III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
15 a 17 de Maio de 2013
Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador - BA
DA ESPERA À TRANSGRESSÃO: FIGURAÇÕES DO ESPAÇO EM A CASA
DAS SETE MULHERES
Taise Teles Santana de Macedo1
RESUMO: Nesse trabalho propomos analisar a representação do espaço em A casa das sete mulheres,
romance publicado em 2002, logo transformado em minissérie em 2003 pela Rede Globo. Nesse sentido, a
casa torna-se não apenas um local de espera, como também um lugar de embates e conflitos de ideias.
Trancafiada na Estância da Barra, sete mulheres da elite são levadas para uma localidade distante da
Revolução Farroupilha. A obra da escritora gaúcha Leticia Wierzchowski problemativa as questões de
gênero e a construção da identidade feminina, temáticas recorrentes na ficção de autoria feminina. Para a
apreciação da categoria do espaço no texto literário, tomaremos o conceito de topoanálise de Gaston
Bachelar (1993) em A poética do espaço. Ao delimitar como o espaço é percebido pelas protagonistas da
obra em análise mostraremos como o romance rearticula os papeis sociais e as posições de gênero.
Utilizaremos, portanto, as reflexões da crítica feminista Eliane Showalter (1994), bem como as estudiosas
Luiza Lobo (1997) e Nádia Batella Gotlib (1998).
Palavras-chave: Casa; Mulheres; Gênero.
Publicado em 2002, o romance A casa das sete mulheres narra a história de sete mulheres da
elite gaúcha que durante a Revolução Farroupilha ficaram a espera dos homens numa casa
localizada numa estância gaúcha. Chama a atenção, no contexto narrativo dessa obra, o tratamento
dado ao espaço: este funciona como índice metafórico e como instrumento revelador da atmosfera
que rodeia as personagens.
O interesse pelo estudo do espaço justifica-se na mudança gradativa do papel desempenhado
por essa categoria na literatura: deixa de ser mero pano de fundo, referência geográfica, para
adquirir “status” de elemento simbólico, transformando-se em agente dentro da narrativa. É
recorrente esse modo particular de utilização do espaço em A casa das sete mulheres.
Contista e romancista, a escritora sul-rio-grandense Leticia Wierzchowski fez oficina
literária na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Em 1998, publica seu
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Especialista em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); Licenciada em História
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Licenciada em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). E-mail: [email protected]
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primeiro livro O anjo e o resto de nós, quando inicia suas atividades como escritora. Detentora de
alguns prêmios literários, Érico Veríssimo e Alejandro Cassaba (2003), produziu um total de
dezenove obras, entre romances, novelas, crônicas, contos, literatura infanto-juvenil.
A narrativa de Leticia Wierzchowski comporta algumas particularidades que interferem no
exame do espaço. Narrativa de autoria feminina, A casa das sete mulheres faz parte de uma gama
de produções literárias cuja marca é a representação das relações de gênero e a problematização da
construção da identidade feminina. De acordo com Ívia Alves (2002) 2, essa literatura, iniciada no
Brasil no século XIX, acentuada nos séculos XX e XXI, coloca em cena protagonistas que ora se
rebelam contra os valores vigentes, ora se acomodam à situação de opressão, discutindo as
temáticas do casamento, da família e o lugar da mulher na cena contemporânea.
A crítica feminista da década de 60 do século passado e os estudos de gênero contribuíram
para discutir o conceito de escrita feminina, e o que a diferenciava da escrita masculina. Os estudos
da crítica norte-americana Elaine Showalter (1994)3 sobre a mulher escritora que se rebela contra o
modelo falocêntrico vigente colaboraram para que, nas décadas de 70 e 80 do século XX, escritoras
brasileiras lutassem por um espaço no cenário literário, diluindo as questões da construção de
gênero e da identidade feminina em seus textos ficcionais.
Para Luiza Lobo (1997)4, uma dos principais atributos da literatura de autoria feminina é
combater as imposições do patriarcado e os modelos de representação dominante acerca da mulher.
Em torno dessa contestação, as escritoras, muitas vezes, ao retratar a família das personagens,
exprimem o quão o espaço da casa era composto por regras e normas que interditavam a liberdade e
o corpo das mulheres.
