CENAS EM UMA REVOLUÇÃO Autor: Santo Só Benjamim foi recebido por seu tio Angelino em seu estúdio fotográfico, situado na parte frontal da casa em que morava, em Porto Alegre. -Bem vindo, Benjamim, nós o estávamos esperando. Como está sua mãe e todos mais na Itália? –Perguntou Angelino. -Estão bem. A minha mãe insistiu para que eu o procurasse. Espero não incomodar. -De modo algum. É bom poder receber algum parente. Seu quarto está preparado. Venha ver o restante da família. Benjamim, com sua única mala, foi introduzido na parte residencial da casa, abraçou a tia e duas crianças menores. -Vou acomodá-lo em seu quarto. Tome um banho e, depois, venha comer alguma coisa. Mais tarde, Angelino reuniu-se com Benjamim e expôs: -A procura por serviços de fotografia é maior do que eu consigo atender. Se você estiver disposto a me ajudar, não vai faltar trabalho. No futuro, poderá abrir seu próprio atelier. -Que tipo de fotografia é mais procurado? -Naturalmente, são os retratos. As pessoas querem guardar a sua imagem e a da família para posteridade. O que o levou a vir para o Brasil? -Eu tive alguns desentendimentos com pessoas perigosas. A minha mãe ficou com medo e insistiu para que eu me afastasse por algum tempo. -Ela me havia contado a seu respeito. Eu escrevi para ela que estava precisando de um auxiliar e, se você desejasse vir para cá, seria muito bem-vindo. Espero que goste e fique definitivamente por aqui. As oportunidades para um fotógrafo são maiores do que na Itália. -É cedo para decidir. Eu me arrisquei auxiliando as forças de Vittorio Emanuele II na guerra para libertação da nossa região e trabalhei pela unificação com a Itália. Nós conseguimos, mas, nada mudou. Os donos continuam os mesmos, sem novas oportunidades. Isso fez com que eu me associasse a outros contestadores e sofresse retaliações. -Espero que morar numa cidade provinciana como Porto Alegre não o aborreça. Praticamente, eu só saio a trabalho. Permaneço quase todo tempo em casa, lendo ou cuidando do jardim que temos nos fundos. -Eu não tenho o hábito de permanecer muito tempo trancado. Contudo, espero ser possível estabelecer algumas amizades. -Quanto a isso, eu posso apresentar alguns conhecidos. Só recomendo que tenha cuidado para não assumir compromissos políticos. Atualmente, o Rio Grande do Sul vive uma guerra. De um lado, estão os aliados de Gaspar Silveira Martins, apelidados maragatos. Do outro, os apoiadores do governo de Júlio de Castilhos, apelidados de pica-paus. Em várias cidades, principalmente no sul, há enfrentamentos armados com muita crueldade. Nesta capital não ocorrem combates, mas, os governistas não perdoam quem lhes faça oposição. -Na Itália, eu já assisti a muita carnificina e não desejo ver mais. * Benjamim logo se adaptou ao trabalho, conforme lhe ia sendo destinado. De temperamento extrovertido, procurou se relacionar bem com algumas pessoas apresentadas pelo tio. Em geral, outros imigrantes com idade aproximada à sua. Depois de algum tempo, Bernardo, um dos seus novos amigos, explicou: -Eu não participo das atividades revolucionárias maragatas, mas, simpatizo com as ideias federalistas de Silveira Martins. Tenho relações com pessoas ligadas ao movimento. Você poderia vir comigo para assistir uma das suas reuniões. Tendo participado das lutas pela independência e unificação da Itália, eles gostariam de ouvir o seu depoimento. -Se não houver comprometimento, pode ser uma oportunidade para eu conhecer outras pessoas e me inteirar mais sobre os costumes locais. -Apenas, não fale para ninguém. As reuniões precisam ser secretas para evitar alguma denúncia mal intencionada à polícia do Estado. Sem maiores cuidados, Benjamim aceitou o convite. Ao seu espírito irrequieto, parecia ser uma chance para distração das atividades quotidianas. No dia aprazado, indo ao local indicado, foi apresentado a uma dezena de pessoas, nessa vez, quase todos naturais do Brasil. Solicitado a falar sobre suas experiências bélicas, contou alguma coisa sobre a guerra contra o Império Austríaco para libertação do norte da Itália. Concluiu