Gestão ambiental na agricultura
Agroecologia: reconciliando agricultura e natureza
Paulo Frederico Petersen 1
Jean Marc von der Weid 2
Gabriel Bianconi Fernandes 3
Resumo - A agricultura tem sido considerada uma das principais causas e, ao mesmo
tempo, uma das principais vítimas dos problemas ambientais da atualidade. Essa
relação mutuamente negativa não é resultado de uma evolução histórica automática
e incontornável, deriva de um determinado enfoque técnico-científico que, no século
20, fomentou a transplantação para a agricultura da lógica produtiva inaugurada dois
séculos antes com a Revolução Industrial. A rápida disseminação global dos padrões
técnicos da Revolução Verde trouxe como consequência uma profunda reorientação na
lógica de apropriação dos recursos naturais pela agricultura, sobretudo ao distanciá-la
dos processos ecológicos responsáveis pela reprodução da integridade ambiental dos
agroecossistemas. Diante da magnitude dos impactos ambientais negativos gerados pela
agricultura industrial, vem-se construindo, atualmente, um amplo consenso mundial de
que o seu padrão produtivo está esgotado, já que deteriora a base biofísica necessária à
sua própria reprodução. A Agroecologia apresenta-se nesse cenário como um enfoque
científico que fornece as diretrizes para a emergência de padrões de desenvolvimento
rural economicamente viáveis, socialmente justos e ecologicamente sustentáveis.
Evidências empíricas que se multiplicam em todas as regiões do mundo comprovam que
a perspectiva agroecológica possui vigência histórica ao oferecer respostas consistentes à
profunda crise socioambiental vivenciada nas sociedades contemporâneas.
Palavras-chave: Impacto ambiental. Poluição ambiental. Meio ambiente. Sustentabilidade.
Desenvolvimento rural.
INTRODUÇÃO
Por definição, agricultura significa artificialização do meio natural. Em termos
técnicos, implica a conversão do ecossistema em agroecossistema, sendo este
último compreendido como um sistema que
articula o trabalho humano com o trabalho
da natureza, para que plantas e animais
domesticados se desenvolvam e se reproduzam. Essa peculiaridade da agricultura
faz com que ela permaneça, no alvorecer
do século 21, como o setor econômico que
mais intimamente conecta a sociedade à
natureza.
Os dez mil anos de história da agricultura podem ser interpretados como a busca
incessante de novas práticas para a intensificação do uso dos solos em resposta às
crescentes demandas alimentares decorrentes dos aumentos demográficos (BOSERUP,
1987). Essa evolução técnica foi marcada
pelo encurtamento contínuo dos pousios e,
finalmente, pela sua completa supressão no
final da Idade Média4. À medida que as inovações técnicas permitiam a intensificação
produtiva, os agroecossistemas foram-se
diferenciando estrutural e funcionalmente
dos ecossistemas naturais, num processo
de progressiva artificialização, ou seja, de
distanciamento dos equilíbrios naturais.
A tendência à crescente artificialização
dos ecossistemas foi levada a níveis extremos
a partir da segunda metade do século 20, com
a segunda Revolução Agrícola – também
conhecida como Revolução Verde. O paradigma científico-tecnológico da Revolução
Verde expandiu-se globalmente ao articular
seis práticas básicas: as monoculturas,
Engo Agro, Diretor Executivo AS-PTA, R. da Candelária, 9 - Centro, CEP 20091-020 Rio de Janeiro-RJ. Correio eletrônico: [email protected]
Economista, Coord. Programa de Políticas Públicas AS-PTA, R. da Candelária, 9 - Centro, CEP 20091-020 Rio de Janeiro - RJ. Correio eletrônico: [email protected]
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Engo Agro, Assessor Técn. AS-PTA, R. da Candelária, 9 - Centro, CEP 20091-020 Rio de Janeiro – RJ. Correio eletrônico: [email protected]
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O pousio foi o método adotado por milênios para a recomposição da fertilidade dos agroecossistemas. As chamadas civilizações hidráulicas, como
a egípcia, são exceções a esse padrão, já que a manutenção da fertilidade de seus agroecossistemas dependia da reposição de sedimentos trazidos pelas
cheias do Nilo. O fim dos pousios na agricultura europeia foi possibilitado pela introdução de espécies forrageiras e adubos verdes nas rotações de
culturas, o que permitiu simultaneamente o aumento da carga animal e o emprego mais intensivo da adubação orgânica. As profundas consequências
provocadas por essas inovações técnicas demarcam o período conhecido como Primeira Revolução Agrícola (MAZOYER; ROUDART, 1997).
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o revolvimento intensivo dos solos, o
uso de fertilizantes síntéticos, o controle
químico de pragas e doenças, a irrigação
e a manipulação dos genomas de plantas
e animais domésticos. Embora cada uma
dessas práticas exerça uma função específica no funcionamento do agroecossistema,
para que seja efetiva, deve ser adotada de
forma combinada com as demais, criando
um sistema técnico pouco flexível que
induz à forte dependência econômica da
agricultura em relação à indústria e ao
sistema financeiro.
Ao contrário dos aprimoramentos
técnicos anteriores, sempre condicionados pelas limitações e potencialidades
ecológicas locais, a nova Revolução Agrícola promoveu forte desconexão entre a
agricultura e os ecossistemas naturais ao
substituir parte importante do trabalho que
a natureza desempenhava na regeneração
da fertilidade dos agroecossistemas pelo
emprego intensivo de agroquímicos e de
motomecanização pesada. Com isso, as
relações de coprodução entre natureza e
agricultura, que orientaram o progresso
técnico por milênios, foram rompidas para
dar lugar a um modelo de produção estruturalmente dependente dos insumos externos
e de energia não-renovável derivada de
combustíveis fósseis.
