A função social como paradigma do direito social à moradia e a imposição de cláusula de inalienabilidade temporária nas doações de imóveis públicos Rodrigo Eugênio Matos Resende [email protected] Agosto de 2013 “A expressão função social da propriedade deve ser vinculada a objetivos de justiça social, ou seja, o uso da propriedade deve estar comprometido com um projeto de uma sociedade mais igualitária ou menos desequilibrada, na qual o acesso e o uso da propriedade sejam orientados no sentido de proporcionar novas oportunidades aos cidadãos, independentemente da utilização produtiva que porventura já esteja tendo.” GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.); OLIVEIRA, Andrea Leite Ribeiro de. Função social da propriedade e da posse. In: OLIVEIRA, Andrea Leite Ribeiro de et alii. Função social no direito civil, 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 52-3. 2 Introdução e perspectiva de análise Este estudo se propõe a analisar as nuances da função social nas políticas de regularização fundiária promovidas pelo Estado (acepção lata). Pretende-se abordar tanto os meandros da função social incidente sobre a propriedade imobiliária - seja ela pública ou privada - quanto a função social incidente sobre os contratos (aí incluindo também, por suposto, as escrituras), mais especificamente os de doação de imóveis públicos a particulares para fins habitacionais e as implicações da incidência deste mandamento constitucional na liberdade que os donatários têm para alienar os bens doados. I- Função social como paradigma constitucional: pertinência aos bens públicos? Durante certo tempo, pairou grande controvérsia na doutrina acerca da incidência da função social sobre a propriedade pública. Angel M. Lopez y Lopez 1 entendia que a função social teria surgido para compatibilizar o direito de propriedade dos particulares com as aspirações sociais, sendo que o regime jurídico positivado do domínio público não poderia se adequar as conseqüências normalmente advindas do descumprimento de uma suposta função social, de que é exemplo a desapropriação. A exceção envolveria apenas os bens dominiais, porquanto o regime destes bens aproxima-se do estatuto da propriedade privada, apesar do influxo sempre recebido das prerrogativas estatais. Lopez concluía por entender não ser possível pensar em domínio privado dos entes públicos com objetivos puramente privatísticos, o que seria uma contradição. Desta forma, caberia exigir dos entes públicos que acomodassem a utilização de seus bens dominiais aos parâmetros da função social. 1 Cf. LOPEZ Y LOPEZ, Angel M. La disciplina constitucional de la propiedad privada. Madri: Tecnos, 1988 apud ROCHA Sílvio Luís Ferreira da. Função social da propriedade pública. Coleção temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 121. 3 Para José Cretella Júnior 2, o fim público é atributo específico de toda sorte de bens públicos, nisso diferenciando dos bens privados, que servem unicamente a vontades particulares. Silvio Luís Ferreira da Rocha 3 foi além, entendendo que os bens públicos também estão submetidos ao cumprimento de uma função social, porquanto servem de instrumento para a realização dos fins públicos a que a Administração Pública está obrigada. Desse modo, o Estado não pode deles dispor de acordo com sua vontade, estando, ao revés, obrigado a usálos privilegiando o atendimento aos fins públicos previstos em lei. Entende Sílvio da Rocha que “a relação jurídica entretida entre a pessoa de direito público e o bem público é relação com fim diverso da relação entretida entre o particular e o bem particular, disciplinada pelo direito privado, justamente porque o bem, objeto da relação jurídica de domínio público, serve a um fim público.” Ou seja, enquanto no domínio privado a vontade predomina, no âmbito da administração, a finalidade pública dá a palavra final. Silvio da Rocha recorda, ademais, que a distância entre o regime público e o estatuto privado de bens já foi maior, justamente porque o princípio da função social acabou por condicionar o exercício do domínio privado, aproximando-o das aspirações sociais. Concordamos com sua afirmação de que a função social é princípio que se espraia por qualquer relação jurídica de domínio, seja ela pública ou privada. O atendimento a uma finalidade pública, vocação de qualquer bem do Estado (acepção lata), quer significar que os poderes públicos devem proporcionar níveis máximos de benefícios à coletividade, sendo isso alcançado, entre outros meios, através da aferição do cumprimento da função social. Quando menos, deve-se recordar que no estado democrático de direito, o próprio Estado se submete às normas por ele criadas, não se admitindo atuação à margem do ordenamento jurídico. Noutras palavras, deve o Estado também se submeter ao princípio da função social incidente sobre a propriedade imobiliária. 2 Cf. CRETELLA JUNIOR, José. Dos bens públicos no direito brasileiro. apud ROCHA Sílvio Luís Ferreira da. Op. cit., p. 125. 3 Cf. ROCHA Sílvio Luís Ferreira da. Op. cit.,. pp. 125-6. 