois homens ao mesmo tempo!
Garçom é uma profissão ingrata. Todos pedem, exigem e, se bobear, não deixam nem gorjeta.
- Garçom!
O Papa poderia chamá-lo naquele momento que ele não atenderia. Estava embasbacado com
aquelas três pessoas na mesa, falando aquelas coisas como se fosse a coisa mais natural do
mundo. Dois garotos e uma mulher grávida, se beijando! Onde já se viu?
O garçom
60
por Diogo Batalha
_______________________________________________________________________________________________________________________
Mas se ele já achava ruim pra cabeça dele, o que veio depois foi o que deu um nó naquela careca
de fazer o bigode retorcer. Quando no meio da explicação dela sobre como era aquela relação
entre os três, ele perguntou, não sei de curioso, não sei se para, magicamente, mostrar pra ela
que aquilo que ela estava falando era loucura, "quem era o pai daquele bebê então?". Sem
pestanejar, eles responderam em uníssono: os dois.
Eu também olhava curioso para aquela cena. Acho que mais pelas reações do garçom que pela
história que os três jovens contavam. Depois que eles foram embora, o garçom ficou estático em
um canto. O que pensava? Não sei. Eu era apenas um observador naquele ambiente, mas queria
muito poder ler pensamentos.
Talvez pensasse que, num mundo onde tantas crianças crescem sem pais, aquela teria dois.
Talvez pensasse que aquilo não teria como dar certo. Talvez pensasse nas escolhas que deixou
de fazer na vida. talvez pensasse nas escolhas que podia ter feito. A questão é que ele pensava. E
muito. Até que um cliente gritou:
- Garçom! Poderia me dar o cardápio?
Ele pegou um guardanapo, escreveu "Cerveja 9 reais", jogou na mesa e foi-se embora.
Se bobear, até do país.
As escolhas
62
por Tatit Brandão
– e o amor como cúmplice, não como vítima
_______________________________________________________________________________________________________________________
Catarina é atriz. Mãe de gêmeos, Artur e Felipe de 15 anos. Engravidou do primeiro
namorado, Luiz, aos 16. Branquinha, cabelos castanhos, olhos verdes e bem grandes. Gosta de
peixe, nunca deixa o aquário vazio. No dia seguinte que um Beta morre, outro é reposto. De cores
diferentes, mas um único nome. Heitor. Herança da adolecência é a marca do piercing no final da
sobrancelha esquerda.
Marcelo é desenhista. Tem 33 anos e nunca engravidou nenhuma namorada. É de
escorpião com ascendente em peixes. Gosta de comida japonesa, viajar de carro e de longos dias
de sol. Anda de metrô e de mochila todo dia. Leva nas costas notebook, escova e pasta de dente,
guarda-chuva, uma malha quentinha que serve para colocar por baixo da jaqueta ou por cima da
camiseta, um bloco de papel quadrado e uma caixa de lápis aquarelável. Se formou em química,
mas não consegue se livrar de suas sombras e contrastes feitos com 6B. Nem quer.
Glaucia é veterinária. Tímida, fala baixo e pesa 51 kg. Não se lembra qual foi a última vez
que usou calça jeans. É apaixonada pela avó de 79 anos e sonha envelhecer como ela, regando
samambaias suspensas em sol indireto e participando de todos os programas de terceira idade
do Sesc. Foi casada por 3 anos com um virginiano. Quanto mais o tempo passa maior e mais clara
é a sensação de que a separação era um destino certo desde o primeiro encontro, não
consequência de quaquer coisa.
Fosse o destino melancólico ou nostálgico, ou simplesmente um pouco preguiçoso, esses
três nomes seguiriam suas vidas normalmente sem se esbarrarem. Mas foram eles os três
restantes no final de uma festa qualquer de aniversário de duas capricornianas, de quem eram
As escolhas
63
por Tatit Brandão
– e o amor como cúmplice, não como vítima
_______________________________________________________________________________________________________________________
amigos de diferentes lugares. Era janeiro de noite quente. E a última estrela que resistiu no céu
daquela manhã ébria foi admirada por eles da janela de um apartamento antigo com pé direito
bem alto. Ao som de Screamin' Jay Hawkins os três fizeram caber, nas linhas das infinitas horas,
conversas sobre trabalho, viagens, família, prazeres, desejos e sonhos.
Passados dois anos de convivência diária dividindo a mesma casa, a mesma cama, os
mesmos corpos e sentimentos, toda manhã, na mesa do café, Catarina, Marcelo e Glaucia
continuam pautando suas vidas, agora intimamente conectadas - porém ainda integralmente
preservadas em suas individualidades, nas mesmas temáticas do primeiro encontro. Sobretudo o
sonho. O sonho compartilhado do amor. E da liberdade de serem exatamente aquilo que querem
ser. Todo dia. A todo instante.
Amor Inverso
66
por Barbara Falcão
_______________________________________________________________________________________________________________________
Todos achavam estranho eles ficarem só os dois. Como pode? Eles vão acabar mal. Nunca
vi algo assim dar certo. Isso é falta de tesão na vida. Diziam as pessoas quando notavam que eles
eram monogâmicos. Notavam, porque eles escondiam de todos, principalmente da família, a
opção que fizeram por ficar só os dois, sem mais ninguém. O que minha mãe vai pensar. Vai ser o
caos na família. Meu pai disse que monogamia não é de Deus. Minha outra mãe diz que a Igreja
quer que fiquemos com mais de uma pessoa. Meu terceiro pai diz que a natureza nos fez assim e
o padre fala que a Bíblia disse amai-vos unS aos outroS. Eles não aguentavam mais. Por que as
pessoas se incomodavam tanto por eles serem diferentes e viverem a vida que queriam?