dizendo que tinha curiosidade de conhecer mais sobre a revolução que se tratava no Rio grande do Sul. Gumercindo, o dirigente do grupo, explanou: -O nosso Estado está sendo governado por Júlio de Castilhos, o qual se diz adepto da doutrina positivista de Augusto Conte. O fato é que sustenta um sistema autoritário que não admite a menor interferência de opositores. As pessoas do governo anterior foram totalmente alijadas de qualquer participação. O setor pecuaristas que representado quase todo setor produtivo do Estado não é ouvido e, menos ainda, tem seus pleitos levados ao governo central do Brasil. A situação chegou a tal ponto que, esgotadas todas as tentativas de diálogo, a oposição chefiada por Silveira Martins que já foi Presidente do Estado tomou em armas. Há lutas em vários cantos do Rio Grande, principalmente, nas cidades do sul. O nosso grupo apoia esse movimento, especialmente, seus princípios de federalismo, liberdade e governo parlamentarista. Aqui em Porto Alegre, praticamente nada se faz, exceto algumas conexões. Com mais alguma argumentação, Benjamim ficou vivamente interessado em escutar o que era discutido nas reuniões do grupo, sem qualquer outra participação. Comunicou sua disposição a Angelino, ouvindo do tio as ponderações: -Não penso que seja uma boa ideia você continuar frequentando essas reuniões. Nós somos estrangeiros e não temos que aderir a um ou outro grupo. Benjamim respondeu sorridente: -Não se preocupe. Eles concordaram que seria contraproducente, como estrangeiro, eu aparecer com responsabilidade por alguma decisão. Compareço, apenas, para me distrair. -Se a polícia atuar, não irá fazer distinção entre quem está ou não se propondo exercer alguma atividade. O que você tem a ganhar? -Eu, apenas, não gosto de governos autoritários e me faz bem ouvir quem discursa contra. -Os pica-paus se dizem republicanos e positivistas, os maragatos se dizem federalistas e liberais, mas, em verdade, os dois lados brigam mesmo é para assumir as benesses do poder. -Esteja certo de que eu não sou nenhum fanático. * Pouco tempo depois, Angelino chamou o sobrinho e falou preocupado: -Eu fui chamado na delegacia e perguntado sobre as suas atividades políticas. Eles me disseram que é para você se apresentar. Em caso contrário, virão buscá-lo. -O que vai me acontecer? -O normal seria, apenas, responder algumas perguntas, mas, nunca se pode saber o que pretendem. As lutas estão sendo por demais perversas. Em Rio Negro os maragatos foram acusados de degolar grande número de prisioneiros. Apesar de negarem os números, a título de vingança, em Capão do Boi Preto os governistas degolaram mais de trezentos inimigos. Desde então, repetem-se mais atos de selvageria, com muitas degolas. Os combates se travam, em grande parte, entre gente tosca, acostumada a tratar com gado. -Agora, fiquei preocupado. Não há como eu me ocultar? -Você poderia se refugiar na colônia italiana, até esta onda passar. Entre descendentes de italianos, pouco se distinguiria e, desde que não se envolva em política, passaria despercebido. Eu tenho um amigo na Colônia Alfredo Chaves. Não é tão perto, mas, tenho certeza de que ele faria gosto em acolhê-lo. O nome dele é Leonardo Pisonello e possui um armazém localizado em frente à praça principal da vila. -Nas atuais circunstâncias, parece-me uma boa ideia. Eu tinha, mesmo, o propósito de, algum dia, conhecer essa região. Eu pouco conheço e teria dificuldade para viajar sozinho sem me identificar. O pessoal das reuniões formou um grupo que irá a Passo Fundo para fazer contato com os federalistas de lá. Irão passar por colônias alemãs e italianas. Posso confirmar se isso será logo e se incluem Alfredo Chaves. Eu poderia ir junto e ficar no caminho. -Se não quiser arriscar ficando aqui, precisa andar depressa. Acredito que a polícia não vá esperar muito tempo para vir buscá-lo. Procurando se informar, Bejamim soube que iriam viajar em seguida. A célula estava sendo investigada, iriam mudar de lugar e não havia tempo para espera. Aceitaram de bom grado a adesão. No mesmo dia, quando