4 No que diz respeito à exigência de cumprimento de função social pelos imóveis dominiais do Estado, Di Pietro4 é taxativa ao negar que estes bens tenham natureza exclusivamente patrimonial, entendendo, ao revés, desempenharem objetivos de interesse geral. Di Pietro entende que os bens dominiais não desempenham uma função social ínsita à sua natureza, tal como ocorre com outras classes de bens públicos, mas não há porque excluílos da incidência das normas constitucionais que asseguram a função social da propriedade. Enfim, quer porque aos bens do Estado deve ser conferida uma finalidade pública, quer porque a Constituição não exclui os bens públicos da incidência da função social ou mesmo porque – agora já adentrando o tema deste estudo - os bens que normalmente são doados a famílias carentes para fins habitacionais são os dominiais - cuja natureza jurídica muito se aproxima dos bens privados, sobre os quais não resta dúvida com relação à necessidade de cumprimento da função social - sufragamos o entendimento de que toda sorte de bens públicos deve atender uma função social, bem como de que a função social incidente sobre os bens públicos tem um qualificativo: a aferição desse cumprimento não se resume às hipóteses de atendimento aos critérios impostos pelo ordenamento jurídico 5, devendo ir além, para adotar usos sempre compatíveis com o interesse público. Afirmar a necessidade de atendimento à função social, como se sabe, é romper com o período histórico anterior, em que o perfil dos institutos jurídicos (propriedade, contratos, empresa etc) era acerbadamente individual, em tudo compatível com o liberalismo inaugurado pelos códigos oitocentistas europeus. Hoje se observa uma relativização desse individualismo para se reconhecer uma relação entre as dimensões individual e comunitária da pessoa humana6. 4 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. A gestão jurídica do patrimônio imobiliário do Poder Público. Cadernos FUNDAP, ano 9, nº 17, pp. 55-66, dez 1989. Disponível também em <http://www.fundap.sp.gov.br/publicacoes/cadernos/cad17/Fundap17/A%20GESTAO%20JURIDICA%20DO% 20PATRIMONIO%20IMOBILIARIO%20DO%20PODER%20PUBLICO.pdf >, acesso em 15 ago 2013. 5 CF/88, arts. 5º, XXIII; 170, III; 182, §2º (imóvel urbano); 184; 186 (imóvel rural). Além disso, a norma do art. 39 do assim denominado Estatuto das Cidades (Lei Federal 10.257/01) também trata a questão da função social dos imóveis urbanos. O Código Civil também o faz na norma do art. 1.228, §1º. 6 Cf. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da(coord); ANDRIOTTI, Caroline Dias. Breves notas históricas da função social no direito civil. In: OLIVEIRA, Andrea Leite Ribeiro de et alii. Função social no direito civil, 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 2. 5 Para Guilherme Calmon e Caroline Andriotti7, a função social deita raízes na diretriz constitucional da solidariedade social contida na norma do art. 3º, III da CF/88. Tem uma natureza jurídica ainda controvertida, havendo quem entenda se tratar de princípio, outros que a lêem como atributo, diretriz ou cláusula geral e mesmo quem a intitula doutrina da função social ou ideia-princípio 8. Por outro lado, parece superada a ideia anterior, de que se tratava de uma limitação à propriedade. É que não se trata de um limite exógeno ao exercício, senão de algo que integra a propriedade e sem a qual o direito de propriedade resta esvaziado 9. Seja como for, é inegável se tratar de um grande avanço a positivação deste princípio no texto constitucional (art. 5º, XXII), notadamente pela posição topográfica que ostenta e o faz ser alçado à cláusula pétrea, insuscetível de alteração, supressão ou sequer ameaça. II - A moradia como direito social É sabido que os direitos sociais têm como objetivo um incremento nas condições de existência, através de prestações positivas por parte do Estado. Diferenciam-se, portanto, dos direitos individuais, que têm uma componente de abstenção por parte do Estado, de modo a assegurar a liberdade e autonomia dos indivíduos. O direito à moradia passou a ser elencado ao lado de outros direitos sociais no caput do art. 6º da Constituição de 1988 a partir da Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000. Isso passou a legitimar a pretensão de seus titulares à realização do direito através de uma prestação positiva por parte do Estado, tomado este na sua acepção lata, por força da norma do art. 23, IX, que estabelece a competência comum dos entes federados para promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento. 7 Op. cit., p. 16. 8 Ibid, p. 6. No decorrer deste texto, preferimos fazer referência à função social como princípio. 9 Cf. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord); OLIVEIRA, Andrea Leite Ribeiro de. Função social da propriedade e da posse. In: OLIVEIRA, Andrea Ribeiro Leite de et alii. Função social no direito civil, 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 51. 6 O ensinamento de José Afonso da Silva 10 é bastante pertinente ao presente estudo, motivo pelo qual merece ser transcrito: O direito à moradia significa ocupar um lugar como residência; ocupar uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No “morar” encontramos a idéia básica da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação, o que sobressai com sua correlação com o residir e o habitar, com a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. O direito à moradia não é necessariamente um direito à casa própria. Quer-se que se garanta a todos um teto onde se abrigue com a família de modo permanente, segundo a própria etimologia do verbo morar, do latim “morari”, que significa demorar, ficar. Mas é evidente que a obtenção da casa própria pode ser um complemento indispensável para a efetivação do direito à moradia. (grifos não originais) Nota-se, portanto, que o direito à moradia contém uma componente de habitualidade, porquanto a própria origem etimológica do vocábulo moradia implica esta idéia de permanência, de durabilidade, de perenidade. Podem-se extrair ao menos duas conclusões a partir destas lições doutrinárias: a primeira inferência é que, ao prover este direito, o Estado não precisa se preocupar necessariamente em doar um imóvel, podendo prover o direito através de outras formas, tais como a venda a preços subsidiados, a concessão de uso especial para fins de moradia 11, a concessão de direito real de uso para fins de moradia, entre outros, já criados ou que vierem a ser criados e ofereçam garantias jurídicas aos habitantes de que seu direito à moradia está assegurado ao longo do tempo. A propósito do assunto, Carvalho Filho 12 já ponderou que a (...) doação é o ajuste em que o proprietário (doador) transfere a outrem (donatário) bem de seu patrimônio, a título de mera liberalidade. Esse tipo de contrato é também de direito privado, sendo regulado nos arts. 538 e seguintes do Código Civil. A Administração pode fazer doação de bens públicos, mas tal possibilidade deve ser tida como excepcional e atender a interesse público cumpridamente demonstrado. Qualquer violação a tais pressupostos espelha conduta 10 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed.. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 314-5. 11 Cf. MP 2.220/2001, instrumento também adotado em vários outros entes federados, como, v.g. o Estado de Goiás e município de Santa Maria – RS. Hoje são instrumentos que já estão previstos no Código Civil, art. 1.225, XI e XII. 12 Cf. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 13. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 889. 7 ilegal e dilapidatória do patrimônio público. Entre os Estados-membros, são adotados os mais variados modelos de regularização fundiária. No âmbito nacional, por sua vez, um dos modelos adotados pelo Programa Minha Casa Minha Vida é a chamada legitimação de posse, na qual não adquire qualquer relevância a discussão da inalienabilidade. Uma vez cumprida uma etapa prévia de legitimação de posse (outrora ilegítima ou irregular), o domínio só é transferido ao beneficiário-possuidor depois de expendido determinado tempo no imóvel (Lei Federal 11.977, art. 60). É evidente que este modelo tem até mais méritos do que o adotado por alguns entes federativos, na medida em que a retomada do bem não passa pela discussão de domínio, mas de mera posse. E é certo dizer que dificilmente o possuidor se entregará à prática de alienar os direitos possessórios sobre o imóvel se souber que sua permanência no local é requisito à aquisição do domínio. Importa, enfim, deixar assentado que a concreção do direito à moradia pode se dar de variadas maneiras. Assim alcançada a primeira conclusão, eis à segunda: seja lá qual a forma de promover a política habitacional, o ente federado deve proporcionar meios de garantir a permanência dos titulares do direito no local, seja provendo-o de infra-estrutura básica (condições dignas de moradia, fornecimento de água, luz, coleta de lixo, etc), seja salvaguardando o local de interferências externas que possam vir a frustrar o cumprimento do dever social prestado pelo Estado. Deve o Estado adotar mecanismos para evitar que a implementação do direito à moradia seja frustrada por interferências de terceiros. Essa ação promocional do Estado deve incidir tanto para a vertente do assentamento quanto para o viés da permanência das famílias no local. É necessário que o Estado tutele a permanência das famílias assentadas no local que lhes for destinado, inibindo as investidas de terceiros sobre o imóvel e sobre a família assentada. Uma das formas de frustrar as investidas de terceiros é através da aposição de cláusula de inalienabilidade temporária do imóvel doado, evitando que, durante o prazo de estabilização do assentamento familiar, terceiros ao contrato venham formular propostas envolvendo o imóvel doado, fazendo com que a política habitacional perca eficácia devido a fatores externos que, ao fim e ao cabo, dificultem a redução do passivo habitacional brasileiro. 8 III - Cláusula de inalienabilidade temporária Como se disse acima, uma das formas de garantir o atendimento do direito social à moradia é através de doação de imóveis públicos para assentamento de famílias, mas esta forma gratuita de alienação do patrimônio público convive harmonicamente com outros meios legítimos de assegurar a moradia, importando mais o conteúdo do que a forma através do qual o Estado se desincumbe de sua prestação positiva asseguradora do direito social em tela. Quando preferir a doação de imóveis públicos às outras formas acima elencadas a título exemplificativo, deve o Estado se assegurar de que o imóvel doado seja destinado segundo uma ordem de prioridade previamente estabelecida, conforme critérios de conhecimento público. E deve inserir nos instrumentos de doação (escrituras privadas ou públicas) uma cláusula de inalienabilidade temporária, elegendo um termo dentro do qual reste vedada a livre destinação do imóvel pelo donatário. A cláusula de inalienabilidade temporária é uma condição resolutiva da doação13, não se confundindo com o encargo à doação. A distinção gera efeitos práticos para a análise do prazo para o desfazimento da doação. Enquanto a inexecução do encargo gera o direito potestativo do doador revogar a doação por inexecução do encargo, a condição resolutiva é estipulada contratualmente pelas partes signatárias como suficiente a resolver, por si só, o negócio outrora celebrado. Se e enquanto não se verificar o implemento de condição resolutiva, vigora em sua plenitude o negócio jurídico (CC, art. 127), sendo importante salientar, outrossim, que são lícitas todas as condições que não atentem contra a lei, a ordem pública e os bons costumes (CC, art. 122). É legítimo, portanto e pelo que se dirá nas próximas linhas, concluir que a Administração Pública não apenas pode, como, melhor dizendo, deve apor a cláusula de inalienabilidade nas doações que faz de imóveis públicos. Se, como disse Carvalho Filho, a 13 Já se asseverou que “a doação condicional não se confunde com a doação modal. Na primeira, os efeitos do contrato dependem de evento futuro e incerto, ou seja, o doador só se obriga a transferir o bem com o implemento da condição (condição suspensiva) ou a propriedade é resolvida com a efetivação deste evento (condição resolutiva). O modo, ao contrário da condição, é coercitivo, e seu não cumprimento poderá acarretar revogação da doação.” Cf. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Contratos no Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004. p. 412. 9 doação deve ser tida como algo excepcional, é legítimo que venha acompanhada de restrições em nome da preservação do interesse público. A inalienabilidade temporária nas doações de imóveis feitas pelo Estado (lato sensu) se presta não apenas para inibir as investidas de terceiros sobre os donatários com objetivo de adquirir-lhes o imóvel doado. Serve também como uma contrapartida do donatário em relação ao poder público, uma cláusula resolutiva expressa (CC, art. 474) pela qual se ele aceita previamente o desfazimento do negócio (resolução da doação) na hipótese de alienação, locação ou outra destinação vedada pela lei ou pelo contrato, porquanto nociva ao interesse público subjacente ao negócio gratuito. A condição resolutiva (inalienabilidade temporária) deve incidir quando observados signos presuntivos de desnecessidade de manutenção da doação. Ou seja, em se verificando a ocorrência de uma das hipóteses de despojamento da propriedade ou mesmo da posse direta num determinado intervalo de tempo, fica resolvido o contrato de doação. A cláusula resolutiva expressa da doação deve estar prevista não apenas na hipótese de alienação onerosa (venda) da área doada pelo Estado, espraiando efeitos também na hipótese de doação da área a terceiros. Noutras palavras, o objetivo é impedir não apenas que o donatário aufira lucros ilegítimos a partir do patrimônio público – lucros esses que, fossem admitidos, deveriam ir para os cofres públicos; não para o locupletamento dos privados -, mas também rechaçar condutas graciosas que sinalizem que aquele donatário agraciado com um imóvel já dele não mais precisa. Sob ambas as hipóteses – onerosa e gratuita -, a cláusula de inalienabilidade adota um caráter similar ao que a cláusula rebus sic stantibus desempenha nos contratos de trato sucessivo. Por esta ótica, a doação deve vigorar se e desde quando haja necessidades sócioeconômicas para tanto. Não é por outro motivo que o público-alvo das políticas habitacionais é, por excelência, a população de baixa renda, um conceito que cada ente federado deve precisar para o desenvolvimento das políticas habitacionais. Se, em determinado intervalo de tempo se deixa de observar, a partir de condutas adotadas pelos donatários, a permanência daquele quadro sócio-econômico do donatário que fundamentou e deu lastro à doação, o contrato se resolve, por ter deixado de existir uma cláusula que lhe é essencial. A resolução da doação quando deixam de haver os motivos que 10 lhe ensejaram não deve, portanto, ser encarada como faculdade do administrador público, senão como imposição no trato da coisa pública. Com efeito, se no prazo de vigência da cláusula de inalienabilidade, o donatário doa a terceiros o imóvel recebido, isso quer significar que ele atingiu determinado nível patrimonial que lhe permite praticar atos graciosos, ou seja, um estado de riqueza incompatível com o manutenção, em sua esfera patrimonial, do imóvel gerador do incremento patrimonial às custas do erário. Isso é que justifica a resolução da doação. Mais até do que isso, significa que certamente o donatário tem alternativa habitacional diversa à opção oferecida pelo Estado. A hipótese do donatário que aliena onerosamente o imóvel é ainda mais grave, querendo implicar que ele não mais necessita do imóvel – ou seja, significa que inexiste o quadro fático que motivou a doação – mas, ao invés de devolver o imóvel ao Estado para que seja destinado a outra família de baixa renda, o donatário, movido por propósitos unicamente egoísticos, retira proveito econômico daquela habitação que lhe foi fornecida para atendimento a uma política de viés solidário. Ao invés do donatário devolver o imóvel ao doador para ulterior repasse a outra família, em gesto por tudo solidário e fraterno para com as demais famílias necessitadas, ele aliena o bem e recebe todo o preço, incrementando unicamente seu patrimônio e de sua família. E por que o Estado não deve tolerar a prática de condutas tais por parte dos donatários? É o que se pretende analisar no próximo tópico. IV - Função social e comportamento do donatário que aliena o imóvel doado O donatário que aliena, onerosa ou gratuitamente, a posse e/ou a propriedade que lhe foram conferidas no âmbito de uma política habitacional, está a adotar um comportamento que conflita com vários mandamentos constitucionais. É imperativo indagar: seria esta uma forma de se construir uma sociedade justa e solidária, tal como determina o art. 3º, I da Constituição da República? Ao permitir que o donatário imediatamente aliene o imóvel 11 recebido em doação, o Estado estaria a fomentar a solidariedade ou a estimular a ganância? Pareceria justo o locupletamento do particular a partir do erário, mais conhecido como privatização dos ganhos e socialização das perdas? Ou se se preferir formular a questão sob outro prisma: ao não apôr a cláusula de inalienabilidade, estaria o Estado no caminho certo para alcançar uma sociedade fraterna, como direciona o preâmbulo constitucional 14? Ou estaria, ao revés, fomentando apenas a propriedade privada, sem justiça social e sem preocupação com a redução das desigualdades sociais? Ao atendimento dos direitos sociais pelos poderes públicos corresponde, em idêntico grau, o cumprimento de deveres pelos cidadãos beneficiários destes direitos, no que reside a máxima de que os direitos não são absolutos. O exercício do direito social à moradia, portanto, deve, sim, ser conformado por regras que o consagrem, maximizando seus benefícios e afastando-se de propósitos egoísticos que ameacem neutralizar os esforços