Roque Aloisio Weschenfelder
RESTOS
MORT@IS
Contos de Tudo
sobreTudo@normais
1ª Edição
Santa Rosa– RS
2012
Restos Mort@is
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
(CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Weschenfelder, Roque Aloisio
Restos mort@is : contos de tudo sobre
tudo@normais / Roque Aloisio Weschenfelder. -1. ed. -- São Paulo : PerSe, 2012.
12-02088
CDD-869.93
Índices para catálogo sistemático:
1. Contos : Literatura brasileira 869.93
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Restos Mort@is
RESTOS MORTAIS
Telefone? Ah! Sim, claro, são os mesmos, de
novo. Vou desligar ou atender? Sei lá!
Desligo o fone. É certo que, se insistirem,
preciso atender. Nunca se sabe e uma hora vai ser
necessário saber.
Eu preferia não me encontrar nesta. Se
pudesse sair, iria sacudir a poeira e saltar longe.
Mas como aconteceu, não é possível remediar.
Nunca mais. Um dia, durante a sessão no Centro
Espírita, ouvi dizer numa palestra: “o trigo, soberbo,
ciente da sua importância, quando o vento vinha
acariciá-lo, nem se importava, certo de que todos
deveriam reverenciá-lo, mas, na ceifa, foi lhe dado
outro destino. Como esteve sempre orgulhoso não
seria farinha e nem iria parar na barriga de ninguém.
Acabou indo para uma floricultura e virou um arranjo
floral a que deram o nome de “Ikebana”, porém, o
mesmo vento que outrora o acariciava, hoje traz
partículas de sujeira e seus restos mortais acabam
no lixo”.
Merda! O que tem a ver o que um espírito fala
sobre vaidade? Agora que sou deputado, quero
usufruir o gozo que os quase cento e cinquenta mil
votos me delegaram. Eu não vou parar na barriga
de ninguém! Mas não posso mais largar a droga
deste celular. Ninguém pode saber do que me
acontece, nem mesmo a Luiza. Ela cuida muito bem
da agenda, digita os rascunhos. Ah! Se não fosse
casada, com certeza iria pra cama com ela! Que é
isso? Estou ficando doido. Nunca fui de ter ideias
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Restos Mort@is
assim. A Lisa não merece isso. Nos vinte e dois
anos de casados jamais tivemos encrencas desse
tipo. Também, o que é que tem? Ela insiste em
continuar morando em Curitiba, diz que detesta
Brasília.
Fico sozinho, enchendo bucho de
prostituta, gastando com preservativos duplos de
medo das venéreas, da AIDS. A Luiza seria outro
departamento. Quieto, deputado, silêncio, mantenha
segredo de seus sentimentos! Marido de mulher
casada representa um perigo maior que a polícia.
Ligo para Luiza e digo que vou para a sessão.
Ela responde que está tudo tranquilo, só que desta
vez apareceram cinco mil a mais na conta. “Deve
perguntar ao banco?” “Não, deve, não. Deixe quieto,
eu mesmo vou descobrir!” “Que cuidado, doutor, que
nada!” Não gosto que ela pense que tenho medo de
alguma coisa, que corro riscos. Deste assunto cuido,
eu mesmo. Agradeço e desligo.
Primeiro entraram mil reais a cada semana na
conta. Perguntei ao gerente do banco que disse para
não me preocupar, que isso é normal em Brasília.
Não entendi, mas deixei quieto. Um mês passou e
começaram a entrar cinco mil. Fiquei preocupado, o
gerente riu da minha ingenuidade. “Calma, deputado
novo leva um tempo até se acostumar. Logo
descobre como é e vai querer se reeleger”. Fiquei
puto da cara com ele, xinguei, mas só aqui dentro de
mim, o filho da vaca. Depois me arrependi, filho da
vaca é terneiro, animal direito que tem mais proteção
pública que filho da puta de favela. Este pode se
virar com o tráfico de droga e arma, desviar das
balas. Negócio louco esse de falar em balas
perdidas, quem dispara não achou a bala na rua,
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Restos Mort@is
comprou-a de contrabandista do Paraguai. Terneiro
é rastreado, vacinado, tratado com humanidade até
mesmo na hora do abate. Então não é praga xingar
alguém pela mãe dele. Não mexi em qualquer
tostão que entrou na conta até agora. Já passam de
cinquenta mil os “enganos” de alguém. O raio parta
aqueles cristãos desbatizados pelo dinheiro em
excesso! Semana passada um desses santos de
pau oco me ligou e disse que era para ficar quieto
sobre o dinheiro na conta, nem era para perguntar
nada. Desligou antes que eu conseguisse
responder. O identificador de chamada levou um
drible a la Ronaldinho Gaúcho dos bons tempos.