Leticia Wierzchowski, atenta às discussões do seu tempo, deixa entrever, através da voz das
personagens e do narrador, um olhar crítico perante o modelo de representações que recaiu sobre a
mulher nos vários momentos literários. O mundo criado em A casa das sete mulheres aponta a
construção da identidade feminina baseada na pluralidade de comportamentos de personagens; não
há, na obra, a ideia de mulher como algo dotado de uma essência, unidade ou totalidade. O
2
ALVES, Ívia. “Imagens da mulher na literatura na modernidade e na contemporaneidade”. In: SÍLVIA, Lúcia Ferreira
e NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: UFBA, 2002. P. 8598.
3
SHOWALTER, Elaine. “A crítica feminista no território selvagem”. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.).
Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57.
4
LOBO, Luiza. A literatura de autoria feminina na América Latina (1997). Disponível em:
http://members.tripod.com/~Ifilipe/Llobo.html. Acesso em: 15 de abril de 2013.
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imaginário produzido pelo romance revela perfis femininos que ora internalizam os estereótipos de
gênero, ora se rebelam contra os papeis tradicionais direcionados à mulher.
Dentro de casa, as mulheres
As várias publicações de autoria feminina sobre o modo de ser e de estar da mulher na
sociedade no século XX desestabilizam os esquemas representacionais ocidentais, construídos a
partir de um único sujeito (homem, branco, bem situado socialmente). Tais obras, posicionadas a
partir de outras perspectivas, redimensionam o lugar ocupado pela mulher. Clarice Lispector, Lygia
Fagundes Telles, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Helena Parente Cunha, Lya Luft, dentre
outras, constroem perfis femininos que despojam a ideologia patriarcal dominante.
Ao assumir uma proposta “anárquica” de desconstruir os papéis sociais prescritos pela
cartilha do patriarcado, as escritoras brasileiras propuseram novos rumos. Se a liberdade da mulher
havia sido cerceada pelos muros da casa, é nas fronteiras da casa, local atribuído à passividade, à
submissão, ao silenciamento e à maternidade incondicional, que as mulheres passariam a transgredir
as leis as quais regiam o casamento, a sexualidade e a dependência feminina. Como pondera Nádia
Batella Gotlib (1998), a ficção de autoria feminina denuncia as convenções da família patriarcal e a
hierarquização entre os sexos forjada como algo natural.
A inserção da mulher no cenário literário foi abordada pela norte-americana Elaine
Showalter (1994) que traçou um breve panorama da crítica feminista, destacando como até então
esse território estava sob o domínio masculino, denominado por Showalter (1994) de “território
selvagem”. Era preciso uma crítica de feição feminista, refletindo sobre a especificidade do
feminino, que respondesse aos questionamentos feitos pelas escritoras. Assim, a crítica feminista a
partir da década de 70 do século passado firmou-se em meio a uma tensão ideológica e a diferentes
perspectivas teóricas, a exemplo do estruturalismo, sobretudo a partir dos anos 1960 e 1970; pósestruturalismo e desconstrutivismo, no final da década de 70.
Showalter (1994) destaca duas vertentes da crítica feminista: a primeira, definida como
crítica ideológica, enfatiza a mulher como leitora, oferecendo aos textos uma leitura revisionista que
problematiza as imagens e estereótipos das mulheres na literatura; a segunda, denominada de
ginocrítica, recai sobre as mulheres escritoras, buscando investigar a produção literária, ou seja, o
estilo e a marca feminina nos textos literários.
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Na passagem de uma crítica androcêntrica (supervaloriza o ponto de vista masculino) para
uma ginocêntrica, nas palavras de Showalter (1994) algumas questões emergem: “Como podemos
considerar as mulheres como grupo literário distinto? Qual é a diferença nos escritos das
mulheres?”5 Ao tentar mapear essa história, a autora salienta que as teorias da escrita das mulheres
vêm se constituindo a partir de quatro modelos: biológico, linguístico, psicanalítico e cultural.
