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Jeremias, 1
4 A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos:
5 « Antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi;
antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei
e te constituí profeta entre as nações.»
6 E eu respondi: «Ah! Senhor Deus,
eu não sei falar, pois ainda sou um jovem.»
7 Mas o Senhor replicou-me:
«Não digas: ‘Sou um jovem’.
Pois irás aonde Eu te enviar
e dirás tudo o que Eu te mandar.
8 Não terás medo diante deles,
pois Eu estou contigo para te livrar»
– oráculo do Senhor.
9 Em seguida, o Senhor estendeu a sua mão, tocou-me nos lábios e disse-me: «Eis que ponho as minhas
palavras na tua boca; (...).»
Jeremias 20, 7a
7 Vós me seduzistes, Senhor, e eu deixei-me seduzir;
Vós me dominastes e vencestes.
Quem é Jeremias?
● A actividade profética de Jeremias começa por volta de 627/626 a.C. (quando o profeta teria pouco
mais de vinte anos) e prolonga-se até depois da queda de Jerusalém nas mãos dos Babilónios (586 a.C.).
O cenário dessa actividade é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).
É uma época muito conturbada, quer a nível político, quer a nível religioso. Judá acabou de sair dos
reinados de Manassés (698-643 a.C.) e de Amon (643-640 a.C.), reis ímpios que multiplicaram no país
os altares aos deuses estrangeiros e levaram o Povo a afastar-se de Jahwéh. Na época em que Jeremias
começa o seu ministério profético, o rei de Judá é Josias (640-609 a.C.): trata-se de um rei bom, que
procura eliminar o culto aos deuses estrangeiros e concentrar a vida litúrgica de Judá num único lugar –
o Templo de Jerusalém. No entanto, a reforma religiosa levada a cabo por Josias levanta algumas
resistências; por outro lado, é uma reforma que é mais aparente do que real: não se pode, por decreto e
de repente, corrigir o coração do Povo e eliminar hábitos religiosos cultivados ao longo de algumas
dezenas de anos.
É neste ambiente que Jeremias é chamado por Deus e enviado em missão. O profeta Jeremias escolhido,
consagrado e constituído profeta por Jahwéh, vai carregar com todo o tipo de dificuldades; mas não
desistirá de concretizar a sua missão e de tornar uma realidade viva no meio dos homens a Palavra de
Deus.
A vocação de Jeremias
● O texto que nos é proposto apresenta o relato que Jeremias faz do seu chamamento por Deus. Mais do
que uma reportagem do “momento” em que Deus chamou o profeta, trata-se de uma reflexão e de uma
catequese sobre esse mistério sempre antigo e sempre novo a que chamamos “vocação”.
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A vocação profética, na perspectiva de Jeremias, é, em primeiro lugar, um encontro com Deus e com a
sua Palavra (“a Palavra do Senhor foi-me dirigida…” – Jer 1,4). A Palavra marca, a partir daí, a vida do
profeta e passa a ser, para ele, a única coisa decisiva.
Em segundo lugar, a vocação é um desígnio divino: foi Deus que escolheu, consagrou e constituiu
Jeremias como profeta. Dizer que Deus “escolheu” o profeta (literalmente, “conheceu” – do verbo
“yada‘”) é dizer que Deus, por sua iniciativa, estabeleceu desde sempre com ele uma relação estreita e
íntima, de forma que o profeta, vivendo na órbita de Deus, aprendesse a discernir os planos de Deus
para os homens e para o mundo. Dizer que Deus “consagrou” o profeta significa que Deus o “reservou”,
que o “pôs à parte” para o seu serviço. Dizer que Deus “constituiu” o profeta “para as nações” significa
que Deus lhe confiou uma missão, missão que tem um alcance universal. Tudo isto, no entanto, resulta
da acção e da escolha de Deus, é iniciativa de Deus e não escolha do homem.