Pensei em trocar de número, acho que não devo,
pode ser perigoso. Sabe lá que tipo de diabo me
escolheu pra levar pro inferno! Eu quis ir à missa
domingo passado e não fui porque penso que já
estou na lista para ser excomungado. Também, o
que adianta? Não sou cristão do tipo que o papa
prega que se deva ser, parece que ele vem direto da
idade média! Não é de se estranhar, ele é alemão, o
povo que não quebra regra nunca. Não é à toa que
se preocupa com a Igreja no Brasil, que busca seu
jeito próprio de levar os fiéis pro céu. Não deve ser
fácil adaptar perdão para todos os pecados
brasileiros, com tanta lei que tem por aqui para não
ser cumprida. Depois que me elegi vi que infrator é
aquele que cumpre tudo que é lei. Aliás, com tanto
código diferente que existe, é fácil ficar nos vãos do
labirinto e ser alheio a qualquer um deles. A lei que
melhor se cumpre é aquela que protege os direitos
dos infratores. De vez em quando uma onda se
desprende do mar de lama e pega, prende, execra e
humilha alguns políticos e corruptores. Isso ajuda e
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tranquiliza a todos os outros. Ih! Até os juízes
participam e aproveitam as deixas. O que se quer
também? Tanto imposto arrecadado só para guardar
nos cofres? É difícil demais devolvê-lo com
prestação de serviços ao cidadão, por isso um tanto
precisa voltar para o povo, mas pela via mais fácil
dos superfaturamentos.
Não sei o que me acontece. Fiz a campanha
toda pregando moral, ética e combate a todos os
males que assolam o país. Agora estou aqui,
querendo entender tudo que acontece aos outros e
até pra mim, justificar as falcatruas. Estou com
receio de conversar com os colegas sobre isso, sei
lá com quem daria pra contar! Todo mundo defende
todo mundo e não defende ninguém. Nas sessões
levam a maior parte do tempo rasgando saias, de
vez em quando um louco acusa outro e até o
ofende. Logo entra a comissão de ética. “Eita”
comissão séria essa! Isso é jogar para a mídia e
como se joga bem! Comecei até a entender por que
se gasta tão pouco com a educação. Ela precisa
ficar do jeito como a tevê gosta. Nada de forçar o
povo a ler! Quando essa gente teria tempo para
assistir novela e “big brother”? Se lessem, sequer
ligariam para decidir quem sai e quem fica! Agora
começo a ver mesmo como tudo funciona. O
negócio é conseguir levar alguma verbinha para
meus redutos e garantir a reeleição, tudo mais é só
incômodo. Já vi que dinheiro pra mim não faltará, se
ficar bonzinho. Ou haverá uma armadilha para me
pegar? Sei eu! Se, ao menos, a Luiza não fosse tão
bonita ou não estivesse casada com aquele
delegado de polícia. Até passaria o dinheiro para
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Restos Mort@is
uma conta dela. Tomara que nunca alguém fuce no
meu sigilo bancário. Outra banalidade essa desse
negócio de sigilo!
Finalmente sento para almoçar. A comida não
apetece, nem um pouco.
Não quero mais pensar nessa droga toda.
Um colega de bancada senta do meu lado e
pergunta por que não fui à reunião da Comissão.
Digo que estava revendo os termos do meu primeiro
projeto. Ele conta que deu um bate boca entre dois
colegas e nada foi votado. Ficou tudo para a próxima
semana. “É bom não faltar duas vezes seguidas”,
ele o diz e olha de esguelha para mim e então
continua: “esta tarde tem votação em plenário. A
mais importante vai ser a nova Lei da Biotecnologia,
aquela que permite pesquisar e desenvolver todo
tipo de transgênico de grãos. Isso vai acabar de vez
com a polêmica de liberar a venda das safras de
qualquer alimento produzido no território brasileiro”.
Respondo que irei, mas que não poderei votar a
favor desse negócio. Ele não retruca, simplesmente
continua a comer em silêncio, enquanto não consigo
achar gosto em nada do que está sendo servido.