dos poderes públicos para resolver o déficit habitacional. Quanto à justiça social, impõe recordar a norma do art. 39 do Estatuto das Cidades, que dispõe que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º” (grifos não originais). Em que pese a tão decantada subjetividade do termo justiça, parece indene de dúvidas que a conduta do donatário que aliena imóvel recebido em doação está muito distante de fomentar a justiça social 15, porquanto o imóvel que poderia ser 14 Sufragamos o entendimento de Kildare Carvalho, para quem “o preâmbulo não constitui cláusula irrelevante em face do articulado normativo da Constituição, mas da mesma forma que os princípios, concorre para a harmonização e unificação do sistema constitucional, dando-lhe ainda coerência e consistência. Filiamo-nos, pois, à corrente que considera o preâmbulo, formal e materialmente, parte integrante da Constituição, já que provém do Poder Constituinte originário, submete-se ao mesmo processo constituinte, e direciona o conteúdo material das normas constitucionais, orientando a atuação do legislador e a função do juiz. Reduzí-lo a mero enunciado político ou ideológico é transformá-lo em fórmula vazia e sem conteúdo, ausente de qualquer eficácia, o que é inconcebível em se tratando de cláusula emanada do Poder Constituinte.” Cf. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 514. 15 Giselda Hironaka, citada por Guilherme Calmon, também relaciona justiça social com a função social, ao dizer que “a propriedade não é uma função social, mas contém uma função social, de tal forma que o proprietário deve ser compelido a dar aos bens um destino social, além daquele que atende ao seu próprio interesse, na intenção de, harmonizando o uso da propriedade ao interesse coletivo, se chegar ao plano da Justiça Social.” Cf. 12 redirecionado à sociedade é repassado a um terceiro sem o crivo do Estado e em franco prejuízo àquelas famílias que aguardam a concretização do sonho de uma moradia digna. Como já se deixou antever, a propriedade imobiliária deve ser exercida e conformada pela sua função social. Esta funcionalidade passa, necessariamente, pela observância aos critérios elencados pela Constituição para a construção de uma sociedade justa, solidária, fraterna e igualitária. Não cumpre sua função social o imóvel que é recebido gratuitamente pelo donatário com lastro em suas necessidades sociais e em seguida é alienado, onerosa ou gratuitamente, a um terceiro, negando com veemência a carência social que fundamentou a doação. A possibilidade de alienação, pelo particular, do imóvel que lhe foi doado pelo Estado é uma eloquente negativa, por si só e a não mais poder, da própria essência da doação, movida que é – e assim deve ser - por sentimentos de fraternidade e de solidariedade. A cláusula de inalienabilidade é motivada por tais propósitos, não sendo legítimo que os poderes públicos dela se afastem para que a propriedade pública, uma vez transmudada em patrimônio privado, contrarie sua razão de ser e sua única vocação: o atendimento a um interesse público. E este interesse público só é atendido se a propriedade, agora privada, desempenhar cabalmente a função social para a qual está vocacionada: o atendimento a uma política habitacional eficaz. Lê-se em obra de César Fiuza 16 que: Atualmente, a propriedade tem-se entendida vinculada a sua função social, embora a idéia em si não seja nova. Se um indivíduo pode dizer-se dono de algo, é porque os outros indivíduos não o são. A propriedade existe em função das outras pessoas. Ninguém é dono de nada, a não ser que viva em sociedade. E é a essa sociedade que se deve render tributos. Dessarte, os direitos inerentes à propriedade não podem ser exercidos em detrimento da sociedade, contra as aspirações sociais. Com isso, limitou-se o gozo absoluto da pessoa sobre a coisa, que não só fica impedida de usá-la em malefício dos demais, como fica obrigada a usá-la de acordo com as demandas do grupo social. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Função social do contrato. Revista de direito civil, vol. 45, p. 144, 1988. Apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord); ANDRIOTTI, Caroline Dias. Op. cit., p. 9. 16 Cf. FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8. ed. (rev., atual. e ampl). Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 718. 13 Estas lições demonstram que nenhuma propriedade, menos ainda aquela deferida pelo poder público ao particular, pode pretender ostentar o absolutismo de querer se contrapor aos interesses sociais que regem uma política de regularização fundiária. Exige-se do donatário não apenas que deixe de exercer os atributos inerentes à propriedade em dissonância com as demandas do grupo social, mas que promova tais aspirações, mantendo-se na posse direta do imóvel como signo demonstrativo de que fez e ainda faz jus à doação, ao menos durante o prazo em que vigir a condição resolutiva. Deixando de atender à função social, não faz jus à titularidade imobiliária, devendo incidir a cláusula resolutiva. A função social incidente sobre o imóvel doado aos particulares permanece, portanto, regida pelo influxo público durante o tempo de vigência da cláusula resolutiva expressa. Durante o tempo em que o imóvel permanece sob a possibilidade de retornar ao patrimônio imobiliário estatal pela incidência da cláusula de inalienabilidade, deve o donatário atentar não apenas para o atendimento da função social que rege qualquer relação de direito privado. Deve qualificar sua relação de proprietário em relação à sociedade com a observância do fim público que fundamentou e deu lastro à doação. V – Ainda sobre a função social, desta feita sob a vertente contratual Não bastasse a função social à qual se deve render a propriedade imobiliária (CF/88, art. 170, III), o próprio meio de transferência da propriedade do Estado ao particular, ou seja, o contrato de doação, também deve cumprir uma função social, o que jamais seria atingido se não se lhe apusesse uma condição resolutiva expressa. Guilherme Calmon e Daniel Pereira ainda recordam que “a propriedade é o aspecto estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular.” 17 Enfim, propriedade e contrato são ambos veículos do valor normativo socialização. Neste sentido, o Código Civil (arts. 421 e 2035, parágrafo único) não deixa dúvidas quanto à 17 Cf. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord); PEREIRA, Daniel Queiroz. Função social do contrato. In: OLIVEIRA, Andrea Leite Ribeiro de et alii.. Função social no direito civil, 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 79. 14 necessidade de conformação da liberdade de contratar aos ditames da função social, sendo pertinente atentar para o que seja função social dos contratos. Seguindo de perto este propósito, lê-se na obra de Gagliano e Pamplona Filho 18 que: (…) a socialização do contrato, devidamente amparada no sistema constitucional e consagrada expressamente pelo art. 421 do Código Civil, não poderia, em nosso entender, sofrer ulterior constrição ou violência por parte de outra lei ordinária, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. (…) Ao mencionar que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social dos contratos, o legislador estabeleceu, de uma só vez, um critério finalístico ou teleológico e outro critério limitativo, para a caracterização deste princípio. (…) essa liberdade negocial deverá encontrar justo limite no interesse social e nos valores superiores de dignificação da pessoa humana. Qualquer avanço para além dessa fronteira poderá caracterizar abuso, judicialmente atacável. Nesse ponto sim, andou bem o legislador, ao impor limite à liberdade de contratar, em prol do interesse social. Diversamente do que se possa imaginar, a incidência da função social do contrato “não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”, conforme consta no enunciado 23 da Primeira Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal (CJF) 19. A falta de inclusão de cláusula resolutiva expressa prevendo a inalienabilidade temporária nos contratos de doação malferiria também o princípio da função social do contrato, que deve buscar meios de preservação do ato de gratuidade; não de seu aniquilamento. Noutras palavras, a cláusula de inalienabilidade se presta a salvaguardar a execução do contrato, tendo por pressuposto a existência e manutenção de um quadro fático (carência social) a recomendar a permanência temporária da propriedade na titularidade do donatário. 18 Cf. GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: contratos. 4. ed. (rev. e atual.). São Paulo: Saraiva, 2008. pp. 49, 53 e 54. 19 Os enunciados da I jornada de Direito Civil do CJF <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>, acesso em 23 ago 2013. estão disponíveis em 15 Se, num determinado intervalo de tempo, este quadro fático se altera – é o que ocorre quando o donatário aliena ou altera a destinação do imóvel – há sinais evidentes no sentido de que aquela transferência de patrimônio público não encontra mais razão de ser, não mais se justificando a manutenção do bem na titularidade do donatário, devendo operar-se a resolução do contrato, de modo a permitir a retomada do imóvel pelo poder público, que o destinará a outra família que esteja em situação de hipossuficiência, com isso atendendo aos interesses sociais imanentes à política habitacional. A função social de um contrato de doação de imóveis celebrado com o propósito de reduzir o passivo habitacional do Estado se confunde com o próprio motivo da implantação da política habitacional. Ambos – política habitacional e contrato de doação através do qual a política se opera em uma de suas possíveis vertentes - são vocacionados ao social, prestandose ao atendimento de famílias que estejam em situação de fragilidade. Ao se constatar a inexistência de propósito social da doação, que se transmuda para se prestar apenas ao enriquecimento do donatário às custas do poder público, o contrato perde a função social que o legitima e – repete-se – não apenas pode como deve ser revisto, resolvendo-se a doação para que o imóvel volte a titularidade estatal e se lhe dê uma destinação social, assim entendida aquela que volta os olhos para o interesse público; não para os interesses privatísticos do donatário. Como se disse outrora, as políticas habitacionais desenvolvidas para dar efetividade ao direito à moradia têm – ou deveriam ter – dois objetivos: assentar famílias carentes e mantê-las – durante certo período - no local do assentamento. Se não se incluir a cláusula de inalienabilidade temporária nas escrituras de doação, apenas o primeiro objetivo (assentamento de famílias) será alcançado, restando neutralizados, em grande parte, os efeitos do programa de manutenção das famílias no local, já que elas poderão se candidatar para receber imóveis em doação e, em seguida, aliená-los sem qualquer obstáculo contratual e em prejuízo aos critérios de justiça social antevistos. A falta de inclusão da cláusula de inalienabilidade nas doações equivaleria a um retrocesso social que se pode dizer determinante para o insucesso das políticas habitacionais, porquanto fomentaria apenas o privado, ao invés de se preocupar em resguardar a titularidade 16 da propriedade imobiliária a quem dela realmente necessita, que está longe de ser aquele que pratica atos incompatíveis com a demonstração de carência social. Há que se entender a cláusula resolutiva expressa como uma salvaguarda das famílias contra as investidas do mercado imobiliário e do capital especulativo. Não há, portanto, a equivocada