O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
A revolução solitária
Valério Arcary1
Já se disse que as revoluções tardias são as mais radicais. No 25 de Abril de 1974
ruiu a ditadura mais antiga do continente europeu. A rebelião militar organizada pelo MFA,
uma conspiração dirigida pela oficialidade média das Forças Armadas que evoluiu, em poucos
meses, de uma articulação corporativa para a insurreição, foi fulminante. Abatida
militarmente por uma guerra sem fim, exausta politicamente pela ausência de base social
interna, esgotada economicamente por uma pobreza que contrastava com o padrão europeu,
e cansada culturalmente pelo atraso obscurantista que impôs durante décadas, poucas horas
foram suficientes para uma rendição incondicional. Foi nesse momento que o processo
revolucionário que comoveu Portugal se iniciou. A insurreição militar precipitou a revolução,
e não o contrário.
O atual regime semipresidencialista em Portugal não deve ser confundido como
herdeiro direto das liberdades e direitos sociais conquistados pela revolução nos seus
intensos dezoito meses. O regime que mantém Portugal como o mais pobre país europeu é o
resultado de um longo processo de reação das classes proprietárias e seus aliados nas
classes médias proprietárias. A insurreição militar agigantou-se como uma revolução
democrática, quando as massas populares saíram às ruas, que enterrou o salazarismo e foi
vitoriosa. Mas a revolução social que nasceu do ventre da revolução política foi derrotada.
Talvez surpreenda a caracterização de revolução social, mas toda revolução é uma luta em
processo, uma disputa, uma aposta em que reina a incerteza. Na história não se pode
explicar o que aconteceu considerando somente o desfecho. Isso é anacrônico. É uma ilusão
de ótica do relógio da história. O fim de um processo não o explica. Na verdade, o contrário
é mais verdadeiro. O futuro não decifra o passado. Revoluções não podem ser analisadas
somente pelo desenlace final. Ou pelos seus resultados. Estes explicam, facilmente, mais
sobre a contra-revolução, do que sobre a revolução.
As liberdades democráticas nasceram do ventre da revolução, quando tudo parecia
possível. Mas o regime democrático semipresidencialista hoje existente em Portugal não
surgiu do processo de lutas aberto no 25 de abril de 1974. Ele veio à luz depois de um autogolpe da cúpula das Forças Armadas organizado pelo Grupo dos Nove em 25 de novembro de
1975. A reação triunfou depois das eleições presidenciais de 1976. Foi necessário recorrer
aos métodos da contra-revolução em novembro de 1975 para restabelecer a ordem
hierárquica nos quartéis e dissolver o MFA que fez o 25 de abril. É verdade que a reação com
táticas democráticas dispensou uma quartelada com métodos genocidas, como tinha
acontecido em Santiago do Chile em 1973. Não foi acidental, contudo, que o primeiro
presidente eleito fosse Ramalho Eanes, o general do 25 de novembro.
1
PhD em História Social pela USP, professor do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo) e autor do livro As esquinas perigosas da história (2004), entre outros livros.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
A revolução portuguesa foi, portanto, muito mais do que o fim atrasado de uma
ditadura obsoleta. Hoje sabemos que o capitalismo lusitano escapou à tempestade
revolucionária.
Sabemos
que
Portugal
logrou
construir
um
regime
democrático
razoavelmente estável, que a Lisboa dirigida pelos banqueiros e industriais sobreviveu à
independência de suas colônias e, finalmente, se integrou na União Européia. Poderia,
todavia, ter sido outro o resultado daqueles combates, com imensas conseqüências para a
transição espanhola do final do franquismo.
O que a revolução conquistou em dezoito meses, a reação consumiu dezoito anos
para destruir e, ainda assim, não conseguiu anular todas as conquistas sociais alcançadas
pelos trabalhadores. Depois de ter incendiado durante um ano e meio as esperanças de uma
geração de operários e jovens, a revolução portuguesa colidiu em obstáculos intransponíveis.
A revolução portuguesa, a tardia, a democrática, teve o seu momento à deriva, descobriu-se
perdida e terminou derrotada. Mas foi, desde o início, filha da revolução colonial africana e
merece ser chamada pelo seu nome mais temido: revolução social.
Compreender o passado exige um esforço de reflexão do campo de possibilidades que
estava desafiando os sujeitos sociais e políticos que atuavam projetando um futuro incerto.
Em 1974, uma revolução socialista em Portugal poderia parecer improvável, difícil, arriscada,
ou duvidosa, mas era uma das perspectivas, entre outras, que estava inserida no horizonte
do processo. Já foi dito que revoluções são extraordinárias porque transformam o que
parecia impossível em plausível, ou até provável. Ao longo de seus dezenove meses de
surpresas, a revolução impossível, aquela que faz aceitável o que era inadmissível, provocou
todas as cautelas, contrariou todas as certezas, surpreendeu todas as suspeitas. Esse
mesmo povo português que suportou durante quase meio século a mais longa ditadura do
continente - abatido, prostrado, até resignado – aprendeu em meses, encontrou em
semanas e, em alguns momentos, descobriu em dias, aquilo que décadas de salazarismo não
lhe tinham permitido sequer desconfiar: a dimensão de sua força. Mas, estavam sozinhos.