Cada modelo tentava diferenciar as qualidades da mulher escritora, tendo em vista traços
peculiares que envolvem a escrita feminina. Todavia, para Showalter (1994), nenhum desses quatro
modelos de se avaliar os textos das mulheres seria o mais adequado, o que faz a autora adotar uma
teoria que incorpore os aspectos identitários. Dessa maneira, “o modelo cultural reconhece a
existência de importantes diferenças entre as mulheres como escritoras: classe, raça, nacionalidade e
história são determinantes literários tão significativos quanto gênero.” 6
No rastro das ideias postuladas por Showalter (1994) e da obra aqui analisada, evidenciamos
como a escritora Leticia problematiza o lugar ocupado pela mulher na sociedade patriarcal. Se, por
um lado, houve a construção de um modelo que relegava o sexo feminino ao âmbito do lar, onde
sua tarefa seria a de cuidar da casa, dos filhos e do marido, e, sendo sempre totalmente submissa a
ele, por outro lado, a desconstrução desse estereótipo de gênero passa a ocorrer nos limites do lar
quando a mulher questiona a subordinação aos padrões e normas impostas pelos homens. Assim, a
literatura permite a expressividade feminina, possibilitando-lhe revelar a sua experiência e uma
nova ordem social e simbólica.
Na ficção brasileira escrita por mulheres, a casa nem sempre é o local de tranquilidade e de
paz; muitas vezes, é descrita como um lugar de conflitos e embates em que a mulher luta para fugir
das opressões do patriarcado. Em A casa das sete mulheres podemos “ler a casa” por meio dos
diferentes comportamentos de algumas personagens: D. Antônia, D. Ana e Maria Manuela, as irmãs
do general Bento Gonçalves, desejam manter a casa em ordem seguindo os moldes de uma família
tradicional, enquanto as mais moças, Manuela, Mariana e Rosário, sobrinhas do general, contrárias
às ordens estabelecidas, almejam “fugir” (essa fuga pode ser real ou apenas simbólica) da casa em
busca de outros espaços. Ao analisarmos a representação da casa na literatura, uma indagação
emerge: quais as imagens suscitadas pela casa constituídas a partir das relações entre personagem e
espaço?
5
6
Showalter, op. cit; p. 29.
Id. ibid; p. 44.
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Numa perspectiva que privilegia o espaço da narrativa, tomamos o teórico Gastón Bachelard
(1993) em A poética do espaço como referencial para discutirmos os valores de intimidade do
espaço interior, a casa, e a percepção do mesmo pelas protagonistas de A casa das sete mulheres.
Sabemos, contudo, que nas narrativas de autoria feminina o estudo do espaço não se restringe à
análise da vida íntima das personagens, pois as instâncias sociais e culturais, que levaremos em
consideração, interferem na relação espaço/personagem.
Ao se apropriar do conceito da topoanálise, Bachelard (1993) analisa como na poesia há
espaços preferidos pelo homem: a casa, o ninho, a gaveta, o cofre, o armário. Para ele, a casa seria o
nosso primeiro ninho, o cosmos onde os indivíduos são jogados assim que nascem. Um mesmo
espaço, portanto, pode assumir aspectos diferenciados: conforto, desconforto ou utopia. Segundo o
filósofo, o espaço poético é o lugar da acolhida, da intimidade e do abrigo do tempo. Dessa forma, o
espaço da casa é tomado como uma manifestação da subjetividade do indivíduo.
A casa, portanto, não é apenas um mero objeto. Conforme Bachelard (1993), “é preciso
superar os problemas da descrição [...]”7. Em A casa das sete mulheres, o ambiente doméstico e os
espaços não são pormenorizados objetivamente, mas apresentados a partir dos hábitos e sentimentos
das personagens. Quando da chegada das sete mulheres na Estância da Barra, D. Antônia solicita
que Rosa, empregada mais velha da casa, arrume os cômodos:
[...] estava tudo arregalado, os quartos todos limpos; os cinco quartos destinados as visitas
tinham lençóis alvos ainda cheirando a alfazema, as cortinas abertas para deixar o sol da
primavera entrar nas peças ainda ressentidas do úmido inverno, as jarras com água fresca e
limpa repousavam sobre cada cômoda. 8
Os quartos transmitem a ideia de privacidade e de conforto, exemplificados nas expressões
“quartos limpos” e “lençóis alvos ainda cheirando a alfazema”. Como as mulheres passariam um
bom tempo na estância devido a Revolução Farroupilha, a casa deveria funcionar como um abrigo
onde pudessem se sentir protegidas. O caráter “público” da casa, aos poucos, foi substituído por
uma vida caseira mais privada e sossegada. Diante dos conflitos que ocorriam do lado de fora, “a
casa branca era uma coisa sólida no meio do campo raso, um refúgio”.9
7
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 44.