Eles chegaram a pedir a amigos que fingissem fazer parte da relação para agradar a
família e os vizinhos não falarem mal, mas os próprios amigos os condenavam e diziam para
parar com aquela pouca vergonha. Ela chorava no quarto sofrendo tanto preconceito por amar
uma pessoa só. Ele fingia ter relacionamento com várias pessoas quando estava com os colegas
no bar. No trabalho a notícia se espalhou e os colegas de ambos faziam piadas sobre eles
estarem em um relacionamento monogâmico. Todos sabem que a base da sociedade é a
associação entre várias pessoas, seus egoístas. Acha que vão ser felizes assim, coitados. E aí, vai
se contentar só com uma fruta quando pode ter o pomar todo. Ele chegou a brigar com os
colegas. O que essa mulher tem que faz você querer só ela, mel na xoxota, nem com homem fica
mais, seu hetero! Daqui a pouco vão querer ter filhos para criar só os dois. Que absurdo!!
O marido já não aguentava tanta pressão e deu um ultimato a mulher. Você tem que ficar com
outras pessoas, trazer aqui pra casa e mostrar pra os amigos e família. Ela, relutante, sentindo-se
oprimida, acabou cedendo às vontades de seu companheiro e começou a sair com homens e
mulheres, porém fazia isso só na frente dele. No seu íntimo, escondia de todos que amava apenas
aquele homem que tanto a estava maltratando.
Amor Inverso
67
por Barbara Falcão
_______________________________________________________________________________________________________________________
Um dia, conversando com uma amiga mais íntima, confidenciou que era monogâmica e
não aguentava mais ter que ficar com várias pessoas para agradar o marido e apaziguar os
ânimos de todos. Foi quando descobriu que não só a amiga, mas vários outros casais faziam o
mesmo. Homens e mulheres que enganavam seus parceiros ficando com outras pessoas só na
frente deles. Muitas vezes tendo que enganar todas as pessoas da relação para que ninguém
descobrisse que amavam uma pessoa só, algo que nem a sociedade conservadora, nem a igreja,
nem o estado aceitavam de jeito nenhum.
Até chegou a ver na internet alguns casos que a justiça deixou apenas duas pessoas se
casarem e constituírem família, mas foram casos isolados e mesmo que ela conseguisse, nem
mesmo seu marido aceitaria mais, pois ele tinha que manter uma postura de macho para todos e
macho que é macho divide a mulher com quem ela queira.
O tempo passou, ela entrou em depressão, se sentia presa e impotente toda a vez que trazia
outras pessoas para sua casa, sua cama e sua vida. E se sentia pior porque ele não fazia isso,
embora dissesse e mostrasse a todas que fazia, apenas usava os companheiros que sua mulher
arrumava, contra a vontade dela.
Até que um dia, ela chegou ao limite, olhou para seu marido e contou toda a verdade. Não
aguento mais ficar com outras pessoas, estou te enganando e me violentando. Preciso de espaço
para ser eu mesma. Não quero mais viver de acordo com esses padrões rígidos de poliamor.
Ouvindo tudo isso, o marido, criado dentro das regras que ditavam os relacionamentos
amorosos, as orientações de gênero, a sexualidade de todos, pensando em como seria difícil
encarar as pessoas e mais que tudo, conviver com a derrota de não conseguir se adequar ao
padrão, também não aguentou.
Amor Inverso
68
por Barbara Falcão
_______________________________________________________________________________________________________________________
Naquela noite, chegou em casa, jantou, tomou banho, deu dois tiros na mulher e depois se
matou. Ninguém entendeu direito o motivo do crime. Muitos diziam que era por causa da
monogamia, que eles insistiram em viver, foi acabando com o relacionamento e com a vida deles.
Também, quem manda querer ser livre...
Era tarde
70
por Uriama de Menezes
_______________________________________________________________________________________________________________________
Era tarde. Depois das três. A noite fora intensa. Já havia contado muito do que se passara.
Falara do beijo repentino e do recuo... Contara do carinho e dos toques tímidos... dos inícios de
massagem e da ansiedade para que continuassem.... das confissões e "reconfissões", os temores....
Relatara a troca de experiências explícitas e os altos e baixos da expectativa... o tesão e a calma.
Seu sono se escancarava há algum tempo nos bocejos, enquanto eu continuava aceso, desperto,
num misto de vontade física e mental...
***
Eu falava da dúvida, das reticências, de uma sensação intermitente de que deveria ter
feito mais, agido mais. Contava de todos os sinais, sinais de desejo que eu agora fantasiava terem
sido sinais claros, mas que eu não havia perseguido...
"Você a respeitou. Respeitou o que ela te disse."
Já não demonstrava sono. Seu corpo pesava sobre o meu, quadris alinhados, minha excitação
crescendo...
***
"Quando você encontrá-la novamente e abraça-la, esse abraço gostoso e intenso de vocês,
toque o pescoço dela com os lábios e respire".
Seus lábios tocaram suavemente meu pescoço e senti o ar sair lentamente de sua boca e arrepiar
minha espinha...
***
"Você contou para ela que sou uma moça recatada e tímida?" perguntou, cobrindo o
corpo e parte do rosto com o lençol.
"Não," respondi, "falei apenas a verdade".
Era tarde
71
por Uriama de Menezes
_______________________________________________________________________________________________________________________
Puxei as cobertas e expus seu corpo nu: os seios firmes, sempre novos na excitação que
me provocam... o pescoço alongado chamando meus lábios, meus dentes... a cintura fina, do
primeiro abraço, dos primeiros chamegos... as axilas, curvas e ângulos recém-descobertos, atual
alvo da minha atenção e dos meus beijos... as pernas longas, entreabertas, setas a direcionar meu
olhar e apontar para os lábios carnudos entre elas...
***
Meu corpo pesava sobre o dela. Ela nua, eu quase. Os movimentos lentos, compassados.
Nossas peles se tocavam, trocando calor. Mirei seus olhos. Vi seu amor, sua paixão, seu desejo.
Beijei seu pescoço, seus seios, sua boca. Minha língua traçou um caminho tortuoso por suas
axilas. Ela me apertou ainda mais contra seu corpo, meu pau querendo romper o pouco pano que
o separava de sua vulva já encharcada...
***
Afastei-me levemente. Ela lentamente afrouxou a pressão do elástico, deixando que
minha ereção se libertasse naturalmente da vestimenta que a cobria. A glande tocou seu ventre.