Naquela estreita faixa de terra da Península Ibérica, o destino da revolução foi cruel. Os
povos do Estado Espanhol só se colocaram em movimento na luta final contra o franquismo
quando, em Lisboa, já era tarde demais. A portuguesa foi uma revolução solitária.
A vertigem do processo desafiou a solução bonapartista-presidencial de Spínola em
três meses. Spínola
foi derrotado com a queda de Palma Carlos da posição de primeiro-
ministro e a nomeação de Vasco Gonçalves e, na seqüência, a convocação de eleições para a
Constituinte antes das eleições presidenciais. Um ano depois do 25 de abril de 1974, a carta
do golpe militar já tinha sido tentada por duas vezes, e por duas vezes esmagada. A contrarevolução precisou mudar a sua estratégia depois da segunda derrota de Spínola. Três
legitimidades disputaram forças depois do 11 de março de 1975: a do Governo provisório
sustentado pelo MFA, com o apoio do PC; a do resultado das urnas para a Constituinte eleita
em 25 de abril de 1975, em que o PS se afirmou como a maior minoria, mas que poderia ser
defendida como uma maioria, quando considerado o apoio dos partidos de centro-direita
(PPD) e direita (CDS); e aquela que surgia da experiência de mobilização nas empresas, nas
fábricas, nas universidades, nas ruas, a democracia direta da auto-organização.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
Três legitimidades políticas, três blocos de classe e alianças sociais, três projetos
estratégicos, enfim, uma sucessão de governos provisórios em uma situação revolucionária,
com uma sociedade dividida em três campos: o do apoio ao governo do MFA, e duas
oposições, uma de direita (com um pé no governo e outro fora, mas com importantes
relações internacionais) e outra de esquerda (com um pé no MFA e outro fora, e uma
devastadora dispersão de forças). Nenhum dos blocos políticos conseguia se afirmar por si só
durante o verão quente de 1975. Foi então que a contra-revolução recorreu à mobilização de
sua base social agrária no Norte, e algumas partes do centro do país. Mas, a reação clerical
reacionária era ainda insuficiente. Portugal já não era o país agrário que Salazar tinha
governado. Apelou, então, à divisão da classe trabalhadora, e para isso o PS de Mário Soares
era indispensável. Recorreu à estratégia do alarme, do medo, do pânico para assustar e
insuflar os setores da classe média proprietária contra a classe operária. Mas, acima de tudo,
a questão prioritária para a burguesia, entre março e novembro de 1975, foi a recuperação
do controle sobre as Forças Armadas.
A revolução tardia
Apesar de seus longos 48 anos, a queda do regime encabeçado por Marcelo Caetano
foi, paradoxalmente, uma surpresa. Os governos de Londres, Paris ou Berlim sabiam que o
pequeno país ibérico vivia há décadas uma situação anacrônica: ultimo Estado enterrado em
uma guerra colonial em três frentes sem perspectiva de solução, um “Vietnam africano”,
condenada até por resolução da ONU. A ditadura, já senil de tão decadente, ainda impunha
um regime implacável na metrópole. Mantinha uma polícia de facínoras – a PIDE – que
garantia as prisões repletas, e a oposição no exílio. Controlava através da censura qualquer
opinião crítica ao governo, proibia as atividades sindicais, reprimia o direito de greve. No
entanto, nem mesmo Washington, tinha previsto o perigo de uma revolução. A explicação
histórica mais estrutural da estabilidade do regime salazarista remete à sobrevivência tardia
de um imenso Império, formado no alvorecer da época moderna.
Em 28 de Maio de 1926 um golpe de Estado protofascista derruba a primeira república
portuguesa, instalando uma ditadura militar liderada pelo general Gomes da Costa, sucedido
pelo general Carmona. Os chefes militares convidam Antonio de Oliveira Salazar, até então
um professor de economia em Coimbra, para ser ministro das Finanças, cargo que só
assumirá em 1928, quando tinha 39 anos. Assumirá a posição de primeiro-ministro em
1932. Conhecido como Estado Novo, o regime não parecia excepcional nos anos trinta,
quando o capitalismo europeu inclinou-se por um discurso nacionalista exaltado, e recorria
em larga escala, mesmo em sociedades mais urbanizadas e, economicamente, mais
desenvolvidas, aos métodos da contra-revolução para evitar revoluções sociais como o
Outubro russo. A ditadura em Portugal espantaria, no entanto, pela sua longevidade.
