A CRÔNICA MACHADIANA ENTRE O JORNAL E O LIVRO Maria Rosa Duarte de Oliveira (PUCSP) “A razão não é outra senão a de ser o leitor um homem que se respeita, ama o belo, possui costumes elegantes: conseguintemente, não tem orelhas para crônicas, nem outras coisas ínfimas” (“História de 15 dias” em Ilustração Brasileira, 01/agosto/1876). Livro e jornal, como vemos já a partir da epígrafe, marcam para Machado de Assis dois tipos bastante diferenciados de recepção: a mesma distância que vai do olho, alfabetizado e afinado com a elegância retórica do estilo, à orelha, afeita aos relatos orais e espontâneos dos narradores da tradição popular. Confronto entre duas matrizes – a clássica do livro e a popular do novo meio - o jornal - especialmente a crônica, que nele habita, cuja marca é a proximidade da experiência do narrador, responsável pela inclusão do “tu” na matéria narrada. Prosa fácil, despretensiosa, que se nutre da fala coloquial e das coisas ínfimas do dia a dia, corroendo o padrão de beleza clássica e duradoura pela efemeridade dos casos anônimos e sem glória do cotidiano. Nesse sentido, a crônica surpreende até mesmo os prognósticos de Walter Benjamin e acaba instaurando num espaço de reprodução técnica como a imprensa, adverso aos conselhos e experiências de um narrador oral, a recuperação desse elo entre o narrador e seus ouvintes1. É possível observar como o jovem Machado já está atento para essa duplicidade, quando, em crônica de 15 de março/1877, aponta para a matriz do contador de histórias presente em todo cronista: Mais dia menos dia, demito-me deste lugar. Um historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete escuro e solitário, que não vai às touradas, às câmaras, a Rua do Ouvidor, um historiador assim é um puro contador de histórias. 1 Benjamin está atento para essa correlação entre o cronista e o narrador da tradição oral, conforme observa em seu ensaio de 1936 sobre “O Narrador- considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”: “No narrador, o cronista conservou-se, transformado e por assim dizer secularizado” ( p.220). PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 2 E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente o contrário de historiador, não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado, humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que passou, é só fantasiar (ASSIS, M.de. 1992, p.361-362; grifos nossos). Na oposição entre o historiador e o cronista vai também a distância entre o livro e o jornal: se ao primeiro corresponde o letrado (Tito Lívio) bem como o conceito clássico de história como “aquilo que aconteceu”, ao segundo corresponde um simples “historiador de quinzena”, degradado a mero contador de histórias do que “poderia ter acontecido” e cuja voz se perde no anonimato do folclore popular. Por isso, para o cronista, imaginar, inventar, fabular é mais importante do que registrar, testemunhar e coletar dados, o que é próprio do historiador, embora entre ambos não haja uma distância assim tão grande já que, na arguta observação do cronista, todo historiador tem um pouco do ficcionista e vice-versa. A atenção para essa inclusão dos contrários já denota no discurso do cronista machadiano uma atenção para o sentido maior do diálogo (Bakhtin, 1992), que é movimento, deslocamento do eu ao tu, aumentando o espectro do olhar sobre a realidade ao experimentar o jogo entre posições opostas que, ao invés de se anularem na bipolaridade, podem conviver na tensão dialógica das diferenças. Não é à toa que o jovem Machado em “O Jornal e o Livro” (Correio Mercantil, 1859) e “A Reforma pelo Jornal” (O Espelho, 1859) antevê a revolução trazida pelo jornal para o livro: é o confronto entre as potencialidades de um meio de massa instaurador de um diálogo democrático e popular e um meio erudito e de alcance bem menor para um público de 70% de analfabetos: O livro era um progresso; preenchia as condições do pensamento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma coisa; não era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, aparecendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um sistema planetário. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito moderno: é o jornal (ASSIS, M. de. 1992, p.945). 