Fui subindo, enquanto ela terminava de me despir com os pés. Seu olhar de desejo, guloso, fez
com que eu acreditasse que seria devorado... sua boca, sua língua, seus dentes, engolindo meu
prazer...
***
Ela forçou-me para baixo, provocando o encontro. Meu pau roçava sua boceta,
explorando e banhando-se em seu líquido quente, ainda sem mergulhar... atiçando sua vontade,
massageando seus lábios, seu grelo... fazendo-a gemer...
***
Entrei vagarosamente, sentindo seu líquido espalhar-se e penetrar meus pelos. Entrei
fundo, roçando seu clitóris com minha pélvis enquanto minha língua provocava seus mamilos.
Entrei repetidamente, sorvendo seus sons e contraindo meus músculos para retardar a explosão
que se ensaiava em mim...
Era tarde
72
por Uriama de Menezes
_______________________________________________________________________________________________________________________
***
Por fim, ela se tocando com dedos frenéticos e meu pau penetrando mais rápido e forte e
duro e molhado... ela mordendo os lábios, os olhos revirando, o pescoço jogado para trás e o
começo dos espasmos... o grito único, alto, intenso... a respiração cortada, quebrada...
***
Perdi o controle, explodi. Queria lançar-me em jatos sobre ela... e me esparramar, quente
e viscoso, sobre seu corpo. Urro de prazer. Quando desfaleço, seus gemidos ainda não cessaram...
***
Largado, jogado em seus braços, relembro, num lampejo, a noite inteira. A intensidade, a
paixão, o amor, a dúvida, o medo... a dor. Incerto. Não sei o que virá a seguir. São quase cinco.
Ainda é cedo.
Par perfeito
75
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
“Amar é fácil, difícil é conviver”. Era sobre isso que Joana e Lúcia tinham conversado na
noite passada. As duas ali, deitadas na cama, deixaram o celular de lado quando Joana leu essa
frase postada em alguma rede social.
-
Você acha difícil conviver comigo, pequena? – Perguntou Joana
Lúcia riu sua risada sem graça, e alisando o corpo da companheira, olhando nos olhos
disse: - acho tão fácil quanto te amar, na verdade.
Era exatamente o que sentiam nesses sete anos juntas. Era muito fácil e bom estarem
juntas. Formavam o casal perfeito. Viviam a felicidade plena. Eram o modelo de amor romântico
para os familiares, os vizinhos, os amigos, os colegas de trabalho.
Para elas, era muito simples, muito leve, muito solta a relação que viviam. Era cheia de
amor, cuidado, cumplicidade, era mesmo cheia de liberdade.
Começava outra segunda-feira. Lúcia saia de fininho da cama, era sempre o mesmo ritual:
ia até a cozinha, tomava seu iogurte de amora, voltava para o banheiro, ligava o rádio e entrava
no chuveiro.
Tocava Wave no rádio, “é impossível ser feliz sozinho”. Lúcia amava a bossa nova, Joana
mal ouvia música.
Joana continuava na cama entre cochilos e despertares. Ela adorava ouvir todos os dias as
mesmas práticas da companheira enquanto se arrumava, até que Lúcia estivesse pronta para
sair e fosse à cama dar-lhe um beijo de despedida ainda com os cabelos molhados.
Par perfeito
76
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Lúcia sempre gostou de acordar cedo. Já levantava sorrindo e até cantando
frequentemente. Joana gostava desse momento preguiça na cama. Elas chegavam a rir disso,
sobre como eram opostas, se diziam ser o constante “-1”. Na prática, até pareciam não ter
afinidades. E foi quando leram um texto de um autor quase desconhecido que se encontraram,
ali, naquelas linhas: “Passei tanto tempo por aí, procurando minha perfeita alma gêmea, mas
nunca achei que estivesse no oposto o pedaço que faltava para o meu gosto. Passei tanto tempo
por aí, procurando meu rosto no espelho e nunca pensei que até no espelho minha destra é
canhota, meu coração é direito. Passei tanto tempo por aí, procurando uma cópia de mim e só
agora entendi que o que precisava não era outro eu imperfeito, mas um imperfeito diferente que
tivesse tudo o que me falta.” - Diego Guerra
Joana tinha alma de artista. Lúcia era uma executiva pragmática. Joana gostava de
baladas, Lúcia de fazer piquenique no parque. Joana gostava de escrever. Lúcia gostava de
cantar. Joana gostava de cerveja. Lúcia só tomava vinho. Joana sonhava em ir para Gibraltar.
Lúcia queria conhecer o Nepal. Joana curtia ficar só. Lúcia adorava a casa cheia. Lúcia fazia
planos. Joana era impulsiva. Lúcia era uma locomotiva. Joana era aviãozinho de papel. Lúcia era
Áries. Joana era libra. Lúcia era fogo, Joana era ar. E era justamente o que encantava as duas: o
complemento.
Eram antíteses, mas combinavam em uma coisa: o que pensavam do ciúme. Diziam que
era bobagem de gente insegura que convive com gente que não sabe dar segurança. Nenhuma
das duas acreditava nos mitos das relações monogâmicas, optaram sempre por uma relação
aberta. Diziam às vezes, em tom de deboche:
- héteros-monogâmicos complicam demais às coisas.
Par perfeito
77
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Cada uma tinha suas relações com outras pessoas. Gostavam de unir novos amores à
relação delas vez ou outra. Tinham também relações com pessoas que preferiam não se juntar.
Nada disso nunca foi problema. A relação entre elas era tão intensa e bonita que algumas
pessoas ficavam mesmo sem jeito de se envolver, com medo de estragar. Sempre rolava a
pergunta “e ciúmes? Vocês não sentem nunca?” e elas concordavam em dizer que ciúme era um
sentimento egocêntrico, resultado de apego e competição.
Lúcia chegou do trabalho cansada de carregar o mundo nas costas. Era ali, naquela casa,
que encontrava o seu nirvana. Os problemas se dissolviam todos, ainda que momentaneamente,
ao ver o sorriso de Joana.