O fascismo “defensivo” deste Império desproporcional e semi-autárquico sobreviverá
a Salazar, permanecendo incríveis 48 anos no poder. A burguesia deste pequeno país
resistirá à vaga de descolonização dos anos cinquenta por um quarto de século. Encontrará
forças para enfrentar, a partir dos anos sessenta, uma guerra de guerrilhas em África, na
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, mesmo se, na maior parte desses longos anos, mais
uma guerra de movimentos, que uma guerra de posições, ainda assim, sem solução militar
possível. Mas a guerra sem fim acabou destruindo a unidade das Forças Armadas. Quis a
ironia da história que tenha sido o mesmo exército que deu origem à ditadura que destruiu a
I República, que tenha derrubado o salazarismo para garantir o fim da guerra.
A reforma pelo alto, por deslocamentos internos do próprio salazarismo, a transição
negociada, a democratização pactuada, tantas vezes esperada, não veio. Os deslocamentos
da oficialidade média expressavam o desespero das classes médias com a obtusidade da
ditadura. O obscurantismo sufocava a nação. Depois da insurreição militar abriu-se uma
janela de oportunidade histórica, e o que as classes proprietárias evitaram fazer por
reformas, as massas populares se lançaram à conquista pela revolução. O salazarismo
obsoleto de Caetano acabou acendendo a faísca do mais profundo processo revolucionário na
Europa Ocidental, depois da Guerra Civil Espanhola em 1939.
A revolução colonial
Em 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro "Portugal e o Futuro". O Governo
de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro. O parecer favorável foi feito por ninguém
menos que o general Costa Gomes.2A guerra nas colônias mergulhou Portugal em uma crise
crônica. Um país de dez milhões habitantes, acentuadamente defasado da prosperidade
européia dos anos sessenta, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço
militar e da pobreza, não podia continuar mantendo um exército de ocupação de dezenas de
milhares de homens, indefinidamente, em uma guerra africana. O que não se sabia, então,
era que o livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg e que, clandestinamente, na
oficialidade média, já estava se articulando o Movimento das Forças Armadas, o MFA. A
fraqueza do governo Marcelo Caetano era tão grande que cairia como uma fruta podre, em
horas. A nação estava exaurida pela guerra. Pela porta aberta pela revolução antiimperialista
nas colônias, iria entrar a revolução política e social na metrópole.
O serviço militar obrigatório era de assombrosos quatro anos, dos quais pelo menos
dois eram cumpridos no ultramar. Mais de dez mil mortos, sem contar os feridos e
mutilados, na escala de dezenas de milhares. Foi do interior desse exército de alistamento
obrigatório que surgiu um dos sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o MFA.
Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole e, também, à pressão da
classe trabalhadora na qual uma parcela dessa oficialidade média tinha sua origem de classe,
cansados da guerra, e ansiosos por liberdades, rompiam com o regime.
Estas pressões sociais explicam, também, os limites políticos do próprio MFA, e
ajudam a compreender porque, depois de derrubar Caetano, entregaram o poder a Spínola.
O próprio Otelo, defensor, a partir do 11 de Março, do projeto de transformar o MFA em
movimento de libertação nacional, à maneira de movimentos militares em países da
periferia, como no Peru do início dos anos setenta, fez o balanço com uma franqueza
2
Marcelo Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Record, 1974, p.194.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
desconcertante: “Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade de
um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no “bom” caminho, nos perseguiria até o
final”.
3
Esta confissão permanece uma das chaves de interpretação do que ficou conhecido
como o PREC (processo revolucionário em curso), ou seja, os doze meses em que Vasco
Gonçalves esteve à frente do II, III, IV e V governos provisórios. Ironicamente, assim como
muitos capitães se inclinavam a depositar excessiva confiança nos generais, uma parcela da
esquerda entregava aos capitães, ou à fórmula unidade do povo com o MFA, defendida pelo
PCP, a liderança do processo.
Diz-se que, em situações revolucionárias, os seres humanos excedem-se ou se
elevam, entregando-se na melhor medida de si próprios. Aparece, então, o que têm de
melhor e pior. Spínola, enérgico e perspicaz, era um reacionário pomposo, com poses de
general germanófilo, com seu incrível monóculo do século XIX. Costa Gomes, sutil e astuto,
era, como um camaleão, um homem da oportunidade. Do MFA surgiram as lideranças de
Salgueiro Maia ou Dinis de Almeida, valentes e honrados, mas sem educação política; de
Otelo, o chefe do COPCON, uma personalidade entre um Chávez e um Capitão Lamarca, ou
seja, entre o heroísmo da organização do levante, e o disparatado das posteriores relações
com a Líbia e as FP-25 de abril; de Vasco Lourenço, de origem social popular, como Otelo,
atrevido e arrogante, mas tortuoso; de Melo Antunes, instruído e sinuoso, o homem chave
do grupo dos nove, o feiticeiro que termina prisioneiro de suas manipulações; de Varela
Gomes, o homem da esquerda militar, discreto e digno; de Vasco Gonçalves, menos trágico
que Allende, mas, também, menos bufão que Daniel Ortega. Foi da tropa, também, que
surgiu o “Bonaparte”, Ramalho Eanes, sinistro, que enterrou o MFA.
