III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA DA ESPERA À TRANSGRESSÃO: FIGURAÇÕES DO ESPAÇO EM A CASA DAS SETE MULHERES Taise Teles Santana de Macedo1 RESUMO: Nesse trabalho propomos analisar a representação do espaço em A casa das sete mulheres, romance publicado em 2002, logo transformado em minissérie em 2003 pela Rede Globo. Nesse sentido, a casa torna-se não apenas um local de espera, como também um lugar de embates e conflitos de ideias. Trancafiada na Estância da Barra, sete mulheres da elite são levadas para uma localidade distante da Revolução Farroupilha. A obra da escritora gaúcha Leticia Wierzchowski problemativa as questões de gênero e a construção da identidade feminina, temáticas recorrentes na ficção de autoria feminina. Para a apreciação da categoria do espaço no texto literário, tomaremos o conceito de topoanálise de Gaston Bachelar (1993) em A poética do espaço. Ao delimitar como o espaço é percebido pelas protagonistas da obra em análise mostraremos como o romance rearticula os papeis sociais e as posições de gênero. Utilizaremos, portanto, as reflexões da crítica feminista Eliane Showalter (1994), bem como as estudiosas Luiza Lobo (1997) e Nádia Batella Gotlib (1998). Palavras-chave: Casa; Mulheres; Gênero. Publicado em 2002, o romance A casa das sete mulheres narra a história de sete mulheres da elite gaúcha que durante a Revolução Farroupilha ficaram a espera dos homens numa casa localizada numa estância gaúcha. Chama a atenção, no contexto narrativo dessa obra, o tratamento dado ao espaço: este funciona como índice metafórico e como instrumento revelador da atmosfera que rodeia as personagens. O interesse pelo estudo do espaço justifica-se na mudança gradativa do papel desempenhado por essa categoria na literatura: deixa de ser mero pano de fundo, referência geográfica, para adquirir “status” de elemento simbólico, transformando-se em agente dentro da narrativa. É recorrente esse modo particular de utilização do espaço em A casa das sete mulheres. Contista e romancista, a escritora sul-rio-grandense Leticia Wierzchowski fez oficina literária na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Em 1998, publica seu 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Especialista em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); Licenciada em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Licenciada em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: [email protected] III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA primeiro livro O anjo e o resto de nós, quando inicia suas atividades como escritora. Detentora de alguns prêmios literários, Érico Veríssimo e Alejandro Cassaba (2003), produziu um total de dezenove obras, entre romances, novelas, crônicas, contos, literatura infanto-juvenil. A narrativa de Leticia Wierzchowski comporta algumas particularidades que interferem no exame do espaço. Narrativa de autoria feminina, A casa das sete mulheres faz parte de uma gama de produções literárias cuja marca é a representação das relações de gênero e a problematização da construção da identidade feminina. De acordo com Ívia Alves (2002) 2, essa literatura, iniciada no Brasil no século XIX, acentuada nos séculos XX e XXI, coloca em cena protagonistas que ora se rebelam contra os valores vigentes, ora se acomodam à situação de opressão, discutindo as temáticas do casamento, da família e o lugar da mulher na cena contemporânea. A crítica feminista da década de 60 do século passado e os estudos de gênero contribuíram para discutir o conceito de escrita feminina, e o que a diferenciava da escrita masculina. Os estudos da crítica norte-americana Elaine Showalter (1994)3 sobre a mulher escritora que se rebela contra o modelo falocêntrico vigente colaboraram para que, nas décadas de 70 e 80 do século XX, escritoras brasileiras lutassem por um espaço no cenário literário, diluindo as questões da construção de gênero e da identidade feminina em seus textos ficcionais. Para Luiza Lobo (1997)4, uma dos principais atributos da literatura de autoria feminina é combater as imposições do patriarcado e os modelos de representação dominante acerca da