2 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 3 As bases do livro serão, senão destruídas, pelo menos abaladas pelo novo meio que desloca a atenção para o anonimato do homem comum, seus feitos nada heróicos e a coloquialidade de sua fala. O folhetim e a crônica respondem a esse apelo de novos materiais e procedimentos para atender a uma nova demanda. O livro acolhe seus “irmãos menores”, cria híbridos e sobrevive, seguindo, ele também, os princípios darwinianos da evolução das espécies. Dialogicamente, porém, o oposto também ocorre e o folhetim e a crônica criam, no jornal, um espaço onde o literário pode habitar, tensionando as notícias pela fabulação do imaginário. Transportes do livro para o jornal e do jornal para o livro, eis aí uma das habilidades machadianas que cria uma prosa mestiça em contínuo trânsito e inacabamento. No entanto, no Brasil da 2a. metade do século XIX, a consciência da função primordial do escritor, que é a formação de um público leitor, esbarrava em obstáculos quase que intransponíveis: afora o maior deles - o analfabetismo - que determinava a dominância de um público de auditório, preso às artimanhas retórico-persuasivas do orador, havia ainda os hábitos provincianos de imitação do modelo francês na imprensa folhetinesca, fazendo do divertimento e do estilo leve e moralizante uma meta de jornais e revistas endereçados à mulher. Machado, amigo e admirador de Alencar, aprendeu com ele as estratégias de convivência e corrosão do modelo paternalista vigente na sociedade, na literatura e na imprensa: aquele que dava ao narrador (-orador) o poder argumentativo e encantatório sobre um auditório conduzido, passivamente, pelo tom e pela retórica, excessiva e vazia, dos “medalhões”. Contraditoriamente, porém, veremos o jovem Machado adotando o mesmo tom retórico e grandiloqüente, que depois condenará, em textos opinativos como os já citados “O Jornal e o Livro” e “A Reforma pelo Jornal”, nos quais a visão mítica do novo meio de comunicação- o jornal - frente ao velho – o livro – assume graus de louvor e admiração condizentes com a ideologia positivista de progresso vigente na época: O que era a imprensa? Era o fogo do céu que um novo prometeu roubara, e que vinha animar a estátua de longos anos. Era a faísca elétrica da inteligência que vinha unir a raça 3 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 4 aniquilada á geração vivente por um meio melhor, indestrutível, móbil, mais eloqüente, mais vivo, mais próprio a penetrar arraiais de imortalidade (ASSIS, M.de. 1992, p.944). No entanto, essa fé inabalável no progresso por meio do simples contágio com o jornal - o que levaria a argumentação, inevitavelmente, para a morte do livro - interrompe-se quando, em “O Jornal e o Livro”, o autor se pergunta, numa atitude típica de leitor: Mas estará bem definida a superioridade do jornal? (...) Admitido o aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo” (ASSIS, M. de.1992, p.946, 948). Esse deslocamento do eu ao tu, numa espécie de discussão consigo próprio, já denuncia o germe de um diálogo que Machado nunca mais deixaria de alimentar, provocando as frágeis seguranças dos narradores e dos seus pactos de leitura com a recepção. É justamente nesse exercício da palavra dialogada que Machado reconhece a grande revolução trazida pelo jornal ao livro: Ora pois, a palavra, esse dom divino que fez do homem simples matéria organizada, um ente superior na criação, a palavra foi sempre uma reforma. Falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é ainda o monólogo; escrita no livro, é ainda criadora, é ainda prodigiosa, mas é ainda o monólogo; esculpida no jornal, é prodigiosa e criadora, mas não é o monólogo, é a discussão (ASSIS, M. de. 1992, p.963). Nesses sutis movimentos de “levantar a cabeça”2, como nos diria Barthes ao falar sobre a raiz digressiva e transgressora da atividade de leitura, Machado de Assis exercita a sua maestria da “arte de narrar como quem lê”, isto é, deslocando-se constantemente do “eu” ao “tu”; posicionando-se em outro ponto de visão, de onde possa fazer circular o dito à luz de outro dizer. Essa é a fonte da discussão e do pensamento dialógico, que já estão presentes em Machado desde esses primeiros textos da juventude. 2 Barthes cria esse correlato entre a leitura e o ato de levantar a cabeça quando, em 1970, em Le Figaro Littéraire, busca definir o tipo de texto crítico que elaborou em S/Z, isto é, a “escritura de uma leitura” (texto escrevível) transgressora de um texto clássico (a novela Sarrasine de Balzac) e cujo caráter é digressivo e disseminador como toda leitura que se escreve. Diz ele: “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de idéias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça? É essa leitura, ao mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volta e dele se nutre, que tentei escrever”. (“Escrever a leitura” em O Rumor da Língua, p.40). 