WIERZCHOWSKI, Leticia. A casa das sete mulheres. Bestbolso, 2008. p. 20
9
Id. ibid; p. 364.
8
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A imagem da casa como refúgio nos remete à Bachelard (1993) ao afirmar que “a vida
começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa.” 10. Levadas para estância
pelo general Bento Gonçalves, as sete mulheres permaneceram distantes dos agitos da Revolução
Farroupilha. Nesse sentido, “estar em casa” simbolizava ser “colocado no berço”.
O berço transmite a ideia de maternidade. Em linhas gerais, a habitação no romance é
associada à figura feminina, o que revela a constituição de um ambiente para o cultivo dos cuidados
maternos. Com esse padrão feminino idealizado, a casa é o lugar especializado da mulher; uma
mulher que educava os filhos, esperava o marido e cuidava dos afazeres domésticos:
As mulheres ocupavam-se com seus assuntos menores; falavam dos filhos; do calor do
verão; tinham um olho posto nas conversas, porém, com o outro fitavam seus homens: tudo
o que lhes faltasse, de comer e de beber, do corpo ou da alma, eram elas que proviam. 11
Em A casa das sete mulheres, o espaço se torna cada vez mais feminino em virtude do
deslocamento dos homens. Dentro da casa, as mais novas eram criadas pelas matriarcas para
corresponderem a um modelo tradicional de família: mulher esposa e mãe. As moças, futuramente,
quando casadas, deveriam cuidar dos filhos e prover a casa. Na fala de D. Antônia, esse modelo de
mulher é evidente: “Está já para casar, Perpétua. É preciso que le achemos um bom marido,
menina.”12
Reduto do conservadorismo, representado pelas irmãs do general Bento Gonçalves, a casa
da Estância da Barra é uma projeção da personalidade de seus ocupantes. O espaço estava se
tornando um lugar sob o controle feminino. Esse controle era palpável e real por meio da imposição
de regras. Nas palavras de Bachelard (1993), “encaramos a casa como um espaço de conforto e
intimidade, como um espaço que deve condensar e defender a intimidade.”13
A defesa da intimidade e da tranquilidade da casa era mantida por D. Antônia e D. Ana.
Essas personagens representavam as senhoras da Estância da Barra, a quem as moças deviam
obediência.
As tias inventaram o causo do baile para que nos ocupássemos dessa alegria e deixássemos
a vida andar lá para a Corte. Eram sábias, tinham essa sabedoria que a vida não ensina, mas
que vem no sangue de alguns viventes, acho que por herança. Armavam estratagemas,
10
Bachelard, op. cit; p. 26.
Wierzchowski, op. cit; p. 13
12
Id. ibid; p. 26
13
Bachelard, op. cit; p. 64.
11
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como o irmão general. As duas regiam a vida da família, da ala feminina da família, com
manobras dignas de uma batalha. Dia após dia, D. Ana e D. Antônia nos roubavam das
garras do medo e do desencanto, e nos protegiam naquela redoma de paredes caiadas, onde
para tudo havia um horário e uma norma, menos para a desesperança. 14
Contudo, em A casa das sete mulheres, as disputas e embates sobre essas atitudes
conservadoras estavam presentes nas vozes das moças, Manuela, Rosário e Mariana. Há uma
crítica, na voz de Manuela, à esfera doméstica que tenta reduzir a mulher à categoria de mãe e
esposa, tendo no casamento o seu último fim na ânsia de interditar a sexualidade das moças: “Não
era justo que me obrigassem a casar com um primo que eu não amava”. 15
Sem precisar se deslocar para fora da casa, é nos limites desse espaço que as protagonistas
expõem sua insatisfação diante das normas. Como assegura Bachelard (1993), “a casa não é uma
caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico.”
16
. Dentro desse ambiente, novas
identidades são postas em confronto com o conservadorismo das vozes tradicionais.