A base filosófica que fundamentou o
desenvolvimento da agricultura industrial
repousa na crença de que, com a contínua
inovação tecnológica, a civilização caminha inexoravelmente para superar os
limites naturais, que impuseram constrangimentos à expansão do progresso humano
no decorrer da história. Ironicamente, são
esses mesmos limites naturais que hoje dão
os sinais mais claros de que essa crença não
possui qualquer fundamento científico. De
fato, a agricultura é hoje amplamente reconhecida como uma das principais causas e,
ao mesmo tempo, como uma das principais
vítimas dos problemas ambientais da atualidade (ALMEIDA et al., 2001).
Orientada essencialmente para maximizar a produtividade física das lavouras
e criações no curto prazo, a agricultura
industrial compromete seriamente as
produções futuras pela conjugação de três
frentes de impacto negativo sobre o meio
ambiente:
a) a degradação e a perda de recursos
naturais essenciais para a reprodução técnica dos agroecossistemas
(solos, água e biodiversidade);
b) a emissão de gases de efeito estufa
(GEEs), que vem alterando os padrões climáticos globais e, com isso,
aumentando os riscos agrícolas;
c) a desarticulação de culturas e modos
de vida locais responsáveis pelo uso
social e pela conservação dos recursos naturais em longo prazo.
Repetindo a experiência vivenciada por
várias civilizações do passado, a problemática ambiental associada à agricultura
nos coloca em uma encruzilhada histórica,
sendo que, desta vez, em escala planetária.
A população mundial dobrou nos últimos
45 anos e, a cada dia, cerca de 250 mil
novos habitantes somam-se aos 6,7 bilhões
já existentes. Responder ao aumento na
demanda por alimento, água potável,
energia e outros recursos indispensáveis à
vida humana digna apresenta-se, portanto,
como o principal desafio dos tempos atuais
(PIMENTEL; WILSON, 2004).
O enunciado dessa questão, há algumas
poucas décadas, era muito frequentemente interpretado como alarmismo. Hoje,
assume ares de um dramático realismo,
sobretudo quando se considera que as bases
ecológicas para a provisão dos meios de
vida de uma população crescente vêm-se
degradando rapidamente, dando origem a
um cenário em que cerca de 1 bilhão de
pessoas já vivenciam a fome e a subnutrição e no qual a produção de grãos per
capita vem caindo sistematicamente ao
longo dos últimos 20 anos.
A escolha do caminho a seguir diante
dessa encruzilhada deve considerar, necessariamente, o duplo propósito de responder
às demandas de uma população mundial
crescente e de conservar as condições ecológicas para que a agricultura permaneça
produtiva em longo prazo. A compatibilização desses dois objetivos exige uma
profunda revisão no padrão hegemônico
de desenvolvimento agrícola, o que implica a superação da perspectiva produtivista
que vem monopolizando as orientações da
inovação tecnológica. No seu lugar que em
certo sentido aproximou a agricultura a uma
atividade mineradora, torna-se necessário
promover a reconciliação entre agricultura
e natureza.
CUSTOS AMBIENTAIS DA
AGRICULTURA INDUSTRIAL
A aparente pujança da agricultura industrial esconde uma série de contrapartidas negativas que se tornam cada vez mais
nítidas e contundentes com a divulgação de
pesquisas independentes ou, simplesmente,
com a fria realidade dos fatos veiculados
no cotidiano dos noticiários. Aos custos sociais, ambientais e de saúde pública, que se
apresentam como os efeitos negativos mais
visíveis do modelo agrícola hegemônico,
devem-se adicionar os custos energéticos,
indicador ecológico essencial e que até
pouco tempo vinha sendo desprezado por
conta da disponibilidade de combustíveis
fósseis baratos.
Balanço energético negativo
Até o primeiro choque do petróleo, em
1973, era quase inexistente a preocupação
com o custo energético da agricultura ou
de qualquer outra atividade econômica. No
entanto, desde os anos 50, geólogos especializados já previam o esgotamento da era
do petróleo barato em um período de cerca
de duas gerações, mas suas estimativas
não foram levadas a sério e permaneceram
por muito tempo desconhecidas do grande
público. Embora se especule nos dias de
hoje, se o pico de produção mundial do
petróleo já ocorreu ou se ocorrerá em breve, o desaparecimento dos combustíveis
fósseis baratos em prazos muito curtos
parece inevitável, fazendo com que a carga
energética de cada produto e o balanço
energético de cada processo de produção
comecem a merecer atenção.
A agricultura industrial norte-americana adota processos produtivos cujos
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custos energéticos médios são dez vezes
superiores ao valor energético efetivamente incorporado no alimento que vai à
mesa do consumidor. Se nessa conta for
considerado apenas o balanço da produção
primária (sem os custos de processamento,
conservação e transporte), a relação entre
input e output energético passa a ser de três
para um. Por outro lado, se a atividade primária em questão for a criação intensiva de
bovinos, a relação será de 35:1 (HORRIGAN
et al., 2002).
A alta dependência dos combustíveis
fósseis apresenta-se como o maior “calcanhar-de-aquiles’’ da agricultura industrial.
Diante do seu desastroso balanço energético e do crescimento dos preços do petróleo, esse modelo já começa a dar mostras
explícitas de insustentabilidade, apesar da
camuflagem ideológica promovida pelo
marketing corporativo do agronegócio e
da maquiagem econômica exercida pelos
crescentes subsídios estatais à reprodução
do modelo.