4 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 5 É nesse espaço de interlocução que se concentra um dos pilares, quiçá o maior deles, de toda a arte narrativa machadiana, seja nas crônicas, seja nos contos e romances. Nele, impera, soberano, o olhar enviesado de míope a espreitar o “outro” que o acompanha como parceiro e cúmplice de qualquer ato narrativo - o leitor. É em seu louvor que Machado se esmera, com engenho e arte, para construir pontes estratégicas entre o “estar dentro” (o texto e seus seres ficcionais: autor implícito, narrador, leitor implícito, etc.) e o “estar fora” (o autor, a obra e o público). Essa arte de projetar pontes, do invisível ao visível, faz dos autores ficcionais e narradores machadianos, em especial o cronista e seus duplos – Job, Eleazar, Manassés, Lélio, Malvolio, etc. - mestres da palavra dialogada e sedutoramente persuasiva, capaz de divertir, ensinar e criticar a um só tempo. Enraíza-se aí o projeto machadiano de formação de um público para a literatura, inscrito em sua produção de crítica literária como “O Ideal do Crítico” (Diário do Rio de Janeiro, 1865) e “Instinto de Nacionalidade” (Novo Mundo, 1873). História de Quinze Dias e o cronista Manassés: aquele que faz esquecer Se a crônica traz inscrita em si o vínculo com o tempo e a memória, não deixa de ser irreverente o pseudônimo que Machado de Assis escolhe como sua assinatura para a seção “História de Quinze Dias” (1876-1877 em Ilustração Brasileira): Manassés, “aquele que faz esquecer”3. Talvez o esquecimento fosse mesmo o destino que Machado antevia para as suas crônicas, feitas de retalhos ínfimos do cotidiano, sob o signo Manassés, segundo a Enciclopédia Católica, foi o filho mais velho de José do Egito. O nome vem do hebraico “menas” que significa “aquele que faz esquecer”. Diz o livro do Gênesis (41, 50-51): “Antes que viesse o ano da fome, nasceram a José dois filhos, que lhe deu Asenet, filha de Putifar, sacerdote de On. José chamou ao primeiro Manassés, porque, dizia ele, ‘Deus fez-me esquecer de todo o meu trabalho e de toda a minha família’” (Bíblia Sagrada, p.90). 3 5 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 6 da efemeridade do jornal, ao invés da durabilidade sustentada pelo livro, que se perpetua a cada nova edição. Corrobora com essa idéia a resistência de Machado, quando instigado por Mário de Alencar4, a transportar para o livro senão todas as quase 600 crônicas que produziu durante a sua vida de escritor, ao menos aquelas publicadas na seção “A Semana” da Gazeta de Notícias (1892-1897), consideradas pela crítica como as melhores dentre a produção cronística do autor. O máximo que Machado concedeu à insistência do amigo foi a edição de apenas seis das crônicas de “A Semana” em Páginas Recolhidas de 1899. No livro, adquiriram títulos que não existiam na sua versão primeira em jornal, onde as crônicas eram demarcadas, unicamente, pela data. São elas: “Vae Soli” (17/07/1892),“Sermão do Diabo” (04/09/1892), “Garnier” (08/10/1893); “Salteadores da Tessália” (26/11/1893),“A Cena do Cemitério” (junho/1894) e “Canção de Piratas” (julho/1894). Esse fato traz à tona a diversidade de produção-recepção da crônica quando se transfere de um meio para outro (jornal/livro). Revela-se uma tensão entre: • o material perecível e o duradouro; • as miudezas descartáveis do cotidiano e sua duração perceptiva para além do tempo-espaço que as gerou por conta de algum sentido interior, mais amplo e universal; • a função de divertir e informar um público de “massa” (conforme palavras de Machado em “A Reforma pelo Jornal”: “a primeira propriedade do jornal é a reprodução amiudada, é o derramamento fácil em todos os membros do corpo social”.) e a de levar à formação de um outro tipo de leitor, mais atento e receptivo aos efeitos ficcionais, instigado, talvez, pela própria exigência que o livro faz de uma leitura solitária. 4 Mário de Alencar, na “Advertência” de sua edição de 1910 das crônicas machadianas selecionadas de “A Semana”, diz o seguinte: “Ao próprio autor lembrei e pedi que as reunisse em livro e posto me objetasse ás vezes com dúvida sobre o valor desses escritos, salvo um ou outro além dos já publicados nas Páginas Recolhidas, não me pareceu que ficasse alheio ao pensamento de fazer a coleção” (Referência colhida em Machado de Assis, Escritor em Formação de Lúcia Granja, p.19). 