Rosário, Manuela e Mariana, sobrinhas do general Bento Gonçalves, trilharam caminhos
distintos em busca de sentidos para suas próprias vidas, da liberação dos desejos contidos, das
interdições sentimentais, das frustrações veladas. Personagens que ilustram os anseios e as
conquistas das mulheres ao longo dos tempos.
Mulheres em fuga: A busca de um teto todo seu
A casa das sete mulheres apresenta diversos perfis e posicionamentos femininos sobre amor,
casamento e família; a moradia é um campo de agitações. Esse ambiente privado é o núcleo
privilegiado que expressa a relação entre personagem e espaço na narrativa. Apesar de questionar os
papeis atribuídos à mulher pela sociedade, Leticia Wierzchowski não desloca essas mulheres para o
espaço público; é dentro do universo feminino e da intimidade do lar que as contestações ocorrem.
Ao aventar personagens (Manuela, Rosário, Mariana) que se contrapõem ao discurso
cristalizado sobre a mulher - “rainha do lar”, “esposa fiel”, “mãe”-, a escritora mostra como a
mulher pode conviver com o conflito “sem sair de casa”. A mulher instaura novos rumos em busca
de sua liberdade nos entornos da casa, sem, necessariamente, abdicar do seu espaço íntimo; um
espaço produtivo para discussões, questionamentos, imaginação e criatividade.
14
Id. ibid; p. 163.
Id. ibid;; p. 284.
16
Bachelard,op. cit; p. 62.
15
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Sobrinha do general Bento Gonçalves, considerada por suas tias, D. Antônia e D. Ana,
como uma moça frágil, com olhos úmidos afeitos a pranto, sem consistência forte como as mulheres
da família dos Gonçalves da Silva Rosário era a mais citadina de todas: sonhava com os bailes dos
luxuosos salões de Paris e do Rio de Janeiro, em conhecer a Europa, em comprar vestidos da moda.
Diferentemente das outras irmãs, ela tinha certa “finesse”; não nutria paixões pela vida campeira.
Quando a mãe fora lhe dizer que deixariam Pelotas para ficar uns tempos na Estância da
Barra, trancara-se no quarto por uma tarde inteira e chorara amargas lágrimas. Queria
conhecer Paris, Buenos Aires, Rio de Janeiro, queria os bailes da Corte, as danças e a vida
alegre que as damas deviam levar [...]. 17
Dominada por um forte desejo de encontrar outro espaço menos regulador, Rosário passa a
frequentar o escritório da casa, uma biblioteca, fantasiando encontros com um ex-combatente de
guerra, Steban. A aparição fantasmagórica de Steban representa a imaginação criadora de Rosário,
ou melhor, a maneira que a personagem feminina consegue escapar dos ditames da família ao
devanear na tentativa de libertar-se da atenção apurada de suas tias.
Rosário entrou no escritório. Alguma escrava já tinha acendido o lampião. A luz tênue
dançava na sala, e da janela ainda vinha a claridade dourada do entardecer. Rosário puxou
um pouco as cortinas, sentou na poltrona de couro negro, com a qual já começara a criar
uma certa relação. Quando pensava em Steban, era o cheiro daquele couro que lhe vinha às
narinas. Steban não tinha odor de seu, mas que cheiro teriam os espectros? Rosário irritouse com essa conjectura: Steban era um homem, nada mais, nada menos do que isso, um
soldado valente e belo. E o amava. Viam-se em segredo, pois sim, mas dizer o quê às tias e
à mãe? 18
A fantasia é uma resposta à restrição conferida à individualidade da moça; em detrimento de
sua satisfação pessoal, há uma contradição entre as funções: aderir ao ideal da família ou assumir o
desejo individual? A personagem elege a segunda opção, instituindo situações ilusórias. Bachelard
(1993) adverte que a casa é o lugar do devaneio19: “Nessas condições, o benefício mais precioso da
casa, é permitir ao indivíduo sonhar em paz.”20. Ao devanear, Rosário cria outro espaço, imaginário
e utópico. Evadindo-se do espaço da casa, considerada como louca por suas tias, essa personagem,
17
Wierzchowski,op. cit; p. 27.
Id. ibid; p. 101.
19
Para Bachelard (1988), o devaneio é uma atividade onírica na qual vigora uma clareza de consciência com um
sonhador que mantém presente em seu devaneio; é um atributo psíquico que possibilita ao sujeito a evasão temporal e
espacial do universo pragmático e, consequentemente cerceador. Essa visão bachelardiana aproxima-se do pensamento
freudiano sobre o devaneio.