Peço licença e me retiro, quero descansar um pouco
antes da sessão.
Entro no quarto de dormir e levo um susto.
Luiza está lá dentro, sentada numa cadeira, vestindo
apenas um chambre. “O que é isso, mulher?” Ela
apenas ri e abre o chambre deixando à mostra um
busto belo de seios firmes e empinados. “Estou com
falta de homem”. Não consigo acreditar no que vejo
e ouço. “Como assim? E o delegado?” Ela ri mais
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Restos Mort@is
ainda. “Viajando, há quase duas semanas, fazendo
inquéritos naquele escândalo das ambulâncias!
Você acha que ele não me trai nesse tempo todo? O
que me custa traí-lo também? O senhor também não
trouxe a esposa!” Ela vem em minha direção e
arranca-me a roupa sem cerimônia, puxa-me contra
si e em instantes estamos na cama. Ainda nos
abraços e beijos, toca meu celular. Não atendo.
Justo, nesta hora, tinham de ligar de novo.
Meia hora mais tarde Luiza se retira, não
antes de me levar para o banheiro onde a como de
novo. É hora de me aprontar para a sessão das
votações em plenário. Verifico no celular e vejo que
o identificador de chamadas não funcionou. Algo me
diz que estou numa enrascada, e não deve ser das
pequenas. Merda de vida!
Estou pronto para ir e ainda penso em Luíza.
Que corpo gostoso ela tem! Com uma mulher
dessas como o delegado pode querer fazer
inquéritos e viajar? Ou será que o filho da puta
encontre alguma tão boa, ou melhor, por aí fora?
Certamente ele é daqueles que ainda coloca o dever
acima de tudo!
O telefone me tira dos devaneios. Uma voz
misteriosa de homem fala mansa e pausadamente:
“o senhor sabe, deve votar sim, daqui a pouco.
Depositamos quinhentos mil, dinheiro já na conta!”
Sem dar tempo para responder ele desliga.
Quinhentos mil na conta? Esse negócio deve
render muito, para serem tão generosos. Será que
fazem isso com outros deputados também? Não
restam dúvidas. O que farei eu? A votação não é
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Restos Mort@is
secreta. Se votar sim os ambientalistas vão me
execrar. Se, não, o que esses chantagistas farão? E
se o delegado fizer inquérito sobre isso? Um
dinheiro desses dá para fazer uma bela campanha
na próxima eleição, também dá para ir durante uma
boa temporada ao exterior, quem sabe às Bahamas!
Mas só se Luiza vier junto, com Lisa nem pensar.
Vaidade de trigo, restos mortais vão pro lixo. Não
quero virar pão e parar na barriga dos outros. Posso
é parar na cadeia, como alguns, só alguns, que
entraram de sola na corrupção. Mas os colegas
todos sabem como a coisa funciona, duvido que
alguém esteja inocente, ou será que escolhem
apenas poucos para premiar com as propinas?
O plenário vai se enchendo aos poucos. O
quorum se estabelece e os trabalhos iniciam. Vários
projetos são votados rapidamente. Agora inicia a
leitura do parecer do relator sobre o projeto que me
deixou em apuros nas últimas horas. Não presto
atenção à leitura, penso nas consequências de
minha decisão. É tentação demais para um dia
somente. O que dirá mamãe se um dia souber que
me prostituí para o dinheiro e para a beleza de uma
mulher de Brasília, traindo sua nora pela qual
sempre alimentou um grande afeto, tão diferente de
tantas outras sogras por esse mundo de meu Deus!
Até duvido que foi Deus que inventou essa história
de ter de ser fiel até a morte à mulher com quem se
casa. Parece mais ser uma invenção das religiões
para organizar melhor a sociedade, coisas da ética,
que tem de existir, pelo menos nas aparências. É
em nome dela que se votam leis e mais leis e depois
não se cumprem mesmo. Qual é a diferença de um
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Restos Mort@is
céu hipotético e um desfrute das Bahamas em
companhia de Luiza. Adão também comeu a maçã
que Eva lhe deu, o trigo virou planta ornamental e
seus restos mortais pararam no lixo. Será que Adão
foi pro inferno? A Bíblia não é capaz de confirmá-lo e
nem de negá-lo. Então, o que se faz na dúvida?
Paciência, o relator ainda lê.