A revolução democrática
A
economia
portuguesa,
pouco
internacionalizada,
mas
já
razoavelmente
industrializada, se estruturava na divisão internacional do trabalho em dois “nichos”, os dois
pilares empresariais do regime, a exploração colonial e a atividade exportadora. Sete
grandes grupos controlavam quase tudo. Ramificavam-se em 300 empresas que tinham 80%
dos serviços bancários, 50% dos seguros, 8 das 10 maiores indústrias, 5 das 7 maiores
exportadoras. Os monopólios comandavam, mas a dinâmica de crescimento era oscilante. O
país permaneceu, comparativamente, estagnado, enquanto a economia européia vivia o
boom do pós-guerra. Em Portugal, não houve alívio social. A superexploração do trabalho
manual se manteve, agravada pelas seqüelas sociais da guerra colonial. A ordem salazarista
se manteve depois da morte do ditador, com um implacável braço armado - a PIDE - 20.000
informantes, mais de dois mil agentes.
3
CARVALHO, Otelo Saraiva de, Memórias de Abril, Los preparativos y el estallido de la revolución
portuguesa vistos por su principal protagonista, Barcelona, Iniciativas Editoriales El Viejo Topo, s/data,
p.163.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
Não há, é certo, um sismógrafo de situações revolucionárias. Ainda na manhã dia 25
de Abril, ao ouvir pelo rádio a comunicação do levante militar do MFA, uma multidão de
milhares de pessoas saiu ás ruas e se dirigiu à baixa de Lisboa, cercando o Quartel da GNR
(Guarda Nacional Republicana) no Largo do Carmo, onde Marcelo Caetano se refugiara, e
negociava com Salgueiro Maia os termos da rendição, exigindo a presença de Spínola.
Algumas centenas de pides – Polícia Internacional de Defesa do Estado – entrincheirados na
sede, disparam sobre a massa popular. No Porto, milhares de pessoas cercaram os policiais
no edifício da Câmara, e estes responderam atirando sobre a população. E foi só isso a força
da resistência. Deixaram quatro mortos.
Toda revolução tem o seu pitoresco. Nunca saberemos ao certo da veracidade maior
ou menor dos pequenos episódios. Ma si non é vero, é bene trovato. Nas primeiras horas da
manhã, quando uma coluna de carros militares descia a Avenida da Liberdade em direção ao
Terreiro do Paço, as floristas do Parque Mayer lhes perguntam o que estava acontecendo, e
os soldados respondem que vieram derrubar a ditadura. Elas, na sua simplicidade, de tão
felizes, lhes oferecem cravos vermelhos e assim, sem o saber, batizaram a revolução com o
nome de uma flor.
Recordemos que uma revolução não deve se confundir com o triunfo de um levante
militar, mesmo quando se trata de uma insurreição com apoio popular. Não é incomum que
golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem, historicamente, como um sinal de que
uma tormenta muito maior se aproxima. As operações palacianas podem "abrir uma janela"
por onde irá entrar o vento da revolução que estava contido. Em Portugal, o processo da
revolução política transbordou, como na Rússia de 1917, porque o exército tinha sido
dilacerado pela guerra. Quando no primeiro de Maio de 1974 centenas de milhares de
pessoas desfilaram durante horas até o estádio de Alvalade, carregando milhares de
bandeiras vermelhas para recepcionar os que voltavam do exílio, e abraçar os que saíram
das prisões, estavam marchando em direção aos seus sonhos de uma sociedade mais justa.
Descobriam, surpresas, a força social de sua mobilização. É dessa experiência prática
compartilhada por milhões que são feitas as revoluções sociais.
A última revolução
A revolução portuguesa foi a última revolução social na Europa Ocidental do final do
século XX. Ainda que interrompida, a dinâmica de revolução social anticapitalista foi um dos
seus traços chave. O conteúdo social do processo que veio no ano e meio que sucedeu o 25
de abril foi determinado em um contexto complexo: a revolução tinha tarefas pendentes –
fim da guerra colonial, independência das colônias, reforma agrária, trabalho para todos,
elevação dos salários, acesso à moradia, direito ao ensino público - que não se resumiam à
derrubada da ditadura. O que determinou o seu vigor foi uma combinação de fatores sociais
e políticos, mas o mais importante foi a entrada em cena da mobilização das classes
populares com uma disposição de luta revolucionária que não podia ser contida pela
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
repressão, e não a presença de um dos Partidos Comunistas mais poderosos da Europa. Ao
contrário, a presença de um forte PCP foi um elemento de contenção da luta social.4
A queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de radicalização popular
incomparavelmente mais profunda - uma situação revolucionária - em que foram sendo
construídas as experiências de auto-organização. No 1 de maio, uma semana depois da
queda de Caetano, uma manifestação gigantesca em Lisboa, demonstra que uma irrupção de
massas já começou. Comemora-se a libertação dos presos políticos, soltos em Caxias e
Peniche, assim como no famigerado Tarrafal, em Cabo Verde. Álvaro Cunhal e Mário Soares
chegam do exílio e, pela primeira vez, discursam. Soares faz exigência pública ao MFA e a
Spínola, indicado presidente, defendendo que o PS e o PCP, nas suas palavras, os dois
partidos mais representativos da classe operária, deveriam ser o núcleo do governo.