comunicava para Angelino a sua decisão de viajar imediatamente, viram chegar à entrada do estúdio fotográfico dois policiais fortemente armados. Benjamim escapou pelos fundos, pulando o muro da casa vizinha e se dirigiu ao ponto de encontro. Lá se encontravam cinco pessoas, inclusive Gumercindo, preparando as suas montarias. Havia um cavalo destinado para ele. Decidiram seguir imediatamente, seguindo em direção a São Sebastião do Caí. Haviam andado alguns quilômetros quando foram alcançados por um cavaleiro a trote. Ele comunicou que precisavam andar depressa porque havia um destacamento com cerca de vinte homens para ir ao encalço deles. A notícia os fez apressar o tranco. Seguiram, inicialmente, em direção à zona de colonização alemã, passando por Montenegro, São José do Hortêncio e são Sebastião do Caí. Em alguns lugares, havia correligionários conhecidos. Acampavam nos arredores das povoações e, veladamente, procuravam mantimentos. O descanso era pouco. A partir daí subiram a serra em direção aos povoamentos de origem italiana: Colônia Conde D’Eu, Sede Dante, Colônia Dona Izabel e, finalmente para Benjamim, Colônia Alfredo Chaves. * Quando o grupo se acercava da Colônia Alfredo Chaves, percebeu a aproximação de precursores do destacamento que estava ao seu encalço. Chegaram até o trecho do Rio das Antas que facilitava a travessia e cruzaram para o outro lado, entrincheirando-se ao longo da margem. Procurando aparentar haver recebido reforços e estar em maior número, disparavam de vários pontos, impedindo a travessia. Anoitecia e os inimigos, provavelmente, iriam descansar. Entretanto, ao amanhecer, seria impossível sustentar o engodo. A situação era crítica e resolveram tentar um estratagema. Prenderam seus laços aos galhos de algumas árvores e a dois cavalos. Ao serem movimentados, davam a impressão de haver um número maior de combatentes. Enquanto quatro cavaleiros com os todos os apetrechos se dirigiram para acampar no outro lado da vila, Gumercindo e Benjamim permaneceram se deslocando de uma posição para outra e fazendo disparos. Após o tempo calculado, dirigiramse rapidamente na direção dos demais. Gumercindo propôs: -Eu conheço o amigo do seu tio Angelino. Já comprei com no Armazém Pisonello. É melhor que nós o acordemos agora. A esta hora, ninguém nos irá ver. Colocaram os cavalos no pátio do armazém e foram bater na porta da residência localizada na parte posterior da mesma casa. Sonolento, Leonardo espiou por uma janela e foi atender. -Eu venho da parte do seu amigo Angelino de Porto Alegre. Ele me pediu que eu lhe trouxesse o sobrinho. –Disse Gumercindo. -Entrem. É um prazer receber um sobrinho do meu amigo. Infelizmente, nesta hora não tenho nada de bom para oferecer. Benjamim entregou a carta que o tio enviara. A missiva era bem sucinta, evitando ocasionar comprometimento no caso de uma captura. Leonardo logo entendeu, bem como, as explicações que, em seguida, Benjamim apresentou. -Farei muito gosto em que fique aqui em casa. Eu devo muito ao seu tio. Apenas, hoje, é melhor que você e o seu cavalo fiquem escondidos na minha chácara, só dando entrada oficial na vila depois de dois dias. Desse modo, não será relacionado com o grupo que está sendo perseguido. Pode ser exagero, mas, devemos evitar que algum informante do intendente nos traga problemas. –Propôs Leonardo. Tudo acertado, Benjamim foi conduzido até a chácara de Leonardo nos arredores da vila, enquanto Gumercindo seguia o seu caminho. * Dois dias depois, Benjamim foi avisado de que já poderia se dirigir abertamente à residência de Leonardo. A casa era grande e possuía um anexo onde ele estaria bem alojado. Leonardo propôs: -Se você estiver disposto a trabalhar, poderá me ajudar visitando as colônias. Levará mercadorias e comprará produtos agrícolas que eu guardo para revenda na vila ou a adquirentes de fora. -Eu penso que seria ótimo. Basta me ensinar como fazer. Nas semanas seguintes, Leonardo acompanhou Benjamim em andanças pelos lotes coloniais das redondezas. Havia, também, colônias de poloneses localizadas próximas. Elas foram