● Também S. Paulo na Carta aos Romanos, 8, 28-30, nos diz que há um projecto de Deus para nós, que
decorre no concreto e na liberdade da nossa existência.
Carta aos Romanos, 8, 28-30
28 Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados, de
acordo com o seu desígnio.
29 Porque àqueles que Ele de antemão conheceu, também os predestinou para serem uma imagem
idêntica à do seu Filho, de tal modo que Ele é o primogénito de muitos irmãos.
30 E àqueles que predestinou, também os chamou; e àqueles que chamou, também os justificou; e
àqueles que justificou, também os glorificou.
● Tudo isto recorda-nos o nosso Baptismo e o Crisma. Também nós fomos escolhidos, consagrados,
enviados. É um ser-se escolhido e escolher, é um deixar-se escolher. É um ser consagrado, sabendo que
isso implica um para quê e para quem? Não é apenas em beneficio do próprio que recebe a graça, está
implícita uma missão. Eu não me salvo sozinho. No baptismo, fomos ungidos como “profetas”, à
imagem de Cristo. Estamos conscientes dessa vocação a que Deus nos convocou? Temos a noção de que
somos a “boca” através da qual a Palavra de Deus ressoa no mundo e se dirige aos homens?
● No vers.6, vemos que ser profeta é perturbador, é assustador. Jeremias, tal como outras figuras
bíblicas, tenta encontrar uma desculpa para não ser escolhido. Mas Deus não pede a nossa perfeição para
começar um caminho connosco, para nos tornar seus instrumentos. Pede sim a nossa disponibilidade
para fazer esse caminho e para servirmos. Como Jesus que pergunta a Pedro "Tu amas-me?", essa é a
condição primeira para participar no projecto de Salvação. Jesus não pergunta por aptidões técnicas,
intelectuais,... Deus não escolhe os capacitados, capacita os escolhidos.
● Na segunda parte do texto, temos o envio formal do profeta. Ele deve ir “dizer o que o Senhor
ordenar”, sem medo nem servilismo, enfrentando os grandes da terra, armado apenas com a força de
Deus. É a definição do “caminho profético”, percorrido no sofrimento, no risco, na solidão, no conflito
com todos os que se opõem à proposta de Deus. Deus faz um convite à confiança: “não poderão vencerte, porque Eu estou contigo para te salvar” – vers. 19). E é nessa / dessa confiança que vive o profeta.
Deus diz-nos: "Confia e não terás medo. Eu te acompanho." (Cf. Jer 1,8), esta é a certeza que dá
fortaleza, para ir, para dizer, para agir. Como escreve S. Paulo: "Que mais havemos de dizer? Se Deus
está por nós, quem pode estar contra nós? Ele, que nem sequer poupou o seu próprio Filho, mas o
entregou por todos nós, como não havia de nos oferecer tudo juntamente com Ele?" (Rom 8, 31-32)
A vida de Jeremias realizou, integralmente, o projecto de Deus. A propósito e a despropósito, Jeremias
denunciou, criticou, demoliu e destruiu, edificou e plantou (Jer 1,10). Não teve muito êxito: a família, os
amigos, o povo de Jerusalém, as autoridades, os sacerdotes, viraram-lhe as costas, marginalizaram-no,
perseguiram-no e maltrataram-no.
No entanto, Jeremias nunca renunciou: Deus invadiu-lhe de tal forma a vida, e a paixão pela Palavra de
Deus “apanhou-o” de tal forma, que o profeta viveu até ao fim, com a máxima intensidade, a sua
missão.
3
● No vers.9, Deus diz: «Eis que ponho as minhas palavras na tua boca; (...).» Não podemos esquecer
que as palavras rezadas e anunciadas pela boca, devem iluminar e conduzir os sentimentos no coração.
As palavras que ganham raíz, que encarnam em nós, que frutificam. Stª Teresa do Menino Jesus rezava:
"Jesus manso e humilde de coração, tornai o meu coração semelhante ao vosso."