20
Bachelard, op. cit; p. 26.
18
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amando um homem que não existia, foi levada para um convento. Essa atitude revela a instabilidade
que Rosário talvez pudesse causar no patrimônio dos Gonçalves da Silva, atenuando o número de
casamentos prováveis dentro da escala familiar. Para D. Antônia, a loucura de Rosário era
contagiosa e podia passar para as outras moças da casa, visto que “para as mulheres do pampa, nada
é mais incompreensível do que aquilo que não se pode tocar ou mensurar, e tudo que é volátil
assusta e desorienta.” 21
Outra personagem que “desordena” as bases familiares é Mariana. Irmã de Manuela e
Rosário, sonhadora, como Perpétua, na conquista de um casamento exemplar, permaneceu solitária
dentro da Estância da Barra. Sem encontrar um pretendente, Mariana se apaixonou por um peão,
João Gutierrez. Bom violeiro, João aparentava uma proximidade com traços indígenas, e Mariana
“achou nos dias uma graça toda nova, e na solidão daquela estância, o terreno perfeito para ver
florescer seu amor”. 22
Amantes, Mariana e João Gutierrez jamais seriam vistos de bom grado pelas mulheres da
Estância da Barra. Grávida e trancada num quarto por sua mãe, Maria Manuela, Mariana
“imaginava seus anos sem João, temia pelo futuro da criança que trazia no ventre. Será que a
mandariam embora, para um convento ou clausura pior?”23. Maria Manuela temia a honra de sua
filha, temia os valores que tanto apregoou, uma educação voltada para o código moral cristão; o que
diriam de uma moça solteira?
A junção entre Mariana e João Gutierrez representa a hibridização; o branco e o índio unidos
configuravam a mescla que pode ser lida como representação da formação do povo sul-riograndense, o que desconstrói a imagem de uma descendência ariana. Esse pluralismo na
composição da gente do Rio Grande do Sul foi tematizado por Érico Veríssimo em O tempo e o
vento. Se “lermos” a Estância da Barra metonicamente como uma porção do Rio Grande,
imaginamos que a escritora Letícia Wierzchowski chame atenção para as identidades díspares
presentes na formação do espaço sulino.
A multiplicidade étnica pode ser vista também como uma desestabilização ao modelo
tradicional de família. A autora de A casa das sete mulheres confere à constituição étnica do gaúcho
uma configuração plural, na participação do índio João Gutierrez. O amor proibido entre Mariana e
o peão sintetiza o jogo entre tradição e modernidade germinado no interior da moradia. Matias, o
21
Wierzchowski ,op. cit; p. 350.
Id. ibid; p. 396.
23
Id. ibid; p. 447
22
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filho gerado desse encontro torna explícito o quanto a noção tradicional de família foi alterada.
Mariana questiona a estrutura familiar clássica, pelejando para manter o seu desejo e a sua
individualidade.
Outra personagem que desestrutura os moldes tradicionais da família dos Gonçalves da
Silva é Manuela. A presença de Manuela no romance conduzindo boa parte da narrativa implica a
sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos” que estão sendo narrados.
Observamos o enredo pela ótica dessa protagonista, o que não deixa de ser uma forma de subverter
o modelo tradicional da narrativa histórica, no qual a voz masculina expunha os fatos; em A casa
das sete mulheres é pela ótica da mulher que a história dos farroupilhas e da família dos Gonçalves
da Silva é contada.
Os dias que se seguiram à notícia da guerra foram repletos de boatos e de angústias.
Andávamos todas sobressaltadas, olhando o horizonte, como se dele viessem os socorros,
para nossos medos. Mas nada vinha, a não ser as chuvas que traziam o fim do verão, e um
silêncio que pesava nossas noites e que D. Ana se esforçava para quebrar, tocando o piano
por muitas horas. 24
[...]