mulher. Em torno dessa contestação, as escritoras, muitas vezes, ao retratar a família das personagens, exprimem o quão o espaço da casa era composto por regras e normas que interditavam a liberdade e o corpo das mulheres. Leticia Wierzchowski, atenta às discussões do seu tempo, deixa entrever, através da voz das personagens e do narrador, um olhar crítico perante o modelo de representações que recaiu sobre a mulher nos vários momentos literários. O mundo criado em A casa das sete mulheres aponta a construção da identidade feminina baseada na pluralidade de comportamentos de personagens; não há, na obra, a ideia de mulher como algo dotado de uma essência, unidade ou totalidade. O 2 ALVES, Ívia. “Imagens da mulher na literatura na modernidade e na contemporaneidade”. In: SÍLVIA, Lúcia Ferreira e NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: UFBA, 2002. P. 8598. 3 SHOWALTER, Elaine. “A crítica feminista no território selvagem”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57. 4 LOBO, Luiza. A literatura de autoria feminina na América Latina (1997). Disponível em: http://members.tripod.com/~Ifilipe/Llobo.html. Acesso em: 15 de abril de 2013. III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA imaginário produzido pelo romance revela perfis femininos que ora internalizam os estereótipos de gênero, ora se rebelam contra os papeis tradicionais direcionados à mulher. Dentro de casa, as mulheres As várias publicações de autoria feminina sobre o modo de ser e de estar da mulher na sociedade no século XX desestabilizam os esquemas representacionais ocidentais, construídos a partir de um único sujeito (homem, branco, bem situado socialmente). Tais obras, posicionadas a partir de outras perspectivas, redimensionam o lugar ocupado pela mulher. Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Helena Parente Cunha, Lya Luft, dentre outras, constroem perfis femininos que despojam a ideologia patriarcal dominante. Ao assumir uma proposta “anárquica” de desconstruir os papéis sociais prescritos pela cartilha do patriarcado, as escritoras brasileiras propuseram novos rumos. Se a liberdade da mulher havia sido cerceada pelos muros da casa, é nas fronteiras da casa, local atribuído à passividade, à submissão, ao silenciamento e à maternidade incondicional, que as mulheres passariam a transgredir as leis as quais regiam o casamento, a sexualidade e a dependência feminina. Como pondera Nádia Batella Gotlib (1998), a ficção de autoria feminina denuncia as convenções da família patriarcal e a hierarquização entre os sexos forjada como algo natural. A inserção da mulher no cenário literário foi abordada pela norte-americana Elaine Showalter (1994) que traçou um breve panorama da crítica feminista, destacando como até então esse território estava sob o domínio masculino, denominado por Showalter (1994) de “território selvagem”. Era preciso uma crítica de feição feminista, refletindo sobre a especificidade do feminino, que respondesse aos questionamentos feitos pelas escritoras. Assim, a crítica feminista a partir da década de 70 do século passado firmou-se em meio a uma tensão ideológica e a diferentes perspectivas teóricas, a exemplo do estruturalismo, sobretudo a partir dos anos 1960 e 1970; pósestruturalismo e desconstrutivismo, no final da década de 70. Showalter (1994) destaca duas vertentes da crítica feminista: a primeira, definida como crítica ideológica, enfatiza a mulher como leitora, oferecendo aos textos uma leitura revisionista que problematiza as imagens e estereótipos das mulheres na literatura; a segunda, denominada de ginocrítica, recai sobre as mulheres escritoras, buscando investigar a produção literária, ou seja, o estilo e a marca feminina nos textos literários. III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Na passagem de uma crítica androcêntrica (supervaloriza o ponto de vista masculino) para uma ginocêntrica, nas palavras de Showalter (1994) algumas questões emergem: “Como podemos considerar as mulheres como grupo literário distinto? Qual é a diferença nos escritos das mulheres?”5 Ao tentar mapear essa história, a autora salienta que as teorias da escrita das mulheres