formadas depois, obtiveram terras piores e estavam, ainda, mais atrasadas. Apesar de cansado, Benjamim se sentia em perfeita forma. O contato com a natureza verdejante e o trabalho árduo dos colonos lhe era estimulante. Era início da primavera e, ao sábado, seria realizado um baile no clube local. Benjamim combinou com um auxiliar do armazém para comparecerem. Na entrada do salão havia um bar onde se ofereciam bolinhos, refrescos e vinho. O conjunto musical, formado por pianista, acordeonista e baterista, tocava valsas, polcas e, algumas vezes, tangos. Benjamim foi apresentado a outros rapazes, curiosos em saber como era a vida na Itália. O seu interesse foi despertado por uma moça que, com ele, trocou olhares. Informou-se e decidiu convidá-la para dançar. Ao concordar, ela se mostrou faceira e perguntou: -Você não é daqui? Qual é o seu nome? -Eu me chamo Benjamim. Sou nascido na Itália e, como muitos outros, decidi tentar a fortuna na América. Estive em Porto Alegre a convite de um parente, mas, preferi testar o futuro nesta terra de patrícios. E você? -O meu nome é Clara Maria. Estudo e ajudo meu pai na farmácia. -Ele é farmacêutico? -Meu pai trabalhou em uma farmácia de Porto Alegre e, com a experiência que adquiriu, abriu uma farmácia aqui. Como não temos médico, é ele que atende as doenças menos graves. Depois de dançarem e conversarem um pouco, Clara Maria pediu licença para sentar, deixando um convite: -Amanhã eu vou à festa da paróquia. Você vai comparecer? -Se puder falar com você, eu vou. Ao lado da Igreja, o salão paroquial estava ocupado com longas mesas e bancos destinados ao uso de grande número de pessoas. No pátio ao lado, bancas de madeira estavam armadas para oferecer diversos tipos de doces e produtos coloniais elaborados. Em outras, havia sorteios, pescarias e outras atrações. Todas eram cuidadas por paroquianos com renda destinada para a Igreja. Benjamim circulou até avistar Clara Maria junto com um grupo de amigas que trocavam risos e confidências. Ela parecia liderar o grupo. Benjamim se aproximou e a cumprimentou. Logo, as amigas se afastaram discretamente. Benjamim e Clara Maria conversaram por algum tempo, até ela dizer que precisava auxiliar o preparo das mesas e, em seguida, a distribuição do almoço. -Eu gostaria de visitá-la. Você aceita? -Se vier à minha casa no final da tarde, poderemos conversar alguns minutos no portão. Ele, certamente, compareceu e, deste modo, iniciou-se um namoro. * Leonardo mantinha amizade com o coletor Mariano, uma pessoa surpreendentemente culta para o vilarejo. Ele manifestou gosto em conversar com Benjamim sobre as condições da Itália. Por sua vez, Benjamim procurou conhecer as opiniões dele sobre o ambiente e a Revolução Federalista. -A região colonial não está implicada diretamente e, para nós, o melhor que temos a fazer é ficarmos afastados, sem apoiar qualquer dos lados. –Disse Mariano. -É estranho observar tanta truculência entre contendores que estão separados, apenas, por questões ideológicas pouco significativas. -Estou certo de que os líderes maiores de ambos os lados não apreciam a truculência. O Rio Grande do Sul ainda guarda a memória de lutas ferozes deixada pela Revolução Farroupilha, feita contra o governo central do Brasil. Talvez, isso entre em conta. -O governo atual segue, de fato, a doutrina positivista de Augusto Conte? Como é isto? -Segundo eles, só o conhecimento científico é verdadeiro. A investigação da causa dos fenômenos sociais e naturais é impossível e deve ser abandonada como inúteis e inacessíveis, assim como a teologia e a metafísica. -Qual é a sua opinião sobre essas ideias. -A ciência nos permite afirmar relações da causa e efeito as quais, sempre que foram observadas, aconteceram. Entretanto, a vida compreende complexidades que não podem ser contempladas com essa condição. Constantemente, precisamos assumir posições com base em julgamentos para os quais a ciência não tem como apresentar definição. -E quanto à Religião da Humanidade e regras de comportamento criadas por Conte? -A meu ver, a ciência não pode oferecer