Esgotamento dos recursos
naturais renováveis
Solos
A mais completa avaliação do estado
dos solos agrícolas no mundo, realizada
em 1992, identificou a existência de cerca
de 562 milhões de hectares degradados, em
um universo de 1,5 bilhão de hectares cultivados desde a Segunda Guerra Mundial
(OLDEMAN, 1994). Significativa parcela
dessa área teve sua fertilidade diminuída de
forma moderada a aguda. Desde então, o
processo teve continuidade, com 5 a 6 milhões de hectares severamente degradados
a cada ano, tendo a agricultura industrial
como responsável por grande parte desse
montante.
Água
A agricultura consome atualmente por
volta de 70% da água bombeada de rios,
lagos e aquíferos do mundo. As áreas irrigadas no planeta triplicaram entre 1950
e 2003 e respondem hoje por cerca de 1/3
do total dos grãos produzidos. Apesar de
levarem à rápida deterioração dos corpos
d’água e apresentarem baixos níveis de eficiência na conversão de água em alimentos,
os sistemas intensivos de irrigação continuam a ser empregados. Somente o volume
de água desperdiçada na agricultura (55%
do total) é superior à soma dos demais
consumos humanos (UNESCO, 2003).
Para que 1 kg de cereais seja produzido, a
agricultura irrigada consome mil litros de
água. Já os criatórios intensivos de gado
apresentam nível de eficiência de conversão
de água em proteína 100 vezes inferior ao da
produção de grãos (PIMENTEL, 1997).
A superexploração de aquíferos para a
irrigação impede a recarga deste, fazendo
com que seus volumes abaixem para níveis
alarmantes. Na Índia, o bombeamento anual de água dos aquíferos passou de menos
de 20 km3 (20 bilhões de m3), em 1950,
para mais de 250 km3, nos dias atuais. Nos
EUA, o aquífero de Ogallala vem perdendo anualmente 1 metro de profundidade.
Enquanto isso, rios de grande porte, como
o Colorado, nos EUA, ou o Amarelo, na
China, deixam de correr durante vários
meses por ano (WORLD BANK, 2008).
Além de expostos à degradação quantitativa, os corpos d’água vêm sendo seriamente
comprometidos pela poluição química, que
resulta da agricultura industrial.
Essa realidade evidencia que a solução para a crise hídrica mundial, que
já atinge 1/3 da população e que deverá
atingir 2/3 em meados deste século, passa
necessariamente pela interrupção do uso
perdulário da água, pela proteção das
fontes naturais e pela busca de alternativas
para a construção de segurança hídrica dos
agroecossistemas.
Biodiversidade
A perda da biodiversidade, agrícola ou
não, traz riscos consideráveis para o futuro
da agricultura e da alimentação. A substituição de milhares de variedades tradicionais
por cultivares comerciais estreitou a base
genética da agricultura a níveis extremos.
Na Indonésia, a modernização da cultura de
arroz provocou o desaparecimento de cerca
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de 1,5 mil variedades tradicionais, substituídas por algumas dezenas de cultivares
comerciais condicionadas geneticamente a
obterem alta resposta ao emprego de fertilizantes sintéticos (WORLD RESOURCES
INSTITUTE, 1992). Entre 1981 e 1998,
aproximadamente 4,4 mil variedades
não-híbridas de hortaliças (88% do total
disponível) deixaram de ser plantadas nos
EUA (WHEALY, 2005).
O plantio comercial de organismos
geneticamente modificados agrava esse
problema e o alça a uma nova dimensão
representada pela incontrolável, irreversível
e cumulativa poluição genética, processo
resultante da polinização cruzada ou da
mistura de sementes de variedades convencionais com transgênicas (HEINEMANN,
2007).
A expansão global das monoculturas
padroniza a ocupação dos espaços rurais,
provocando uma perigosa redução da
diversidade de espécies alimentícias tradicionais. Ao longo da história da agricultura,
cerca de 7 mil espécies comestíveis foram
domesticadas e cultivadas. Atualmente,
porém, apenas 120 são cultivadas de
forma sistemática. Além disso, aproximadamente 90% da alimentação mundial
provém de oito espécies animais e doze
vegetais, sendo que quatro destas (arroz,
trigo, milho e batata) fornecem mais da
metade das calorias da dieta humana
(COUPE; LEWINS, 2007). Enquanto os
defensores da Revolução Verde proclamam
os aumentos substanciais na produção de
alguns poucos cultivos, milhares de outras
espécies alimentícias que integram o patrimônio cultural da humanidade estão em
risco de extinção ou já foram irremediavelmente perdidas, ameaçando radicalmente
a soberania alimentar dos povos.
Além da perda da agrobiodiversidade, a
lógica expansionista da agricultura industrial vem promovendo um rápido avanço
das fronteiras agrícolas sobre ecossistemas
naturais. É exatamente esse o fenômeno
que atualmente se assiste na Amazônia,
na África Ocidental e no sudoeste da Ásia,
onde as florestas nativas são postas abaixo,
Gestão ambiental na agricultura
para que as monoculturas possam-se alastrar. Como mais da metade da biodiversidade mundial encontra-se fora de áreas
protegidas, qualquer que seja a estratégia
para a sua preservação deverá contar necessariamente com a ativa participação e interesse dos agricultores. Entretanto, essa não
parece ser uma condição viável, enquanto
perdurarem os estímulos públicos voltados
à expansão desenfreada das monoculturas
sobre os ecossistemas naturais.
Poluição química
A artificialização extremada dos agroecossistemas, cuja face mais evidente
são as monoculturas extensivas, provoca
elevados níveis de desequilíbrio ecológico
que favorecem a explosão de populações
de determinados organismos. Sob o prisma
antropocêntrico, esses organismos são convencionalmente designados como pragas e
invasores, uma vez que são responsáveis
por grandes prejuízos econômicos. Para
eliminar esses organismos espontâneos dos
agroecossistemas, a agricultura industrial
desenvolveu um arsenal de agrotóxicos,
eufemisticamente denominados defensivos
pelas empresas agroquímicas.