O presidente anuncia a votação. Os debates
foram acalorados, nas galerias os ambientalistas.
Até os integrantes do Greenpeace provocaram
barulho até que o presidente mandou os seguranças
esvaziá-las. A confusão foi grande e várias pessoas
acabaram presas. Filhos de todas as meretrizes!
Santos de todo tipo de pau! Diabos levem pro
inferno todos os corruptos e morram em Bagdá Bush
e todos os seus soldados. Agora não dá mais para
pensar. Luiza ofereceu seu belo corpo com aqueles
seios divinos, aquele gozo infernal e apaixonante,
empresas de qualquer tipo de interesse depositam
dinheiro que compra amor e prazer em qualquer
quantidade e nos mais belos lugares do mundo...
É minha vez.
Aperto a tecla.
Outros quinhentos deputados o fazem.
Mais de trezentos votos a favor, uma gritaria
infernal nas ruas. “Filhos da puta” é lenitivo, diabos
são anjos, inferno é lugar com ar condicionado.
Passamos uma noite inteira, acordados. Luiza
sempre quer que a coma de novo. Mal terminara a
sessão recebi uma ligação, não identificável:
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Restos Mort@is
“Obrigado, deputado, parabéns por votar certo! O
futuro há de lhe agradecer!”
Ai, minha consciência! Sinto-me como de
neurônios queimados pelo aquecimento global,
como alguém com a alma vendida pro chifrudo dos
infernos. Luiza vai trabalhar na secretaria, não
entendo como o fará sem fechar um olho a noite
toda. Estou exausto. Preciso dormir.
Volto à cama e caio no sono. Somente
pesadelos. Sou preso, mantido isolado, foi tudo
descoberto, o delegado exige o divórcio de Luiza,
Lisa e os filhos me desejam uma queima eterna no
sétimo dos infernos, aquele composto de petróleo
incandescente e lavas em eterna formação. Quando
moço lia a revista Sétimo Céu, agora penarei no
mesmo número do inferno. Luiza me incrimina e diz
que sou o culpado de tudo, que a atraí com meu
charme e minha cara inocente. O delegado
incrimina-me e exige a devolução de todo o dinheiro
recebido. Os valérios devem ser todos condenados
e eu far-lhes-ei companhia. O diabo ri no meio de
suas aspas e ergue seu tridente em triunfo. Acordo
com a iminência de ser espetado.
Três semanas e o delegado não volta. Três
semanas de orgias com Luiza na minha cama.
Quinze mil reais se mudaram para a conta dela. Fui
a poucas sessões, todas normais e sem graça.
Ainda não preparei o discurso que terei de fazer no
grande expediente desta semana, nem imagino o
tema do discurso. Antes da eleição treinei alguma
vez e tinha tantos temas que seria difícil de escolher
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Restos Mort@is
um. Agora todos não servem mais. Vou escolher
algo diferente, talvez a ética na política.
Preciso agir rápido. Luiza avisou-me das
notícias. A polícia federal descobriu mais um
escândalo. A votação da lei da Biotecnologia foi toda
comprada a peso de reais valorizados frente ao
dólar. O delegado voltou e já está trabalhando nas
investigações. Ele contou-lhe que nos próximos dias
tudo virá à tona. No mínimo cem deputados deverão
ser incriminados e três grandes empresas têm seu
sigilo bancário e telefônico quebrado. O novo
escândalo retumbará por todo o país. Quem for
incriminado poderá perder o mandato.
Merda! Aconteceu mais rápido do que pensei.
O pesadelo não veio sozinho. A sujeira já colou no
trigo vaidoso. Já não viro farinha, mas os restos
mortais irão para o lixo, já não volto a Curitiba, irei
direto para a cassação.
Consulto o saldo da conta. Mas o que
significa isso? Querem me detonar como um
kamikaze? Um piloto que se choca contra uma torre
em Nova York? Não é que deixaram mais de um
milhão de reais em minha conta! No mínimo tentam
livrar outros da enrascada. Se me pegarem, estarei
perdido. Não pedi um centavo sequer de ninguém e
estou afundado na mais suja das lamas. Não fiz
qualquer insinuação a Luiza e já a comi dezenas de
vezes. Não dá para negar que ela fica mais gostosa
a cada vez que nos encontramos na cama, nem sei
se ainda posso fazer amor com Lisa. Não dá para
negar que o dinheiro exerce atração, acho que nem
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Restos Mort@is
imagino viver com pouca grana. Ainda não pus um
dedo em qualquer real não meu.