Naquele dia o sorriso era especial, Joana parecia radiante, estava ali a sua sobremesa
favorita e ela dizia que tinha novidades. Fora convidada para expor em Londres, um projeto
especial do Tate Modern. Ganhara ainda um curso de férias na capital britânica. Já aproveitaria
para fazer um giro por suas galerias favoritas na Europa a cada fim de semana teria um destino
diferente: Barcelona, Berlim, Paris e Florença. O roteiro já estava pronto, nem parecia Joana com
tantos planos.
Lúcia se emocionou. Seus olhos encheram d’água com a conquista da companheira, sabia
o que aquilo significava para Joana. Lúcia não era muito de se emocionar, mas com tantos anos
de convívio era de se entender que uma já fosse parte da outra.
E então era isso, em três semanas Joana embarcaria para sua primeira exposição
internacional.
Par perfeito
78
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
No final, foi Lúcia quem acabou correndo com toda a burocracia e logística para que Joana
embarcasse na data certa. Lúcia tinha compromissos de trabalho, não podia acompanhar a
parceira, seu jeito de participar era cuidando dos preparativos. Sabia bem como Joana era
desleixada com esses detalhes. Cuidou de tudo: passagens, hotéis, ingressos, câmbio,
documentos, contratos, traduções, logística das peças, releases para divulgação... Mas não poder
estar junto, lá no dia da abertura da mostra, ainda doía um pouco.
Um dia antes da viagem, Lúcia organizou um encontro surpresa. Chamou os amigos mais
próximos, seus pais, seus irmãos, seus cunhados para uma festinha íntima. Joana, que era um
pouco avessa a festas, ficou feliz com a surpresa, mas não muito confortável. Talvez preferisse
ter ficado quietinha, conferido algumas coisas ou até pintado um pouco mais.
Ao chegar a Londres, tudo o que Joana pensava era na sua companheira a um Atlântico de
distância. Parecia que aqueles dias seriam bem mais longos e solitários do que esperava. Tratou
de deixar logo as malas no hotel e correu para o Tate Modern. Era cedo para fazer o check-in,
deixou as malas na recepção do hotel que ficava em uma dessas casas antigas de Londres. Saiu
apressada para certificar que suas obras estavam lá, inteiras. Foi caminhando pelas margens do
Tâmisa, passou pela London Eye, pelo Big Ben, pelo imponente Parlamento sem nem dar muita
bola, só pensava na exposição e em Lúcia.
Na porta do Tate Modern ligou para a companheira. Estava ansiosa. Seu coração
disparado, as mãos suadas, o medo de que algo não desse certo e a angústia de estar sozinha.
Conversou com Lúcia, sem confessar seu medo, disse apenas que estava feliz de estar lá.
Lembrou que em cinco dias seria seu aniversário, e embora não fosse muito de festas, sabia que
seria um pouco triste passar seu aniversário sem companhia e tão distante. Mas também foi só
Par perfeito
79
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
um pensamento, não falou nada sobre isso para a companheira. Disse apenas que era verdade,
que agora já estava lá e que tinha certeza que valeria a pena, que seria inesquecível e que já era
hora de entrar e se despediu com um breve “te amo e já sinto saudades”.
Entrou no museu e procurou por Will, o seu contato no local. O rapaz branco, sardento, de
cabelos escuros se aproximou e cumprimentou Joana à distância típica britânica, com um breve
aceno. Sem aperto de mão, muito menos um abraço, talvez um sorriso tímido.
Ela, ainda acelerada, perguntou se poderia ver suas obras e o espaço onde seriam
expostas. Will prontamente a acompanhou. No caminho ainda perguntou se ela já havia estado
ali no Tate Modern antes.
Mais tranquila depois de constatar que estava tudo bem orquestrado por Lúcia, pensou
que seria hora de comer. Pegou o folheto que falava dos artistas participavam da mostra e ficou
orgulhosa ao ver seu nome ali, numa mostra em um de seus museus favoritos. Um nome lhe
chamou a atenção: Gustavo Mosca, ele figurava entre os curadores, pensou que poderia ser um
brasileiro com esse nome. Ter um brasileiro por perto talvez diminuísse a solidão.
Caminhando de novo às margens do rio, se perguntou se devia comer purê de batatas
com salsicha ou peixe com batatas fritas, estava em Londres e era fato que comeria batatas.
Acabou ficando com a segunda opção. Depois que terminou de comer, lembrou que poderia ter
ido ao Covent Garden e comer algo no descolado mercado, mas não tinha jeito, planejamento
nunca fora seu forte. Resolveu passar pelo mercado mesmo assim. Andou pelos túneis, sob as
pontes e circulou um pouco. Observou os passantes e seus estilos diversos, meninos de saia e all
star, meninas de cabelos coloridos... Londres a acolhia como a sua casa.
Par perfeito
80
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Aproximava o cair da tarde e era hora de voltar ao hotel, se instalar e tomar um banho.
Mas Londres é cheio de surpresas...
Entrou no hotel e falou com o indiano que estava na recepção. Entregou os documentos e
estranhou as longas unhas do homem. Seu inglês tinha um sotaque quase caricato. Quando ele
disse o nome do quarto ela pareceu não entender, pediu que ele repetisse. Ele logo se justificou: Aqui não damos números, mas nomes aos apartamentos, “your room is Better Red than Dead, on
the 4th floor, madam”. Ainda não entendendo muito bem por que um quarto de hotel se chamaria
“melhor vermelho do que morto”, foi subindo as escadas carregando suas malas sozinha e
observando as placas nas portas de cada apartamento “green envy”, “solitaire”, parecia tudo
muito estranho mas o mais inusitado estava ao abrir a porta do seu apartamento, tudo era
vermelho: o chão, a parede, a janela, o teto, a cama, os quadros, até a lança que ficava pendurada
no teto sobre a cama. Se lembrou da obra de Cildo Meirelles em Inhotim, mas ali era
diferente. Não sabia bem porque, mas a sensação ali era aflitiva. Finalmente se deu conta, devia
ser a temperatura.
Era fim de verão em Londres e o aquecedor estava ligado. A temperatura dentro do
quarto superava tranquilamente os 40 graus. Tentou desligar, mas a temperatura seguia alta.