Embora o uso de agrotóxicos cresça
sistematicamente, a sua razão de ser, as
chamadas pragas e doenças, não vem sendo
debelada. O que se verifica é justamente
o inverso. De 1945 a 1991, as quebras
de safra nos EUA em função de insetos,
doenças e plantas espontâneas passaram
de 32% para 37%, apesar da duplicação do
uso de agrotóxicos averiguada no período
(CONWAY; PRETTY, 1991). Essa perda
de eficiência dos agrotóxicos é atribuída
ao aumento de resistência dos organismos-alvo. Entre 1950 e 1990, o número de
espécies de insetos resistentes passou de 20
para mais de 500, enquanto o número de
espécies de plantas espontâneas resistentes
chegou a 273 (NATIONAL RESEARCH
COUNCIL, 1996).
No Brasil, o uso de agrotóxicos vem
crescendo de forma acelerada desde a Segunda Guerra Mundial. Em 2008, o País
tornou-se líder mundial na aplicação desses
produtos, com o emprego recorde de 733,9
milhões de toneladas (MENTEN, 2009) ou
3,9 kg de venenos por brasileiro por ano. O
emprego de substâncias tóxicas na agricultura gera impactos ambientais profundos e
em várias direções. Seus efeitos negativos
sobre espécies não-alvo são gigantescos,
aspecto facilmente explicado pelo fato de
que apenas 0,1% dos pesticidas atinge os
organismos-alvo. Nos EUA, por exemplo,
o número de colônias de abelhas nas áreas
agrícolas caiu de 4,4 milhões para 1,9 milhão, entre 1985 e 1997, em consequência
dos impactos dos agrotóxicos (DAILY,
1997).
O livro “Primavera silenciosa”, de
Rachel Carson, representou, em 1962,
um marco de repercussão planetária para
a consciência ecológica ao denunciar os
graves efeitos nocivos dos agrotóxicos
sobre a saúde pública e o meio ambiente.
Além de descrever como os agentes químicos persistentes vinham contaminando a
natureza, Carson documentou como eles se
acumulam nos organismos humanos. Mais
recentemente, os autores do livro “O futuro roubado’’ retomaram e aprofundaram
as denúncias de Carson ao apresentarem
evidências científicas da relação entre os
agentes químicos e o desenvolvimento
sexual aberrante de animais silvestres,
além de problemas comportamentais e
dificuldades reprodutivas entre os seres
humanos (COLBORN et al., 1997).
A contaminação de corpos d’água por
fertilizantes sintéticos é outra fonte de
poluição química gerada pela agricultura
industrial. Estima-se que apenas 50% dos
nutrientes contidos nesses fertilizantes
sejam absorvidos pelas plantas cultivadas,
sendo a outra metade absorvida por plantas
espontâneas ou carreada pela água até os
lagos, aquíferos e, finalmente, os deltas
oceânicos. Esse é o caso do Golfo do México, onde uma área de 20 mil km2 na Foz
do Mississipi é conhecida como deserto
marinho, já que 85% da vida aquática foi
afetada com a eutrofização da água resultante do excesso de fertilizantes (TORRES
et al., 2000).
Emissão de gases de efeito
estufa (GEEs)
As monoculturas constituem um imperativo da lógica econômica do sistema
agroalimentar globalizado, uma vez que
somente por meio delas torna-se possível
a padronização necessária para o crescente
aumento de escala de produção, transformação e transporte de alimentos. Nesse
sentido, a Revolução Verde foi condiçãochave para o radical reordenamento da
geografia da agricultura mundial verificado
nas últimas décadas.
Além dos impactos ambientais negativos de abrangência local/regional, a associação das monoculturas modernizadas e
das criações intensivas com a globalização
sem precedentes do comércio e do consumo de alimentos tem contribuído de forma
decisiva para a alteração dos padrões climáticos no planeta. Tomadas em conjunto,
as etapas de produção, processamento,
embalagem, resfriamento e transporte de
alimentos constituem parcela significativa
da emissão de GEE. Estima-se que somente a etapa primária do sistema agroalimentar (que inclui a produção de insumos, as
operações de manejo e a abertura de novas
áreas agrícolas) emita de 17% a 32% do
total dos GEEs gerados por atividades
humanas (BELLARBY et al., 2008). Se
a essa cifra forem adicionadas emissões
provenientes das demais etapas que levam
ao consumo final, conclui-se que os sistemas agroalimentares atuais respondem por
cerca da metade das emissões.
UMA AGRICULTURA
MULTIFUNCIONAL,
RELOCALIZADA E
DESINDUSTRIALIZADA
Mesmo os dilemas ambientais sem
precedentes não demoveram os principais
agentes promotores e beneficiários da
agricultura industrial. Para estes, a solução
propugnada para enfrentar tais dilemas
passa pela continuidade dos processos
de intensificação agrícola por meio do
aprofundamento da intervenção no mundo
natural proporcionada pelas biotecnologias. Nessa linha de defesa, insiste-se na
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Gestão ambiental na agricultura
promessa de uma agricultura sustentável
com base em variedades transgênicas
tolerantes ao estresse hídrico, a solos de
baixa fertilidade ou que tornariam dispensável o emprego de agrotóxicos por
serem resistentes a pragas e doenças. Não
obstante aos altos investimentos em peças
publicitárias que reproduzem esse discurso, tanto as fartas evidências empíricas ao
redor do mundo, quanto os resultados das
pesquisas independentes já realizadas, demonstram de forma inequívoca que a opção
pela Revolução Duplamente Verde (como
pretendem os defensores da transgenia)
é inviável do ponto de vista ecológico,
além de introduzir novos e imprevisíveis
riscos ao meio ambiente e à saúde pública
e aprofundar os já agudos processos de
exclusão social gerados pela modernização
agrícola.