uma razão final para os comportamentos. Essa pretensão resulta em pretexto para a constituição de uma legislação autoritária dirigida a atender, principalmente, os interesses do legislador. -Pensa ser esse o caso do governo de Júlio de Castilhos. -É o caso de qualquer governo que não admita contestação. Nesse dia, Benjamim acreditou que Mariano apoiava a guerra desencadeada por Gaspar Silveira Martins, mas, pôde constatar, depois, que não era o caso. Em outra ocasião perguntou: -A vitória da Revolução Federalista iria resolver a situação do Rio Grande do Sul? -Não acredito. Embora seus chefes defendam ideias liberais, representam, sobretudo, uma aristocracia rural de pecuaristas que pleiteia prerrogativas fiscais. Ainda que as suas razões sejam válidas, não me parece que a revolução lhes possa oferecer solução. -O que acabará acontecendo? -Júlio de Castilhos tem, inclusive, apoio do Presidente Prudente de Morais. Não vejo possibilidade de que essa revolução seja vitoriosa. Eles acabarão por se entender. Infelizmente, até lá, muitos irão sofrer. * Benjamim continuava com seu trabalho para o Armazém Pisonello. Recebia uma comissão pelos negócios realizados em outras vilas, obtendo bons rendimentos. Como gastava pouco, podia amealhar alguma coisa. Estava cada vez mais atraído por Clara Maria. Obteve autorização para frequentar sua casa, como de praxe, permanecendo em cadeiras separadas e sendo constantemente vigiados por familiares. Clara Maria, por ser filha de farmacêutico, era vista como relativamente avançada. Nas raras ocasiões em que Benjamim podia tentar ser mais ousado, era repelido de modo pouco convincente. Benjamim nada tinha para se queixar, todavia, seu espírito irrequieto não se adaptava à monotonia da vida de uma pequena vila. Desabafou com Leonardo: -Não tenho nenhuma queixa em relação ao meu trabalho. Os meus ganhos são satisfatórios e existem oportunidades de progresso. Contudo, não me acostumo com este mundo do interior. Tenho pensado em voltar para Porto Alegre ou para a Itália. -A vila está crescendo, você deve estar guardando algum dinheiro e, em breve, poderá abrir seu próprio armazém, nesta ou em uma vila próxima. -O caso é que isso não me entusiasma. Eu sei que, ficando aqui, posso constituir família, ter bons filhos, progredir e gozar de uma vida tranquila. Não é nada desprezível, mas, o meu temperamento é ansioso demais para essa acomodação. -Já falou sobre isso com Clara Maria? -Não tenho coragem. Gosto dela e, se ficar por aqui, é por causa dela. Pensei em propor que viesse comigo para a Itália, porém, estou certo que o seu pai não permitiria. Indo para lá e conseguindo ficar bem estabelecido, talvez, eu possa voltar para buscá-la. -Se eu fosse ela, não contaria com isso. Pelo que já vi, é muito difícil acontecer. * Os dias foram passando e o pai de Clara Maria pediu para conversar com Benjamim. Demostrando preocupação, proclamou com ar solene: -Antes de minha filha conhecer você, ela tinha um pretendente pelo qual não se interessava. Giovani é ligado ao intendente, não se conformou em ser rejeitado e procurou modos para prejudicá-lo. Investigou os seus antecedentes em Porto Alegre e descobriu que existe um mandato de prisão contra você. Ele me procurou e disse que, se você não deixar Clara Maria, vai denunciá-lo à guarnição estacionada no município de Lagoa Vermelha. -Eu deixei Porto Alegre, justamente por essa confusão. Quando, apenas, havia chegado, tive a oportunidade de estabelecer amizade com pessoas que, vim a saber depois, militavam pela revolução federalista. Eu nada tenho a ver com esta guerra, mas, fui arrolado como pertencente a esse grupo. -As coisas, atualmente, estão assim. Em tempo de guerra ninguém está garantido. Talvez, seja conveniente você se afastar por algum tempo. -O que diz a sua filha? -Ela ficou muito triste, mas, não deseja assumir a culpa por algo de ruim que lhe aconteça. Ela aceitará esperar até a situação atual amenizar. Desconsolado, Benjamim foi procurar o conselho de Mariano. Revelou toda situação e argumentou: -Não posso entender a atitude