A partir desse momento a Palavra de Deus tomou conta do coração do profeta e dominou-o totalmente.
É uma “paixão” que – apesar de ter trazido ao profeta uma história pessoal de sofrimento e de risco –
não pode ser calada e sufocada. Que espaço a Palavra de Deus ocupa na minha vida? Amo, de forma
apaixonada, a Palavra de Deus? Estou disposto a correr todos os riscos para que a Palavra de Deus
alcance a vida dos meus irmãos e renove o mundo?
A história de Jeremias é, em termos gerais, a história de todos aqueles que Deus chama a ser profetas.
Ser sinal de Deus e dos seus valores significa enfrentar a injustiça, a opressão, o pecado e, portanto, pôr
em causa os interesses egoístas e os esquemas sobre os quais, tantas vezes, se constrói a história do
mundo; por isso, o “caminho profético” é um caminho onde se lida, permanentemente, com a
incompreensão, com a solidão, com o risco. Deus nunca prometeu a nenhum profeta um caminho fácil
de glórias e de triunfos humanos. Temos consciência disso e estamos dispostos a seguir esse caminho?
● O amor por Deus e pela sua Palavra está tão vivo no coração do profeta que é inútil resistir:
“procurava contê-lo, mas não podia” (Jer 20,9). A Palavra de Deus é um fogo devorador, que consome o
coração do profeta e que não o deixa demitir-se da missão.
Não nos podemos esquecer, que por vezes, isto não se consegue sem luta, sem períodos de resistência.
Mas no fim há uma rendição (Jer 20, 7). A alma que se enamora, que ama e se sabe amada, que se deixa
vencer por Aquele que lhe quer bem. Jeremias usa a imagem da “sedução”: é como se Jahwéh tivesse
namorado o profeta até ao ponto de o seduzir (o verbo “pth”, aqui utilizado, aparece em Ex 22,15 para
falar da sedução de uma jovem solteira). Deus insinuou-Se na vida do profeta, pressionou-o, subjugou-o,
dominou-o e o profeta não soube como resistir às investidas de Deus (o verbo “ykl”, utilizado no vers. 7
para definir a forma como Deus actuou em relação ao profeta, significa “exercer o poder”, “prevalecer
sobre alguém”, “dominar”). O profeta, embalado pelas promessas desse Deus sedutor, incapaz de resistir
ao seu “charme” e aos seus jogos de sedução, pressionado, dominado, violentado, entregou-se
completamente nas suas mãos e dedicou toda a vida ao seu serviço.
Para quê resistir-lhe, se isso é negar a minha identidade, a minha vocação?
Jesus não pode contentar-se com um amor tíbio e indolente. Pede um amor constante e generoso. Quer
um amor que se sustenha igualmente nas aflições e nas consolações. «O fruto deste amor constante,
generoso e uniforme, é uma adesão absoluta a todas as vontades de Deus. Quem ama generosamente
está pronto a sofrer com paciência os acontecimentos que o desgostam». (Stª Margarida Maria). «Deus
ama aqueles que se dão a ele com alegria e com satisfação», diz-nos S. Paulo (2 Cor 11).
Ainda luto e resisto, ou já me rendi a Deus? O que me impede de me render?
● O profeta é o homem que vive de olhos postos em Deus e de olhos postos no mundo (numa mão a
Bíblia, na outra o jornal diário). Vivendo em comunhão com Deus e intuindo o projecto que Ele tem
para o mundo, e confrontando esse projecto com a realidade humana, o profeta percebe a distância que
vai do sonho de Deus à realidade dos homens. É aí que ele intervém, em nome de Deus, para denunciar,
para avisar, para corrigir. Somos estas pessoas, simultaneamente em comunhão com Deus e atentas às
realidades que desfeiam o nosso mundo? Em concreto, em que situações sou chamado, no dia a dia, a
exercer a minha vocação profética?
(para alguns apontamentos recorremos a: http://www.ecclesia.pt/cgi-bin/comentario.pl?id=419)
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