Ficamos sabendo de batalhas travadas no passo de Lajeado, entre as tropas de João Manoel
de Lima e Silva e as de Bento Manuel, o traidor e tocaio do meu tio. As notícias diziam
também que os rebeldes estavam em maioria e que tinham causado grandes baixas nas
tropas imperiais.25
No romance de extração histórico contemporâneo, a história é narrada por outro viés: pela
perspectiva daqueles que, geralmente, não obtiveram lugar de destaque no discurso histórico. Em A
casa das sete mulheres, isso é exemplificado justamente pela narradora homodiegética26 Manuela.
Há uma interdependência entre a personagem e a história contada, visto que um determina o outro;
Manuela está narrando em vez de ser narrada, embora haja a presença de outro narrador em terceira
pessoa – heterodiegético – no romance.
24
Id. ibid; p. 96.
Id. ibid; p. 96.
26
O estudioso francês Gérard Genette, de acordo com Regiga Zilberman (2012), classifica os diferentes níveis da
diegese: o narrador se coloca fora do evento (narrador extradiegético); o narrador conta sua própria história
(intradiegético); o narrador insere uma outra história dentro da história principal (narrador metadiegético). Por sua vez,
o romancista pode escolher entre duas atitudes narrativas: fazer contar a história por uma de suas personagens (narrador
homodiegético) ou por um narrador estranho à história (heterodiegético). Genette conceitua narrador homodiegético
como sendo aquele que pertence à história narrada. Esse modelo proposto por ele não encerra o tipo de narrador de um
romance, tendo em vista a interpolação de várias posições de focalização e o caráter polifônico da narrativa já apontada
por Mikhail Bakhtin. Para mais detalhes, consultar Regina Zilberman (2012).
25
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A narradora homodiegética, particularmente nas narrativas de autoria feminina, como no
caso de A casa das sete mulheres, alarga a possibilidade de representação do feminino, expressando
as ideias que recobrem os debates sobre gênero, dentre as quais citamos as discussões sobre
casamento dentro dos ditames do patriarcalismo.
No romance analisado, uma das intrigas centrais é a história de amor entre Manuela e o
italiano Giuseppe Garibaldi. Conhecida como a “eterna noiva de Garibaldi”, a sobrinha de Bento
Gonçalves foi prometida por seu tio a Joaquim, filho do general. Essas relações de compadrio e
parentesco, na visão de D. Antônia e de D. Ana, eram importantes porque facilitavam os negócios
comerciais.
Em conversa com sua mãe, Manuela é repreendida:
Vosmecê tem compromisso, minha filha. Joaquim é como se fosse seu noivo. Vosmecês
hão de casar brevemente, seu pai deixou tudo acertado com seu tio, não esqueça... ademais,
esse italiano, por mais que bons sorrisos tenha, não foi feito para usted. É um homem sem
casa, sem pouso. Um pássaro. Sabe-se lá de onde vem e para onde vai. É um aventureiro. 27
A paixão entre Manuela e Garibaldi não poderia ser consumada. Para a família dos
Gonçalves da Silva, era um risco a união entre pares diferentes, social e economicamente. Além
disso, a moral e a tradição familiares seriam mantidas mediante o casamento arranjado. Logo, os
desejos amorosos de Manuela foram reprimidos por sua tia, D. Antônia, em carta endereçada a
Bento Gonçalves.
[...] Manuela está mui apaixonada pelo marinheiro italiano, no que é plenamente
correspondida por ele, que sempre a tratou com toda a elegância e honradez, e que tem por
ela desejos de casamento. Porque sei que vosmecê tem já planos para Manuela e Joaquim é
que le escrevo. E também porque imagino nesse italiano um sangue mui afeito a aventuras,
e não sei se seria um bom marido para Manuela. [...]28
Notamos, a partir da citação destacada, que a moça destinada ao casamento era bemcuidada, trancafiada no ambiente doméstico e constantemente vigiada pelas senhoras. Nesse tipo de
casamento, conforme já salientado, a virgindade era um requisito fundamental. Portanto, Manuela,
em nome da sustentação do status da família, deveria afastar-se do marinheiro italiano, que possuía
“sangue mui afeito a aventuras”, evitando uma aproximação mais íntima.
27
28
Id. ibid; p. 246.
Id. ibid; p. 260.