No polo oposto à proposta de crescente
artificialização dos agroecossistemas, está
o caminho da reconciliação entre agricultura e natureza, ou seja, a desindustrialização
da agricultura. Essa estratégia implica a
redução drástica do emprego de energia
fóssil e de outros recursos naturais finitos
nos sistemas agrícolas. Para compensar a
supressão do uso de insumos industriais e
compatibilizar eficiência produtiva com
conservação ambiental, essa estratégia
funda-se no emprego inteligente dos recursos naturais por meio da articulação
de conhecimentos de fronteira da ciência
da Ecologia com os saberes populares
aplicados nos métodos tradicionais de
agricultura. Como ciência emergente, a
Agroecologia é portadora de conceitos e
métodos que criam as pontes para o estabelecimento do diálogo entre o saber popular
e o científico, condição necessária para a
revitalização da inovação local como dispositivo social para o desenvolvimento de
agroecossistemas fortemente conectados
aos ecossistemas naturais.
Do ponto de vista técnico, a estratégia
central da Agroecologia orienta-se para
a exploração dos variados produtos e
serviços gerados pela biodiversidade nos
agroecossistemas. Diferente dos ecossistemas naturais, os agroecossistemas podem
ter a biodiversidade subdividida em duas
categorias: a biodiversidade planejada e
a biodiversidade associada. A primeira
refere-se às espécies animais e vegetais
introduzidas no sistema com propósitos
econômicos. A segunda compreende a biota que coloniza espontaneamente o sistema
produtivo e o seu entorno. Ao contrário da
concepção da agronomia convencional,
a Agroecologia não enfoca as espécies
espontâneas nos agroecossistemas como
organismos indesejados que devem ser
necessariamente eliminados por meios
mecânicos ou químicos. Pelo contrário, a
essência da estratégia agroecológica está
justamente na valorização das funções
ecológicas que a biodiversidade (planejada
e associada) cumpre na regeneração da
fertilidade e na manutenção da sanidade
dos agroecossistemas para que estes se
mantenham indefinidamente produtivos
(Fig. 1).
Exatamente por articular a produção
econômica com a reprodução ecológica
em longo prazo é que a Agroecologia tem
sido designada como a ciência da agricultura sustentável. Esse inevitável caminho
para a sustentabilidade vem sendo muito
frequentemente confundido com uma opção pelo retrocesso histórico ou com uma
visão romântica do mundo contemporâneo.
Seus opositores alegam que a adoção em
larga escala dessa estratégia resultaria na
disseminação sem precedentes da fome e
da miséria. A despeito das fartas evidências
empíricas em contrário documentadas em
várias regiões do mundo desde a década de
19805, esse tipo de argumentação permanece sendo reproduzida. Três importantes
documentos recentemente publicados ajudam a contrapor esses argumentos.
O relatório divulgado em 2007 pela
Food and Agriculture Organization of the
United Nations (FAO) afirma o potencial
Manejo do
agroecossistema
Biodiversidade
planejada
Cria condições
para promover
Biodiversidade
associada
Promove
Funções ecológicas
por ex.: regulação biótica,
ciclagem de nutrientes,
economia hídrica, etc.
Promove
Biodiversidade
do entorno
Figura 1 - Funções ecológicas promovidas pelas interações entre biodiversidade planejada e biodiversidade associada nos agroecossistemas
FONTE: Vandermeer e Perfecto (1995 apud ALTIERI, 1999).
Essas evidências vêm sendo trazidas a público pelas revistas produzidas pela Rede Leisa desde 1984. A edição brasileira da revista Leisa
vem sendo publicada desde 2004 sob o nome de Agriculturas: experiências em agroecologia. Para informações sobre esta revista consultar o site:
http://agriculturas.leisa.info
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Gestão ambiental na agricultura
e a necessidade de a agricultura ecológica
substituir a agricultura convencional (FAO,
2007). De acordo com a FAO, o modelo
agrícola dominante apresenta sérios paradoxos, já que produz comida de sobra,
enquanto milhões de pessoas permanecem
submetidas à fome e à subnutrição. Além
disso, utiliza cada vez mais agroquímicos,
sem que se verifique uma contrapartida
em termos de aumento na produtividade
das lavouras.
Um grupo de 400 cientistas de todo o
mundo e de vários ramos do saber, reunidos
por três anos na iniciativa Avaliação Internacional sobre Ciência e Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento6, concluíram
que é premente a extrapolação do viés produtivista predominante com a ampliação de
pesquisas voltadas para o desenvolvimento
de outras funções-chave da agricultura.
Entre essas funções, destacam a proteção
do solo, da água e da biodiversidade, bem
como a revalorização dos conhecimentos
tradicionais de milhões de pequenos agricultores dos países do Sul. O documento
aponta ainda para a necessidade de pesquisas voltadas para o desenvolvimento de
estilos de agricultura que emitam menos
GEE e que contribuam para a mitigação
dos impactos das mudanças climáticas
(INTERNATIONAL ASSESSMENT OF
AGRICULTURAL, KNOWLEDGE,
SCIENCE AND TECHNOLOGY FOR
DEVELOPMENT, 2009).