vêm se constituindo a partir de quatro modelos: biológico, linguístico, psicanalítico e cultural. Cada modelo tentava diferenciar as qualidades da mulher escritora, tendo em vista traços peculiares que envolvem a escrita feminina. Todavia, para Showalter (1994), nenhum desses quatro modelos de se avaliar os textos das mulheres seria o mais adequado, o que faz a autora adotar uma teoria que incorpore os aspectos identitários. Dessa maneira, “o modelo cultural reconhece a existência de importantes diferenças entre as mulheres como escritoras: classe, raça, nacionalidade e história são determinantes literários tão significativos quanto gênero.” 6 No rastro das ideias postuladas por Showalter (1994) e da obra aqui analisada, evidenciamos como a escritora Leticia problematiza o lugar ocupado pela mulher na sociedade patriarcal. Se, por um lado, houve a construção de um modelo que relegava o sexo feminino ao âmbito do lar, onde sua tarefa seria a de cuidar da casa, dos filhos e do marido, e, sendo sempre totalmente submissa a ele, por outro lado, a desconstrução desse estereótipo de gênero passa a ocorrer nos limites do lar quando a mulher questiona a subordinação aos padrões e normas impostas pelos homens. Assim, a literatura permite a expressividade feminina, possibilitando-lhe revelar a sua experiência e uma nova ordem social e simbólica. Na ficção brasileira escrita por mulheres, a casa nem sempre é o local de tranquilidade e de paz; muitas vezes, é descrita como um lugar de conflitos e embates em que a mulher luta para fugir das opressões do patriarcado. Em A casa das sete mulheres podemos “ler a casa” por meio dos diferentes comportamentos de algumas personagens: D. Antônia, D. Ana e Maria Manuela, as irmãs do general Bento Gonçalves, desejam manter a casa em ordem seguindo os moldes de uma família tradicional, enquanto as mais moças, Manuela, Mariana e Rosário, sobrinhas do general, contrárias às ordens estabelecidas, almejam “fugir” (essa fuga pode ser real ou apenas simbólica) da casa em busca de outros espaços. Ao analisarmos a representação da casa na literatura, uma indagação emerge: quais as imagens suscitadas pela casa constituídas a partir das relações entre personagem e espaço? 5 6 Showalter, op. cit; p. 29. Id. ibid; p. 44. III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Numa perspectiva que privilegia o espaço da narrativa, tomamos o teórico Gastón Bachelard (1993) em A poética do espaço como referencial para discutirmos os valores de intimidade do espaço interior, a casa, e a percepção do mesmo pelas protagonistas de A casa das sete mulheres. Sabemos, contudo, que nas narrativas de autoria feminina o estudo do espaço não se restringe à análise da vida íntima das personagens, pois as instâncias sociais e culturais, que levaremos em consideração, interferem na relação espaço/personagem. Ao se apropriar do conceito da topoanálise, Bachelard (1993) analisa como na poesia há espaços preferidos pelo homem: a casa, o ninho, a gaveta, o cofre, o armário. Para ele, a casa seria o nosso primeiro ninho, o cosmos onde os indivíduos são jogados assim que nascem. Um mesmo espaço, portanto, pode assumir aspectos diferenciados: conforto, desconforto ou utopia. Segundo o filósofo, o espaço poético é o lugar da acolhida, da intimidade e do abrigo do tempo. Dessa forma, o espaço da casa é tomado como uma manifestação da subjetividade do indivíduo. A casa, portanto, não é apenas um mero objeto. Conforme Bachelard (1993), “é preciso superar os problemas da descrição [...]”7. Em A casa das sete mulheres, o ambiente doméstico e os espaços não são pormenorizados objetivamente, mas apresentados a partir dos hábitos e sentimentos das personagens. Quando da chegada das sete mulheres na Estância da Barra, D. Antônia solicita que Rosa, empregada mais velha da casa, arrume os cômodos: [...] estava tudo arregalado, os quartos todos limpos; os cinco quartos destinados as visitas tinham lençóis alvos ainda cheirando a alfazema, as cortinas abertas para deixar o sol da primavera entrar nas peças ainda ressentidas do úmido inverno, as jarras com água fresca e limpa repousavam sobre cada cômoda. 