III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
15 a 17 de Maio de 2013
Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador - BA
Como uma prática transgressora, a paixão de Manuela pelo italiano Giuseppe Garibaldi
representa um insulto ao modelo esperado para uma mulher, segundo a tradição patriarcal, qual
seja, o de mãe/esposa. Considerado um aventureiro, Garibaldi não se constituía em um homem ideal
para a sobrinha do general Bento Gonçalves. Como afirma Lúcia Santaella (2009), “não é estranho,
portanto, que a sociedade persiga com mesmo ódio o amor e a poesia, e os lance à clandestinidade,
à margem, ao mundo turvo e confuso do proibido, ridículo, anormal”.29
Devido à impossibilidade dessa consumação amorosa, Manuela corta o cabelo, símbolo de
virtude e virilidade. O ato de cortá-lo mostra como a mulher, naquele instante, tomou para si o
domínio do seu corpo. Uma das temáticas referendadas nos textos de autoria feminina é a falência
da família patriarcal e a violência simbólica. Segundo Elódia Xavier (2012)30, várias são as
narrativas que apontam tais questionamentos, desde o corpo “disciplinado”, que segue as normas,
“ao corpo degenerado”, que burla as regras sociais como forma de resistência, como fez Manuela,
traduzindo a sua insatisfação com a vida na Estância da Barra.
Os fios arrumados, sedosos e brilhantes representavam a sistematização direcionada às
moças da casa: boas vestimentas, bons comportamentos, conservação da beleza. Já o corte/a ruptura
remete à vontade da personagem de desligar-se daquele mundo fechado da Estância da Barra, que
reprimia a liberdade das moças.
Quando as mulheres da Estância da Barra interrogam a respeito do casamento, do amor e do
destino, instituem choques entre o sistema patriarcal e a voz feminina emergente; as moças
reconhecem a sua condição dentro da casa e almejam lutar pelo manejo de suas próprias vidas.
Manuela opta por não se casar com Joaquim e fica solteira; em contrapartida, Rosário, presa no
convento, se suicida, escolha que efetiva o seu livre-arbítrio.
Diante dos diversos perfis e posicionamentos femininos em relação ao amor, ao casamento e
à família, observamos como a casa é um campo de agitações. Esse ambiente privado é o núcleo
privilegiado que expressa a relação entre personagem e espaço na narrativa. Apesar de questionar os
papeis atribuídos à mulher pela sociedade, a escritora de A casa das sete mulheres não a desloca
para o espaço público; é no interior do universo feminino e da intimidade do lar que as contestações
ocorrem. Ao apresentar personagens (Manuela, Rosário, Mariana) que se contrapõem ao discurso
29
30
SANTAELLA, Lúcia. “Subversão de hábitos”. In: Lições e subversões. São Paulo: Lazulli Editora, 2009. p.19.
XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012.
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cristalizado sobre a mulher – “rainha do lar”, “esposa fiel”, “mãe” –, Leticia Wiezchowski mostra
como ela pode conviver com o conflito “sem sair de casa”. A mulher instaura novos rumos em
busca de sua liberdade nos entornos da casa, sem, necessariamente, abdicar do seu espaço íntimo;
um espaço produtivo para discussões, questionamentos, imaginação e criatividade.
Referências
ALVES, Ívia. “Imagens da mulher na literatura na modernidade e na contemporaneidade.” In:
SÍLVIA, Lúcia Ferreira e NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. Imagens da mulher na cultura
contemporânea. Salvador: UFBA, 2002. p. 85-98
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
_______ . A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
GOTLIB, Nádia Batella. A literatura feita por mulheres no Brasil (1998). Disponível em:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm. Acesso em: 10 de janeiro de
2013.
LOBO, Luiza. A literatura de autoria feminina na América Latina (1997). Disponível em:
http://members.tripod.com/~Ifilipe/Llobo.html. Acesso em: 15 de março de 2013.
SANTAELLA, Lúcia. “Subversão de hábitos”. In: Lições e subversões. São Paulo: Lazulli Editora,
2009. p. 15-45.
SHOWALTER, Elaine. “A crítica feminista no território selvagem”. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de. (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994. p. 23-57.
XAVIER, Elódia. A casa na ficção de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 2012.
ZILBERMAN, Regina. Teoria da literatura 1. Paraná: IESDE Brasil, 2012.
WIERZCHOWSKI, Leticia. A casa das sete mulheres. 4 ed. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2008.
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figurações do espaço em a casa das sete mulheres