Já no 28 de abril, os moradores de barracas da Boavista em Lisboa ocuparam casas
vazias de um bairro social – construções feitas pelo Estado – e se recusaram a sair, mesmo
quando cercados pela polícia e por tropas, sob o comando do MFA, realizando a primeira
ocupação. No dia 30 de abril, a primeira assembléia universitária de Lisboa reúne mais de
10.000 estudantes no Técnico, a faculdade de engenharia. No dia 2 de Maio é autorizado o
regresso de todos os exilados. Desertores e refratários do Exército são anistiados. No dia 3
de Maio generaliza-se uma onda de ocupações de casas desocupadas na periferia de Lisboa,
com forte iniciativa de militantes de várias organizações de extrema-esquerda. O embarque
de uma unidade militar para África é impedido. Em 5 de Maio, trabalhadores dos TLP
(telefônicos), Caixa de previdência de Faro, Hospital do Porto, reúnem-se para exigir a
demissão das chefias. Em Évora, os trabalhadores transformam as Casas do Povo em
sindicatos agrícolas. Uma vaga de greves começa, encabeçada pelas grandes concentrações
operárias, como na Lisnave e na Siderúrgica Nacional, exigindo a reintegração dos demitidos,
desde o início do ano, e salários. Trabalhadores do Diário de Notícias, o principal matutino,
ocupam o Jornal, e impedem a entrada dos administradores, que são depois demitidos. Meia
dúzia de exemplos que são apenas uma ilustração de que ainda antes de completar um mês
do fim da ditadura, a revolução invadia todas as esferas da vida social e ocupava, além das
ruas, as empresas, escolas, universidades, hospitais, oficinas, sindicatos, jornais, rádios, e
até as casas.
Podemos periodizar o processo em três conjunturas: (a) de abril de 1974 até o 11 de
março de 1975, abre-se uma situação revolucionária semelhante à do Fevereiro russo 5: uma
ampla frente social que une pequenas frações dissidentes da burguesia, exasperada com a
inércia da ditadura, com a ampla maioria das classes médias urbanas,
cansadas com o
arcaísmo e obtusidade do regime, e as massas trabalhadoras, desesperadas pela guerra e
pela pobreza. Nesses meses se garantiram as amplíssimas liberdades democráticas, inclusive
nos locais de trabalho e o cessar-fogo em África, derrotando duas tentativas de quarteladas
e o projeto de consolidação de um regime presidencialista forte. Predomina um forte
4
VARELA, Raquel. A história do PCP na revolução dos cravos. Bertrand Editora, Lisboa 2011.
5
A discussão dos tempos da revolução e dos critérios para aferição das relações sociais de força
pode ser encontrada no meu livro As Esquinas Perigosas da História, São Paulo, Xamã, 2004.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
sentimento de unidade entre os trabalhadores e a maioria dos setores médios, um apoio
esmagador ao MFA, um sentimento a favor da unidade do PS e do PCP e contra Spínola. A
sociedade gira vertiginosamente à esquerda; (b) entre o 11 de Março e Julho de 1975, uma
situação revolucionária semelhante à que precedeu o Outubro russo: os de cima já não
podem e os debaixo já não querem mais ser governados como antes. A fuga do país de uma
parte considerável da burguesia, a nacionalização de parte das grandes empresas, o
reconhecimento das independências - menos Angola – e a generalização de um processo de
auto-organização de massas nos locais de trabalho, estudo e, sobretudo, nas Forças
Armadas, mas sem que a dualidade de poder encontrasse uma via de centralização; (c)
finalmente, a crise revolucionária, entre julho e novembro de 1975, com a cisão do MFA, a
independência de Angola, a radicalização anticapitalista com rupturas de setores de massas
da influência do PS e do PCP, a formação dos SUV (auto-organização de soldados e
marinheiros) e manifestações armadas, ou seja, a ante-sala ou de um deslocamento
revolucionário do Estado, ou um golpe contra-revolucionário. Um destes dois desenlaces se
tornava inadiável.6
A contra-revolução
A primeira tentativa de golpe fracassa estrepitosamente em 28 de setembro, na
forma de um chamado público de Spínola à "maioria silenciosa", recurso retórico de um
apelo à contra-ofensiva dos grotões mais reacionários de um Portugal rural profundo.