ideia de contrapor o interesse púbico ao dos privados, mas de conciliálos. Aliás, se as idéias fossem realmente contrapostas, o caso seria de inalienabilidade vitalícia; não de vedação temporária. É importante frisar que a função social do contrato impõe aos terceiros um comportamento de respeito ao contrato, não podendo se comportar como se o contrato não existisse. O princípio da função social do contrato se destina “a integrar os contratos numa ordem social harmônica, visando impedir tanto aqueles que prejudiquem a coletividade (...) quanto os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas.”20 VI – Condição resolutiva expressa e autonomia privada Por derradeiro, deve-se salientar que a cláusula de inalienabilidade temporária não é matéria de reserva de lei, senão figura inerente ao princípio da autonomia privada, sendo essa a inteligência das normas dos arts. 122, 421 e 2.035, parágrafo único, todos do Código Civil. A propósito, Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Daniel Queiroz Pereira recordam que a autonomia privada se expressa em três vertentes: o poder de contratar ou não; de escolher com quem contratar e de determinar o conteúdo do contrato. E a concepção mais atual do contrato garante aos contratantes “um poder normativo atrelado aos valores constitucionais, princípios e regras que o ordenamento jurídico impõe para o sucesso do programa axiológico, ou seja, de modo a viabilizar a promoção dos valores básicos, notadamente de índole social.” 21 20 Cf. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado. Revista dos Tribunais, v. 750, pp. 116-7, abr 1998. Apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.); PEREIRA, Daniel Queiroz. Op. cit., pp. 83-4. 21 Cf. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.); PEREIRA, Daniel Queiroz. Op. cit., p. 74. 17 Transpondo-se estas lições para o caso em apreço, tem-se um quadro em que os poderes públicos, quando do atendimento das prestações positivas implementadoras do direito social à moradia, têm liberdade para conformar o contrato de doação, elegendo com quem contratar e o que contratar. Fica prejudicada apenas a escolha de contratar ou não, visto que a implementação dos direitos sociais exige adoção de prestações positivas estatais para conferir aos indivíduos mais do que uma cidadania formal, uma cidadania real, efetiva. Por sua vez, a escolha de “com quem contratar” deve obedecer a parâmetros previamente eleitos e que sejam de conhecimento difundido, bem como que sigam critérios que priorizem os mais necessitados, pois é sabida a escassez de recursos que obriga os poderes públicos à escolhas públicas reveladoras do interesse social. Noutras palavras, os poderes públicos devem estabelecer quem são os beneficiários que devem ser primeiramente atendidos, pois em contextos de escassez de recursos, devem ser eleitos os critérios que mais facilmente atenderão ao mandamento constitucional de redução das desigualdades sociais. A escolha do conteúdo do contrato, por sua vez, é aquela em que os poderes públicos mais livres estão, ou seja, onde é mais pronunciada a liberdade contratual reveladora desta autonomia privada, notadamente se não se perder de vista o quanto já se deixou assentado no capítulo II deste estudo, mais especificamente na transcrição dos ensinamentos de Carvalho Filho: de que o contrato de doação, mesmo aquele firmado pelo poder público como doador, é um contrato de direito privado, estando o doador livre para escolher as cláusulas que melhor tutelem o interesse público. O ideal de fazer menção à inalienabilidade temporária no texto legal tem por escopo propiciar o ambiente adequado de publicidade, mas sua ausência do texto positivado não retira aos poderes públicos o dever-poder de incluí-la nas escrituras de doação, porquanto o conteúdo contratual é a esfera da autonomia privada onde o poder público mais livre está para precisar contornos e definir papéis. O Estado (acepção lata) deve esgotar todos os meios que lhe estão ao alcance para que a política habitacional em tela atinja o público destinatário certo, não alcançando terceiros que têm condições de adquirir imóveis – e o fazem em relação ao donatário - ou que não passaram pelo crivo do Estado para serem escolhidos como beneficiários de programas habitacionais. 18 Esse propósito somente é alcançado se, ao definir as obrigações a serem contraídas pelo donatário, se atentar para que a contrapartida seja proporcional ao ato de gratuidade auferido, evitando-se o desequilíbrio contratual que, na espécie, causa danos não somente à sociedade que financia os poderes públicos, senão também a todas as outras famílias que aguardam uma moradia e deixam de usufruir daquela que o donatário está a alienar. Quanto a este particular, insta salientar o enunciado 22 da I Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal: “Art. 421 – a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio da conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.” Noutras palavras, o contrato de doação deve conter cláusulas que enalteçam o equilíbrio das partes, o que jamais seria alcançado se, além de adquirir gratuitamente um imóvel, o donatário também pudesse aliená-lo de imediato, sem oferecer à sociedade uma contrapartida (trocas úteis e justas) pela liberalidade auferida. Devem os terceiros, por sua vez, adotar comportamentos que tutelem a execução do contrato e favoreçam o adimplemento contratual, escopo que deixaria de ser atendido se lhes fosse possível lançar-se em ofertas de aquisição do imóvel que foi doado para o cumprimento de um direito social pelos poderes públicos. 