A VOZ DO VENTRE DA TERRA Para mim, o CANTE - o CANTO ALENTEJANO é a VOZ DO VENTRE DA TERRA MÃE. Vide in SERPA ANTIGA uma separata de SERPA INFORMAÇÃO, 4ª série, Dezembro de 1996 / Janeiro de 1997, n.º 17 - SERPA en / CANTADA em LENDAS, um trabalho de José Rabaça Gaspar, com versos de um deNÓMIO do mesmo autor José Penedo de Moura. (Este deNÓMIO, como digo noutros lados é um dos muitos Demónios ou Anjos, nomes ou personagens diferentes, que o autor usa, e o inspiram, provocam ou desafiam.) Estávamos em Serpa... Anos oitenta... – Anda connosco... Aquela gente vai retomar as Festas da Senhora do Altinho... de Nossa Senhora de Guadalupe... Só me lembro que, no final da procissão das velas, na Praça do Município apinhada de gente, pude ouvir duma maneira diferente, e parece que pude começar a perceber, porque é que o Canto Alentejano, não era CANTO, mas o CANTE - CANto da TErra. Tínhamos sido convidados por uns amigos de Setúbal, o Emanuel e a Rosa, que iam visitar uma família espantosa que tinham conhecido em Serpa, uma terra ainda mais espantosa. Eram os Fabelas. Pouco os vi depois, apesar de mais de uma dezena de anos no Alentejo, ali tão perto. Pena. Cantavam no Grupo Coral. Um Grupo que canta Alentejano como deve ser e não como ouvimos por aí cantar... Isto era o Emanuel a falar. Fomos. Eram férias da Páscoa mas não tínhamos muito tempo para ir. O trabalho era muito. Fomos recebidos e tratados que nem príncipes... E à noite, no fim da procissão, acabadas as cerimónias quando parecia que tudo tinha terminado, mal eu sabia que estava tudo a começar. Acabava a cerimónia religiosa e começava a festa. A Festa das Pessoas. Da Gente. De repente, vi-me naquela Praça do Município cheia de gente. Um grupo de quatro ou cinco entoou dalém uma moda... logo outro aqui mais ao pé... depois outros... outros... outros... Quando dei por mim, estava com a pele toda arrepiada e sentia a música subir das entranhas da Terra e inundar-me por completo. Eu pensava que tinha ouvido já cantar à Alentejana. Nunca tinha ouvido. Aquela Praça transformou-se por magia numa Catedral imensa da Natureza que só tinha como tecto o céu cheio de estrelas... Tinham-me dito que os Alentejanos não eram religiosos! Eu acreditava. Ali eles eram a Voz da Terra, cultores de uma Religião mais autêntica e verdadeira daquelas que eu conhecia. Quando todo o chão tremeu e eu com ele, percebi, ou pareceu-me perceber, porque é que o Cante, não era o Canto Alentejano que se ouvia na rádio, na tevê, ou num palco... Pareceu-me ver, sentir, que o CANTE, quando dois ou mais se juntam para entoar uma moda, os seus grupos, os seus coros, era algo de muito profundo e sério. Era algo que vinha de muito fundo. Das entranhas da Terra. Com os pés calcando o chão, ombro a ombro, mãos a abraçar o companheiro da frente, o canto lançado pelas gargantas através do ar armazenado na barriga, aquilo não era um canto humano. Era a Voz da Terra. Era o grito do Ventre da Terra! Disse-o na rádio no Dia Mundial da Música que se realizou em Beja na década de oitenta. Disse-o ao lado do Torrão que ali cantou para provar o que dizia. Estavam outros amigos. Sempre que posso, tenho pedido a eles e outros amigos: Não deixem profanar o encanto, a magia deste CANTE. Cantem com os pés na Terra. No meio das gentes. Não tentem arremedar os grupos de palco e de palanque com milhares de wats microfones e altifalantes... Não tem nada a ver com o CANTE, penso eu. No dia em que perderem esta autenticidade, e a maior parte dos bons grupos que conheço, como o de Pias, Castro, Cuba, Vila Nova de S. Bento..., para só falar de alguns, não a perderam, nessa altura, se se deixarem cair na tentação do vedetismo e de competição com os outros grupos e tipos de canto, deixará de haver o CANTE.