8 Os quartos transmitem a ideia de privacidade e de conforto, exemplificados nas expressões “quartos limpos” e “lençóis alvos ainda cheirando a alfazema”. Como as mulheres passariam um bom tempo na estância devido a Revolução Farroupilha, a casa deveria funcionar como um abrigo onde pudessem se sentir protegidas. O caráter “público” da casa, aos poucos, foi substituído por uma vida caseira mais privada e sossegada. Diante dos conflitos que ocorriam do lado de fora, “a casa branca era uma coisa sólida no meio do campo raso, um refúgio”.9 7 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 44. WIERZCHOWSKI, Leticia. A casa das sete mulheres. Bestbolso, 2008. p. 20 9 Id. ibid; p. 364. 8 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA A imagem da casa como refúgio nos remete à Bachelard (1993) ao afirmar que “a vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa.” 10. Levadas para estância pelo general Bento Gonçalves, as sete mulheres permaneceram distantes dos agitos da Revolução Farroupilha. Nesse sentido, “estar em casa” simbolizava ser “colocado no berço”. O berço transmite a ideia de maternidade. Em linhas gerais, a habitação no romance é associada à figura feminina, o que revela a constituição de um ambiente para o cultivo dos cuidados maternos. Com esse padrão feminino idealizado, a casa é o lugar especializado da mulher; uma mulher que educava os filhos, esperava o marido e cuidava dos afazeres domésticos: As mulheres ocupavam-se com seus assuntos menores; falavam dos filhos; do calor do verão; tinham um olho posto nas conversas, porém, com o outro fitavam seus homens: tudo o que lhes faltasse, de comer e de beber, do corpo ou da alma, eram elas que proviam. 11 Em A casa das sete mulheres, o espaço se torna cada vez mais feminino em virtude do deslocamento dos homens. Dentro da casa, as mais novas eram criadas pelas matriarcas para corresponderem a um modelo tradicional de família: mulher esposa e mãe. As moças, futuramente, quando casadas, deveriam cuidar dos filhos e prover a casa. Na fala de D. Antônia, esse modelo de mulher é evidente: “Está já para casar, Perpétua. É preciso que le achemos um bom marido, menina.”12 Reduto do conservadorismo, representado pelas irmãs do general Bento Gonçalves, a casa da Estância da Barra é uma projeção da personalidade de seus ocupantes. O espaço estava se tornando um lugar sob o controle feminino. Esse controle era palpável e real por meio da imposição de regras. Nas palavras de Bachelard (1993), “encaramos a casa como um espaço de conforto e intimidade, como um espaço que deve condensar e defender a intimidade.”13 A defesa da intimidade e da tranquilidade da casa era mantida por D. Antônia e D. Ana. Essas personagens representavam as senhoras da Estância da Barra, a quem as moças deviam obediência. As tias inventaram o causo do baile para que nos ocupássemos dessa alegria e deixássemos a vida andar lá para a Corte. Eram sábias, tinham essa sabedoria que a vida não ensina, mas que vem no sangue de alguns viventes, acho que por herança. Armavam estratagemas, 10 Bachelard, op. cit; p. 26. Wierzchowski, op. cit; p. 13 12 Id. ibid; p. 26 13 Bachelard, op. cit; p. 64. 11 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA como o irmão general. As duas regiam a vida da família, da ala feminina da família, com manobras dignas de uma batalha. Dia após dia, D. Ana e D. Antônia nos roubavam das garras do medo e do desencanto, e nos protegiam naquela redoma de paredes caiadas, onde para tudo havia um horário e uma norma, menos para a desesperança. 14 Contudo, em A casa das sete mulheres, as disputas e embates sobre essas atitudes conservadoras estavam presentes nas vozes das moças, Manuela, Rosário e Mariana. Há uma crítica, na voz de Manuela, à esfera doméstica que tenta reduzir a mulher à categoria de mãe e esposa, tendo no casamento o seu último fim na ânsia de interditar a sexualidade das moças: “Não era justo que me obrigassem a casar com um primo que eu não amava”. 