6 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 7 O cronista é, mais do que aquele que recolhe impressões da matéria viva dos acontecimentos, um leitor atento dos jornais, de onde lhe vem, indiretamente, o material de sua crônica, como bem observa Machado na abertura de “História de Quinze Dias” de 01/07/1876: Que tais sejam os tais fenômenos ou prodígios, não sei, porque os não vi. E já o leitor concluirá daqui o valor de um cronista que pouco vê do que fala, uma espécie de urso que se não diverte (ASSIS M. de. 1992, p.338). À semelhança do “trapeiro”, colecionador de coisas mínimas, imagem tão cara a Benjamin para definir o novo papel do artista na modernidade5, o cronista é também um colecionador à procura de alguma “miudeza”, desprezada pelo noticiário central, que seja capaz de gerar, se olhada de perto, algum sentido deflagrador do imaginário e da ficção. Enquanto colecionador de ninharias, acaba selecionando, como matéria prima de sua crônica, aquilo que nada tem de informativo, mas que detona um sentido de estranheza capaz de gerar um “fato estético” a partir materiais alheios ao circuito da arte. A crônica de 01/agosto/1876 é um exemplo disso: No meio de tanta novidade – azeite herculano, ópera italiana, liberdade turca, não quis ficar atrás o Sr. Luís Sacchi. Não conheci Luís Sacchi; li porém o testamento que ele deixou e os jornais deram a lume. Ali diz o finado que seu corpo deve ir em rede para o cemitério, levado por seus escravos, e que na sepultura há de se lhe gravar este epitáfio: ‘Aqui jaz Luís Sacchi que pela sua sorte foi original em vida e quis sê-lo depois da sua morte’ . Gosto disso! A morte é coisa tão geralmente triste, que não se perde nada em que alguma vez apareça alegre. Luís Sacchi não quis fazer do seu passamento um quinto ato de tragédia, uma coisa lúgubre, obrigada a sangue e lágrimas. Era vulgar: ele queria separar-se do vulgo. Que fez? Inventou um epitáfio, talvez pretensioso, mas jovial. Depois dividiu a fortuna entre 5 A imagem do artista como colecionador do lixo que a metrópole despreza e que ele recupera por meio da intervenção estética é bastante apropriada na sua correlação com o cronista. É de Baudelaire esta significativa descrição que Benjamin recolhe para argumentar a favor dessa nova imagem do artista-trapeiro na modernidade: “ ‘Aqui temos um homem – ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo que a cidade grande jogou fora, tudo que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis’ Essa descrição é apenas uma dilatada metáfora do comportamento do poeta segundo o sentimento de Baudelaire” (Benjamim, Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo, p.78). 7 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 8 os escravos, deixou o resto aos parentes, embrulhou-se na rede e foi dormir no cemitério (ASSIS, M. de.1992, p.342; grifos nossos). Há aí, no modo de narrar do cronista, o aproveitamento de um caso periférico do noticiário quinzenal, cuja estranheza acaba gerando um efeito ficcional: a transformação da pessoa (o italiano Luís Sacchi) em personagem. É claro, porém, que nessa, como em outras crônicas de “História de Quinze Dias”, o principal efeito a ser buscado é o de entretenimento por meio da fabulação e de outros jogos com a imaginação do leitor. Os saltos do cronista de um comentário a outro, percorrendo o noticiário quinzenal (azeite herculano, ópera italiana, liberdade turca etc.), acaba sendo um trabalho repetitivo e estafante, de modo que essas paradas estratégicas funcionam como relaxamento e distensão para ambos – cronista e leitor. No entanto, se o caso diverte também faz pensar e o narrador sabe como tirar conseqüências ruminativas6 de um noticiário, aparentemente trivial (o testamento de Luís Sacchi), investindo naquilo que tem de invulgar e contrário ao senso comum. É o germe do processo de formação de um outro tipo de público, cuja leitura vai na contramão do automatismo e da identificação. Leitura como “arte da mastigação” do lido: recortado, deslocado, digerido e investido de um novo sentido. Antropofagia avant-la-lettre. Nesse sentido, ser / não ser cronista-colibri é o dilema de Machado de Assis em “História de Quinze Dias”, onde podemos observar, nos saltos nem sempre bem sucedidos do cronista, o seu esforço para conectar assuntos tão díspares entre si, fato que ironiza em crônicas como esta de 01/11/1877: Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem- 6 O ato de ler e de “escrever a leitura” como uma espécie de “mastigação ruminativa” se torna exercício “programático” em Memórias Póstumas de Brás Cubas, conforme demonstramos em ensaio anterior “Memórias Póstumas entre o ver e o verme – uma poética da leitura” (Recortes Machadianos, p. 21-62). Em Esaú e Jacó, explicita-se, também, tal forma de ler:“O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida” ( cap..LV). 