Já a Universidade de Michigan (EUA)
realizou minuciosa análise comparativa
da produtividade obtida em sistemas de
produção convencionais e ecológicos. Com
base em 293 casos estudados (incluindo
países desenvolvidos e em desenvolvimento; climas temperado, tropical úmido
e semiárido), concluiu-se que o enfoque
agroecológico pode sim responder ao
desafio de abastecer toda a população
mundial. Para a maior parte das espécies
cultivadas, a análise mostrou que a razão
entre a produtividade média das lavouras
ecológicas e das convencionais foi pouco
menor que 1,0 em países desenvolvidos
e maior que 1,0 em países em desenvolvimento. A pesquisa aponta ainda que a
agricultura ecológica tem potencial para
abastecer uma população ainda maior do
que a presente sem que para isso tenha
que se expandir para áreas ocupadas por
ecossistemas naturais (BADGLEY et al.,
2007). Nesse sentido, o estudo desmonta
o argumento de que uma suposta menor
produtividade das agriculturas de base
ecológica levaria a um aumento expressivo do desmatamento, o que anularia suas
vantagens ambientais iniciais.
As conclusões desses três importantes
esforços internacionais fundamentam-se
em evidências científicas que se multiplicam em todos os quadrantes do planeta e
que demonstram que o viés agroecológico
fornece as diretrizes para a agricultura
exercer múltiplas funções no atendimento
de interesses vitais das sociedades, entre
as quais a produção e a distribuição de
riquezas sociais e a conservação do meio
ambiente. Dessa forma, ao relacionar diretamente a economia com a ecologia dos
agroecossistemas, o enfoque agroecológico
abre perspectivas concretas para que a agricultura cumpra funções-chave na gestão
sustentável dos recursos naturais, dentre as
quais se destacam a conservação dos solos,
a regulação dos ciclos hidrológicos locais
e a mitigação do efeito estufa.
Conservação dos solos
Partindo do princípio de que a quantidade (ou concentração) de nutrientes no
solo não é o fator que determina o bom
desenvolvimento dos cultivos, mas sim o
acesso constante das raízes das plantas a
uma quantidade balanceada de nutrientes,
o manejo agroecológico dos solos põe em
xeque a concepção convencional de fertilização que se baseia no aporte de adubos
sintéticos. A estratégia agroecológica
aplica-se por meio de manejos voltados
à manutenção de solos biologicamente
ativos, que asseguram boas colheitas com
baixos custos financeiros e ambientais. Em
essência, esses manejos reproduzem nos
agroecossistemas as condições estruturais
e funcionais responsáveis pela reprodução
da fertilidade dos ecossistemas naturais,
dentre as quais (PETERSEN, 2008):
a) a maximização da produção e do
uso de biomassa no sistema por
meio de policultivos, de rotações de
culturas, de práticas agroflorestais e
da integração cultivos-criações;
b) a proteção permanente do solo com
cobertura viva ou morta;
c) o preparo do terreno para o plantio
com o mínimo de revolvimento.
Além de favorecer uma nutrição balanceada para as plantas cultivadas, as práticas
de manejo agroecológico dos solos também
incidem positivamente na regulação de
populações de organismos potencialmente
danosos às lavouras, como insetos-praga
e microrganismos patogênicos. Inúmeras
evidências científicas têm demonstrado o
caráter multifuncional do manejo agroecológico, em particular no que se refere ao
efeito sinérgico entre a manutenção da fertilidade e a sanidade dos agroecossistemas
(ALTIERI; NICHOLLS, 2003).
Estima-se que algo em torno de 20%
da produção mundial de alimentos seja
proveniente de policultivos e que a produtividade nesses sistemas seja 20% a 60%
superior à das monoculturas (FRANCIS,
1986 apud ALTIERI, 2008). Esse maior
rendimento físico vem sendo atribuído a
perdas menores causadas por plantas espontâneas, doenças e insetos-praga, assim
como pela manutenção de solos que sus-
O International Assessment of Agricultural, Knowledge, Science and Technology for Development (IAASTD) contou com a contribuição de
representantes de governos, do setor privado e da sociedade civil de países ricos e em desenvolvimento. Foi um empreendimento cofinanciado por
organismos vinculados às Nações Unidas: FAO, Global of Environment Facility (GEF), Programa das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento
(PNUD), United Nations Educacional, Scientific and Cultural Organization (Unesco), World Health Organization (WHO) e pelo Banco Mundial.
Mais informações sobre o IAASTD consultar o site: http://www.agassessment.org
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Gestão ambiental na agricultura
tentam processos biológicos responsáveis
pela transformação de recursos abióticos
do agroecossistema (água, luz e nutrientes)
em biomassa.
Regulação dos ciclos
hidrológicos locais
O aumento da eficiência do uso da
água, ou seja, do total de biomassa produzida por unidade de água disponível, é uma
característica essencial para a construção
de estilos de agricultura mais sustentáveis.
O emprego intensivo da biodiversidade por
meio do manejo conservacionista dos solos, os cultivos de cobertura, as variedades
locais, os espaçamentos adensados e os sistemas agroflorestais estão entre as práticas
que ajudam a regular os ciclos hidrológicos
locais, ao favorecer a infiltração da água e
a penetração profunda das raízes dos cultivos, ao reter maiores teores de umidade nos
solos e ao reduzir as perdas por escoamento
superficial e evaporação.
Pretty et al. (2006) realizaram extensivo levantamento sobre o incremento
da eficiência do uso da água, tomando
por base os dados de áreas agrícolas em
diferentes níveis de transição agroecológica, sistematizados por 286 programas
de desenvolvimento rural e conduzidos
em 57 países. Corroborando resultados
que já haviam identificado na literatura,
estes autores constataram que a elevação
da produtividade da água foi expressiva
nos sistemas de sequeiro e moderada nos
sistemas irrigados, o que indica o enorme
potencial da perspectiva agroecológica
para promover o aumento da produção alimentar, sem que para isso sejam necessários aportes de água aos agroecossistemas
via irrigação intensiva.