15 Sem precisar se deslocar para fora da casa, é nos limites desse espaço que as protagonistas expõem sua insatisfação diante das normas. Como assegura Bachelard (1993), “a casa não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico.” 16 . Dentro desse ambiente, novas identidades são postas em confronto com o conservadorismo das vozes tradicionais. Rosário, Manuela e Mariana, sobrinhas do general Bento Gonçalves, trilharam caminhos distintos em busca de sentidos para suas próprias vidas, da liberação dos desejos contidos, das interdições sentimentais, das frustrações veladas. Personagens que ilustram os anseios e as conquistas das mulheres ao longo dos tempos. Mulheres em fuga: A busca de um teto todo seu A casa das sete mulheres apresenta diversos perfis e posicionamentos femininos sobre amor, casamento e família; a moradia é um campo de agitações. Esse ambiente privado é o núcleo privilegiado que expressa a relação entre personagem e espaço na narrativa. Apesar de questionar os papeis atribuídos à mulher pela sociedade, Leticia Wierzchowski não desloca essas mulheres para o espaço público; é dentro do universo feminino e da intimidade do lar que as contestações ocorrem. Ao aventar personagens (Manuela, Rosário, Mariana) que se contrapõem ao discurso cristalizado sobre a mulher - “rainha do lar”, “esposa fiel”, “mãe”-, a escritora mostra como a mulher pode conviver com o conflito “sem sair de casa”. A mulher instaura novos rumos em busca de sua liberdade nos entornos da casa, sem, necessariamente, abdicar do seu espaço íntimo; um espaço produtivo para discussões, questionamentos, imaginação e criatividade. 14 Id. ibid; p. 163. Id. ibid;; p. 284. 16 Bachelard,op. cit; p. 62. 15 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Sobrinha do general Bento Gonçalves, considerada por suas tias, D. Antônia e D. Ana, como uma moça frágil, com olhos úmidos afeitos a pranto, sem consistência forte como as mulheres da família dos Gonçalves da Silva Rosário era a mais citadina de todas: sonhava com os bailes dos luxuosos salões de Paris e do Rio de Janeiro, em conhecer a Europa, em comprar vestidos da moda. Diferentemente das outras irmãs, ela tinha certa “finesse”; não nutria paixões pela vida campeira. Quando a mãe fora lhe dizer que deixariam Pelotas para ficar uns tempos na Estância da Barra, trancara-se no quarto por uma tarde inteira e chorara amargas lágrimas. Queria conhecer Paris, Buenos Aires, Rio de Janeiro, queria os bailes da Corte, as danças e a vida alegre que as damas deviam levar [...]. 17 Dominada por um forte desejo de encontrar outro espaço menos regulador, Rosário passa a frequentar o escritório da casa, uma biblioteca, fantasiando encontros com um ex-combatente de guerra, Steban. A aparição fantasmagórica de Steban representa a imaginação criadora de Rosário, ou melhor, a maneira que a personagem feminina consegue escapar dos ditames da família ao devanear na tentativa de libertar-se da atenção apurada de suas tias. Rosário entrou no escritório. Alguma escrava já tinha acendido o lampião. A luz tênue dançava na sala, e da janela ainda vinha a claridade dourada do entardecer. Rosário puxou um pouco as cortinas, sentou na poltrona de couro negro, com a qual já começara a criar uma certa relação. Quando pensava em Steban, era o cheiro daquele couro que lhe vinha às narinas. Steban não tinha odor de seu, mas que cheiro teriam os espectros? Rosário irritouse com essa conjectura: Steban era um homem, nada mais, nada menos do que isso, um soldado valente e belo. E o amava. Viam-se em segredo, pois sim, mas dizer o quê às tias e à mãe? 18 A fantasia é uma resposta à restrição conferida à individualidade da moça; em detrimento de sua satisfação pessoal, há uma contradição entre as funções: aderir ao ideal da família ou assumir o desejo individual? A personagem elege a segunda opção, instituindo situações ilusórias. Bachelard (1993) adverte que a casa é o lugar do devaneio19: “Nessas condições, o benefício mais precioso da casa, é permitir ao indivíduo sonhar em paz.”20. Ao devanear, Rosário cria outro espaço, imaginário e utópico. Evadindo-se do espaço da casa, considerada como louca por suas tias, essa personagem, 17 Wierzchowski,op. cit; p. 27. Id. ibid; p. 101. 