8 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 9 se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e ‘ la glace est rompue’: está começada a crônica (ASSIS, M. de.1992, p.369). Se a imagem do colibri 7, com a qual José de Alencar cunha o cronista, é, por um lado, alvo da crítica de Machado na figura do colibrifolhetinista8, espécie fútil e vulgar em oposição ao jornalista, não deixa de ser curioso observar como consegue estabelecer com ele uma relação tensa entre aceitação-recusa nas suas crônicas de “História de Quinze Dias”. Essa duplicidade será o ponto chave de nossa análise a partir de agora por meio da seleção de algumas estratégias que cumprem finalidades duplas nessas crônicas – de um lado a função de divertir e informar, própria dos “rodapés” dos jornais; de outro, acenam com outra função: a de deslocar a atenção do leitor para aspectos pouco perceptíveis nos fatos noticiáveis, habilitando-o para a crítica e para a percepção estética desarticuladora do senso comum. A crônica de 15/setembro de 1876, por exemplo, vai nessa direção, ao abrir com o fato noticiável mais significativo da quinzena - a data comemorativa da Independência - para daí o cronista conduzir o leitor para aquilo que se esconde num fato histórico como esse: Este ano parece que remoçou o aniversário da Independência (...) Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século. Segundo o ilustrado paulista não houve nem grito nem Ipiranga (...) Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico”.(ASSIS, M. de.1992, p. 346-347). É de José de Alencar a comparação entre o cronista e o colibri em crônica de 24/09/1854, no Correio Mercantil: “Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto sério (...) Fazerem do escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho” (Ao Correr da Pena, p. 39). 8 Machado de Assis, ao falar sobre o folhetinista em crônica de 1859, faz uma interessante releitura de Alencar: “O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal: salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política” (“O Folhetinista” em O Espelho, 1859; ver em Obra Completa, R.Janeiro: Nova Aguilar, p.958 –960; grifos nossos). 7 9 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 10 O jogo entre a opinião do cronista e a do “amigo” ficcional cria duas versões para a data da Independência: a do ilustrado, que investe contra a crença popular no mito da tradição histórica e a do cronista, que assume posição contrária, aliando-se ao senso comum da versão popular ao sobrepor a lenda à verdade dos fatos. Ironicamente, porém, o desequilíbrio trazido pela dúvida já está instalado, o que pode significar para a crônica um duplo efeito sobre a recepção: ou contribuir para a formação de um leitor que, à semelhança do par ficcional cronista/amigo ilustrado, seja capaz de pensar sobre a distância entre o acontecido e o narrado pelos historiadores; ou contribuir para o entretenimento ao contar casos amenos sobre comemorações e festividades públicas, reforçando a crença popular nos heróis nacionais. Tal duplicidade funcional - divertir e educar o leitor para a “leitura ruminativa” - perpassa “História de Quinze Dias” por meio de vários procedimentos narrativos dos quais destacaremos: os trocadilhos, as personificações das fábulas e a ironia. O uso dos trocadilhos, fundado na coloquialidade da fala popular, é bastante freqüente nas crônicas em questão, conforme poderemos observar em duas delas - as de 15/07 e 15/03 de 1877 - nas quais o cronista comenta sobre dois tipos de inaugurações: a da estrada de ferro de São Paulo e a dos bondes de Santa Teresa: Pobre de mim! Fiquei, não a ver navios, porque a estrada acabou com eles, mas a ver vagões; fiquei de queixo caído, com água na boca, às moscas - todas as fórmulas de um deserdado da fortuna” (1992, v.III, p.239; grifos nossos); “Alguns burros afeitos à subida e descida do outeiro, estavam ontem lastimando este novo passo do progresso. Um deles, filósofo humanitário e ambicioso, murmurava: __ Dizem: les dieux s’en vont. Que