de Giovani. Ele imagina que Clara Maria o aceitará, se ele me obrigar a ficar afastado? Com um sorriso, Mariano gracejou: -Comportamentos passionais não são razoáveis. Consta que Deodoro da Fonseca, embora sendo muito amigo de D. Pedro II, aceitou assinar o decreto que acabou com a monarquia porque lhe foi dito, maliciosamente, que Gaspar Silveira Martins, seu desafeto, fora nomeado para a chefia do gabinete. Ocorre que, anteriormente, uma dama havia preterido Deodoro em favor de Silveira Martins. -Acredita que o meu risco seja importante? -O perigo é pequeno, mas, real. Lagoa Vermelha viveu muitas batalhas e isso produz nas pessoas um sentimento belicoso. Não é impossível enviarem um destacamento com o fim de procurá-lo. A legislação deveria servir para garantir uma convivência social harmoniosa, tendo um cuidado máximo para não atingir pessoas de bem. Entretanto, não é assim. As leis são feitas de modo grosseiro e são usadas por indivíduos ignorantes, ou cheios de amargura para saciar seu prazer dissimulado em provocar desgosto aos outros. Eu mesmo vim para cá por causa desse tipo de maldade. - O que julga ser melhor eu fazer? -Depende de quanto risco que esteja disposto a enfrentar. É provável que nada aconteça, mas, se prefere estar bem seguro, é prudente se afastar por alguns dias. Não acredito que essa revolução possa durar. -Eu não sou medroso, mas, atualmente, tenho pouco entusiasmo para brigas. Lutei na Europa e fiquei desiludido. As guerras, se produzem alguns benefícios, eles são para poucos. -Desafortunadamente, esse aprendizado costuma acontecer tarde demais. No seu entendimento, é impossível o mundo viver sem tantas guerras? Depois de uma pausa, Mariano respondeu enigmaticamente: -A história é contada pelos vencedores, deixando um legado de soberba que é a semente de novas lutas. As guerras nascem no coração dos homens. * Depois de pesar todos os fatos e meditar sobre a sua situação, Benjamim decidiu voltar para a Itália. Acertou as contas com Leonardo e se despediu amargamente de Clara Maria, com a promessa de voltar para buscá-la, logo que conseguisse boa situação. Preferiu sair em direção a Porto Alegre quando já era escuro, tomando os cuidados que havia aprendido na vinda. Chegou à capital ao anoitecer e se dirigiu para a casa do tio. Angelino o recebeu manifestando satisfação: -Alegro-me com a surpresa. Há tempo esperava por notícias. Veio para ficar? -Resolvi voltar para a Itália. Não desejo comprometê-lo. Se me permitir, ficarei trancado em casa até poder partir. Só preciso que dê algum destino para o meu cavalo. -Como se deu em Alfredo Chaves? A acolhida de Leonardo foi satisfatória? -Muito boa. Tratou-me quase como um sócio. Eu poderia ter ficado morando lá, mas, a minha índole não se adapta a viver em um lugar pequeno. -Pode ficar morando aqui em casa. Creio não haver motivo para temores. Não fui mais procurado para dar informações a seu respeito. Agora, com a derrota dos federalistas em Campo Osório e com o aval do atual Presidente da República Prudente de Morais, prevê-se que, logo, a guerra estará terminada. -Agradeço a sua boa vontade. Decidi tentar novamente me estabelecer na Itália. Se conseguir me dar bem, talvez eu volte para buscar a namorada que deixei em Alfredo Chaves. -Se está decidido, vou escrever uma carta que peço levar para sua mãe. Fique certo de que, quando voltar ao Brasil, sempre encontrará lugar em minha casa. Tempos depois, Clara Maria recebeu uma missiva enviada por Benjamim dizendo que estava com saudades, tentando se estabelecer. A paz no Rio Grande do Sul foi assinada, pondo fim a uma guerra que teve um saldo de mais de dez mil mortos e incontáveis feridos. Giovani foi morto em uma briga que ele mesmo provocou em Lagoa Vermelha. Em carta a Clara Maria, Benjamim confessou que a sua situação era difícil e havia desistido de voltar ao Brasil. Seria melhor que ela procurasse esquecê-lo e prosseguisse com a sua vida. Clara Maria já estava conformada e assim o fez. Casou-se, teve filhos e viveu feliz. Consta que nunca deixou de lembrar o seu italianinho. FIM