No dia 26 de Setembro, Spínola compareceu a uma tourada no Campo Pequeno e foi
ovacionado por uma parte do público, mas confrontos ocorreram entre militantes de
esquerda e direitistas. Lisboa acordou coberta de cartazes convocando a passeata. No dia
seguinte, ativistas do PCP e das variadas organizações da esquerda mais radical levantaram
barricadas para impedir a passagem dos manifestantes de direita que, se esperava, viriam
de fora. Soldados se uniram, espontaneamente, às barricadas. As sedes do Bandarra, do
Partido Liberal e do Partido do Progresso foram invadidas – propaganda fascista encontrada e saqueadas. No dia 28 de setembro, as barricadas ganharam mais participação, e carros
foram parados e revistados, prendendo-se os ocupantes quando traziam armas. Otelo
afirmou ter estado detido no Palácio de Belém por ordem de Spínola. Não houve adesão de
massas ao chamado de Spínola. Cento e cinqüenta conspiradores foram presos durante o
dia.
Obrigado a renunciar, mas ileso, Spínola entregou a presidência ao general Costa
Gomes. Assume, então, o III Governo provisório, permanecendo Vasco Gonçalves como
primeiro-ministro. As energias do projeto de neocolonialismo à “inglesa‟ não tinham, todavia,
se esgotado. Tentarão o putsch “korniloviano” de novo no 11 de março. Mais uma vez, as
barricadas levaram muitos milhares às ruas. O segundo golpe foi a última e desesperada
tentativa da fração burguesa que se opunha à independência imediata das colônias e contou
com a participação da GNR (Guarda Nacional republicana). O RAL-1 (Regimento de Artilharia
6
Lincoln Secco, A Revolução dos Cravos, São Paulo, Alameda, 2004, p.153.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
Ligeira) de Lisboa foi bombardeado e cercado por unidades de pára-quedistas, mas o golpe é
desbaratado. Um episódio de negociação acontece, publicamente, diante das câmaras de
televisão da RTP (!!!) e sintetiza toda a turbulência de uma quartelada improvisada e sem
base sociais significativas.
Desde o 25 de abril, esta foi a terceira vez em que militares se enfrentaram. A primeira
foi a crise que opôs a Coordenadora do MFA e Spínola, em busca de reforço da autoridade
presidencial, e levou à queda de Palma Carlos e do I governo provisório. A segunda foi o no
28 de setembro quando Spínola ordenou a ocupação das estações de rádio. Nas duas
primeiras nenhum tiro foi disparado. No 11 de março, o principal quartel de Lisboa foi
bombardeado e cercado, e um soldado morre. Ninguém tem mais ilusões que grandes
enfrentamentos estão no horizonte. A memória recente do golpe de Pinochet no Chile exerce
uma forte pressão sobre a esquerda e sobre a oficialidade do MFA. Seguem-se dezenas de
prisões, articuladas pelo COPCON: os comandantes operacionais da força que atacou o RAL1, e várias lideranças burguesas tradicionais: vários Espírito Santo, um Champalimaud, e um
Ribeiro da Cunha
Spínola e outros oficiais comprometidos fogem para Espanha, onde Franco os recebe,
e depois, muitos foram se refugiar no Brasil. Na seqüência, os trabalhadores bancários
entram em greve política, e assumem o controle do sistema financeiro. O MFA cria o
Conselho da Revolução, e decreta a nacionalização dos sete grupos bancários portugueses
mais importantes. Muitas empresas são ocupadas pelos trabalhadores. A burguesia entra em
pânico e começa a abandonar o país. Mansões desabitadas são ocupadas, e nelas serão
instaladas creches.
A revolução à deriva
O IV governo provisório se instala em 26 de março. África estava perdida. A burguesia
passou a temer o pior, também, na metrópole. Reorientou-se, apressadamente, para o
projeto europeu. A reconstrução da autoridade do Estado, a começar pelas Forças Armadas,
ainda permanecia a prioridade. O mais complexo, contudo, continuava sem solução: tinha
que improvisar uma representação política, atrair a maioria das classes médias, e derrotar os
trabalhadores.
Não tendo mais Spínola como carta na manga - e debilitados o PPD e CDS pela ligação
com Spínola - não tinha instrumentos diretos - a não ser parte da imprensa e o peso sobre a
alta hierarquia das FFAA - e precisava recorrer à pressão da burguesia européia, e dos EUA,
sobre a socialdemocracia e sobre a URSS, para que enquadrassem o PS e, sobretudo, o PCP.
Depois do 11 de março veio a segunda primavera das utopias. Lisboa era a capital
mais livre do mundo. A grande massa do povo urbano, tanto em Lisboa – incluído o grande
cinturão metropolitano que a rodeia - e no Porto como na maioria das cidades médias do
centro e sul o país, os trabalhadores e a juventude, mas também as novas classes médias
assalariadas no comércio e nos serviços exigiam a independência das colônias, o retorno dos
soldados,
as
liberdades
nas
empresas,
salários,
trabalho,
terra,
educação,
saúde,
previdência. A experiência histórica colocava em movimento milhões de pessoas, até então,
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
politicamente, inativas. Aprendiam quase instintivamente, no calor da luta, que eram a
maioria e podiam vencer. Ainda existia, também, um outro Portugal, idoso, rural, atrasado,
desconfiado da revolução, manipulado pela Igreja, e com base social nos minifúndios do
norte. Mas eram muito minoritários. Nas cidades, sobretudo as industrializadas, o povo
simpatizava com as nacionalizações. Concordava que sem limitações ao direito de
propriedade – isto é, expropriações dos que tinham sustentado a ditadura - não poderiam
conquistar as suas reivindicações. Começa a etapa do que foi denunciado pela ultradireita
como “assembleísmo”, ou seja, a dualidade de poderes. As hierarquias seculares de
autoridade política e social que se apoiavam em tradições culturais de medo e respeito
desabaram. As massas invadiram os espaços sociais de suas vidas e estavam atrevidas.