Os resultados obtidos pelo levantamento podem ser explicados essencialmente
pelo fato de que os agroecossistemas de
base ecológica possuem maior resiliência
hídrica, ou seja, possuem mecanismos
eficientes de autorregulação dos seus ciclos
hidrológicos. O desenvolvimento de agroecossistemas mais resilientes apresenta-se
como um desafio crucial no contexto das
mudanças climáticas globais, em que os
extremos climáticos devem-se acentuar
aumentando os riscos agrícolas.
Estudo recente realizado pela Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura
Alternativa (AS-PTA) no planalto norte de
Santa Catarina demonstra que, mesmo em
estádios iniciais de transição agroecológica, os agroecossistemas tornam-se mais
resilientes ante os extremos climáticos. Os
produtores de milho da região vivenciaram
um período agrícola atípico, já que extremos climáticos opostos combinaram-se na
mesma safra (excesso de chuvas no início
e seca no final), resultando em uma quebra
de produção estimada em 50%. Apesar das
perdas generalizadas entre as famílias agricultoras, o estudo identificou que aquelas
que haviam optado por manejos de base
ecológica sentiram menos o impacto das
irregularidades climáticas, quando comparadas com as que mantiveram sistemas
convencionais, já que registraram uma perda média de apenas 20% da safra esperada.
Vale ressaltar nesse caso que, além das
diferenças relativas à produtividade física,
os resultados econômicos dos dois tipos de
sistema foram absolutamente contrastantes, uma vez que o custo de produção do
sistema convencional foi quase dez vezes
superior ao custo do sistema em transição
agroecológica. Ao dependerem totalmente
do aporte de insumos industriais para a
reprodução técnica dos agroecossistemas,
os produtores convencionais registraram
um prejuízo equivalente a 2.690 kg/ha de
milho, enquanto aqueles que ingressaram
na trajetória de transição agroecológica obtiveram um saldo positivo de 3.470 kg/ha
de milho (ALMEIDA et al., 2009).
Mitigação do efeito estufa
Ao se fundamentar no uso intensivo da
biodiversidade como mediadora dos fluxos
e ciclos naturais nos agroecossistemas, o
enfoque agroecológico oferece uma dupla
resposta ao desafio de mitigar o efeito
estufa. De um lado, reduz a emissão dos
GEEs pela agricultura a níveis consideravelmente mais baixos do que os atuais.
Além de interromper drasticamente o ciclo
de dependência de combustíveis fósseis,
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os sistemas de base ecológica diminuem
ou eliminam por completo o emprego
de insumos industriais responsáveis pela
emissão de GEEs ainda mais danosos que
o CO2, como o óxido nitroso.
Por outro lado, os agroecossistemas
que incorporam práticas de base ecológica
aumentam a contribuição da agricultura
no sequestro de carbono atmosférico.
Diferentes estimativas dessa contribuição
adicional chegaram a valores entre 733 e
3.000 kg/ha de CO2 por ano (FLIEBBACH
et al., 2007; PIMENTEL et al., 2005 apud
INTERNATIONAL COMMISSION ON
THE FUTURE OF FOOD AND AGRICULTURE, 2006).
Diante da magnitude das alterações
climáticas que já se vem anunciando,
a atitude mais ingênua é insistir que as
soluções serão encontradas por meio do
progresso tecnológico, sem que os padrões
de produção e consumo nas sociedades
modernas sejam profundamente alterados.
O enfoque agroecológico aplicado com
sucesso em diferentes situações socioambientais do planeta aponta para um princípio fundamental para a reorientação dos
sistemas agroalimentares: a relocalização
da produção, do comércio e do consumo
dos alimentos.
Relocalizar significa reconciliar agroecossistemas e ecossistemas naturais por
meio do emprego intensivo da biodiversidade. Mais biodiversidade representa
mais carbono sequestrado da atmosfera por
meio de processos naturais dependentes
da energia solar. Na forma de biomassa,
esse carbono cumpre funções essenciais
ao subsidiar a fertilidade e manter a sanidade dos agroecossistemas, permitindo a
eliminação de agroquímicos emissores de
GEEs altamente nocivos. A biodiversidade funciona também como uma espécie
de seguro natural diante da instabilidade
climática, já que aumenta a resiliência dos
agroecossistemas ante os extremos climáticos. Finalmente, os sistemas agrícolas
biodiversificados proveem quantidade,
qualidade e diversidade de alimentos para
o abastecimento de populações das imediações. Dessa forma, torna-se possível
Gestão ambiental na agricultura
diminuir a necessidade das operações de
processamento, embalagem, resfriamento
e transporte, reduzindo assim a carga energética dos alimentos.
CONDIÇÕES PARA A
TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA
Um dos principais aprendizados que
vem do estudo da história da agricultura é
que a superação de um padrão de organização técnica e econômica dos agroecossistemas por outro nunca ocorreu como
resultado automático das novas descobertas tecnológicas. A adoção em larga escala
das novidades técnicas costuma esbarrar
em fortes obstáculos político-institucionais e culturais, mesmo quando já tenham
comprovado capacidade de responder a
profundos dilemas enfrentados pelas sociedades. Como explicar, por exemplo, que as
inovações da primeira Revolução Agrícola,
no final da Idade Média, tenham demorado
quase três séculos para se disseminarem do
Norte da Europa para a Península Ibérica e
para a Itália, regiões então marcadas pela
fome e pela pobreza extrema, embora demonstrassem capacidade de praticamente
dobrar a produtividade física das lavouras
e criações de forma sustentável. A explicação para tal retardo só pode ser encontrada no fato de que essas inovações não
se ajustavam às estruturas agrária e social
altamente desiguais que prevaleciam nos
países da Europa Meridional (MAZOYER;
ROUDART, 1997). Em outras palavras, as
relações de poder na sociedade são definidoras da orientação do padrão tecnológico
que esta opta por seguir.