ironia! Não, não são os deuses, somos nós. Les ânes s’en vont, meus colegas, les ânes s’en vont (ASSIS, M. de.1992, p.364; grifos nossos). Em ambas, usa-se o recurso do trocadilho para a obtenção de efeitos distintos: de um lado a diversão e o riso provocados pela rápida substituição dos termos qualificadores do cronista (não ver navios, mas vagões/ queixo caído/ água na boca/às moscas); de outro, levar à reflexão de como uma simples troca 10 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 11 de palavras - deuses/asnos se vão - pode significar as conseqüências perversas do progresso (burros/bondes), além de derrubar a “língua dos deuses” do século XIX - o francês - de seu trono, ao ser alvo de troça/troca pelo mais irracional dos animais - o burro. No entanto (inversão das inversões!), trata-se de um burro filósofo e mestre da ironia, talvez numa sutil alusão a Sócrates, cujo método de conhecimento da verdade fez da ironia e de sua lógica do avesso as armas para a demolição das falsas idéias. Do não-saber (“Só sei que nada sei”), gera-se o seu oposto por meio da provocação do diálogo. Na figura do burro filósofo representa-se, ainda, a ideologia do cronista, que, de certa forma, atua como os moralistas das fábulas ao personificar nos animais conceitos e valores que deseja incutir no leitor: E esse interessante quadrúpede olhava para o bonde com um olhar cheio de saudade e humilhação. Talvez rememorava a queda lenta do burro, expelido de toda a parte pelo vapor, como o vapor o há de ser pelo balão, e o balão pela eletricidade, a eletricidade por uma força nova, que levará de vez este grande trem do mundo até à estação terminal (ASSIS, M. de.1992,p.364). Invertendo, porém, a “moral da história” dos fabuladores tradicionais, que contavam com a passividade da recepção aos seus conselhos, este narrador-cronista prefere sugerir (“talvez”) e ponderar mais do que afirmar e definir; estabelecer caminhos de mão dupla ao invés de única, apostando na formação de hábitos reflexivos no leitor. A fábula, com sua capacidade ficcional a serviço da argumentação, é uma das armas do cronista para atuar sobre o leitor, seja para “deleitá-lo e ensiná-lo”, confirmando o senso comum, seja para provocá-lo pela ambivalência do efeito irônico. Tal é o que acontece em muitas das crônicas de “História de Quinze Dias” como a de 15/08/1876, na qual o “algarismo” oferece grandes ensinamentos ao leitor: Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas, nem de metáforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases; o algarismo não tem frases, nem retórica. Assim por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso país dirá: 11 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 12 ___(...) A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o Sr. Fidélis Teles de Meireles Queles (...) A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade: ____A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9 % não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles; é não saber o que ele vale, o que ele pensa (...) 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque nem o quê (...) A opinião pública é uma metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. (...) E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não temos base segura para os nossos discursos, e ele tem o recenseamento (ASSIS, M. de.1992, p.344-345). Na cena dialogada, instaura-se o confronto entre dois interlocutores - o homem (cronista ou leitor) e o algarismo - e dois discursos - o do letrado, que sabe manejar as palavras, e o dos números, que ignora artifícios retóricos. À semelhança de um diálogo socrático, cabe ao algarismo, a partir de sua inabilidade com frases ou figuras de estilo, demolir as falsas idéias sobre “opinião pública” daqueles (os 30% de alfabetizados, incluindo aí o próprio cronista e o leitor) que se julgam conhecedores da arte de bem falar/escrever e persuadir. Dá-se aí o confronto entre dois tipos de palavra: a retórica, que é “ornamentada”, porém desprovida de base real, e a direta, simples e comezinha, porém apoiada em dados da realidade (o recenseamento). Na figura do algarismo e no seu discurso direto e afirmativo, imune a estratégias persuasivas, nada há a esconder e a denúncia se faz em alto e bom som: não se pode falar em opinião pública num país com 70% de analfabetos. A estratégia do cronista consiste em apropriar-se dos dados do recenseamento feito pelo império para, após “passá-los e repassá-lo pelos 4 