19 Conclusões Do quanto visto até aqui, acredita-se legítimo poder formular as seguintes proposições: (i) já está pacificada a controvérsia anteriormente observada com relação à pertinência de se exigir o cumprimento de função social também aos imóveis públicos, para além do fim público ser um atributo inerente à própria vocação da Administração Pública. Essa função social é ainda mais evidente no caso de bens dominiais, que recebem um significativo influxo de normas de direito privado; (ii) seja por essa razão, seja porque a Constituição não retirou os bens públicos do espectro de alcance desta subordinação, a função social incidente sobre o imóvel público é qualificada, com isso se pretendendo dizer que não se resume aos critérios impostos pelo ordenamento jurídico, indo além para sempre ter em mente destinações que consagrem o interesse público; (iii) o Estado tem o compromisso constitucional de promover o acesso universal à moradia digna, podendo se desincumbir de tal dever prestacional através de variados institutos jurídicos disciplinadores do uso de bens públicos, não necessariamente através da doação de imóveis, que deve ser tida como excepcional; (iv) até mesmo em observância à origem etimológica do vocábulo moradia, deve o ente federado assegurar a permanência dos indivíduos no local, seja provendo-o de infra-estrutura básica, seja promovendo a salvaguarda de interferências que venham a frustrar o cumprimento deste dever prestacional social; (v) entre as interferências que obstaculizam a concreção do direito social à moradia, destacam-se as investidas de terceiros para adquirir a posse ou a propriedade do imóvel onde assentadas as famílias, o que decerto é um dos frutos de um mercado imobiliário aquecido; (vi) as políticas habitacionais só serão eficazes se o ente federado adotar meios eficazes não apenas para assentar famílias carentes, mas para fazê-las construir vínculos com o imóvel que receberam em doação; (vii) quando o ente federado optar pela doação de imóveis para assentamento de famílias, uma das formas de fazer as famílias construírem vínculos com o imóvel doado é através da 20 aposição da cláusula de inalienabilidade temporária, que nada mais é que uma condição resolutiva que não atenta contra a lei, os bons costumes e a ordem pública; ao contrário, consagra-os, quando se tratar de doação de imóveis para regularização fundiária; (viii) a cláusula de inalienabilidade temporária impede que donatários recebam imóveis hoje e os alienem amanhã, o que dificulta a redução do passivo habitacional e, como corolário, a consagração do direito social à moradia; (ix) as hipóteses de incidência da condição resolutiva (venda, doação, comodato, abandono ou outras formas de despojo da propriedade e/ou posse) são signos presuntivos de que o donatário não faz jus mais à titularização do imóvel, por ostentar condição patrimonial incompatível com o conceito de população de baixa renda, o que constitui óbice à aquisição gratuita de bens públicos ou à manutenção da condição de donatário; (x) a possibilidade de alienação de imóvel outrora público pelo donatário particular, com locupletamento pessoal em detrimento da sociedade que o financiou (privatização do ganho e socialização do custo), fere os objetivos das políticas habitacionais, que têm um viés solidário consonante com o objetivo de construção de uma sociedade justa, solidária, fraterna e igualitária (CF/88, art. 3º, I e seu preâmbulo); (xi) ao atendimento de direitos sociais pelo Estado correspondem deveres a serem observados pelos beneficiários destes direitos, entre os quais se situa o de, durante o prazo da condição resolutiva, uma vez inexistentes os pressupostos fático-jurídicos que legitimaram a doação, devolver o imóvel ao Estado ao invés de aliená-lo a terceiros; (xii) a condição resolutiva da doação homenageia a diretriz constitucional (art. 170, III) da função social da propriedade, por coartar o donatário a dar ao imóvel uma destinação consonante com as aspirações sociais, promovendo justiça social nos termos da norma do art. 39 do Estatuto das Cidades; apesar de a doação transferir o imóvel de titularidade pública para domínio privado, esta função social continua a receber o influxo de direito público durante a vigência do prazo de inalienabilidade, devendo o donatário observar não apenas os condicionamentos inerentes à propriedade privada, mas qualificar sua relação com a coletividade pela observância do fim público que deu lastro à doação; 21 (xiii) a condição resolutiva também homenageia o princípio da função social do contrato, na medida em que impõe um limite à liberdade de contratar, fazendo-o em prol do interesse social na implementação da política habitacional; (xiv) a eleição da condição resolutiva está no âmbito da autonomia da vontade (CC, arts. 122, 421 e 2.035, parágrafo único), de modo que sua inclusão e/ou permanência nos textos legais serve mais ao propósito de fornecer ambiente à publicidade. A contrario sensu, sua extirpação do texto legal não impede o poder público de incluí-la nos ajustes que celebrar, o que é de todo recomendável para o alcance de dois objetivos da política habitacional: assentamento e manutenção das famílias. (xv) uma vez constatada a ancianidade da ocupação, o donatário terá demonstrado realmente fazer jus à titularização definitiva do imóvel, desvencilhando-se da possibilidade de resolução do negócio, o que não pode ser encarado como contraposição entre interesses públicos e privados, mas de subordinação destes em relação àqueles, o que se dá a título temporário e em razão do escopo constitucional de construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária. 22 Bibliografia consultada AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado. Revista dos Tribunais, v. 750, pp. 116-7, abr 1998. Apud GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord.); PEREIRA, Daniel Queiroz. Função social do contrato. 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