Aplicando essa reflexão ao contexto
atual, pode-se afirmar que a hegemonia
mundial do modelo da agricultura industrial
vem-se sustentando graças à obstinada
resistência a transformações por parte da
aliança de elites agrárias, agroindustriais
e financeiras em torno do agronegócio e à
sua influência decisiva sobre a concepção de
legislações e políticas executadas nacional
e internacionalmente. De fato, sem as regulamentações e subsídios estatais e de organismos multilaterais que criam as condições
econômicas e institucionais necessárias para
sustentar a insustentabilidade do agronegócio, novos rumos para o desenvolvimento
das agriculturas no mundo já teriam sido
tomados em resposta aos críticos desafios
socioambientais dos tempos atuais.
Apenas em 2002, os países da União
Europeia gastaram 320 bilhões de dólares
em subsídios à agricultura. Nos EUA, o
gasto em subsídios em 1996 foi da ordem
de 70 bilhões de dólares. Ainda que em ambos os casos esses aportes sejam destinados
preferencialmente aos grandes produtores,
é para as grandes corporações fornecedoras
de insumos e equipamentos agrícolas e
para o sistema financeiro que os recursos
públicos acabam fluindo. O cenário no
Brasil não é diferente. Muito embora se
autoproclame o setor mais rentável da economia brasileira, o agronegócio depende de
créditos públicos da ordem de 100 bilhões
de reais anuais para que possa gerar uma
renda de 120 bilhões. Dessa forma, a poupança pública é mobilizada para sustentar
uma economia de baixa rentabilidade que
gera enormes custos ambientais e sociais
não contabilizados nas estatísticas oficiais
e que, além disso, transfere os riscos inerentes à sua atividade à sociedade.
Nessas condições, fica claro que a
transição do modelo hegemônico de desenvolvimento rural para padrões, que se
baseiam no princípio da sustentabilidade
socioambiental e cultural, não se fará sem
que a renitente força inercial do agronegócio seja superada no plano político.
Uma estratégia voltada para impulsionar
uma transição agroambiental desse nível
de complexidade deveria orientar os investimentos públicos e as iniciativas da
sociedade civil para o desenvolvimento
de agriculturas produtivas, socialmente
justas e que sejam dotadas de bases tecnológicas e práticas culturais que assegurem
a reprodução da capacidade produtiva e
preservem a integridade do meio ambiente
local e globalmente.
Experiências concretas, que proliferam em todas as regiões do mundo vêm
demonstrando que a Agroecologia fornece
as diretrizes para a emergência de padrões
de desenvolvimento rural que compatibili-
zam esses objetivos, ao mesmo tempo em
que restitui elevado grau de autonomia da
agricultura em relação ao capital industrial
e financeiro. Essas mesmas experiências
evidenciam que, como enfoque científico,
a Agroecologia possui vigência histórica,
uma vez que oferece respostas consistentes
à profunda crise socioambiental vivenciada
nas civilizações contemporâneas.
Em que pesem as crescentes demonstrações nesse sentido, um conjunto de
reformas interdependentes de natureza
política, econômica e cultural faz-se necessário para que a perspectiva agroecológica
torne-se operacional e dissemine-se nas
instituições sociais. Um dos aspectos centrais a ser considerado nessas reformas é a
necessidade de superação da dicotomia entre a Economia e a Ecologia, a qual orienta
a concepção dos dispositivos institucionais
de regulação pública do desenvolvimento.
As políticas ambientais permanecem essencialmente voltadas para a preservação
dos ecossistemas naturais, demonstrando
pouco interesse pelos impactos ambientais dos agroecossistemas. Além disso,
por estar mais centrada no conceito de
preservação do que no de uso social dos
recursos naturais, essa concepção termina
por antepor o meio ambiente ao desenvolvimento. Já as políticas agrícolas continuam essencialmente mobilizadas em torno
do objetivo de promover o crescimento
da produtividade física e da rentabilidade econômica dos agroecossistemas no
curto prazo, não incorporando qualquer
preocupação com a reprodução das condições ecológicas para a manutenção da
agricultura em longo prazo. O desencontro
dessas perspectivas talvez explique por
que, quando se aborda a problemática ambiental, frequentemente não se estabeleça
uma relação imediata com a agricultura
(ALMEIDA et al., 2001).
Cumpre ressaltar também que a irradiação de agriculturas multifuncionais,
relocalizadas e desindustrializadas não
se processará sem que novos sistemas
de gestão e planejamento suplantem o
caráter fragmentário vigente nas políticas
públicas. Entre outras condições, o avanço
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Gestão ambiental na agricultura
nesse sentido requer a criação de espaços
para a efetiva participação das comunidades e organizações sociais na gestão do
desenvolvimento local, o que implica um
processo correspondente de redistribuição
de poder político-administrativo entre
escalas geográficas das administrações
públicas e entre setores sociais.
Está-se, portanto, diante de um complexo processo de aprendizagem coletiva que
se desenvolve em um ambiente social que
encerra profundos conflitos de concepção e
de poder no seio das sociedades. Somente
uma vontade coletiva forte, atuante e informada pelas experiências inovadoras em
curso será capaz de reconciliar agricultura
e natureza, criando condições concretas
para que a humanidade enfrente os difíceis
tempos que estão por vir.
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Agroecologia reconciliando agricultura e natureza - AS-PTA