Ligou na recepção e pediu ajuda. O recepcionista informou que teria que chamar um socorro
para manutenção, disse que isso levaria algum tempo, ela insistiu em saber quantos minutos. Ele
respondeu que uns 40 talvez, mas confirmaria depois de falar com o profissional da manutenção.
Depois de cinco minutos o recepcionista retornou a ligação informando que a expectativa
era realmente de 40 minutos. Joana pensou que seria melhor tomar um banho enquanto isso.
Par perfeito
81
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
O banheiro parecia ter saído da cabine de um Boeing 737 de 1968, o chuveiro pingava
uma água parca e ela já começava a pensar para qual outro hotel poderia ir. Saiu do banho, se
vestiu, conectou o celular tentando buscar outro local para se hospedar. A cidade estava cheia, as
tarifas não davam para o seu bolso, mas passar 30 dias ali não era uma possibilidade. Pensou em
ficar aquela noite e resolver no dia seguinte.
Passaram os 40 minutos e nada do rapaz da manutenção chegar. Ligou novamente na
recepção e o indiano de sotaque engraçado disse que havia acontecido um imprevisto sério e
que o rapaz não viria, mas disse que a governanta iria até o quarto tentar resolver.
A moça bate na porta. Joana abre e se depara com uma senhora muito corcunda, com
cabelo desgranhado e roupa puída. Tinha um balde e uma vassoura na mão. Começou achar que
pudesse ser uma pegadinha...
Ela entrou com sua pouca simpatia inglesa, mexeu, olhou, tornou, agachou-se e disse que
não sabia como fazer para desligar o tal aquecedor. A sugestão dela foi que dormisse com as
janelas abertas, o frescor da noite faria a temperatura ficar mais amena.
Não teve outro jeito. Joana estava tão assustada que fechou a porta, colocou uma cadeira
sob a maçaneta, escancarou a janela e buscou alucinadamente alternativas de hospedagem em
Londres até cair no sono.
No dia seguinte foi acordada por alguém batendo na sua porta. Era o moço da
manutenção, um senhor gordo e careca trajando um macacão laranja. A essa altura já ria
mentalmente pensando que aquele macacão combinava com o vermelho do quarto. Finalmente o
aquecedor foi desligado! Aquele senhor com jeito de Mario Bros da terceira idade já era seu novo
herói.
Par perfeito
82
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Joana aproveitou que saiu mais cedo da cama e foi curtir o dia para um passeio pelo Hyde
Park, sabia que era um programa que Lúcia adoraria. Tomou o metrô, bastante lotado naquele
horário e foi para o parque com seu caderno e lápis, ia aproveitar para desenhar um pouco. Essa
era sua melhor forma de relaxar, aquela seria uma noite importante, e ficar longe daquele hotel
esquisito era uma boa ideia.
Acabou se distraindo tanto, que se esqueceu de ver uma alternativa de hospedagem.
Sabia que se Lúcia estivesse ali teria cuidado disso. Agora, só tinha tempo para pegar o metrô de
volta e se arrumar para o coquetel de lançamento da mostra.
Ela vestiu seu vestido mais lindo, um presente de Lúcia. Tinha o fundo branco com
estampas em vermelho, caprichou na maquiagem, colou seu salto agulha e pediu um black cab
para o Tate Modern.
Chegou ao local quando tinham ainda poucas pessoas. Alguns fotógrafos (eram só dois
para ser exata) e seu quase-amigo Will. Ele até pareceu mais simpático desta vez, perguntou se
ela conhecia os outros artistas e foi logo fazendo as apresentações. Ela ficou feliz com os elogios
que recebeu dos colegas pelas suas obras. Desligada, esqueceu de retribuir. Na verdade, ainda
nem tinha circulado pela exposição. Sentiu-se um pouco culpada pelo “fora”, mas decidiu voltar a
falar com eles depois que tivesse visto tudo com atenção.
Sentindo-se deslocada, ficou circulando ali pela sala de exposição, um pouco pela timidez,
um pouco pela culpa de não ter dito nada aos colegas, e um pouco pela solidão. Todos pareciam
rodeados de amigos, familiares, seguidores e ela estava ali sozinha, no momento mais
importante da sua carreira.
Par perfeito
83
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Sem saber muito bem como agir, ficou contemplando as obras, ia no detalhe, imaginava a
inspiração, o sentimento, a causa por trás de cada uma daquelas imagens que para tanta gente
parecia sem sentido, mas para a sensibilidade de Joana, tudo aquilo era muito provocador. Era
assim que via a função das artes, uma forma de tirar sua mente do conforto, trazer inquietação e
despertar sentidos.
Seu jeito sério e sisudo de olhar as obras expunha o desconforto, não era pelas telas, sabia
bem. Era uma tensão que não combinava com a ocasião. Ela se virou para o lado e notou algo que
lhe causou arrepios. Era uma sensação diferente do que todas as artes lhe despertaram. Estava
ali, bem diante do seu quadro mais antigo na mostra “Não me escreva do além, querida”, título
bem apropriado para arte moderna. Não era bem uma obra de arte, ou talvez fosse, mas em
frente à sua peça estava o sorriso mais bonito que já tinha visto, sorrindo ali para ela (não para
Joana, para a obra). Joana ficou tão encantada pelo sorriso, que não titubeou em ir lá puxar
assunto. Por um momento se esqueceu de tudo, a timidez, a solidão, seu jeito desajeitado, se
esqueceu até de onde estava. Disse em bom português: - O que te fez sentir, graça ou felicidade?
Sem tirar os olhos do quadro, ele disse: - Graça. Achei engraçado. É uma dor quase infantil, de tão
dramática, expressão de quem já foi muito apegado ou acabou de descobrir que não é o centro
do mundo.
Foi a vez dela sorrir. Quase envergonhada, sentiu-se nua na frente daquele desconhecido.
Lembrou da motivação daquela obra. Era o retrato de todo o sangramento de uma dor que um
dia pareceu que iria matá-la. Nunca mais sentiu nada parecido, mas a marca daquela dor estava
impressa naquele quadro, um dos seus primeiros.