Queriam participar. Queriam decidir.
Em vagas de lutas sucessivas, surgiram comissões de trabalhadores em todas as
grandes e médias empresas, como a CUF (Companhia União Fabril) - só ela, 186 fábricas - a
maioria concentrada no Barreiro, cidade industrial do outro lado do Tejo. Champalimaud, um
dos líderes mais influentes da burguesia reage declarando “os operários são atualmente
demasiado livres”.7
O muralismo político – painéis à mexicana, grafites à americana, dazibaos à chinesa,
e simples pichações - fazia das ruas de Lisboa uma expressão estético-cultural desse
“universo diverso‟ da revolução. Havia de tudo, do mais solene ao mais irreverente. À porta
do cemitério o impagável Abaixo os mortos, a terra para quem nela trabalha. Nas grandes
avenidas, o dramático, Nem mais um só soldado para as colônias. Na região das avenidas
novas, “Os ricos que paguem a crise”, assinado pela UDP e, ao lado,“A UDP que pague a
crise”, assinado “Os ricos”. Nas paredes da entrada da Faculdade de Letras, onde os
trotskistas eram mais influentes, o cético: Os índios também eram vermelhos e se foderam.
A Igreja não escapou à fúria do processo revolucionário. Em Lisboa as Igrejas ficaram
desertas de jovens. Associada durante décadas ao salazarismo - quando o Cardeal Cerejeira
foi o braço direito do regime – estava desmoralizada no Sul do País, e desautorizada diante
de amplos setores sociais. As ocupações se estendiam aos meios de comunicação. No dia 27
de maio os trabalhadores da Rádio Renascença ocupam os estúdios e o centro transmissor. É
abandonada a designação de “Emissora Católica”. A emissora passa a transmitir uma
programação de apoio ás lutas dos trabalhadores.
Os operários da Lisnave, então um dos grandes estaleiros do mundo, deram o
exemplo organizando piquetes para ocupar o seu sindicato. Na Amadora, a Sorefame, uma
das maiores indústrias metalúrgicas do país entra em greve, assim como a Toyota, a
Firestone, a Renault, a Carris (motoristas de ônibus), a TAP e a CP (ferroviários), mas
também pelo interior, como entre os têxteis da Covilhã, ou nas minas da Panasqueira. A
onda de auto-organização – formação nas empresas de comissões de trabalhadores - que
aprofunda a dinâmica revolucionária da situação, produz reações: “Os sindicalistas do PCP
queixam-se amargurados: „Os grevistas fazem tábua rasa das formas tradicionais de luta,
7
Champalimaud em declaração ao matutino Diário de Notícias, Lisboa, 25/6/74, citado em
Francisco Louçã, 25 de abril, dez anos de lições, Ensaio para uma revolução, Lisboa, Cadernos
Marxistas, 1984, p.36.
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
nem tentam negociar e por vezes decidem parar mesmo antes de redigirem o caderno
reivindicativo. Em muitos casos, os trabalhadores não se limitam a exigir mais dinheiro,
passam á ação direta, tentam tomar o poder de decisão e instituir a co-gestão sem estarem
preparados para isso”. (Canais Rocha ao Diário de Lisboa, em 24/6/74).
8
Ainda quando PCP apostava toda a sua imensa autoridade para freiar as greves, as
invasões de latifúndios no Alentejo se generalizavam, ao mesmo tempo em que as
ocupações de casas desabitadas em Lisboa e Porto se alastravam; saneamentos - o
eufemismo para expulsão dos fascistas – realizavam depurações na maior parte das
empresas, a começar pelo serviço público, e a pressão estudantil nas Universidades impunha
assembléias deliberativas. Toda a antiga ordem parecia desabar:
A criação do salário-mínimo nacional abrange mais de 50% dos assalariados não agrícolas.
São os trabalhadores menos qualificados, as mulheres, os mais oprimidos, que constituem a
vanguarda da conquista do poder de compra e dos direitos sociais. O poder de compra dos
assalariados aumenta 25,4% em 1974 e 75; os salários que, em 1974, já são 48% do
rendimento nacional, passam a 56,9% em 1975. A estrutura da propriedade modifica-se:
117 empresas são nacionalizadas, 219 outras têm mais de 50% de participação do Estado,
206 são intervencionadas, abrangendo 55.000 operários; 700 empresas entram em autogestão, com 30.000 operário.
9
Cada revolução tem o seu vocabulário. Como o pêndulo da política se inclinou para a
extrema-esquerda, o discurso da direita girou para o centro, e o do centro para a esquerda.