19 Para Bachelard (1988), o devaneio é uma atividade onírica na qual vigora uma clareza de consciência com um sonhador que mantém presente em seu devaneio; é um atributo psíquico que possibilita ao sujeito a evasão temporal e espacial do universo pragmático e, consequentemente cerceador. Essa visão bachelardiana aproxima-se do pensamento freudiano sobre o devaneio. 20 Bachelard, op. cit; p. 26. 18 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA amando um homem que não existia, foi levada para um convento. Essa atitude revela a instabilidade que Rosário talvez pudesse causar no patrimônio dos Gonçalves da Silva, atenuando o número de casamentos prováveis dentro da escala familiar. Para D. Antônia, a loucura de Rosário era contagiosa e podia passar para as outras moças da casa, visto que “para as mulheres do pampa, nada é mais incompreensível do que aquilo que não se pode tocar ou mensurar, e tudo que é volátil assusta e desorienta.” 21 Outra personagem que “desordena” as bases familiares é Mariana. Irmã de Manuela e Rosário, sonhadora, como Perpétua, na conquista de um casamento exemplar, permaneceu solitária dentro da Estância da Barra. Sem encontrar um pretendente, Mariana se apaixonou por um peão, João Gutierrez. Bom violeiro, João aparentava uma proximidade com traços indígenas, e Mariana “achou nos dias uma graça toda nova, e na solidão daquela estância, o terreno perfeito para ver florescer seu amor”. 22 Amantes, Mariana e João Gutierrez jamais seriam vistos de bom grado pelas mulheres da Estância da Barra. Grávida e trancada num quarto por sua mãe, Maria Manuela, Mariana “imaginava seus anos sem João, temia pelo futuro da criança que trazia no ventre. Será que a mandariam embora, para um convento ou clausura pior?”23. Maria Manuela temia a honra de sua filha, temia os valores que tanto apregoou, uma educação voltada para o código moral cristão; o que diriam de uma moça solteira? A junção entre Mariana e João Gutierrez representa a hibridização; o branco e o índio unidos configuravam a mescla que pode ser lida como representação da formação do povo sul-riograndense, o que desconstrói a imagem de uma descendência ariana. Esse pluralismo na composição da gente do Rio Grande do Sul foi tematizado por Érico Veríssimo em O tempo e o vento. Se “lermos” a Estância da Barra metonicamente como uma porção do Rio Grande, imaginamos que a escritora Letícia Wierzchowski chame atenção para as identidades díspares presentes na formação do espaço sulino. A multiplicidade étnica pode ser vista também como uma desestabilização ao modelo tradicional de família. A autora de A casa das sete mulheres confere à constituição étnica do gaúcho uma configuração plural, na participação do índio João Gutierrez. O amor proibido entre Mariana e o peão sintetiza o jogo entre tradição e modernidade germinado no interior da moradia. Matias, o 21 Wierzchowski ,op. cit; p. 350. Id. ibid; p. 396. 23 Id. ibid; p. 447 22 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA filho gerado desse encontro torna explícito o quanto a noção tradicional de família foi alterada. Mariana questiona a estrutura familiar clássica, pelejando para manter o seu desejo e a sua individualidade. Outra personagem que desestrutura os moldes tradicionais da família dos Gonçalves da Silva é Manuela. A presença de Manuela no romance conduzindo boa parte da narrativa implica a sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos” que estão sendo narrados. Observamos o enredo pela ótica dessa protagonista, o que não deixa de ser uma forma de subverter o modelo tradicional da narrativa histórica, no qual a voz masculina expunha os fatos; em A casa das sete mulheres é pela ótica da mulher que a história dos farroupilhas e da família dos Gonçalves da Silva é contada. Os dias que se seguiram à notícia da guerra foram repletos de boatos e de angústias. Andávamos todas sobressaltadas, olhando o horizonte, como se dele viessem os socorros, para nossos medos. Mas nada vinha, a não ser as chuvas que traziam o fim do verão, e um silêncio que pesava nossas noites e que D. Ana se esforçava para quebrar, tocando o piano por muitas horas. 