estômagos do cérebro” num exercício de leitura ruminativa, deles extrair uma reflexão crítica por meio da construção de um diálogo ficcional fundado sobre a fábula e a ironia. Da fábula, traz a capacidade de argumentar a favor de idéias e valores abstratos (a ideologia do cronista) por meio de imagens animadas e concretas, de modo que os conceitos, investidos de qualidades humanas, podem ser imediatamente compreendidos pelo leitor, mesmo aquele pouco ou nada alfabetizado. Da ironia, 12 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 13 traz o avesso da função moralizadora das fábulas ao investir contra o senso comum (no caso, o que os 30% de alfabetizados entendem por “opinião pública”) e o habitual aconselhamento persuasivo e direcionado da cláusula final da “moral da história”. Na figura do “algarismo”, duas imagens se cruzam: de um lado, é ele o “porta-voz” dos 70 % que não têm acesso à arte retórica do bem falar e escrever, mas são capazes de entender a linguagem clara e sem ilusionismo dos números; de outro, é o “algarismo” o porta-voz do cronista para atacar a metáfora da “opinião pública”, voz corrente entre a minoria letrada, na qual o próprio cronista se inclui. A argumentação e a contra-argumentação, encenadas no espaço da crônica, ganham em intensidade ao final, quando o cronista sugere a natureza hipotética e ficcional desse diálogo (“E eu não sei se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não temos base segura para os nossos discursos, e ele tem o recenseamento”), além de acenar com a impossibilidade de contra-argumentação à lógica contundente de um ser que, como o algarismo, não sabe articular frases com “engenho e arte”, mas leva aquele que sabe (o cronista, inclusive) ao limite da afasia e do silêncio. Por outro lado, é possível perceber que no embate entre os dois tipos de discurso - retórico/não-retórico - é que se compõe a imagem da crônica e do cronista para Machado de Assis, isto é, a crônica é construída como um espaço narrativo tensionado entre as estratégias narrativas de um narrador letrado, que conhece os modelos literários e sabe manipular o discurso e seus efeitos sobre o leitor, e a despretensão de um relato simples e espontâneo, próximo aos acontecimentos do cotidiano e capaz de criar laços com o leitor comum pela retomada das raízes populares e orais do relato. A essa tensão e duplicidade, em nível de discurso narrativo, corresponde, também, dupla funcionalidade em nível dos efeitos da crônica sobre o público leitor das seções de “variedades” dos rodapés dos jornais. Se, por um lado, cabe ao cronista lançar mão da coloquialidade da fala e das formas narrativas de raiz popular (trocadilho, fábula, casos, anedotas etc.), para criar 13 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com 14 cumplicidade e fortalecer pactos de leitura com aquele leitor “que tem orelhas no lugar dos olhos” e está menos habilitado para as estratégias retóricas do livro; por outro, faz uso de uma figura retórica - a ironia - para subverter esse primeiro patamar no qual se instala confortavelmente com o leitor para “passar o tempo” na conversa descompromissada que o espaço do jornal reserva para a crônica. Na ironia está a base sobre a qual se funda outro pacto de leitura do narrador-cronista com seu leitor: o de formação de uma consciência crítica e de uma agudeza perceptiva para os dois lados daquilo que se diz: o visível e o invisível; o dito e a sua negação; o revelado e o subentendido. Nela, na ironia, se fundamenta a arte da leitura enquanto “mastigação ruminativa”, exigindo que a atenção do leitor se volte para as tonalidades e sutis deslocamentos do discurso. Dessa forma, seja para a crônica cumprir o compromisso com o entretenimento dos “rodapés” e “variedades” do jornal naquilo que tem de popular e democrático, conforme anunciava em “O Jornal e o Livro”, seja para fazer o leitor “levantar a cabeça” e criar o espaço para o deslocamento e a reflexão (a mastigação ruminativa), é possível perceber, no espaço do jornal, o prenúncio de um tipo de recepção mais distanciada e individual que o livro propicia, apontando para uma finalidade diversa: a de formação de um leitor receptivo para as duplicidades e simulações, próprias do universo da ficção e da literatura. Referências Bibliográficas ALENCAR, José de. Ao Correr da Pena. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1955. ASSIS, Machado de. 8a. ed. Obra Completa – volume III. 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