O travestismo político - o descompasso entre as palavras e os atos – faz o discurso dos
partidos irreconhecível. Mas, em Portugal, as forças burguesas superaram o inimaginável.
Desde o PPD de Sá Carneiro, hoje o PSD de Durão Barroso, até o PPM (Partido Popular
Monárquico), todos reivindicavam alguma forma de socialismo, o que explica a linguagem
socializante da Constituição que até hoje produz espanto.
A situação aberta pela queda de Spínola trazia maiores desafios, e mais perigosos. A
burguesia exigia ordem e, sobretudo, respeito à propriedade privada. Diante das pressões, o
PS e o PCP, as forças políticas de longe majoritárias, e as únicas com autoridade na direção
dos Governos Provisórios - além do MFA - dividiram-se e provocaram uma cisão irremediável
entre os trabalhadores. Um ano depois do 25 de abril, as eleições para a Constituinte
surpreenderam. O PS foi o grande vencedor com espetaculares 37,87%. O PCP decepcionou
com somente 12,53%. Revelou-se um abismo entre sua força de mobilização social e a
eleitoral. O PPD (Partido Popular Democrático) de Sá Carneiro, um líder liberal dentro das
estruturas do regime salazarista, fica em segundo lugar com 26,38%. O CDS (na extremadireita, dirigido por Freitas do Amaral) o MDP (Movimento Democrático Português), uma
colateral do PCP que vinha do tempo das eleições sob Caetano, e a UDP (União Democrático
Popular),
maoístas
de
inspiração
parlamentar.
8
9
Francisco Louçã, Ibidem, p.36
Francisco Louçã, Ibidem, 35.
“albanesa”,
conseguiram,
também,
representação
O Olho da História, n. 16, Salvador (BA), julho de 2011.
Valério Arcary
A revolução derrotada
A presença de um partido comunista em governos europeus foi um tabu dos anos de
guerra fria. Foi uma surpresa mundial quando Cunhal foi apresentado como ministro sem
pasta no primeiro governo provisório liderado por Palma Carlos e Spínola. A estupefação foi
ainda maior quando o PCP não somente permaneceu nos governos provisórios seguintes,
como aumentou significativamente sua influência até a queda de Vasco Gonçalves em agosto
de 1975.
A repercussão do papel do PCP continuou crescendo porque, a partir do V governo
provisório, no verão quente de 1975, Cunhal foi acusado pelo Partido Socialista, dirigido por
Mário Soares, de estar tramando um “golpe de Praga”, ou seja, uma insurreição para tomar
o poder. Soares desafiou a hegemonia da mobilização de ruas que, até então, o PCP detinha,
levando centenas de milhares às ruas contra Vasco Gonçalves e, apoiado pela hierarquia da
Igreja, pela embaixada americana, e pelos governos europeus, estimulando a divisão do MFA
que se expressou através do “grupo dos nove”.
Meses depois, quando o movimento militar dirigido por Ramalho Eanes, na
madrugada de 25 de novembro de 1975, de fato, tomou pela força o poder – fazendo aquilo
que denunciava que o PCP estaria preparando - Melo Antunes defendeu, inusitadamente, a
participação do PCP na “estabilização democrática”, sublinhando, dramaticamente, que a
democracia portuguesa seria impensável sem o PCP na legalidade, para deixar claro que o
golpe não seria uma pinochetada, e que foi feito para evitar aquilo que, no calor daqueles
dias, se interpretava como o perigo de uma guerra civil, e não para provocá-la. Admitiu,
portanto, que o VI governo provisório e o Conselho da revolução estavam fazendo uma
intervenção armada nos quartéis (um clássico autogolpe), mas alegou que era em legítima
defesa, para manter a legalidade, não para subvertê-la.
A contra-revolução ensaiou o golpe bonapartista duas vezes com a direção de Spínola
e fracassou. Recorreu, depois, a outros dirigentes e a outros métodos. Uma combinação de
espada e concessões. Usou a espada, cuidadosa e seletivamente, no 25 de novembro. Usou
os métodos da reação democrática com as eleições presidenciais de 1976, a negociação dos
empréstimos de emergência que os Estados da NATO liberaram, e recorreu até à formação
de um governo em vôo solo do Partido Socialista liderado por Mário Soares.
Depois de novembro de 1975, com a destruição da dualidade de poderes nas Forças
Armadas o processo assumiu uma dinâmica lenta, contudo, irreversível, de estabilização de
um regime democrático liberal. A derrota da revolução portuguesa não exigiu derramamento
de sangue, mas consumiu muitos bilhões de marcos alemães e de francos franceses. A
integração posterior na Comunidade Econômica com o acesso aos fundos estruturais,
gigantescas transferências de capitais para modernizar a infra-estrutura, e construir um
pacto social capaz de absorver as tensões sociais pós-salazaristas, permitiu a estabilização
do capitalismo e do regime democrático nos anos 80 e 90.
Download

A revolução solitária