24 [...] Ficamos sabendo de batalhas travadas no passo de Lajeado, entre as tropas de João Manoel de Lima e Silva e as de Bento Manuel, o traidor e tocaio do meu tio. As notícias diziam também que os rebeldes estavam em maioria e que tinham causado grandes baixas nas tropas imperiais.25 No romance de extração histórico contemporâneo, a história é narrada por outro viés: pela perspectiva daqueles que, geralmente, não obtiveram lugar de destaque no discurso histórico. Em A casa das sete mulheres, isso é exemplificado justamente pela narradora homodiegética26 Manuela. Há uma interdependência entre a personagem e a história contada, visto que um determina o outro; Manuela está narrando em vez de ser narrada, embora haja a presença de outro narrador em terceira pessoa – heterodiegético – no romance. 24 Id. ibid; p. 96. Id. ibid; p. 96. 26 O estudioso francês Gérard Genette, de acordo com Regiga Zilberman (2012), classifica os diferentes níveis da diegese: o narrador se coloca fora do evento (narrador extradiegético); o narrador conta sua própria história (intradiegético); o narrador insere uma outra história dentro da história principal (narrador metadiegético). Por sua vez, o romancista pode escolher entre duas atitudes narrativas: fazer contar a história por uma de suas personagens (narrador homodiegético) ou por um narrador estranho à história (heterodiegético). Genette conceitua narrador homodiegético como sendo aquele que pertence à história narrada. Esse modelo proposto por ele não encerra o tipo de narrador de um romance, tendo em vista a interpolação de várias posições de focalização e o caráter polifônico da narrativa já apontada por Mikhail Bakhtin. Para mais detalhes, consultar Regina Zilberman (2012). 25 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA A narradora homodiegética, particularmente nas narrativas de autoria feminina, como no caso de A casa das sete mulheres, alarga a possibilidade de representação do feminino, expressando as ideias que recobrem os debates sobre gênero, dentre as quais citamos as discussões sobre casamento dentro dos ditames do patriarcalismo. No romance analisado, uma das intrigas centrais é a história de amor entre Manuela e o italiano Giuseppe Garibaldi. Conhecida como a “eterna noiva de Garibaldi”, a sobrinha de Bento Gonçalves foi prometida por seu tio a Joaquim, filho do general. Essas relações de compadrio e parentesco, na visão de D. Antônia e de D. Ana, eram importantes porque facilitavam os negócios comerciais. Em conversa com sua mãe, Manuela é repreendida: Vosmecê tem compromisso, minha filha. Joaquim é como se fosse seu noivo. Vosmecês hão de casar brevemente, seu pai deixou tudo acertado com seu tio, não esqueça... ademais, esse italiano, por mais que bons sorrisos tenha, não foi feito para usted. É um homem sem casa, sem pouso. Um pássaro. Sabe-se lá de onde vem e para onde vai. É um aventureiro. 27 A paixão entre Manuela e Garibaldi não poderia ser consumada. Para a família dos Gonçalves da Silva, era um risco a união entre pares diferentes, social e economicamente. Além disso, a moral e a tradição familiares seriam mantidas mediante o casamento arranjado. Logo, os desejos amorosos de Manuela foram reprimidos por sua tia, D. Antônia, em carta endereçada a Bento Gonçalves. [...] Manuela está mui apaixonada pelo marinheiro italiano, no que é plenamente correspondida por ele, que sempre a tratou com toda a elegância e honradez, e que tem por ela desejos de casamento. Porque sei que vosmecê tem já planos para Manuela e Joaquim é que le escrevo. E também porque imagino nesse italiano um sangue mui afeito a aventuras, e não sei se seria um bom marido para Manuela. [...]28 Notamos, a partir da citação destacada, que a moça destinada ao casamento era bemcuidada, trancafiada no ambiente doméstico e constantemente vigiada pelas senhoras. Nesse tipo de casamento, conforme já salientado, a virgindade era um requisito fundamental. Portanto, Manuela, em nome da sustentação do status da família, deveria afastar-se do marinheiro italiano, que possuía “sangue mui afeito a aventuras”, evitando uma aproximação mais íntima. 