“Deputado, o senhor soube do escândalo?” O
colega daquele almoço recebe apenas um aceno de
resposta. Ele ri ante minha afirmação e acrescenta:
“Precisa pôr-se em guarda, podem descobri-lo. Dê
declarações fortes contra o esquema, ofereça-se
para fazer parte da CPI que deverá ser instaurada”.
Simplesmente não respondo.
Dez mil dólares! Um avião está pronto para
decolar. Eu e Luiza chegamos de helicóptero e
embarcamos. Cinco mil reais foram suficientes para
comover os orientadores de vôo a permitirem o
esquema e interromper o tráfego durante os quinze
minutos necessários a ocupação do aeroporto. Já
estamos saindo do espaço aéreo brasileiro.
Descemos nas Bahamas. Luiza está radiante
e eu não sei o que sinto. O plano é passar uma
semana ou duas usufruindo os prazeres daqui.
Depois abriremos um discreto comércio para
ganharmos algo e podermos viver para sempre
longe da Pátria de chuteiras e das balas perdidas.
Pela TV sabemos de tudo. O delegado já informou a
fuga da esposa com um dos deputados envolvidos
no escândalo. Lisa e os filhos lamentam minha fuga,
condenam, no entanto, todos os esquemas de
corrupção existentes no Brasil.
Luiza está mais feliz que eu. Pela primeira vez
confessa-me que o delegado não funciona mais, tem
uma doença degenerativa que lhe anula as funções
sexuais, por isso satisfaz-se com tantos inquéritos
que faz. Cada autoridade que pode incriminar é
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Restos Mort@is
para ele como uma relação sexual bem sucedida
com direito a todo tipo de fantasias. Eu não me sinto
bem, a culpa pesa-me, embora Luiza faça tudo para
convencer-me que é mais importante viver longe da
família e da pátria do que estar preso ou morto junto
a eles.
As semanas passam e as notícias sobre o
escândalo rareiam. Parece que tudo se transformou
em mais uma bela pizza no Brasil.
O comércio de lembranças vai de vento em
popa. Vários colegas já apareceram e deixaram
boas quantias de suas rendas extras conosco.
Ninguém faz menção de me conhecer.
O trigo gosta do afago do vento, mas não
quer ser pão para ser comido nas favelas, em
programas “Fome Zero”.
Por isso opto definitivamente por “Bye, bye
Brazil”!
DOIS MAIS UM É QUATRO
Entro na repartição e vejo dois homens
conversando. “Desgraçados”, penso, estão falando
de mim! É meu eterno trauma: não posso ver
pessoas falando que logo imagino seja eu o assunto.
Já pensei em consultar um analista, mas lembro-me
logo do personagem do Luiz Fernando Veríssimo e
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Restos Mort@is
desisto. Criei um medo terrível de divã, por causa de
“O Analista de Bagé”.
Amaldiçôo o fato de ter vindo ver como anda
meu processo. Há meses não ponho os pés neste
escritório e aos dois funcionários ainda não conheço.
Antes sempre tinha um só. Pior que me mandam
esperar, coisa que também detesto. Deve ser fobia a
repartições e a tudo que cheira a escrivaninhas e
cadeiras giratórias. Seja lá o que for, vou esperar.
Hoje preciso de uma definição sobre a encrenca das
medidas do meu terreno.
Comprei um terreno no loteamento “Ramos
Verdes” e, na hora de fazer o registro da escritura,
houve a constatação de que as medidas não
conferem, são dois centímetros quadrados demais.
Prometeram solucionar o problema, mas já arrastam
a história há mais de dois anos.
Não sei o que tenho com o dois! São dois
centímetros demais, são dois anos de lengalenga,
agora são dois funcionários, tudo contra eu, que sou
só um! Eu, um traumatizado pelo destino! E eles
confabulando o tempo todo, de vez em quando,
olhando para mim...! Não saio correndo porque
resolvi encerrar essa encrenca hoje. Sou solteirão
de quarenta e quatro anos porque sempre penso
que duas mulheres reunidas falam mal de mim e
combinam o que dizer para não aceitar cantada
minha. Por isso nunca cantei, menos ainda
aproximei-me de alguma garota. Agora já tenho
também o complexo da idade!
-
Senhor, pode chegar!
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