Ele olhou nos olhos dela e disse: - Prazer Joana, sou o Gustavo, um dos curadores da
mostra.
Par perfeito
84
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Ela ainda sorrindo gaguejou: - G-Gu-Gustavo Mosca?
-Sim, bom, deve saber que sou um dos curadores da mostra, certo?
- Ah! Claro, sei sim. Só não sabia que era brasileiro.
- Bem, sim, sou carioca, mas estou em Londres há algumas temporadas já. Tem muito
tempo não vou ao Brasil, montei minha vida aqui e me sinto tão acolhido por Londres, que nem
as praias cariocas me fazem querer voltar.
Ali, engataram em uma conversa amena que poderia durar muito tempo, mas no primeiro
hiato de silêncio Joana soltou: - Quero te levar daqui.
Gustavo, meio desconcertado, respondeu:
- Quer ir para onde?
- Um bar, uma balada, um karaokê, não sei, qualquer lugar...
Quando ouviu karaokê, Gustavo pensou em gargalhar, mas era a primeira vez que via a
moça, conseguiu se controlar. Sugeriu um pub ali próximo. Ela topou na hora.
Lá e tocava uma banda cover do Queen. Os dois pareciam perdidos. Pediram um pint,
encostaram no bar e contaram histórias sobre viagens e o mundo cruel e encantador das artes.
Par perfeito
85
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Não demorou muito para que Gustavo se aproximasse da moça e lhe roubasse um beijo.
Os joelhos de Joana tremeram naquele momento. Ela abraçou o moço e logo depois do segundo
beijo ela sugeriu mais uma vez que eles fossem para outro lugar.
Gustavo riu e ficou na dúvida se tinha sugerido o lugar errado ou se era assim tão
irresistível. Ele perguntou onde Joana estava hospedada já indo em direção à porta, ela disse que
estava bem próxima à Picadilly Circus. Ao sentir a brisa da noite de verão londrina ela se
lembrou do calor do seu quarto de hotel e de como ali era esquisito, achou melhor sugerir ir para
a casa de Gustavo.
Ele morava em um pequeno e ajeitado loft. Era um lar de homem, não tinha muitas coisas,
nem muitos detalhes. Alguns quadros e uma parede de vidro ao fundo que dava para um jardim
de inverno. Tinha uma mesa pequena com duas cadeiras e um castiçal de três velas. A cama com
um daqueles duvets de penas de ganso, incrivelmente macio e com uma capa preta. Ao lado, uma
luminária cromada e moderna e uma escultura de aço abstrata um tanto desproporcional para o
ambiente.
Gustavo tirou a roupa de Joana. Começou pelo sapato de salto agulha e logo a colocou
sobre a cama. A pele pálida contrastava com o duvet preto. Entre toques, sussurros e gemidos, a
volúpia contagiou a noite que nem Gustavo, nem Joana esqueceriam.
As marcas de dentes e unhas, o cheiro do gozo, o gosto do suor, a pele anestesiada, o corpo ainda
trêmulo, fizeram com que Joana se esquecesse, mais uma vez, de onde estava. Despertaram nela
um misto de descoberta e estranhamento, por uma sensação que parecia inédita.
Ela nunca tinha se sentido plena daquela maneira, não com um homem. Aquela noite teve 64
horas, mas para eles era como se o tempo estivesse congelado ali dentro daquele loft. Minutos,
horas ou dias eram a mesma coisa.
Par perfeito
86
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Já era noite de sexta. Joana estava comovida por se sentir tão desejada e tão desejosa. Era
como se ela não fosse tocada por Gustavo, mas envolvida por inteira, Joana se inibia com seu
olhar de contemplação para ela. Ela já tinha perdido a noção do tempo e o voo para Barcelona.
- Meu voo para Barcelona! Acho que perdi meu voo para Barcelona. – dizia assustada já
pulando da cama. – Que dia é hoje, não é sexta?
- Sim, hoje é sexta.
- Eu tinha um voo para Barcelona, há quantos dias estamos aqui? Que dia do mês é hoje?
- Vinte e quatro.
- É meu aniversário. Meu Deus, a Lúcia, ela vai querer me matar!
- Quem é Lúcia?
- Minha companheira, bem, deixa, depois eu te explico essa história. Tenho que voltar
para o hotel.
Joana vestiu-se correndo, até se esqueceu que um banho ali seria melhor do que naquele
banheiro plástico do hotel. Seu celular descarregado há dias, nenhuma notícia para Lúcia, nem
sabia o que iria dizer. Sabia que era muito cruel não ter dado notícias todos esses dias, que a sua
parceira estaria aflita, não haveria desculpa.
Par perfeito
87
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Chegou ao hotel, colocou o celular no carregador, tomou um banho e alguma coragem
para ligar para Lúcia. Não sabia como iria explicar o sumiço, o fato de não estar em Barcelona,
Lúcia não entenderia.
Lúcia atendeu o telefone em tom seco. Conhecia Joana e nunca soube bem expressar seus
sentimentos. Joana foi logo se desculpando e justificando o injustificável. Não tinha coragem de
dizer que não viu passar três dias, que estava ardendo luxúria com seu novo amor.
Contou histórias desconexas em meio a pedidos de perdão. Disse que tinha perdido o
carregador do celular, que não encontrara outro para comprar. Que não conseguia encontrar
internet, que os dias haviam sido atribulados.
Ainda assim, Lúcia quis saber se Joana havia recebido seu presente de aniversário e como
tinha sido a noite de estreia, a repercussão na imprensa local. Joana não sabia bem o que
responder, inventava histórias vagas, a ponto de Lúcia achar que a mostra havia sido um
fracasso e ficar muito brava pelo presente não ter chegado a tempo.
A verdade é que Joana subiu tão apressada que o recepcionista indiano nem teve tempo
de entregar o tal presente. Eram pequenos potinhos de brigadeiro, doce de leite, beijinho,
cajuzinho caseiros para adoçar os dias de Joana.