27 28 Id. ibid; p. 246. Id. ibid; p. 260. III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Como uma prática transgressora, a paixão de Manuela pelo italiano Giuseppe Garibaldi representa um insulto ao modelo esperado para uma mulher, segundo a tradição patriarcal, qual seja, o de mãe/esposa. Considerado um aventureiro, Garibaldi não se constituía em um homem ideal para a sobrinha do general Bento Gonçalves. Como afirma Lúcia Santaella (2009), “não é estranho, portanto, que a sociedade persiga com mesmo ódio o amor e a poesia, e os lance à clandestinidade, à margem, ao mundo turvo e confuso do proibido, ridículo, anormal”.29 Devido à impossibilidade dessa consumação amorosa, Manuela corta o cabelo, símbolo de virtude e virilidade. O ato de cortá-lo mostra como a mulher, naquele instante, tomou para si o domínio do seu corpo. Uma das temáticas referendadas nos textos de autoria feminina é a falência da família patriarcal e a violência simbólica. Segundo Elódia Xavier (2012)30, várias são as narrativas que apontam tais questionamentos, desde o corpo “disciplinado”, que segue as normas, “ao corpo degenerado”, que burla as regras sociais como forma de resistência, como fez Manuela, traduzindo a sua insatisfação com a vida na Estância da Barra. Os fios arrumados, sedosos e brilhantes representavam a sistematização direcionada às moças da casa: boas vestimentas, bons comportamentos, conservação da beleza. Já o corte/a ruptura remete à vontade da personagem de desligar-se daquele mundo fechado da Estância da Barra, que reprimia a liberdade das moças. Quando as mulheres da Estância da Barra interrogam a respeito do casamento, do amor e do destino, instituem choques entre o sistema patriarcal e a voz feminina emergente; as moças reconhecem a sua condição dentro da casa e almejam lutar pelo manejo de suas próprias vidas. Manuela opta por não se casar com Joaquim e fica solteira; em contrapartida, Rosário, presa no convento, se suicida, escolha que efetiva o seu livre-arbítrio. Diante dos diversos perfis e posicionamentos femininos em relação ao amor, ao casamento e à família, observamos como a casa é um campo de agitações. Esse ambiente privado é o núcleo privilegiado que expressa a relação entre personagem e espaço na narrativa. Apesar de questionar os papeis atribuídos à mulher pela sociedade, a escritora de A casa das sete mulheres não a desloca para o espaço público; é no interior do universo feminino e da intimidade do lar que as contestações ocorrem. Ao apresentar personagens (Manuela, Rosário, Mariana) que se contrapõem ao discurso 29 30 SANTAELLA, Lúcia. “Subversão de hábitos”. In: Lições e subversões. São Paulo: Lazulli Editora, 2009. p.19. XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012. III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA cristalizado sobre a mulher – “rainha do lar”, “esposa fiel”, “mãe” –, Leticia Wiezchowski mostra como ela pode conviver com o conflito “sem sair de casa”. A mulher instaura novos rumos em busca de sua liberdade nos entornos da casa, sem, necessariamente, abdicar do seu espaço íntimo; um espaço produtivo para discussões, questionamentos, imaginação e criatividade. Referências ALVES, Ívia. “Imagens da mulher na literatura na modernidade e na contemporaneidade.” In: SÍLVIA, Lúcia Ferreira e NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: UFBA, 2002. p. 85-98 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. _______ . A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. GOTLIB, Nádia Batella. A literatura feita por mulheres no Brasil (1998). Disponível em: http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm. Acesso em: 10 de janeiro de 2013. LOBO, Luiza. A literatura de autoria feminina na América Latina (1997). Disponível em: http://members.tripod.com/~Ifilipe/Llobo.html. Acesso em: 15 de março de 2013. SANTAELLA, Lúcia. “Subversão de hábitos”. In: Lições e subversões. São Paulo: Lazulli Editora, 2009. p. 15-45. SHOWALTER, Elaine. “A crítica feminista no território selvagem”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57. XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012. ZILBERMAN, Regina. Teoria da literatura 1. Paraná: IESDE Brasil, 2012. WIERZCHOWSKI, Leticia. A casa das sete mulheres. 4 ed. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2008.