Naquele fim de semana, em que Joana não foi a Barcelona, acabou se mudando para a
casa de Gustavo. Contou a ele sobre Lúcia, sobre a relação livre que as duas tinham, sobre o amor
imenso que nutriam uma pela outra e sobre a linda rotina que, em sete anos de convívio, se
tornara isso: rotina.
Par perfeito
88
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Gustavo achou interessante, quis saber muito mais sobre como se davam essas relações
entre elas e outros amores. Fez as perguntas de sempre sobre ciúmes, segurança, medos,
vontades, conflitos, cumplicidade. Joana explicava tudo com certa euforia e confusão, dentro dela
sentia aquilo como uma história presente, mas um pouco distante dela.
No fim de semana seguinte Joana foi para Berlim. Aproveitou para visitar alguns amigos
na cidade. Falava todos os dias com Lúcia desde então, contava por cima sobre como tinha sido
seu dia, dizia estar cansada e se despedia com uma distância que aumentava um pouco mais a
cada dia. Em Berlim, seus amigos (fãs do casal) faziam muitas perguntas sobre Lúcia. Ela
respondia sem muito entusiasmo, dizia que a companheira estava trabalhando muito como
sempre, que estar sozinha essa temporada em Londres fortalecia a relação livre das duas. Na
verdade, Joana só pensava em Gustavo, era sobre ele que ela queria falar, sobre as experiências
intensas que eles estavam vivendo juntos, mas não tinha coragem.
Voltou a Londres e os dias com seu novo amor eram pura felicidade. Museus, galerias,
baladas, bares, tudo era muito prazeroso com ele. No fim de semana seguinte, Joana pediu que
Gustavo a acompanhasse a Paris.
As semanas correram depressa, Joana mal conseguiu aproveitar seu curso em Londres.
Ela só pensava em estar com Gustavo e em tudo o que poderiam construir juntos. Eram
parecidos nos gostos, nos hábitos, no desprendimento.
Par perfeito
89
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
No fim daquela temporada intensa em Londres, Joana percebeu que teria que tomar
decisões. Por ser livre, achou que nunca mais se veria assim, encurralada, tendo que fazer
escolhas excludentes. A dor de deixar Gustavo em Londres parecia insuportável. Arrumar as
malas parecia o maior erro, era uma violência contra seus instintos e vontades. Não poder tocar
e ver Lúcia também não parecia uma possibilidade.
Gustavo pediu que Joana ficasse. Ela disse que precisava ver sua companheira. Gustavo
pediu então que Joana voltasse.
Ela fechou as malas e Gustavo a acompanhou de metrô até Heathrow. Eles mal
conversaram no trajeto. Joana deixava escorrer algumas lágrimas enquanto tentava entender
tudo o que sentia. A despedida no aeroporto foi silenciosa, mas dizia muita coisa sobre a vontade
dos dois de estarem juntos.
Ao chegar a São Paulo, Joana saiu apressada do desembarque, viu logo no portão Lúcia
com um imenso buquê de flores do campo.
No caminho para casa Joana só falava sobre Londres, as novidades da cidade e os dias
atribulados da viagem.
Foi quando Lúcia perguntou por que a companheira não foi para Barcelona no dia do seu
aniversário que Joana mudou sua expressão. Ela se lembrou de Gustavo, e respondeu: - Eu te
conto tudo quando chegar em casa, Pequena.
Par perfeito
90
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
A partir dali ficou um silêncio incômodo no carro. No rádio, Caetano cantava Desde que o
samba é samba. Doía nas duas, “solidão apavora”. Em casa, Joana preferiu ir direto para o
chuveiro, chorou enquanto a água caia sobre o seu corpo.
Saiu do chuveiro enrolou-se na toalha e foi deitar no colo da companheira. Começou a
contar sobre Gustavo, sobre como tinha se apaixonado e como os dias tinham sido intensos ao
lado dele. Lúcia ouvia atentamente em silêncio, tentava entender o que tudo aquilo significaria.
Não sabia por que, mas doía.
Era novo para Lúcia experimentar essa dor, tentava entender se seria ciúme ou se se
sentia traída por Joana não ter contado antes. Mas contar tudo nem fazia parte do acordo delas.
Os dias passaram e as duas iam tentando digerir aquela situação, Lúcia afirmava que o mais
importante era que Joana estivesse feliz. Se a companheira preferisse voltar para Londres, ela
ficaria bem.
Durante duas semanas conversaram pouco, sentiram-se estranhas depois de tanto tempo
de cumplicidade e amor.
Joana disse, certa noite no escuro do quarto, que achava que a relação das duas já não
funcionava mais. Lúcia permaneceu em silêncio. Joana implorava por uma reação da
companheira, dizia que não queria perdê-la. Lúcia não sabia o que dizer.
Par perfeito
91
por Juliana Aranega
_______________________________________________________________________________________________________________________
Ao final das duas semanas, Joana arrumou as malas e contou para Lúcia que já tinha
comprado suas passagens para passar alguns dias em Londres com Gustavo. Entrou no taxi,
aquela parecia ser a decisão mais difícil de sua vida, partiu para Londres seguindo o seu coração.
Lúcia ficou no sofá, naquela casa que agora seria só dela. No fundo sabia que aqueles alguns dias
em Londres eram uma decisão maior. Lúcia sentiu a dor do abandono. Passou a ter insônias e a
não cantar mais pelas manhãs. Cantava às vezes, enquanto chorava no chuveiro. Trabalhava
mais agora, sentia-se careta, desinteressante e condenada a uma outra liberdade que aprenderia
um dia a aproveitar.
O amor pode ser livre
93
por Rita Rodrigues
_______________________________________________________________________________________________________________________
Como acreditar que o amor possui amarras se ele é um sentimento sem limites? A
liberdade do amor consiste na extensão infinita do sentimento. Sentimento este que, de forma
livre, pode até ser platônico, pois não há necessidade de pedir autorização ao ser amado para
dedicar-lhe tal afeto. Esta é apenas uma possível interpretação feita por quem vos escreve neste
momento.
Não há como classificar os infinitos casos de amor em padrões de comportamento. Amor
não tem padrão. A liberdade de criar, de se inventar, reinventar, justificar, enfim, de se viver o
amor, o torna livre também em suas formas.
Como falar de amor livre sem questionar o conceito de liberdade? Assim como felicidade,
a interpretação da liberdade pode ser diferente para cada indivíduo de acordo com suas
expectativas e experiências.
Alguém pode considerar que o amor materno, por ser tão intenso e incondicional, seria o
conceito mais puro de amor livre. Porém, o amor dos genitores em nome de proteção pode
cercear a liberdade do filho amado, delimitando uma série de situações e experiências para
evitar os riscos inerentes à vida humana.
Se o amor está associado ao conceito de liberdade, como pode alguém utilizá-lo como
justificativa para crimes passionais, como o trágico caso de Euclides da Cunha e Dilermando de
Assis, que duelaram pelo amor de Ana Emilia, resultando na morte do escritor?
O amor pode ser livre
94
por Rita Rodrigues
_______________________________________________________________________________________________________________________
Tenho convicção de que o amor é um sentimento livre, portanto, não se pode aceitar que
o amante impeça que o ser amado tenha o direito de partir quando a relação não mais o satisfaz.
Lembro-me que o cantor Lindomar Castilho afirmou que “Eu a amava com certeza total”, quando
impediu que sua amada, a cantora Eliana Grammont, fosse livre para seguir uma vida separada
dele, ceifando-lhe a vida.
E assim sucessivamente ao longo da história temos casos de crimes passionais que
ocorreram em diversas circunstâncias como, por exemplo, Pimenta Neves ou Lindemberg Alves
que interromperam as vidas de suas amadas, Sandra Gomid e Eloá, por “amarem demais”. Onde
está o conceito de liberdade utilizado na célebre frase de Chico Xavier “O amor não prende,
liberta!”?
Assim como qualquer sentimento, o amor também é vivido, imaginado e experimentado
de acordo com a experiência de cada indivíduo. Pode ser então, que este sentimento nomeado
pelo assassino como amor, seja apenas uma reação à rejeição, uma necessidade de manter a
honra ou ainda uma incapacidade de entender que o ser amado não é sua propriedade.
Se por um lado alguns não aceitam a liberdade do ser amado, por outro alguns adotam o
“relacionamento aberto” como forma de expressar o amor livre. Para estes, dividir a atenção do
ser amado é um prova de amor, pois o conceito de liberdade se resume em permitir que o amado
tenha outros parceiros. Este conceito de amor livre, embora chamado de “moderninho” já era
cantado por Raul Seixas há mais de 40 anos, “O amor só dura em liberdade, o ciúme é só
vaidade”. Seria este tipo de relacionamento uma forma de mascarar especulações sobre traições
inevitáveis, como no ocorrido com casal formado pelo assediado cantor Zezé de Camargo e sua
esposa Zilu?
O amor pode ser livre
95
por Rita Rodrigues
_______________________________________________________________________________________________________________________
Mas o amor livre pode não estar associado apenas a relacionamento de casais ou
familiares.
Talvez um homem-bomba tenha sua liberdade concedida no momento de seu ato suicida,
uma vez que em 90% dos casos eles tiveram suas vidas limitadas pelos treinamentos islâmicos
que prometem a recompensa de seus sacrifícios, por amor a Alá, em forma de prazeres celestiais.
Mais uma vez não há padrões, cada credo possui seus rituais para que seus fieis demonstrem seu
amor. Em meio a tantas limitações, pode ser que um evangélico, de tanto amar a Deus, sinta-se
livre, condenando o mundo ao seu redor e delimitando o livre arbítrio por meio da fronteira do
pecado.
É provável que a freira descreva seu amor à Cristo como um sentimento livre, embora o
principal requisito para se entregar a ele seja renunciar à vida comum em sociedade e se
recolher em um convento.
O paradoxo dos conceitos de amor e liberdade nos renderia páginas e mais páginas de
análises, sobre cada uma de suas formas ou interpretações. Talvez algumas das situações de
amor, discutidas acima, sejam apenas maneiras de encobrir os reais sentimentos de obsessão,
dependência, possessão e outros sentimentos ou demências.
Em minha, talvez egoísta, visão de amor, a única forma verdadeiramente livre é o amor
próprio. O amor que se tem por si mesmo, impede que te prendam, que te limitem, que te
impossibilitem de desenvolver qualquer outro tipo de amor, relação ou vivência necessários
para sua felicidade.
O amor pode ser livre
96
por Rita Rodrigues
_______________________________________________________________________________________________________________________
O amor que sinto por mim, não aceita que a necessidade de controlar a vida, o corpo e a
alma de alguém seja amor.
Não acredito que para provar o meu amor por um homem, pela minha família, por um
amigo ou por uma religião, seja necessário que eu divida minha conta corrente, meus segredos
mais íntimos e até mesmo meus pensamentos mais profundos.
Enfim, o amor pode ser livre se você se ama o suficiente para poder escolher como
experimentar e conviver com as diversas formas de amor.
Amores Livres
_______________________________________________________________________________________________________________________
Agradecimento aos que participaram
Roniel Felipe - Eu, você e seu Rossi, o porteiro
Veritas Julia - Apenas um dia
Diogo Batalha - Quadrilha
Patty Ferrini - Sobre prazeres de não ser
Fabiane Lima - Curitiba, 9 de agosto de 2012
Bruna Ramos - Lembranças de um deleite louco
Diogo Batalha - O sotaque
Priscila Sequeira - Amar é entender
Jussara Oliveira - Três Medidas
Rita Rodrigues - Uma vida de amores livres
Diogo Batalha - O Garçom
Tatit Brandão - As escolhas - e o amor como cúmplice, não como vítima
Bárbara Falcão - Amor inverso
Uriama de Menezes - Era Tarde
Juliana Aranega - Par Perfeito
Rita Rodrigues - Amor pode ser livre
Jeff Vasques e Patty Ferrini - Poemas
Predo Lucena - Ilustração da capa
Thais Hércules - Ilustrações
Download

Amores Livres - Histórias de pessoas que amam demais